VANDENBERGHE as Sociologias de Simmel Resenha

6
VANDENBERGHE, Frédéric. As Sociologias de Georg Simmel. São Paulo: EDUSC; Belém: EDUFA, 2005. Luziana de Oliveira Silva Simmel, o teórico incompreendido, construiu sua obra, enquanto sociólogo-filósofo, a partir do diálogo entre os diversos campos de conhe- cimento, a saber, a sociologia, a filosofia e a psicologia. Caracterizado pelo seu estilo ensaísta e seu relacionismo analógico, sua sociologia de conflito entre opiniões contrárias e igualmente concludentes, descrita até como anti-sistêmica, recebeu duras críticas. Sua sensibilidade e imaginação para abordar os diversos temas distanciaram-no das pretensões sociológicas da época. Simmel tratou de vários objetos de estudos e temáticas diferentes, boa parte assuntos inéditos e inovadores. Foi original no tratamento das escolhas dos objetos de análise, no direcionamento do olhar do pesquisador, na formulação de noções operatórias (a calculabilidade da vida moderna, o direcionamento temporal do relógio, entre outros) e no constante questionamento do conhe- cimento – nesse sentido, produziu uma instigante sociologia do conhecimento, bem como um conhecimento do ser no mundo e suas relações sociais. Apesar do caráter filosófico que permeava seus escritos, Simmel (1858- 1918) centrou-se no estudo das formas de associação e pode ser considerado um dos fundadores da sociologia. Traçando uma epistemologia das ciências sociais e projetando uma metafísica da vida social, seu pensamento extrapola as fronteiras das análises sociológicas. Devido à diversidade de temas discutidos e a transitoriedade de suas reflexões, dispersas em vários textos, sua obra é inserida, muitas vezes erroneamente, em modelos teóricos e metodológicos tais quais, “individualista metodológico”, “fenomenológico-hermenêutico”, “dialético- crítico”, “tradição crítico-transcendental”, entre outros. Fazendo uma interpretação da sociologia de Simmel e considerando os aspectos filosóficos de sua obra, Frédéric Vandenberghe apresenta, como o próprio nome do livro já sinaliza – “As Sociologias de Simmel” –, uma síntese das diferentes propostas do pensamento simmeliano, as quais foram classificadas no livro resenhado como: sociologia geral, sociologia formal e sociologia filosófica. Situando a obra dentro do contexto teórico temporal em que foi escrita e fazendo a conexão com a análise social contemporânea, Vandenberghe consegue sair ileso da tentação – que Maffesoli não conseguiu resistir – de transportar ISSN 0104-8015 POLÍTICA & TRABALHO Revista de Ciências Sociais n. 25 Outubro de 2006 - p. 247-252

description

-

Transcript of VANDENBERGHE as Sociologias de Simmel Resenha

  • 247

    VANDENBERGHE, Frdric. As Sociologias de Georg Simmel. SoPaulo: EDUSC; Belm: EDUFA, 2005.

    Luziana de Oliveira Silva

    Simmel, o terico incompreendido, construiu sua obra, enquantosocilogo-filsofo, a partir do dilogo entre os diversos campos de conhe-cimento, a saber, a sociologia, a filosofia e a psicologia. Caracterizado pelo seuestilo ensasta e seu relacionismo analgico, sua sociologia de conflito entre opiniescontrrias e igualmente concludentes, descrita at como anti-sistmica, recebeuduras crticas. Sua sensibilidade e imaginao para abordar os diversos temasdistanciaram-no das pretenses sociolgicas da poca.

    Simmel tratou de vrios objetos de estudos e temticas diferentes, boaparte assuntos inditos e inovadores. Foi original no tratamento das escolhas dosobjetos de anlise, no direcionamento do olhar do pesquisador, na formulaode noes operatrias (a calculabilidade da vida moderna, o direcionamentotemporal do relgio, entre outros) e no constante questionamento do conhe-cimento nesse sentido, produziu uma instigante sociologia do conhecimento,bem como um conhecimento do ser no mundo e suas relaes sociais.

    Apesar do carter filosfico que permeava seus escritos, Simmel (1858-1918) centrou-se no estudo das formas de associao e pode ser consideradoum dos fundadores da sociologia. Traando uma epistemologia das cinciassociais e projetando uma metafsica da vida social, seu pensamento extrapola asfronteiras das anlises sociolgicas. Devido diversidade de temas discutidos e atransitoriedade de suas reflexes, dispersas em vrios textos, sua obra inserida,muitas vezes erroneamente, em modelos tericos e metodolgicos tais quais,individualista metodolgico, fenomenolgico-hermenutico, dialtico-crtico, tradio crtico-transcendental, entre outros.

    Fazendo uma interpretao da sociologia de Simmel e considerando osaspectos filosficos de sua obra, Frdric Vandenberghe apresenta, como oprprio nome do livro j sinaliza As Sociologias de Simmel , uma sntesedas diferentes propostas do pensamento simmeliano, as quais foram classificadasno livro resenhado como: sociologia geral, sociologia formal e sociologiafilosfica.

    Situando a obra dentro do contexto terico temporal em que foi escrita efazendo a conexo com a anlise social contempornea, Vandenberghe conseguesair ileso da tentao que Maffesoli no conseguiu resistir de transportar

    ISSN 0104-8015POLTICA & TRABALHO

    Revista de Cincias Sociaisn. 25 Outubro de 2006 - p. 247-252

    BrunelloHighlight

    BrunelloSticky NoteUnmarked set by Brunello

  • 248 Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25

    Simmel para um cenrio ps-modernista de desindividualizao. Fugindo dafiliao, desse pensamento, ao modelo individualista metodolgico, ocomentarista faz uma leitura de interpretao filosfica, inserindo a obra numcenrio fenomenolgico-hermenutico e dialtico-crtico.

    Localizando Simmel entre Kant e Hegel e entre Marx e Weber, econsiderando a influncia de Nietzche e Bergson, so analisadas as formas deassociao, a oposio entre forma e contedo, a teoria do conhecimento e afilosofia da cultura, temas centrais da sociologia simmeliana.

    Sistematizando as diferentes faces da obra, o livro apresenta, no primeirocaptulo Um metafsico do social, uma leitura do estilo e do mtodo dopensamento de Simmel. Partindo da premissa que, por trs de sua aparente anti-sistematicidade, h uma sistemtica que unifica esse pensamento, a anlise doestilo segue do seu brilhante ensasmo ao legado de hipteses e teses negadopor muitos e desenvolvido posteriormente por outros.

    Apesar de ter sido criticado pela multiplicidade de temas dspares queanalisou, a proposta de seus estudos traduz-se na busca de entendimento dodetalhe da vida, isto , do microcosmo1 para se chegar ao sentido do macrocosmo.O sentido global da vida nesse panorama dotado de conexes analgicas e deuma multiplicidade de relaes que so descritas dentro do princpio filosficodo relacionismo como princpio epistemolgico de ordem reguladora. Atravsdas interaes, a sociedade torna-se real, e a rede tecida entre a experincia subjetiva,intersubjetiva e a coletividade das instituies constroem o social.

    Na tentativa de distinguir o universo simmeliano em fases a saber: aprimeira neodarwinista, a segunda, aproximao com a escola neokantiana e aterceira, vitalista Vandenbergh esbarra na complexidade de classificar em fasesuma obra repleta de ambivalncias. No segundo captulo, tratando do carterdualista desse pensamento, o comentarista mergulha na teoria do conhecimentosimmeliana e faz uma leitura da sociologia formal, da filosofia da vida e dacultura, considerando a ligao dialtica do neokantismo e do vitalismo, de modoa apresentar a unidade do pensamento de Simmel.

    A difcil tarefa de situar Simmel feita com clareza por Vandenberghe, jque h um vai-e-vem na sua teoria, ocorrendo momentos nos quais se aproximade Kant e outros, de Nietzsche e Bergson. Ao pensar o conhecimento a partirdo carter construtivista e escrevendo sobre a filosofia da vida, o pensamentosimmeliano parte de Kant. Apesar de se valer desses pressupostos doconhecimento em seu livro sobre Kant, ele no apenas critica o autor da Crticada razo pura por sua concepo intelectualista, racionalista e mecanicista da

    1 Apesar de reconhecer a importncia da microssociologia nos estudos de Simmel,Vandenberghe critica a ausncia de escritos reconhecendo o valor da filosofia na unidadedo universo simmeliano.

  • 249

    realidade, refletindo a frieza do mundo das mercadorias, mas ele modifica, ainda,a teoria das formas, conduzindo-a para uma direo culturalista e vitalista (p.62).No decorrer de toda explicao da sociologia simmeliana, Vandenberghe entrelaaas idas e voltas da obra, a referncia Kantiana.

    Elucidando as contradies dos diferentes conceitos de forma da sociologiasimmeliana, o comentador inicia suas anlises na sociologia formal. A ltima foidescrita como uma disciplina autnoma, com mtodo especfico para analisar asformas que estruturam as associaes, compreendendo o conjunto das interaesentre os indivduos. Sem fugir dos preceitos de polaridades intrnsecos nessateoria, as formas de associao exprimem o princpio da dualidade: formas,contedos e interaes.

    Aqui, gostaramos apenas de destacar como as formas que estruturam e unificam asinteraes se deixam, elas prprias, analisar-se em uma perspectiva dualista comouma sntese de foras opostas (p.70).

    A base metodolgica da sociologia formal foi decifrada no terceirocaptulo por meio de uma leitura da dialtica dos contedos e das formas, indoem sentido de uma sociologia interacionista e relacionista das formas de associao.A caminho da epistemologia e da metafsica do social, Simmel problematiza asconstrues estritamente analticas das formas de associao feita por grandeparte dos socilogos.

    Seguindo uma viso da sociologia formal interacionista, em direo auma ontologia vitalista, o universo simmeliano percorre o movimento dopensamento a caminho do entendimento. A noo de conhecimento, tendo comoprimordial a experincia vivida, adverte sobre os riscos de tentar apreender oreal sem considerar sua pluralidade de perspectivas e sua totalidade heterognea.

    Na interpretao dos domnios do saber problematizados por Simmel,as sociologias do ltimo podem ser descritas desse modo: a sociologia geral(abrangendo a macrossociologia histrica), a sociologia formal (microssociologia-histrica) e a sociologia filosfica (a sociologia que transcende seus limites sedirecionando a reflexo filosfica). No esquecendo da conceitualizao desociedade enquanto construda pelo processo de associao contnuo e criadorde interaes entre indivduos defendido por Simmel, o livro interpreta a idiade rede, na qual tecida os fios, isto , os jogos de interaes que tornam asociedade possvel.

    Abordando as aes recprocas entre sociedade e indivduo, posto emquesto a filiao que feita de Simmel com o individualismo metodolgico.Apresentando uma viso em que o autor parece desprezar a autonomia dosocial, relacionando as premissas de Simmel tese durkeimiana, Vandenbergheaps descrever essa crtica, sai em defesa do posicionamento do pensamentosimmeliano e apresenta uma vertente interacionista e no individualista.

    RESENHA

  • 250 Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25

    Simmel no defende nem as premissas do individualismo nem as do holismoontolgico, mas, antes, aquelas que proponho chamar de relacionismo ontolgico,nem a sociedade nem o indivduo como tais so reais, salvo por suas implicaesrecprocas (pp.98).

    Fazendo uma leitura profcua dos jogos de interao que, segundo aperspectiva simmeliana, torna sociedade real, no final do terceiro capitulo, sonomeados trs a priori sociolgicos das formas de associao, a saber, a priori daindividualidade (a apropriao do papel social como conservao e expressoda singularidade do indivduo), do papel (posio social assumida como funo)e da estrutura (a sociedade concebida como suis generis com funes sociaisinterligadas).

    Ora, se a oposio se transforma em interao, apesar de s vezes adistino entre forma e contedo aparentar ter desaparecido, as formas econtedos do unidade a gama de temas tratados por Simmel. A sua forma detransitar pelos diversos tipos de objetos analisados pode levar o leitor a umaligeira confuso sobre seus preceitos. Todavia, de forma brilhante, Vandenberghedecifra a obra simmeliana e deixa como legado um manual explicativo dasreflexes filosficas para chegar sociologia das formas do Alemo.

    Partindo de uma anlise comparativa entre Simmel e Husserl e seu mtodofenomenolgico o quarto capitulo faz uma interpretao dos passos daabordagem metodolgica do pensamento simmeliano, em suas pesquisas sobreas formas de associao e interao. Considerando que muito j foi dito sobre aausncia de mtodo da obra, o comentador se debrua na tese central da visode mundo simmeliano a teoria relacionista e levanta a hiptese de que sepudermos dizer que Simmel tem um mtodo esse seria eidtico-analgico (p.104). Nas tipologias escritas nos diversos ensaios so trabalhados conceitos como:distino, imitao, subordinao, proximidade, distncia, subjetividade,objetividade, alienao entre outros. Vagando de anlises psicossociolgicas auma verso sociolgica-filsofica, a unidade da obra se localiza na dualidade.

    Recorrendo a viso metafsica da Filosofia do dinheiro, no quintocaptulo, o vis scio-filosfico do pensamento de Simmel se centra no dinheirocomo smbolo unificador das relaes sociais de toda sociedade. Situado numasociologia especulativa histrica, o estudo trouxe uma perspectiva do homem,da vida, do mundo em si, no cenrio da modernidade2. Interpretando sua teoriavitalista e relacionista do mundo moderno, suas reflexes foram entendidas atravsde duas variantes, a analtica e a sinttica.

    2 O comentador relaciona a crtica da modernidade feita por Simmel, aos escritos de Marx eWeber, prolongando Marx e antecipando Weber, portanto entre Marx e Weber, justamente ai que preciso situar a filosofia simmeliana da modernidade (p. 131).

  • 251

    Enquanto a parte analtica descreve a gnese terica em termos de objetivao e deautonomizao do valor, a parte sinttica estuda as conseqncias da monetarizaouniversal segundo a dialtica da libertao do indivduo e da reificao (p.131).

    Vandenberghe assemelha, nessa perspectiva, o dinheiro universal, comoformador da unidade das oposies vida. Relacionando o valor troca, ovalor atinge para Simmel sua autonomia no dinheiro fazendo uma inverso demeio e fim. Sistematizando as conseqncias da sucessiva objetivao, da abstraoe da calculabilidade das relaes, o comentador descreve a anlise atravs de trsteses dialticas: a reificao das formas de associaes e a liberao da dependnciapessoal; a perda de sentido e a inverso dos meios em fim e a objetivao davida e a alienao do indivduo.

    Ao comparar a tese de Marx de ligao histrica do trabalho livre e aexplorao, com a tese sobre a diviso do trabalho em Simmel, o comentadorevidencia demasiadamente o carter libertrio da anlise simmeliana. No dadanfase ao que foi escrito no ensaio sobre A diviso do trabalho como causa dadiferenciao da cultura subjetiva e objetiva (1900), em que sinaliza a diviso dotrabalho como causa da diferenciao do esprito objetivo e subjetivo.Concordamos que nesse pensamento a dualidade entre sujeito e objeto mantmuma margem de liberdade do indivduo, todavia a tenso vivida nessa relaono despreza o conflito.

    No sexto e ltimo captulo a reflexo sobre a filosofia da vida e da cultura retomada. A tese advogada por Vandenberghe de que a obra de Simmel melhor representada como todo resto do pensamento de Simmel, a sociologiaformal pode ser compreendida como uma sntese astuciosa e original doneokantismo (oposio das formas e dos contedos) e do vitalismo (interao)(p.87), foi destacada, ao mesmo tempo, como um revisionismo de duas vertentes:a vitalista e a Kantiana

    Descrevendo, num quadro geral, os diferentes momentos do pensamentosimmeliano, de unificao de contrrios, o comentarista dividiu em trs campos:Em princpio a juno de interao e forma, cede espao para a teoria relacionistado conhecimento; num segundo momento, a combinao do contraste dasformas e dos contedos com a interao; e na terceira a transformao da teoriarelacionista do conhecimento em uma metafsica da vida.

    Fazendo uma sntese da obra, Vandenberghe apresenta as influncias deNietzche: tese de liberdade, autonomia individual e distino; no entanto, retornaa Kant para explicar a distino entre forma e contedo e para situar a crtica quea lei individual de Simmel faz a sua lei universal.

    O livro traz uma importante interpretao da obra simmeliana, trazendouma leitura mpar sobre a contribuio epistemolgica de Simmel nas cinciassociais. Debate muitas vezes relegado ao esquecimento, foi retomado de forma

    RESENHA

  • 252 Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25Poltica & Trabalho 25

    rica. Extrair da criatividade e sensibilidade fluda do socilogo Alemo as basesde suas diferentes percepes de forma, tendo em vista a transferncia de camposde anlises, no tarefa fcil.

    Gostaramos de enfatizar que foi dada pouca importncia explicaosimmeliana da rede de interdependncia da abordagem configuracional da idiade teia, que explica a oposio entre sujeito e objeto como uma construosocial. O dualismo entre sujeito e objeto resulta da experincia da vida vivida nasformas de associao. Devido proposta do livro de interpretar, a partir dareflexo filosfica, a obra de Simmel, o comentador pouco relacionou o conceitode interao do universo simmeliano a teoria social contempornea.

    Embora no apague o brilhantismo da obra de Vandenberghe, nopodemos deixar de sinalizar as seguintes questes: Ao perceber a oposio entresujeito e objeto como resultante de foras csmicas, o comentador faz umacrtica ao diagnstico feito por Simmel da modernidade. Sua crtica de grandeimportncia para reflexo dessa anlise, todavia nos parece que suas respostasso buscadas dentro de um modelo (macrossociolgico) estrutural marxista. Ouniverso simmeliano no desconhece a autonomia do social, apenas desloca aanlise do campo das instituies para uma perspectiva construtivista que emergedas interaes.