Verbete – Explicação e compreensão (Parte 2- Weber e seus ... · Schluchter, Friedrich...
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Fonte: Blog do Sociofilo [blogdosociofilo.com]
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Verbete–Explicaçãoecompreensão(Parte2:Webereseuscontemporâneos)
GabrielPeters
Aameaçapositivista
No post anterior desta série-verbete, vimos que a relação entre explicação e
compreensãofoiobjetodecontrovérsiasacerbasnaAlemanhadapassagemparao
séculoXX.Oestudo“naturalista”daatividadehumanaedeseusprodutoshistórico-
culturais, o qual parecia avançar a par e passo com transformações mais
abrangentes da sociedade alemã (p.ex., a industrialização e a urbanização
aceleradas), foi intensamente combatido por representantes da tradição
“humanística” nas universidades germânicas. Pairava sobre tais cabeças
mandarinescas, em suma, o ameaçador espectro do “positivismo”. Antes que
membrosdoCírculodeVienaviessemareclamarorgulhosamenteotermocomtiano
parasipróprioslápelosanosde1920,apalavraera(comoéhoje,aliás)muitomais
um rótulo derrogatório do que uma autoclassificação. Grossomodo, esse rótulo
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espinafravaconcepçõesnaturalistasdosmétodosdasciênciashumanas,sobretudo
quandoessasconcepçõesseexpressavamnabuscade“leisnaturais”queoperariam
àmargemdaconsciênciaedolivre-arbítriodoanthropos.Umadessasperspectivas
apareceunotrabalhodohistoriadorKarlLampretch,paraoqualahistóriaseria,em
última instância, uma “psicologia aplicada”, fundada sobre as “leis naturais” que
governariamopsiquismohumano(Weber,2012:7;17-18).
NotamosqueWilhelmDiltheyocupouumpapeldeproanareaçãoaopositivismo,
aomartelar comvigor asdiferenças entre as ciências naturais, de um lado, e as
ciências humanas ou do “espírito”(Geist),de outro. Com efeito, tal como Kant
buscaraestabelecerfundaçõesepistêmicasparaaciêncianaturalcomsuaCríticada
razãopura,Diltheyprocuroulevaracabouma“críticadarazãohistórica”(2002:
213)que fincasseosalicercesdahistória comoempreitada científica.Aomesmo
tempo, ainda que ele houvesse estabelecido um paralelo entre o seu
empreendimentofundacionistaeodeKant,oautorconcebeuoestudohistóricoda
atividade humana e de seus produtos socioculturais como um modo de
conhecimento radicalmente distinto das ciências da natureza. O prévio capítulo
desta série-verbete consistiuemumsingeloesforçoparamostrarqueaobrade
Diltheyémaiscomplexaenuançadadoquerezaofolclorepedagógicoarespeito
dessepersonagemnahistóriadasciênciashumanas.
Um texto didático e (espera-se) curto sobre Weber impõe, por seu turno, uma
dificuldadedistinta:nãobastasseacomplexidadeintrínsecaàsuaobra,aliteratura
dedicada à sua interpretação é tão vasta que a weberologia de hoje exige não
somenteoconfrontocomostextosdohomemmesmo,mastambémcomaprópria
história de sua exegese, tal como levada a cabo por autores como Wolfgang
Schluchter, Friedrich Tenbruck e outros tantos (cf. Sell [2013] para um
competentíssimoexemplo).Pelomenosnaopiniãodestequevosescreve,ajábem-
estabelecidaweberologiatupiniquimnãodeixanecaadesejaraosseuscongêneres
doAtlânticoNorte,incluindo-seaíaquelesqueaprenderamalínguadeMaxdesdeo
berço. Seja como for, alguns dessesweberólogos eruditíssimos se digladiam, até
hoje, em tornodediversaspendengasrelativasaoopusweberianum, tais comoo
graude influênciaqueRickert teriaexercidosobreWeberou, ainda,oquantoas
análises histórico-sociológicas substantivas do autor alemão seriam
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(in)consistentescomasdiretrizesexplícitasdeseusescritosmetodológicos(Cohn,
2003;Freitas,2012;Gusmão,2000;Mata,2013;Merquior,1980;Ringer,1997;Sell,
2013;Vandenberghe,2012).
Nomais,acomplexidadedatarefadecompreensãodaobradeWebernãoderiva
somenteda fortunacríticaacumuladaapósasuamorte,mastambémdopróprio
cenáriohistóricoeintelectualnoqual–apartirdoqual,paraoqualecontraoqual
–aditaobrafoiformulada.Emboraoentendimentodotrabalhodequalquerautor
reclame alguma sensibilidade ao contexto no qual ele emergiu, a atenção a tal
contexto ganha particular urgência quando o assunto é a ciência social de Max
Weber.Istoporquesuasprópriasperspectivassociocientíficasforam,emaltograu,
formuladasmedianteumdiálogodeincorporação-e-críticacomumavariedadede
autores de seu tempo, oriundos de procedências disciplinares como a economia
(p.ex.,Menger,Roscher,Knies),afilosofia(p.ex.,Simmel,Windelband,Rickert)eo
direito(p.ex.,Mommsen,Kries,Jellinek).Webersesaidessaconversapolifônicacom
umavisãooriginalenuançadaacercadetópicosvariadosdodebateepistemológico
sobre as ciências humanas. Como mostrou Gabriel Cohn (2003: 121), tal
originalidade intelectual vem frequentemente embalada, no entanto, em uma
terminologiaquefazusopragmáticodosvocabuláriosdeoutrosautores.Namedida
emqueograudeinfluênciaintelectualdetalouqualautorsobreWebernãopode
seringenuamenteinferidodemerassemelhançasterminológicas,boapartedoque
faz a weberologia contemporânea é uma averiguação detalhada dos principais
influenciadores do mestre alemão. Para oferecer somente a ilustração mais
ostensiva,éocaso,diga-seumavezmais,daspolêmicassobrequãoinspiradoWeber
teria sido por Rickert, de quem tomou emprestado um punhado de conceitos.
WolfgangSchluchter(1985:13-19),GuyOakes(1990)eSérgiodaMata(2013:67-
86),porexemplo,percebemumaprofundainfluênciadosegundosobreoprimeiro,
enquantoGabrielCohn(2003:81-97),JoséGuilhermeMerquior(1980:147-152)e
FritzRinger(1997:41-49)tomamaditainfluênciacomomenossignificativadoque
pareceriaàprimeiravista.(Quantoàminhaopiniãosobreacontrovérsia,sóseique
nadasei.)
Aciênciacomoformação;ouolegadohumanístico
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ComoperitonaobradeWeberenahistóriadaAlemanhamoderna,Ringer(1997)
pintaumpanoramainformativodaatmosferaintelectualnaqualnossoheróiestava
imerso.Diferentementedosoutrosdoisporquinhosdasociologiaclássica,Marxe
Durkheim,Webernãochegouaoterrenosociológicoadvindodafilosofia,mas,sim,
de uma formação robusta emhistória dodireito e da economia (Giddens, 2005:
175). No post anterior desta série, vimos que o status epistemológico do
conhecimentohistóricotornara-se,então,umapreocupaçãocentralparaumlargo
contingentedeintelectuaisgermânicos.Emsuasreflexõessobreoqueseparariatal
espéciedeconhecimentodasciênciasdanatureza,autorescomoDiltheyeDroysen
trouxeramparaadiscussãoepistêmica certosmotifscarosà tradiçãohumanística
alemã pelo menos desde Humboldt e Goethe. De particular importância nessa
tradiçãofoioidealda“Bildung”,umaconcepçãodaculturacomomeiode“cultivo”
ou“formação”daprópriapersonalidade.Aindaqueotemasejavastíssimoerepleto
de nuances, podemos citar, de maneira espetacularmente simplificadora, três
aspectos desse legado humanístico que produziram um impacto discernível nos
debatessobreostatusepistêmicodasciênciashumanas.
Em primeiro lugar, a noção de cultura como via para a formação “perfectiva”
(Merquior,1983)daprópriapersonalidadenãosereferiaàaquisiçãoestritamente
intelectual de saber, mas a uma transformação inteira da personalidade. O
transbordamentodessaperspectivaparaodebateepistemológicoapresenta-senas
concepções que tomam a compreensão histórica como fundada, nos termos
deDilthey, em uma “revivência” ou “revivescência” da experiência alheia. Tal
revivêncianãomobilizariaapenasointelecto,masengajariaasensibilidadetodado
pesquisador.Assim,porexemplo,acompreensãodoêxtasenaexperiênciareligiosa
passariapelacapacidadede“reproduzir”avivênciaextáticanaprópriapsique,pelo
menosemalgumgrau,omesmovalendoparaacompreensãodevivênciascomoo
entusiasmoguerreironacondutamilitareoarrebatamentoestéticonacomposição
musicaloupoética.Nessesentido,aproduçãobem-sucedidadeconhecimentonas
ciências humanas reclamaria faculdades de sensibilidade, intuição e imaginação
similaresàquelasdequeseriamdotadosgrandesartistas.
Umsegundoaspectodaquelaconcepçãoperfectivadaculturacomo“Bildung”,oqual
também se fez sentir na reflexão epistemológica sobre o conhecimento sócio-
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histórico,consistiaemumacentosobreoúnicoeosingular.Tomadadeiníciocomo
umatributo de personalidades individuais notáveis, a começar por aquela do
incomparávelcultordesimesmoquefoiGoethe,asingularidadelogopassouaser
brandidatambémcomotraçode“povos”e“culturas”intoto.ComosublinhouElias
nas primeiras dezenas de páginas d’O processo civilizador(1994), o acento
germânico sobre particularidades culturais foi explicitamente contraposto, no
mínimodesdeoromantismodeHerder(Carpeaux,2013:57-59),aouniversalismo
implicadonaideiade“civilização”promulgadapelosfranceses.Algumacoisadesse
contraponto entre “civilização” e “cultura” encontra-se, no tocante às ciências
humanas, no contraste entre um saber generalizante, homogeneizante e
quantificadordecunhonaturalista,deumlado,eumsabervoltadoàcompreensão
departicularidadeshistóricaseculturaiscomoseualvoúltimo,deoutro.
Finalmente, uma das mais impactantes ressonâncias daquele ideal humanístico
daBildungna reflexão epistemológica aparece na ênfase sobre uma irredutível
dimensão de livre-arbítrio na conduta humana em face de seus contextos sócio-
históricos(p.ex.,Droysen,1897:63).Osmandarinshumanísticosatacaramatese,
empunhadaporalgunsnaturalistasmaisentusiasmados,dequeasaçõeshistóricas
dossereshumanos,mesmoasmaissublimes,poderiamserexplicadascombaseem
umdeterminismosimilaràquelequeexplicaochoqueentrebolhasdebilharouo
funcionamentodigestivodosorganismos.Umaideiacomoestasoava,aosherdeiros
da tradiçãohumanista,nãoapenas comoumerroontológico,mas tambémcomo
umaafrontamoralàdignidademesmadoanthropos.Combaseemumaassimilação
danoçãode“causalidade”comotalà ideiade“necessidadenatural”(assimilação
errônea, diráWeber depois em uma crítica a Knies [Weber, 2001a: 33]), vários
autores chegaram a rechaçar,já destacamos, o próprio conceito de “causa” do
âmbitodasciênciashumanas.
IdioseNomos;ouaeconomiaentreahistóriaeateoria
ComoDiltheyviriaafazer,ohistoriadorJohannGustavDroysen(1897[1868];Assis,
2014)jácontrapuseraaexplicaçãoexteriordosfenômenosdanatureza,governados
queseriamporleisemecanismosimpessoais,àcompreensão“apartirdedentro”
dasobraseatoshumanos.Tomandoacompreensãocomo“aessênciadométodo
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histórico”(Ibid.:12),oautortambémjápropunhaumadistinçãoentreaorientação
generalizante das ciências naturais, que só se interessariam por fenômenos
particularesenquantoinstânciasdeclassesgerais,eapreocupaçãopredominante
dahistoriografiacomconfiguraçõessingularesdeeventos,osquaisinteressariamà
pesquisaprecisamentenoquepossuemdeúnicoenãorepetível–nessesentido,
paradarsomenteumexemplo,umestudohistoriográficosobreareligiosidadedos
antigosromanosatrairianossointeressemenospeloquereveladoqueosromanos
teriamemcomumconoscoemuitomaispelodesvelodostraçosemqueeleseram
diferentesdenós.NaterminologiatécnicadeautorescomoWindelband,Rickerteo
próprioWeber,asorientaçõescognitivasparaogeraleparaoparticularvierama
ser descritas, respectivamente, como saber nomotético (ou nomológico) e saber
idiográfico (Windelband, 1998 [1894]: 13). O radical“nomos”alude a um
conhecimento sistematizado, pelo menos na sua forma mais acabada, em um
conjunto de “leis gerais” como aquelas que tanto impressionam na física
newtoniana.Oradical“idios”,porseuturno,refere-seaoqueéprópriodealguém,
peculiar,singular,distinto,único.Oadjetivo“individual”poderiaserincluídonessa
lista,desdequetomadoporsinônimode“singular”ou“particular”.Nessesentido,
as “individualidades” que são objeto do conhecimento idiográfico não incluem
somenteindivíduoshumanos,masquaisquerrealidadessócio-históricasespecíficas
– “a Comuna de Paris” e o “espírito do capitalismo”moderno são, por exemplo,
"indivíduos" ou “individualidades históricas” segundo a terminologia
frequentementeempregadaporMenger,RickerteWeber(2001a:129).
Weber [i] viria a enfrentar essas questões não com referência aDroysen,mas à
chamada “escola histórica de economia” a que pertenciam autores como Knies,
Hildebrand, Roscher, Schmoller e outros (Ibid.: 1-105). Em contraponto ao
formalismoteóricodaeconomianeoclássicadeestilobritânico,aquelatradiçãode
pensamentoacentuavatantoavariedadehistóricadaspráticaseconômicas(p.ex.,o
cálculo autointeressado, cuja universalidade seria erroneamente afirmada pelas
“robinsonadas” [Marx] da economia neoclássica), quanto o entrelaçamento da
esferaeconômicacomasdemaisdimensõesdotodosocial (instituiçõespolíticas,
representações culturais etc.) [ii]. Os primeiros estudos deWeber nas áreas de
história antiga e medieval são tributários legítimos dessa escola histórica de
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economiaemdiversosaspectos,taiscomosuaorientaçãoparaparticularidadese
seusensoagudodasinterconexõesentreaesferaeconômicaeasdemaisesferasda
vida social (p.ex., o direito, âmbito em que a erudição histórica de Weber era
igualmente sólida). Por outro lado,Weber tambémnão era insensível às críticas
“naturalistas” dirigidas aos pressupostos epistemológicos daquela tradição. O
sociólogoalemãofoiumleitoratentodasdefesasdateoriaeconômicaneoclássica
desenvolvidas,contraosrepresentantesdaescolahistórica,porCarlMenger(1985;
Weber, 2001: 32). Antecipandoum argumento que apareceria emWindelband e
Rickert, Menger (1985: 35) notara que a diferença entre conhecimento
generalizante (“ciências teóricas”) e conhecimento de singularidades (“ciências
históricas”)nãosesobrepunhaperfeitamenteàdistinçãoentreciênciasdanatureza
e ciências humanas. Segundo ele, osmesmos aspectos do real poderiam ser, na
verdade, estudados segundo uma ou outra orientação cognitiva, a depender dos
interessesquemotivamapesquisacientífica.
OutrateseimportantedeMengerconsistiaemlembrarque“asciênciasteóricasnão
são igualmente estritas” (1985: 50) nas suas generalizações, isto é, que o
conhecimentodogeralnãoprecisaassumirsomenteaforma“forte”eprecisadeleis
geraisàmaneiradafísicanewtoniana.Emdisciplinascomoaeconomia,umsaber
sobreogeraltambémpodeapareceremversõesmaisfrouxasoumitigadas(Ibid.:
57),sobaformade“padrões”e“sequênciascausais”recorrentesnomundosócio-
histórico(p.ex.,atesedequeaindustrializaçãodeumpaístendeacaminharpari
passucom o aumento da instrução formal entre os seus habitantes). Finalmente,
Menger (Ibid.: 212) também sublinhou que, nas ciências humanas, os conceitos
relativosatipos(p.ex.,acondutaracionaleautointeressadadohomooeconomicus)
não apenas não precisam corresponder exatamente à realidade empírica, mas
seriam metodologicamente úteis precisamente em função do seu caráter
simplificadoou,diráWeberdepois(2000:141),“purificado”frenteàcomplexidade
doreal.Ocaráterde"idealizaçãopura"dosconceitossociocientíficosseria,como
veremosposteriormentecomWeber,oquepossibilitaaelucidaçãodefenômenos
sociais empíricos pela análise de quanto estes fenômenos se aproximam ou se
afastamdaqueles conceitos em sua forma típico-ideal (p.ex., o grau emque uma
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relação concreta de dominação possui traços da "dominação tradicional" ou da
"dominaçãocarismática"como"tipospuros").
Orealempedaços;ouaherançaneokantiana
Segundoas leiturasargutasdeautores comoGabrielCohn (2003)eFritzRinger
(1997),ainfluênciadasideiasepistemológicasdeSimmelsobreWebertendeaser
maior do que permitiriam entrever os débitos explicitamente reconhecidos pelo
autor d’A ética protestante e o espírito do capitalismo. Relevantes para nossos
propósitossãoasvisõesmatizadasqueSimmel(2001)trouxe,sobretudoemsuas
discussões sobre a filosofia da história, para distinções epistêmicas que outros
autorestomavamcomooposiçõesradicais, comoexplicação causal/compreensão
interpretativa e conhecimento nomotético/conhecimento idiográfico. Simmel e
Weber eram ambos suficientemente "neokantianos" para salientar os limites do
intelectohumanonaapreensãodeumarealidadeque,emsi,éinfinitaeinesgotável.
Otermo“Históriauniversal”,porexemplo,constituiriaparaSimmel“umaexpressão
infeliz...porque sugere uma extensão de conhecimentos que não podemos ter”
(Simmel,2001:60).Todoconhecimentodorealseria,naverdade,dependentede
operaçõesdeseleçãorealizadaspelosujeito cognoscente,oqualnão teriaescolha
senãosedebruçarsobreaspectosourecortesdomundotomadoscomointeressantes
segundo tais ou quais critérios. Isto significa que qualquer estado de coisas
complexo(p.ex.,abatalhadeAusterlitz[Aron,2000:455])possuiriaumnúmerode
componenteselementaresmuitomaiordoqueaqueleapreensívelporumsujeito
cognoscentehumano(p.ex.,asvivênciassubjetivasdecadaumdossoldadosque
lutaramnaquelabatalha[Ibid.]).ComoescreveuWeber:
"...todooconhecimentodarealidade infinita,realizadopeloespíritohumanofinito,
baseia-se na premissa tácita de que apenas um fragmento dessa realidade poderá
constituirdecadavezoobjetodacompreensãocientífica"(2001a:124).
A infinitude do mundo real, em função da qual não há alternativa ao intelecto
humanosenãooconhecimentode“pedaços”selecionadosdarealidade,seestende
tambémaodomíniodas conexões causais.Tal comoacontece comosobjetosda
pesquisacientífica,nenhumaexplicaçãocausaljamaispoderiaserexaustiva,jáque
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todofenômenoresultadeumamultiplicidadehumanamenteincontáveldecausas.
Oqueaexplicaçãodefenômenossócio-históricospoderiafazeréapontarparaum
oumaisfatorescausaissemosquaisaquelesfenômenosquesebuscaexplicarnão
teriamocorridocomoocorreram.Paraoferecerumailustraçãofamosíssimadessa
tesemetodológicain actu:Weber atribuiu à ética da vocação do “protestantismo
ascético” um papel causal importante na consolidação histórica do capitalismo
moderno,masnão deixou de reconhecer nem a influência recíproca do segundo
sobre a primeira nem uma multiplicidade de outras influências causais “que
plasma[ra]maculturamoderna”(Weber,2004:167;Santos,2008)[iii].
EmuminfluentediscursodepossecomoreitordaUniversidadedeEstrasburgoem
1894,ofilósofoWilhelmWindelband(1998[1894])deuumacontribuiçãocentralà
“controvérsia metodológica”(Methodenstreit)do tempo ao questionar a proposta
diltheyana de localizar a diferença entre as ciências naturais e as disciplinas
históricas em uma distinçãoontológicaentre seus respectivos objetos, a saber, a
matériaexteriormenteexplicáveleo“espírito”internamentecompreensível(Ibid.:
11). Já naquela época, a própria existência de uma psicologia hipernaturalista,
voltada a explicações neurofisicalistas dos processos mentais, mostraria que a
distinçãonãoeraaplicávelatodososramosdoconhecimento.Emlugardocritério
delineadoporDilthey,nessesentido,oautorfundamentouadiferençaentreaquelas
duascategoriasdeciênciasemtermosmetodológicos,combaseemumcontraste
entre duas orientações cognitivas: nomotética e idiográfica (Ibid.: 13) O
conhecimento nomotético, já vimos, seria voltado à descoberta de leis gerais e
invariantes“transfenomênicos”,comonastesesdeNewtonsobreomovimento.Em
contraste, o saber idiográfico seria orientado para a apreensão detalhada de
entidades,contextoseeventossingulares,localizadosnotempoenoespaço[iv].O
caráter formaloumetodológicodadistinção indicaqueosmesmosconjuntosde
fenômenospoderiamserestudadossegundolentesnomotéticasouidiográficas[v].
Nessesentido,nãosomenteumsabernomológicoquantoaossereshumanosera
buscadonasvertentesnaturalistasdapsicologiacomoumsaberidiográficoquanto
ao universo físico era procurado, por seu turno, em certas ciências da natureza,
comoilustramapesquisaastronômicadahistóriadenossosistemasolarouoexame
geológicodastransformaçõesnasuperfíciedaTerra.
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Windelbandnota,comotambémofarãoRickerteWeber(2001a:9),quedisciplinas
orientadas para o geral fazem uso de saberes idiográficos, assim como o
conhecimentodefenômenosecircunstânciassingularessevaledegeneralizações
de algum tipo como instrumentos heurísticos [vi]. Por exemplo, a elucidação de
acontecimentos sócio-históricos específicos pressupõe, muitas vezes
implicitamente, ideias gerais sobre “como seres humanos pensam, sentem e
desejam”(Windelband,1998:19).Pensemosemumenunciadocomo“Nodiax,os
operáriosdafábricayserevoltaramaoreceberainformaçãodequeseussalários
seriam reduzidos pelametade;e, após assembleia, resolveram entrar em greve”.
Aindaquetalenunciadosejaparticularou“instancial”,parausara linguagemda
filosofia da ciência posterior, ele pressupõe implicitamente certas ideias gerais
sobreossereshumanos:suasnecessidadeseafetos(p.ex.,oqueéosentimentode
revoltadiantedeumprejuízosofrido),seusmodosdecondutaeinteração(p.ex.,o
queéumaassembleiaou,maisabstratamente,umaaçãocoletivacalcadaemum
interessecompartilhado)etc.Dequalquermaneira,taisgeneralizaçõesnãoapenas
teriam uma forma lógica bemmais frouxa do que as leis causais da física, mas
tambémseriam,antesdetudo,meiosparaofimúltimodasciênciasdoespírito:a
elucidação de realidades históricas particulares. Se perspectivas naturalistas
tomavamosingularcomomeioparaoconhecimentodogeral,comonoindutivismo
por vezes propugnado por Durkheim (1999), Weber herdará de autores como
WindelbandeRickertaideiadeque,nasciênciashumanas,osabernomológicoé
sobretudoinstrumento de auxílioao conhecimento de singularidades históricas
(Gusmão,2000).
QuantoaRickert(1986[1902]),váriasdentreastesessuasqueinfluenciaramas
visõesdeMaxWeberjáforamantecipadasacima:umaconcepçãodomundoemsi
como infinito e inesgotável, portanto jamais passível de ser conhecido em sua
totalidade(Ibid.:17);umacríticaaqualquerretratodoconhecimentohumanocomo
“cópia” ou “reprodução” da realidade, substituída pelo acento sobre o caráter
necessariamenteseletivoeparcialdenossosabersobreomundo(Ibid.:43-45);uma
distinçãoentreciênciasdanaturezaeciênciashumanasnãoembasesontológicas,
mas lógicasoumetodológicas, conformeseus interesses cognitivosdirijam-seao
“universal” ou ao “singular” (Ibid.: 54). As duas últimas ideias se enlaçam no
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pensamento rickertiano:as singularidades históricas estudadas pelas ciências
humanas são, elaspróprias, construtos intelectuais resultantesdasoperaçõesde
seleçãodosujeitocognoscente.Namedidaemqueoconhecimentosejaditadopela
buscadosingular,osconceitosreferentesàsrealidadeshistóricasquesepretende
apreenderacentuarãooqueédistintivonessasrealidades,nãooqueelaspossuem
em comum com outras. Nesse sentido, mesmo os fenômenos sócio-históricos
particularesqueohistoriadorprocuradescrevernãopodemserapreendidoscomo
totalidades, mas também segundo construções conceituais que isolam
artificialmente alguns de seus traços (como Weber fará, por exemplo, com o
“espíritodocapitalismo”[2004]).Mutatismutandis,adiferençaqueWebertraçará
entreosseus“tiposideais”,deumlado,eos“tiposmédios”,deoutro,seassentano
mesmo ponto:enquanto os últimos diluem as diferenças entre os fenômenos
analisados (p.ex., entre formas tradicionais e racional-legais de dominação), os
primeiros não apenas as reconhecem como asexacerbampropositadamente no
domínioconceitual.
Em contraste com vários de seus contemporâneos, Rickert antecipa Weber ao
diferenciarrelaçõescausaisentrefenômenosparticularesdasconexõesnecessárias,
dedutíveisdeleisinvariantes,estabelecidasporcertasáreasdasciênciasnaturais.
Nesse passo, ele afastou das ciências humanas a visão “necessitarista” de
causalidade sem deixar de reconhecer, comobom kantiano, que “o princípio da
causalidade” está entre as “pressuposições epistemológicas...indispensáveis à
história” (Rickert,1986:202), assimcomoaqualquer conhecimentoempírico.A
sentençaanteriorquantoaumagrevedeoperários,porexemplo,pressupõeuma
conexãocausaldecertotipo.O fatodequeestaconexãopassapelasorientações
subjetivasdecondutadeindivíduosparticulareséjustamenteoquelevaráWebera
afirmarque,naanálisedeassuntoshumanos,diferentementedoqueacontecenas
ciênciasdanatureza,éprecisocompreenderparasepoderexplicar(2000:cap.1).
RickertinfluenciaráWebersobretudoemsuaconcepçãodoqueditaasseleçõesde
objetonasciênciashumanas:osvaloresdopesquisador.Emprincípio,arelevância
de tal ou qual objeto de pesquisa não derivaria da realidade mesma, mas das
significaçõesvalorativasquecientistasatribuemasetoresdessarealidade(Rickert,
1986:99-107;Weber,2003:79-127).Aatribuiçãovalorativaderelevânciacientífica
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acertofenômenonãoseria,emoutraspalavras,umresultadodasinvestigaçõesde
circunstânciashistórico-culturais,masumpressupostosemoqualtaisinvestigações
nãoteriamdeondepartir.Decorrequenãoserianempossívelnemdesejávelevitar
que tais seleções de objeto fossem ditadas pelos valores do pesquisador. O que
Rickert e Weber entendem como “relação a valores” ou “relevância valorativa”
consiste nesse papel orientador de interesses de valor no estabelecimento dos
fenômenos que serão selecionados, em meio a uma realidade inerentemente
inesgotável,comoobjetodeestudocientífico.Comoumcomponentedapesquisa
científica,a"relevânciavalorativa"deveriaserdistinguidade"valoraçõespráticas"
(Rickert, 1986: 94) ou julgamentos de valor propriamente ditos. A biografia de
Robespierre,porexemplo,podesertomadacomoigualmenterelevante,emtermos
científicos, por historiadores cujos juízos práticos de valor quanto a esse
personagem histórico são radicalmente discrepantes - uns denunciando-o como
"fanático sanguinário", digamos, enquanto outros o celebram como "arauto da
civilizaçãomoderna".
Diferentemente de Rickert (1986: 195-236), que se bateu longamente com essa
questão, Weber não tinha maiores rebuços em admitir que, como quaisquer
compromissos éticos, os valores que guiam as seleções de objeto nas ciências
humanassão"arbitrários",istoé,nãopassíveisdequalquerjustificaçãoobjetivaou
demonstraçãocientíficadesua"validade".Osvaloresqueorientamasescolhasde
certospesquisadores poderão discrepar dos valores queorientamoutros:devido
aos seus diferentes valores culturais, os problemas de pesquisa histórica que
interessavamaWebereaosseuscolegasalemãesdiferiam,porexemplo,daqueles
que avultavam como mais relevantes para "um chinês" (2001a: 114). O
descompassovalorativotambémpoderiasedarentreosvaloresdopesquisador,de
um lado, e os valores sustentados pelos próprios agentes pesquisados,de outro.
Paraficarumavezmaisnailustraçãomaisfamosa,aimensarelevânciavalorativa
que a racionalização da conduta econômica moderna promovida pelo
protestantismoascéticopossuíaparaWebernãooimpediudereconhecer,nofecho
doseulivrodedicadoaotema,oquediferenciavaseuscontemporâneosdoantigo
puritano:esteescolheratalcaminhodevida,aopassoqueaqueleseramobrigadosa
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segui-lo, presos que estavam na "gaiola de ferro" ou (tradução atualizada) "rija
crostadeaço"daengrenagemcapitalistamoderna(Weber,2001a:165).
Os exemplos elencados continuam compatíveis, em princípio, com a distinção
rickertiana entre "relação a valores" e "valorações práticas" (p.ex., a relevância
valorativadoprocessoderacionalizaçãodacondutadavidaépartilhadatantopelo
puritanodevotoquantopeloseucríticonovecentista,adespeitodeseusjuízosde
valor contrastantesquantoaoprocesso).O caminhodeRickertdivergeda trilha
weberiana,noentanto,quandoeletentaatrelaravalidadeobjetivadosresultadosda
pesquisa histórica à validade geral dosvaloresque orientaram a seleção do seu
objeto.SegundoRickert,namedidaemqueosvaloresqueregemaescolhadeobjeto
pelohistoriadorfossempartilhadospelosmembrosdesua"comunidadecultural",
divergências quanto ao que é historicamente (ir)relevante não apareceriam, e a
objetividade daquela pesquisa histórica dependeria inteiramente do "material
factual"porelarecolhido(Rickert,1986:199).Oconhecimentoassimgeradoseria
objetivamenteválidoparatodosaquelesquepartilhassemdosvaloresqueditaram
orecortetemáticodaquelainvestigação.Poroutrolado,segundoasleiturascríticas
de Fritz Ringer e Gabriel Cohn (não por acaso dois autores que sustentam ser a
influênciadeRickertsobreWebermenordoqueparece),ofilósofoalemãotende,
porvezes,apassardessaconcepçãodeobjetividade,centradaemumconsensode
valoresparticularesaumacomunidadecultural,paraumatesemaisousada,naqual
a objetividade estaria ancorada, pelomenos idealmente, em "valoresuniversais"
(Cohn,2003:94)de"validadeabsoluta"(Ringer,1997:42;vertambémKim[2017]).
Emcontraste,Webercombateucomafincoaideiamesmadequevaloreséticose
políticos poderiam ser objetivamente validados pelo discurso racional ou pelo
conhecimentocientífico(Weber,1982:154-183).Aindaquepudesseindicarmeios
àconsecuçãodefinspreviamentedefinidos,bemcomoavaliaraconsistênciadesses
finsentresi,aciênciajamaispoderiaoferecerumajustificaçãoobjetivadospróprios
finsdaatividadehumana.Aomesmotempo,segundoWeber,adependênciaquea
pesquisacientíficatemdevaloresparticulares,racionalmente"arbitrários",nasua
etapadeseleçãodoobjetonãoimplicaqueistocomprometaaobjetividadedosseus
resultados,aomenoscomoidealregulativo(Weber,2001a:82).Paravoltaraoseu
exemploanterior,"seumademonstraçãocientífica,metodologicamentecorretano
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setor das ciências sociais, pretende ter alcançado seu fim, tem de ser aceita
como...corretatambémporumchinês";oudeveriaseresta,pelomenos,aaspiração
metodológicadaquelademonstração (Ibid.:113-114).Comoumapropriedadede
enunciadoscientíficos,aobjetividadeepistêmicaseriapossibilitadaporexigências
demétodoinerentesàideiamesmadeciência,taiscomoaverificaçãoempíricaea
críticaracionaldospares.
Conclusão(StairwaytoWeber)
Ocasamentoentrea“relaçãoavalores”naseleçãodeproblemasdepesquisa,deum
lado,eadefesadeumconhecimentoobjetivocomometaregulativadessamesma
pesquisa,deoutro,meparecetípicodasviasmatizadasqueWebertrilhouemmeio
às oposições epistemológicas em que se embrenharam seus contemporâneos. A
começarpelotemadassemelhançasedessemelhançasentreasciênciasdanatureza
e as ciências humanas,Weber introduziu visões nuançadas que seopunhamaos
unilateralismosradicaisquerdemonistas(p.ex.,Lampretch),querdeseparatistas
(p.ex.,oprimeiroDilthey).Porumlado,oseparatismoepistemológicotinharazão
emsublinharqueo caráter impregnadode significadodomundosócio-histórico
confereaciênciassociais,comoasociologia,tarefasdeinterpretaçãoinexistentes
emdisciplinasqueestudamentidadesdestituídasdesubjetividade.Diferentemente
doqueacontececomaexplicaçãocientíficadeumtrovão,porexemplo,aelucidação
dascondutashumanasexigeoacessoaosmotoressubjetivosqueasanimam,sejam
taiscondutasinsurreiçõesmilitaresoulevantesrevolucionários,trocascomerciais
ouprocedimentosburocráticos,composiçõesmusicaisouritosreligiosos.Poroutro
lado,aosalientarqueoexamecientíficodaaçãosocialreclamaacompreensãodos
significados subjetivos que a movem, Weber não opõe o procedimento
compreensivo à explicação causal;ao contrário, ele toma a compreensão como
ingredienteessencialdaexplicaçãonasciênciashumanas.
Se a transposição imaginativa para a experiência dos agentes que se pretende
estudar pode auxiliar na compreensão de suas ações, continuou ele, isto não
significaqueelasejaindispensávelatalcompreensão.Estaseancoraria,nomaisdas
vezes,emumtrabalhoinferencial,sobreoqualfalaremosnopróximocapítulodesta
série-verbete. De modo similar, a verificação de hipóteses interpretativas na
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sociologia não derivaria das certeza psicológicas propiciadas por qualquer
“intuicionismo” empático,mas por teses empiricamente averiguáveis por outros
pesquisadores. Como Weber afirma em uma passagem que antecipa a futura
distinção, na filosofia da ciência, entre “contexto da descoberta” e “contexto da
justificação”:
“...temos de chamar a atenção para...o erro básico de todas aquelas teorias [da
compreensão empática], infelizmente amplamente aceitas...por historiadores
profissionais,asquaisachamqueoespecificamente‘artístico’e‘intuitivo’doprocesso
histórico–porexemplo,uma‘interpretação’deuma‘personalidade’–seriaapanágio
daciênciahistórica,fazendocomqueaperguntaquantoaoprocessopsicológicona
formaçãodeumconhecimentofosseconfundidacomaperguntaquantoao‘sentido’
lógicodesuavalidade ‘empírica’.Noqueconcerneaoprocessopsicológico,opapel
desempenhado pela ‘intuição’ é essencialmente o mesmo em todos os setores das
ciências...[...]Ousodedeterminadas‘regras’na‘validaçãoempírica’,tendoporfimo
controleda‘interpretação’dasaçõeshumanas,apenaspodesertidocomodiferente
doprocedimentonas‘ciênciasnaturais’,quandoseabordaestaquestãodemodoassaz
superficial”(Weber,2001a:82).
Desnecessário dizer, o uso excessivo (assaz excessivo) das aspas é, salvo
algumtiltnatraduçãodoalemão,obradopróprioWeber.Dequalquermodo,como
eu dissenoutro canto, a visão weberiana é notavelmente próxima de outros
retratos modernos sobre as conexões entre“inspiração” e
“transpiração”,“loucura”e“método”nainvençãocientífica.
Deresto,seoestabelecimentodeconexõescausaiséumacondiçãosinequanonde
qualquerconhecimentocientífico,Webersustentaqueacausalidadepressuposta
nas ciências humanas não é dedução de eventos particulares com base em leis
gerais.Namedidaemqueessasciênciassedirigemarecortesespecíficosdoreal,
afirmaçõessobrevínculoscausaisnomundosocial(p.ex.,entreaéticadavocação
do protestantismo ascético e o espírito do capitalismomoderno) também serão
necessariamenteparciais,nãoexaustivas.Porúltimo,masnãomenosimportante,
Weberconcordaquantoaofatodequeointeressemagnodapesquisasociocientífica
éaelucidaçãoderealidadessociaisparticulares:"Nocampodasciênciasdacultura,
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oconhecimentodogeralnuncatemvalorporsipróprio"(Weber,2001a:130).Sua
obraintotofoidevotada,comoésabido,aoexamedocarátersingulardoprocesso
multidimensional de racionalização da conduta característico da modernidade
ocidental(Nobre,2008;Pierucci,2003;Schluchter,2014;Souza,2000:cap.1;Sell,
2013; 2017). Foi esse interesse cognitivo que ditou suas incursões por uma
variedadedeoutroscenárioshistórico-culturais,comoemseueruditíssimoestudo
sobrea“éticaeconômicadasreligiõesmundiais”(Weber,2016).Aomesmotempo,
Weber reconheceu que aquele trabalho de elucidação do “socialmente real” nas
ciênciashumanaspode sevalerdeumsaber “nomológico”,pensadosoba forma
mais frouxadeumrepertóriode conceitos “transcontextuais” (p.ex., “dominação
tradicional”ou“açãoracionalcomrelaçãoavalores”)edepadrõesrecorrentesde
açãosocial(p.ex.,atesedeque,comotempo,umadominaçãopredominantemente
carismáticatenderáa“rotinizar-se”porviastradicionaise/ouburocráticas[Weber,
2000:cap.3]).Ésobretudonostermosdessacolaboraçãoentreconhecimentodo
geraleconhecimentodoparticular,comefeito,quedeve-secompreenderarelação
entrea“sociologia”ea“história”naobradessesociólogodoublédehistoriador(e
vice-versa).
Finalmente,podemosentãofalarsobreoesquemaanalíticodopróprioWeber...no
próximopost.
Notas
[i]NaprosadensadopróprioWeber,osabernomológicocaracteriza“ciênciasque
pretendemintroduzir,atravésdousodeconceitosgeraisedeumsistemadeleis,uma
ordemnavariedadeexistente...[...]Oideallógicodessasciênciaséamecânicapura.
Paraconseguirarealizaçãodesteideal,faz-secadavezmaisnecessárioafastardos
eventosedosprocessosconcretostodasortedecasualidadeeacontecimentofortuito.
Alógicadesseprocessotemporobjetivosubordinarsistematicamenteconceitosgerais
a outros conceitos ainda mais gerais...[...]Procede-se desta maneira em todos os
setores em que...aquilo que nos interessa saber...coincide com o genérico.[...]...nosso
interesse científico, neste caso, não diz respeito aos casos empíricos em sua
individualidade, pois estes foram transformados em exemplos de conceitos
genéricos.[...]Este procedimento leva...a um afastamento contínuo e crescente da
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realidadeempíricaeconcretaque,portodaparte,existeapenascomcaracterísticas
deindividualidadeeparticularidade”(Ibid.:3-4).Quantoaosaberidiográfico,eleé
próprio de “ciências que têm por escopo o conhecimento da realidade na sua
particularidadequalitativaecaracterísticanasuaindividualidade”(Ibid.:4).Weber
seapressaemdizerquetalformadeconhecimentojamaispoderiaaspirarauma
“representação plena e exaustiva[mesmo]de uma parte da realidade”, já que
qualquer fragmento do real continua a possuir uma infinitude de aspectos.
Diferentementedoqueocorrecomosprocedimentosconceituaisdeumsaberde
orientaçãonomológica,noentanto,asseleçõesrealizadasnosaberidiográficosão
orientadas ao particular: "...a elaboração de um sistema conceitual que
continuamenteseaproximedarealidadeindividualpormeiodaseleçãoedaunião
daquelestraçosqueseapresentamcomocaracterísticos”(Ibid.),istoé,daquiloque
as“realidadesindividuais”possuemdedistintivoediferente,nãodosatributosque
possuememcomum.Umprocedimentometodológicodessanaturezaobedeceaum
interesseidiográficodeconhecimentodosingular,“semquenospreocupemoscom
suaclassificaçãoesubordinaçãodentrodeumsistemade‘conceitosgenéricos’”(Ibid.:
5).
[ii]Oacentonainterconexãodaeconomiacomaesferaculturaltambémsetraduzia,
nopensamentodeKnies,emumlinguajarorganicistasobreo“caráter”eo“espírito”
dospovos.Webernãooporiaobjeçõesaoconceitode“espíritodeumpovo”seele
fosse,comosuasprópriasnoçõesde“mercado”e“estado”(Weber,2000:9),mais
um desses “conceitos relacionais” que resumem convenientemente combinações
complexasdecondutasindividuais.Noentanto,oqueelediagnosticava-ecombatia
ferrenhamente - naquela noção era uma personificação de coletivos “de caráter
metafísico”,segundoaqualo“espíritodopovo”nãoseriasomenteumconceitoque
condensa a “confluência das mais diversas influências culturais” (caso em que
Weber estaria disposto a aceitá-lo), mas a “causa real e fonte da qual todas as
manifestaçõesdeumpovo...[seriam]apenas‘emanações’”(Weber,2001a:8).Weber
eratãoencarniçadonoseudesgostoporessetipodeabordagemque,emumacarta
aRobertLiefmann (Weber,2012:410), atribuiumuitode sua transformaçãoem
“sociólogo”edeseu“individualismometodológico”auminteresseemcombatê-la:
“Seagorametorneiumsociólogo(deacordocomosdocumentosdeminhaposse!),foi,
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em largamedida,porquequeropôrum fima todoessenegócio...de trabalhar com
conceitos coletivos. Em outras palavras:a sociologia também só pode ser levada a
efeitosetomar,comopontodepartida,asaçõesdeumoumais(poucosoumuitos)
indivíduos,istoé,comummétodoestritamente‘individualista’”(Weber,2012:410).
Umaressalvacabeaqui:talcitaçãoé,elaprópria,traduzidanãodooriginalalemão,
mas de uma tradução anglófona de todos os escritos metodológicos de Weber
(2012)-inclusive,comoindicaoexemplo,dascartasemqueeletratadequestões
de método. Sabemos que otraduttoreque traduz da tradução se arrisca a ser
duplamentetraditore.Noentanto,mesmoseseaceitaqueacitaçãodosoriginaisna
línguadeGoethe(eHitler)seja indispensávelparaaweberologiacomopesquisa
especializada,oquejáéquestionável,seriabizarroapelarparaesterequisitoem
discussõessubstantivasdetemasepistemológicosouemtextosdeintençãodidática
comoopresente.
[iii]SegundoWeber,umavezexplorada“asignificaçãoculturaldoprotestantismo
ascético emcomparação com outros elementos que plasmama culturamoderna...,
seria preciso trazer à luz o modo como a ascese protestante foi por sua vez
influenciada...peloconjuntodascondiçõessociaiseculturais,tambémeespecialmente
as econômicas.[...]...não cabe contudo...substituir uma interpretação causal
unilateralmente‘materialista’...dahistóriaporoutraespiritualista.[...]...umaeoutra,
se tiveremapretensãodeser,nãoaetapapreliminar,masaconclusãodapesquisa,
igualmentepoucoservemàverdadehistórica”(Weber,2004:167).
[iv]“...asciênciasempíricasprocuram,noconhecimentodarealidade,ogeralnaforma
da leinaturalouoparticularemforma[Gestalt]historicamentedeterminada.[...]...o
pensamentocientíficoénomotéticoemumcaso,idiográficonooutro.Senosativermos
àsexpressõescostumeiras,podemos falar também,nessesentido,daoposiçãoentre
ciência natural e disciplinas históricas, desde que tenhamos em mente que, nesse
sentido metodológico, a psicologia deve certamente ser contada entre as ciências
naturais”(Windelband,1998:13).
[v]“...essa oposição metodológica classifica apenas o método e não o conteúdo do
conhecimentomesmo.[...]...osmesmosassuntospodemservir comooobjetodeuma
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investigaçãonomotéticae...tambémdeumainvestigaçãoidiográfica”(Windelband,
1998:13).
[vi]“Deixandodeladoamecânicapuraecertossetoresdasciênciashumanas,temos
aabsoluta certezadeque,no seuprocedimentoempírico econcreto,nenhumadas
ciências elaborao seu sistemaconceitual seguindounicamenteumououtrodestes
modelos”(Weber,2001a:5),istoé,nomotéticoeidiográfico.
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