VOLUME 1 - GOLPE

272
A Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul 1 9 6 4 1 9 8 5 História e Memória

Transcript of VOLUME 1 - GOLPE

Page 1: VOLUME 1 - GOLPE

A Ditadura de Segurança Nacionaln o R i o G r a n d e d o S u l

1 9 6 4 1 9 8 5História e Memória

Page 2: VOLUME 1 - GOLPE
Page 3: VOLUME 1 - GOLPE

Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964

Volume 1

A DITADURA DE

SEGURANÇA NACIONAL

NO

RIO GRANDE DO SUL

(1964-1985):

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Page 4: VOLUME 1 - GOLPE

Enrique Serra Padrós

Vânia M. Barbosa

Vanessa Albertinence Lopez

Ananda Simões Fernandes

MesaPresidente: Deputado Ivar Pavan (PT)

1º Vice-presidente: Deputado Luciano Azevedo (PPS)

2º Vice-presidente: Deputado Francisco Appio (PP)

1º Secretário: Deputado Giovani Cherini (PDT)

2º Secretário: Deputado Nélson Härter (PMDB)

3º Secretário: Deputado Paulo Brum (PSDB)

4º Secretário: Deputado Cassiá Carpes (PTB)

1º Suplente de Secretário: Deputado Miki Breier (PSB)

2º Suplente de Secretário: Deputado Raul Carrion (PCdoB)

3º Suplente de Secretário: Deputado Marquinho Lang (DEM)

4º Suplente de Secretário: Deputado Adão Villaverde (PT)

Escola do LegislativoPresidente: Dep. Adão Villaverde

Direção: Vânia M. Barbosa

Coordenação da Divisão de Publicações: Vanessa Albertinence Lopez

Organizadores

Assembleia Legislativado Estado do Rio Grande do Sul

Page 5: VOLUME 1 - GOLPE

A DITADURA DE

SEGURANÇA NACIONAL

NO

RIO GRANDE DO SUL

(1964-1985):

HISTÓRIA E MEMÓRIA

Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964

Volume 1

Corag

Porto Alegre

2009

Page 6: VOLUME 1 - GOLPE

D615

CDU 981.65“1964-1985”(093)

CDU: edição média em língua portuguesaResponsabilidade: Biblioteca Borges de Medeiros – Bib. Débora Dornsbach Soares – CRB-10/1700

Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985) : história e memória. / organizadores Enrique Serra Padrós, Vânia M. Barbosa, Vanessa Albertinence Lopez, Ananda Simões Fernandes. – Porto Alegre : Corag, 2009. v. 1 ; 272 p. : il.

ISBN 978-85-7770-087-5

Conteúdo: v. 1. Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964 – v. 2. Repressão e Resistência nos "Anos de Chumbo" – v. 3. A Conexão Repressiva e a Operação Condor – v. 4. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização.

Realização: Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Escola do Legislativo.

1. Ditadura – Rio Grande do Sul. 2. Golpe civil-militar (1964) – Rio Grande do Sul. 3. Grupo dos Onze. 4. Movimento Político. 5. Brasil – Presidente (1961-1964 : João Belchior Goulart). I. Padrós, Enrique Serra (org.). II. Barbosa, Vânia M. (org.). III. Lopez, Vanessa Albertinence (org.). IV. Fernandes, Ananda Simões (org.). V. Título: Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964. VI. Repressão e Resistência nos "Anos de Chumbo". VII. A Conexão Repressiva e a Operação Condor. VIII. O Fim da Ditadura e o Processo de Redemocratização.

CopyrightCapa - Projeto gráfico - Diagramação - Dado Nascimento Equipe técnica de apoioAlessandra GasparottoClaci Maria GasparottoGraciene de ÁvilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpção

Revisão de Língua Portuguesa

Supervisão TécnicaSônia Domingues Santos Brambilla - CRB 10/1679Débora Soares - CRB 10/1700Divisão de Biblioteca

Endereço para correspondênciaEscola do Legislativo Deputado Romildo BolzanPraça Marechal Deodoro, nº 101 – Solar dos CâmaraCEP – 90010-900 Porto Alegre/RS - BrasilOs conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores.É permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte e mantido o texto original.

André Rousselet Sardá, Dado Nascimento, Bernardo BertonAndré Rousselet Sardá, Dado Nascimento, Bernardo Berton

Dornsbach

Departamento de Taquigrafia da Assembleia Legislativa RSGabinete de Consultoria Legislativa da Assembleia Legislativa RSEscola do Legislativo

da Assembleia Legislativa RS

Dados Internacionais de catalogação na fonte (CIP – Brasil)

Page 7: VOLUME 1 - GOLPE

Dedicamos esta obra aos que ontemlutaram contra a ditadura

e, também, aos que hoje lutam por Verdade e Justiça.

Page 8: VOLUME 1 - GOLPE
Page 9: VOLUME 1 - GOLPE

Quero dizer teu nome, Liberdade,quero aprender teu nome novamentepara que sejas sempre em meu amor

e te confundas ao meu próprio nome.Deixa eu dizer teu nome, Liberdade,

irmã do povo, noiva dos rebeldes, companheira dos homens, Liberdade,

teu nome em minha pátria é uma palavraque amanhece de luto nas paredes.

Deixa eu cantar teu nome, Liberdade,que estou cantando em nome do meu povo.

Thiago de Mello1966

Ao peso dos impostos, o verso sufoca,a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusãomas não ao mundo.

Mas não à vida,meu reduto e meu reino.

Do salário injusto,da punição injusta,

da humilhação, da tortura, do horror,

retiramos algo e com ele construímos um artefato

um poemauma bandeira.

Ferreira Gullaragosto de 1964

Page 10: VOLUME 1 - GOLPE
Page 11: VOLUME 1 - GOLPE

Apresentação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.......................................................Ivar Pavan

Apresentação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul............................................................Temístocles Américo Corrêa Cezar

Prefácio...............................................................................................Luis Fernando Verissimo

Prefácio...............................................................................................

Vânia M. BarbosaVanessa Albertinence LopezAnanda Simões Fernandes

Introdução – 1964: O Rio Grande do Sul no olho do furacão...........................................Enrique Serra PadrósRafael Fantinel Lameira

O Golpe de 1964: Rio Grande do Sul, "celeiro" do Brasil...............................................Claudia Wasserman

Ausências e presenças da resistência na ditadura................................Raul Pont

"Capitão, vamos trabalhar juntos?".. ..................................................Emílio Neme

SUMÁRIO

15

17

19

21

33

51

71

93

Enrique Serra Padrós

Page 12: VOLUME 1 - GOLPE

Grupos dos Onze: lembranças que contam a verdade histórica..............................................................................Sérgio Gonzalez

Meu primeiro comício .....................................................................Wladimyr Ungaretti

Memórias de um comunista...............................................................João Aveline

Lições de 1964....................................................................................Pedrinho Guareschi

Sobre João Goulart.............................................................................Christopher Goulart

Máximas e mínimas: os ventos errantes da mídia na tormenta de 1964..............................................Luiz Cláudio Cunha

Cronologia – O Rio Grande do Sul e o golpe civil-militar..........................................................................Graciene de ÁvilaMarcos MachryMariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpção

Lista de abreviaturas e siglas...............................................................

Anexo I – Deputados estaduais do Rio Grande do Sul cassados (1964-1966)..........................................

Anexo II – Grande Expediente 45 anos do golpe – 31 de março de 2009..........................................................................

..

97

109

115

145

175

179

223

239

247

251

Page 13: VOLUME 1 - GOLPE

Tem dias que a gente se senteComo quem partiu ou morreu

A gente estancou de repenteOu foi o mundo então que cresceu...

A gente quer ter voz ativaNo nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda vivaE carrega o destino pra lá...

Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pião

O tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

A gente vai contra a correnteAté não poder resistir

Na volta do barco é que senteO quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultivaA mais linda roseira que há

Mas eis que chega a roda vivaE carrega a roseira pra lá...

Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pião

O tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

Chico Buarque, 1967

Roda Viva

A roda da saia mulataNão quer mais rodar não senhor

Não posso fazer serenataA roda de samba acabou...

A gente toma a iniciativaViola na rua a cantar

Mas eis que chega a roda vivaE carrega a viola pra lá...

Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pião

O tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

O samba, a viola, a roseiraQue um dia a fogueira queimou

Foi tudo ilusão passageiraQue a brisa primeira levou...

No peito a saudade cativaFaz força pro tempo parar

Mas eis que chega a roda vivaE carrega a saudade pra lá...

Roda mundo, roda giganteRoda moinho, roda pião

O tempo rodou num instanteNas voltas do meu coração...

Page 14: VOLUME 1 - GOLPE
Page 15: VOLUME 1 - GOLPE

APRESENTAÇÃO DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA

DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Ivar Pavan*

* Presidente da Assembleia Legislativa-RS no ano de 2009.

Democracia e valorização do Parlamento constituem um dos

eixos de atuação da Assembleia Legislativa durante esta gestão em 2009.

Destacar importantes datas como a dos 30 anos da Anistia, dos 20 anos

da Constituição Estadual e dos 45 anos do golpe de 64 são diretrizes das

ações do Poder Legislativo gaúcho.

Esta obra é resultado de um importante esforço de

sistematização de pesquisa, testemunhos e reflexões sobre as condições,

consequências e perspectivas instauradas no Brasil desde o golpe de 1964

até o período reconhecido como de transição democrática.

A riqueza da abordagem é devida tanto à diversidade de

enfoques – produzidos por competentes e comprometidos estudiosos e

ativistas de direitos humanos – como à organização em temas que

destacam e detalham: o golpe em si; a repressão e a resistência; a

Operação Condor; a anistia e a abertura políticas.

A Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul

apresenta, com esta coletânea, mais uma expressão de seu compromisso

com a construção da democracia.

15

Page 16: VOLUME 1 - GOLPE
Page 17: VOLUME 1 - GOLPE

APRESENTAÇÃO DAUNIVERSIDADE FEDERAL

DO RIO GRANDE DO SUL

O Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul sente-se honrado em

apresentar ao público o resultado da primeira ação da parceria com a

Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa do Estado do Rio

Grande do Sul.

A participação de professores e alunos dos cursos de graduação,

mestrado e doutorado deste Instituto, na coletânea de livros intitulada A

Ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985):

História e Memória, confirma o crescente envolvimento dos cursos do

IFCH com a história recente do Brasil e do Rio Grande do Sul.

Nos últimos anos, a UFRGS tem contribuído significativamente

na produção de conhecimento específico sobre a temática relacionada

com o período da ditadura. De forma concreta, isso pode ser aferido pelas

inúmeras pesquisas transformadas em dissertações de mestrado e teses de

doutorado e publicações individuais ou coletivas. Por outro lado, essa

produção vem acompanhando tanto as atividades de ensino quanto as de

extensão, através de eventos regulares oferecidos para a comunidade

gaúcha em geral.

Temístocles Américo Corrêa Cezar*

* Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/UFRGS.

17

Page 18: VOLUME 1 - GOLPE

Temas como "A Abertura dos Arquivos Repressivos", "o Golpe

de 64", "Os Expurgos da UFRGS", "O 68", "O Sequestro dos

Uruguaios", "O AI-5", "A luta pela Abertura Política e pela Anistia" e "A

Operação Condor", entre outros, têm sido contemplados nas atividades

desenvolvidas pela nossa comunidade. Especialistas como Carlos Fico,

Marcelo Ridenti, Maria Aparecida Aquino, Jessie Jane V. de Souza, Selva

López e Álvaro Rico ministraram cursos e conferências. E a casa acolheu,

ainda, sistematicamente, depoimentos de Suzana Lisboa, Cláudio

Gutiérrez, João Carlos Bona Garcia, Jair Krischke, Guillermo Rallo,

Aurélio Gonzalez, Ignêz Serpa, Luiz Cláudio Cunha, Aveline Capitani e

Universindo Rodríguez Díaz, entre tantos outros.

Neste sentido, trata-se de obra coletiva que articula o resgate de

memórias, através da voz e do texto dos próprios protagonistas, à análise

de especialistas, oferecendo um panorama diverso, rico em lembranças,

sensibilidades e experiências, escritas sob forte rigor científico. Cumpre,

ainda, uma função vital que é um compromisso do IFCH: a divulgação

social do conhecimento produzido dentro do âmbito acadêmico.

Assim, o IFCH, cujo nome lhe foi atribuído em 1970 pelo

decreto da ditadura militar que fragmentou a universidade em diversas

unidades, cumpre, como herdeiro que é da antiga Faculdade de Filosofia

da UFRGS, seu papel de protagonista na resistência política e intelectual

a todas as formas autoritárias de governo e de sociedade.

18

Page 19: VOLUME 1 - GOLPE

A História, segundo um surrado e cínico adágio, é sempre a

versão dos vencedores. Uma mentira oficial se instala e se institucionaliza

e com o tempo vira verdade. Mas o tempo nem sempre colabora. Com o

tempo vem a resignação e a opção por não turvar águas passadas ou

reabrir velhas feridas - mas também vem a distância necessária para

reexaminar mentiras estabelecidas. O tempo perdoa ou condena,

confirma ou desmente. O tempo traz o esquecimento - ou aguça a

memória. E nada ameaça mais a versão dos vencedores do que memórias

aguçadas.

Depois do fim do regime militar instaurado em 1964 vivemos,

no Brasil, num curioso estado de faz-de-conta, exemplificado pela anistia

geral dada a vencidos e vencedores. Buscava-se um "desarmamento dos

espíritos" (frase muito usada na época, mas inadequada: não foram

exatamente espíritos armados que nos dominaram durante 20 anos), mas

o verdadeiro objetivo era fingir que nada tinha acontecido. Assim os

militares voltaram para as casernas sem remorso ou desculpas, os civis que

os apoiaram continuaram suas carreiras políticas sem atos de contrição, as

vítimas sobreviventes do regime refizeram suas vidas e - a ideia era esta -

PREFÁCIO

Luis Fernando Verissimo*

*Luis Fernando Verissimo é jornalista e escritor.

19

Page 20: VOLUME 1 - GOLPE

não se falava mais nisso. Mas havia as memórias. Durante estes últimos

anos o país conviveu com duas histórias, a oficial, a do deixa pra lá, e a da

memória das pessoas. Com o tempo este desencontro se agravou. A

memória aguçada - assim como a cobrança dos que reivindicam a

verdade apenas para saber onde alguém foi enterrado - exige o fim do faz-

de-conta.

E afinal, mesmo aceitando-se a realidade que são os vencedores

que contam a história, a exigência não muda. O fim do regime militar foi

uma vitória de uma democracia imperfeita e até agora não consolidada,

mas democracia. O que se quer é a versão democrática da história do

Brasil.

20

Page 21: VOLUME 1 - GOLPE

PREFÁCIO

I.

Este projeto foi, para nós, um percurso singular iniciado no dia

31 de março de 2009, quando relembramos, por meio da exibição do

filme Jango, de Silvio Tendler, e do Seminário 45 Anos do Golpe de 64 – A

Noite que Durou 21 Anos, a data de 1º de abril de 1964, começo de um

período que manchou de sangue e vergonha a democracia brasileira. O

evento se completou com uma mesa temática que debateu o Golpe e suas

implicações.

Participaram do evento os historiadores da Universidade Federal

do Rio Grande do Sul (UFRGS) Carla Simone Rodeghero, Caroline

Silveira Bauer, Claudia Wasserman e Enrique Serra Padrós, além da

historiadora da Universidade de São Paulo (USP), Maria Aparecida de

Aquino.

A boa acolhida por parte do público presente, bem como a

avaliação do registro ainda incipiente sobre a história recente do Rio

Grande do Sul, foram fatos fundamentais para amadurecer a

possibilidade de um novo desafio: a publicação das intervenções dos

professores convidados com a complementação de alguns depoimentos

que marcaram presença naquele evento original. Após inúmeras

reuniões e avaliações sobre o material à disposição, surgiu a ideia de uma

21

Enrique Serra PadrósVânia M. Barbosa

Vanessa Albertinence LopezAnanda Simões Fernandes

Page 22: VOLUME 1 - GOLPE

coletânea de textos que pudesse apresentar ao público, em geral, uma

visão panorâmica de uma diversidade de manifestações do que foi o

embate político no Rio Grande do Sul, entre 1964 e 1985.

Surgiu, assim, o projeto A Ditadura de Segurança Nacional no Rio

Grande do Sul (1964-1985): História e Memória, constituído de quatro

volumes: 1) Da Campanha da Legalidade ao Golpe de 1964; 2)

Repressão e Resistência nos "Anos de Chumbo"; 3) A Conexão

Repressiva e a Operação Condor; 4) O Fim da Ditadura e o Processo de

Redemocratização.

Esta coletânea de livros torna-se uma espécie de certidão, na

medida em que possibilita a compreensão sobre a vida dos gaúchos, cujo

destino foi alterado por um "suposto acaso histórico", um desvio

inesperado que, por uma combinação de forças de poder, tornou-nos

estranhos no próprio país.

A obra reúne artigos científicos escritos por especialistas no

tema, textos testemunhais redigidos pelos próprios protagonistas e

depoimentos orais obtidos por meio de entrevistas, transformando-os

em fontes preciosas. É claro que há evidentes lacunas e faltam muitos

protagonistas essenciais. Desde já agradecemos, humildemente, toda

colaboração que nos ajude a sanar possíveis imprecisões e até algum

equívoco; é do ofício, sobretudo quando se parte de uma base de

conhecimento ainda não sistematizada, pouco conhecida e restrita à

especificidade da pesquisa acadêmica ou à memória individual. Mas é um

primeiro esforço no sentido de começar a pensar coletivamente,

respeitando a singularidade das trajetórias e as perspectivas das análises, a

experiência traumática do período discricionário sobre a população do

Rio Grande do Sul, suas instituições e seu cotidiano.

Assim, da construção da coletânea, participaram mulheres e

homens que foram generosos ao aceitar o desafio de, com

22

Page 23: VOLUME 1 - GOLPE

desprendimento e coragem, contribuir para desvendar e lembrar um

período da nossa história que não pode se repetir jamais. E, é claro, para o

enriquecimento do nosso projeto tivemos a sorte de contar, também, com

a colaboração de pessoas e instituições que nos permitiram acesso a

arquivos privados ou disponibilizaram fotos e documentos.

II.

Em relação ao período da ditadura civil-militar, o Rio Grande do

Sul apresenta as suas peculiaridades em termos das grandes análises de

conjunto construídas desde o centro do país. Em primeiro lugar, pelo fato

de ter uma forte tradição trabalhista, o que ajudou a configurar um

grande apoio às Reformas de Base do governo de João Goulart. Em

segundo, a marca deixada no imediato pré-golpe, pela Campanha da

Legalidade, fundamental para reverter o quadro golpista deflagrado em

1961, quando da renúncia de Jânio Quadros.

Além disso, naquele contexto, a condição de ser um estado

fronteiriço da Argentina e do Uruguai foi uma particularidade que gerou

cinco tipos de dinâmicas, não necessariamente simultâneas em termos

cronológicos:

– primeiro, referente ao fato de constituir uma espécie de base de

projeção da influência brasileira sobre o espaço platino

(lembrando, por exemplo, a preparação da "Operação Trinta

Horas" e a construção de uma infraestrutura rodoviária ligando

estrategicamente o centro do país com o extremo sul do estado);

–segundo, vinculada à percepção geopolítica de fronteiras

nacionais ameaçadas tanto pela mútua rivalidade e desconfiança

da Argentina, quanto pela presença de "ameaçadoras" forças

subversivas, nacionais ou estrangeiras (com a consequente

23

Page 24: VOLUME 1 - GOLPE

militarização da região e a conformação dela como área de

segurança nacional);

– terceiro, pela configuração do território estadual como corredor

para o trânsito da resistência ("pombos-correio" de Brizola,

esquemas para retirar ou reintroduzir perseguidos políticos) e da

repressão;

– quarto, o reconhecimento de que o Uruguai, país vizinho, virou

santuário preferencial do exílio brasileiro entre 1964-1968,

enquanto que o Rio Grande do Sul tornou-se uma área acessada

por organizações perseguidas naquele país e na Argentina desde

o final dos anos 1960 e durante a década de 1970 – o que deu

especial conotação ao estado dentro da lógica da Segurança

Nacional;

– finalmente, o Rio Grande do Sul foi alvo especial da ação da

Operação Condor contra cidadãos uruguaios e argentinos.

III.

A memória, na medida em que se relaciona com o passado,

constitui um elo indiscutível entre o presente e esse passado (que pode ter,

inclusive, uma temporalidade difícil de precisar). Trata-se de uma espécie

de ponte que conecta, articula e relaciona elementos temporais, espaciais,

identitários e, também, históricos. Deve-se salientar ainda que, assim

como a história não é neutra, também não há neutralidade nos registros

da memória. As lembranças não são registros passivos ou aleatórios da

realidade.

Além disso, a memória não é sinônimo de história ou de

realidade histórica passada. Entretanto, a importância da memória para a

história não é pequena, pois ela constitui significativa fonte para o

trabalho dos historiadores; as lembranças e reminiscências da memória

24

Page 25: VOLUME 1 - GOLPE

1 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 1996.2 BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

coletiva auxiliam ao historiador que, com o rigor da sua metodologia de

trabalho, as transforma em valiosas fontes para a produção do

conhecimento científico. Ou seja, a história identifica, contextualiza e

analisa as memórias como fonte; entretanto, elas também podem ser o

seu objeto de estudo.

É importante destacar que, assim como a história, a memória é

lugar e objeto de disputa nas relações de poder em confronto na realidade

social. Jacques Le Goff é esclarecedor quando afirma que: "Tornarem-se

senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes

preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e

dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da

história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória 1coletiva".

A análise da temática da memória implica em reconhecer que há,

como contrapartida, o esquecimento, os silêncios e os não ditos. O

esquecimento pode ser uma opção de restringir ao essencial certos fatos

ou informações a respeito deles. Mas também pode ser o resultado de

uma ação deliberada de ocultamento. Diante dessa dupla possibilidade,

pode ser útil a proposta de Peter Burke de "examinar a organização social

do esquecer, as regras da exclusão, supressão ou repressão e a questão de

quem quer que quem esqueça o quê e por quê". Essa é a fórmula, para ele, da 2amnésia social, dos atos de esquecimento. Na disputa pelo que lembrar, é

possível pensar em memórias subterrâneas, que surgem e se mantêm nos

interstícios dos espaços compreendidos entre o esquecimento e a

memória social. Elas expressam as memórias dos excluídos, dos

esquecidos da memória oficial.

Sendo a memória coletiva uma construção social e um fator de

identidade de uma comunidade, então, como viver com esquecimentos

25

Page 26: VOLUME 1 - GOLPE

impostos? Como lembrar ou esquecer o que não se permite conhecer?

Como conviver diante do apagamento (desmemória)? Para uma dada

coletividade, quais os prejuízos implícitos nesse acesso ao (des)conhecido

passado bloqueado? Os responsáveis pelos anos de chumbo latino-

americanos sabem que o desconhecimento impede o posicionamento

consciente; sabem, também, do potencial de inércia que possui o

esquecimento coletivo. "A impunidade é filha da má memória. Sabiam disso

todas as ditaduras militares de nossas terras", bem disse Eduardo Galeano.

Na América Latina do pós-ditaduras, as instituições do Estado,

boa parte do setores políticos e empresariais, as Forças Armadas e

importantes segmentos da economia internacional e da política externa

norte-americana têm conspirado fortemente contra o lembrar. Se não

fosse a resistência pelo resgate da memória e da história, por parte de

determinados setores político-sociais, a tendência vitoriosa teria sido a da

imposição de um esquecimento acelerado.

Os processos de anistia no Brasil, Chile, Uruguai e Argentina

não só pouparam os vencedores das ditaduras de Segurança Nacional

como os recompensaram. E as "redemocratizações" fragilizaram-se

diante da manutenção do entulho autoritário que ainda hoje permanece

fortemente arraigado ao poder. A institucionalização do silêncio oficial e

a supressão da memória coletiva foram fundamentais para

desresponsabilizar os culpados e impor o anestesiamento e a amnésia do

silêncio final. Diante de tamanha manipulação, pode-se coincidir com

Yosef Yerushalmi, quando afirma que, em determinadas situações, a

antítese da palavra esquecimento – e da palavra silêncio – talvez não seja 3memória, senão, justiça.

O conhecimento sobre os acontecimentos das últimas décadas

no Cone Sul latino-americano exige o trabalho de resgate das memórias

3 YERUSHALMI, Yosef H. et al. Usos del olvido. Buenos Aires: Nueva Visión, 1989.

26

Page 27: VOLUME 1 - GOLPE

individuais e de elaboração de uma memória coletiva, mas também de

recuperação da própria história. Tanto a recuperação da elaboração da

memória contra o apagamento/esquecimento induzido/desmemória,

quanto a procura da verdade do que foi dito que nunca ocorreu, são

compromissos da história e responsabilidade dos historiadores. Isto

implica, também, em apurar, cada vez mais, a importância do papel da

memória na dinâmica temporal onde o passado é sempre objeto e motivo

de reflexão para o presente e até para o futuro. Da mesma forma, isso

também se configura para a afirmação do papel que a memória

desempenha como matéria-prima sobre a qual o historiador pode

produzir, com seus métodos de trabalho, o conhecimento histórico.

IV.

Nessa incursão foi preciso levantar, incansavelmente, o véu do

esquecimento que paira sobre a vida dos brasileiros ao longo da história.

Mas esse trabalho de investigação nos serviu de estímulo para enfrentar

os limites e desafios que, como era de se esperar, o longo trajeto nos

impôs.

Eis aqui nossa coletânea aberta e intensa – porém ainda

incompleta, porque faltam muitos registros. Outras obras muito

revelaram e com certeza outras virão, muito aprimoradas, com a inclusão

de novos fatos, críticas e contribuições. E para elas estaremos de braços

abertos, firmes no nosso propósito de apoiar todo projeto voltado à

promoção dos direitos humanos.

Deixamos aqui a nossa humilde contribuição; um pequeno grão

de areia diante de tudo o que falta por fazer. Uma obra que foi tomando

corpo durante a caminhada que se tornou muito especial. Caminhada

marcada pela generosidade dos que socializaram suas experiências de luta

e resistência vividas e da solidariedade de todos os que se engajaram em

27

Page 28: VOLUME 1 - GOLPE

este trabalho coletivo. Caminhada... como aquela cantada em outra

língua pelo poeta de outro tempo e de outro lugar; caminhada fraterna

dos caminhantes que lutaram e lutam pela igualdade social e por um

mundo realmente melhor:

Caminante, son tus huellas el camino,

y nada más;caminante, no hay camino,

4se hace camino al andar.

V.

O presente livro traz uma série de depoimentos e textos que nos

permitem acessar o cenário brasileiro e gaúcho no momento do Golpe de

1964 e refletir sobre tal acontecimento, seus antecedentes, protagonistas

e desdobramentos.

De início, o texto da professora do Departamento de História e

do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, Claudia Wasserman, apresenta uma análise

aprofundada das contradições e disputas que estavam em curso no

momento anterior ao Golpe, traçando um panorama das lutas políticas

em curso no país e, especialmente, no Rio Grande do Sul. A autora traz

uma série de elementos que nos permitem compreender o cenário

político gaúcho da época, marcado tanto pela atuação de Ildo

Meneghetti, eleito governador em 1962 e apoiado pelas forças

conservadoras, como pelo protagonismo político de Leonel Brizola e seu

projeto nacionalista. Além disso, a autora discorre sobre a história do Rio

Grande do Sul no momento posterior ao Golpe, comentando sobre os

diferentes governos estaduais que se seguiram, e discute sobre a produção 4 Antonio Machado (Sevilla, 1875 – Collioure, 1939). Proverbios y Cantares. Campos de Castilla

(1912).

28

Page 29: VOLUME 1 - GOLPE

historiográfica recente, enfatizando a importância dos novos estudos

para a compreensão de nossa histórica recente.

O deputado estadual Raul Pont apresenta algumas reflexões e

memórias que abarcam importantes momentos. Recuando no tempo até

a morte de Getúlio Vargas, em 1954, Pont traça uma análise sobre

questões significativas para a compreensão do contexto que levou ao

Golpe de 1964, como a Guerra Fria, o anticomunismo presente nos

meios militares, as tentativas anteriores de golpe no Brasil e a falta de

preparação, por parte da esquerda, para enfrentar o golpe. O ex-prefeito

de Porto Alegre também discute sobre a resistência contra a ditadura e

seus limites, bem como as transformações vividas pelos grupos e

organizações de esquerda no pós-abertura e a constituição do Partido dos

Trabalhadores.

O depoimento do Coronel Reformado da Brigada Militar

Emílio Neme retrata um dos momentos mais marcantes da recente

história política gaúcha – a Campanha da Legalidade. Em seu texto ele

narra como se constituiu, dentro da Brigada Militar, a rede de apoio que

garantiu ao então governador Leonel Brizola as condições de resistir à

tentativa de impedir a posse de João Goulart em 1961. Neme, que

também foi chefe de Segurança de Brizola e estava junto a ele no

momento do Golpe, traz alguns apontamentos sobre a trajetória do ex-

governador a partir daquele episódio, especialmente sobre a perseguição

que sofreu e sua partida para o exílio.

Sérgio Gonzalez apresenta algumas reflexões acerca dos Grupos

dos Onze, organizados em torno da figura de Leonel Brizola a partir de

1963. Gonzales busca problematizar a forma como tem sido lembrada a

trajetória e a atuação dos Grupos dos Onze no país e traz algumas

memórias de suas vivências enquanto integrante de um dos grupos.

29

Page 30: VOLUME 1 - GOLPE

Wladymir Ungaretti narra sua participação no grande comício

na Central do Brasil, em março de 1964, e o começo de sua militância

política. O jornalista estava então iniciando sua participação no PCB, e

aquele foi o seu primeiro comício. Ungaretti relembra alguns episódios da

época, discorrendo sobre as utopias, os companheiros de militância e as

experiências que vivenciou.

Apresenta-se, também, uma entrevista com João Aveline,

jornalista e um dos mais destacados militantes do Partido Comunista

Brasileiro no Rio Grande do Sul. Realizada em junho de 2005, meses

antes de seu falecimento, a entrevista compreende diferentes momentos

da história de vida de Aveline, perpassando o início de sua trajetória

política e o ingresso no PCB, a militância sob o governo Vargas, o

processo que levou ao Golpe, sua atuação como jornalista, o

recrudescimento da repressão e sua prisão em 1975, e o posterior

processo de abertura política. O jornalista também traçou um panorama

das principais lutas travadas no campo da esquerda ao longo do século

XX, oferecendo uma série de subsídios para que possamos refletir sobre

os partidos e organizações de esquerda, suas práticas e projetos em nossa

história recente, especialmente no pós-1964.

O texto de Pedrinho Guareschi, intitulado "Lições de 1964",

traz algumas relembranças do autor sobre o período e reflexões que nos

ajudam a compreender o complexo processo que culminou com a queda

de Jango. Guareschi atenta para as dificuldades que temos para perceber

certos processos quando estamos no turbilhão dos acontecimentos,

discute o que significa pensar no Golpe mais de quarenta anos depois e

quais as lições que podemos tirar desse episódio. Para o autor, é preciso

perceber que a análise daquele momento histórico pode nos auxiliar a

compreender os desafios que se impõem nos dias atuais.

30

Page 31: VOLUME 1 - GOLPE

Para que não se esqueça

Para que nunca mais aconteça!

Os organizadores

Christopher Goulart apresenta algumas considerações acerca da

biografia e da trajetória política do ex-presidente João Goulart. O neto de

Jango conta sobre sua peregrinação pelo estado, através do Instituto João

Goulart, com o objetivo de resgatar a história de seu avô, debatendo com

a sociedade sobre o seu governo, sua postura de conciliação e o projeto

reformista que foi derrotado em 1964.

Por fim, o texto de Luiz Cláudio Cunha traz algumas

considerações sobre o papel desempenhado por setores da grande

imprensa no processo que levou ao Golpe de 1964. O jornalista analisa

diferentes veículos de comunicação no período, buscando evidenciar a

participação da grande imprensa na divulgação de ideias anticomunistas

e na oposição a João Goulart, bem como seu apoio no momento do Golpe

e sua posterior adesão ao projeto ditatorial. Cunha também discute sobre

as campanhas patrocinadas pelo complexo IPES/IBAD (Instituto de

Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática),

disseminadas pela imprensa escrita, rádio e televisão, e seu papel no

sentido de manipular a opinião pública contra Jango.

31

Page 32: VOLUME 1 - GOLPE
Page 33: VOLUME 1 - GOLPE

Às 18horas e 10 minutos do dia 3 de abril de 1964, o então

governador do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, fazia sua entrada na

capital do estado, em pose triunfal, acompanhado do recém-nomeado

comandante do III Exército, general Mário Poppe Figueiredo, que ainda

trajava seu uniforme de campanha. Ambos retornavam de Passo Fundo

em um veículo militar de combate à frente de um "apreciável cortejo" de

viaturas militares e de ônibus que conduziam forças militares do Exército

e da Brigada. Chegaram juntos, a estes, o comandante da Brigada Militar

coronel Otávio Frota, o chefe da Casa Civil do governo, Plínio Cabral, e o

chefe da Casa Militar, coronel Orlando Pacheco. O tom triunfal marcado

pela cena apoteótica do simbolismo militar ficava por conta do êxito do

Golpe civil-militar que derrubou o então presidente constitucional do

Brasil, consumado no estado do extremo sul brasileiro apenas às 11 horas

e 45 minutos do dia 2 de abril, quando o presidente João Goulart retirou-

se de Porto Alegre. Ali havia estabelecido sua última tentativa de

resistência, não bem-sucedida. Partiu rumo ao exílio no Uruguai, de onde

jamais retornaria em vida. Ficava mascarado o incômodo fato de que,

dois dias antes, o próprio Meneghetti tivera que fugir de Porto Alegre

INTRODUÇÃO

1964: O RIO GRANDE DO SUL NO OLHO DO FURACÃO

Enrique Serra Padrós*Rafael Fantinel Lameira**

* Professor do Departamento de História e do PPG-História/UFRGS.** Mestrando em História/UFRGS. Está desenvolvendo a dissertação Os movimentos sociopolíticos liberal-conservadores na construção e consolidação da ditadura de Segurança Nacional no Rio Grande do Sul. Do Golpe de 1964 ao AI-5.

33

Page 34: VOLUME 1 - GOLPE

diante do temor à mobilização das forças de oposição ao Golpe. Mas esta

é uma história que precisa ser contada desde o começo.

No dia 1º de abril de 1964, em meio ao clima de apreensão e do

desencontro, e até mesmo ausência de informações, noticiava-se a

deflagração de um movimento sedicioso, partindo de Minas Gerais sob o

comando militar do general Mourão Filho, e político, do governador

Magalhães Pinto. De imediato, o comandante do II Exército, general

Amauri Kruel, compadre e amigo do presidente, aderiu à revolta. Na

justificativa destes, o "movimento" se dava pela preservação da liberdade

e da democracia, contra a conspiração dos comunistas que

"conspurcavam a pátria" e o próprio governo. Os acontecimentos já são 1bastante narrados e conhecidos.

A deflagração do movimento militar foi a culminância e a parte

mais visível de um amplo movimento civil-militar que não pode ser

considerado de forma simplista ou com base em binômios explicativos.

Em termos conjunturais, pode ser pensado como um contragolpe

preventivo, deflagrado contra a ascensão das lutas dos movimentos

sociopolíticos, baseados, majoritariamente, em um programa

nacionalista e reformista. No jargão político destes movimentos, o

objetivo era realizar reformas sociais para tornar o capitalismo mais

humano e democrático. Entretanto, esta visão não pode limitar a

percepção de que se tratou também de um movimento sociopolítico que

aglutinou amplos setores liberais e conservadores em nome de um

projeto político baseado nas formulações da Doutrina de Segurança

Nacional e Desenvolvimento. Outra dimensão fundamental do Golpe de

1964 está vinculada à relação com as estruturas que lhe dão significado;

nesse sentido, ele também faz parte do contexto de radicalização política

da Guerra Fria, agravada, ainda, nas Américas, pela Revolução Cubana.

1 Correio do Povo, Porto Alegre, 3 abr. 1964.

34

Page 35: VOLUME 1 - GOLPE

Assim, o Golpe de 1964 constituiu um evento que, simultaneamente,

toma significado a partir das estruturas sociais do século XX, na mesma

medida em que confere significado às estruturas sociais brasileiras e sul-

rio-grandenses, quais sejam: o elitismo e o conservadorismo políticos

daqueles que se percebem como "responsáveis pela pátria" e a constante

identificação de democracia com ordem e harmonia social. Dentro dessa

perspectiva, é possível compreender como o Golpe contou com total

apoio e colaboração do governo dos Estados Unidos, através do

embaixador Lincoln Gordon. Tal apoio não era somente político, mas

também militar, consubstanciado num plano de contingência que previa

apoio logístico e de tropas aos setores golpistas, expresso na famosa

Operação Brother Sam, caso houvesse resistência. Tal plano contou com

planejamento conjunto entre militares brasileiros e o governo dos EUA,

através de seu Departamento de Estado. Sabe-se também da ampla

participação desta potência estrangeira na campanha de desestabilização

e na conspiração contra Goulart, junto com as entidades das classes 2 conservadoras do Brasil. Compreender este ponto é fundamental para

entender a relação entre o Golpe de Estado no Brasil e o contexto mais

amplo da Guerra Fria, no qual tal conflito se situa. Não se trata de pensar

numa grande conspiração internacional, nem de imputar o protagonismo

nem os males da nossa sociedade ao "outro", ao estrangeiro, mas

compreender o processo histórico em sua totalidade, para não falsear a

realidade ou isolar elementos importantes e complementares para

entender como o Brasil mergulhou em mais de 20 anos de ditadura de

Segurança Nacional.

Frente à deflagração da movimentação militar do movimento

golpista, Goulart nomeou o general legalista Ladário Pereira Telles para

2 FICO, Carlos. O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

35

Page 36: VOLUME 1 - GOLPE

assumir o comando do III Exército, que abarcava a região sul (os estados

do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná); seu Quartel-General

era em Porto Alegre. Goulart pretendia estabelecer a sua resistência na

mesma cidade que lhe havia garantido a posse a partir da Campanha da

Legalidade, em 1961, comandada pelo então governador Leonel Brizola.

Ladário Telles chegou a Porto Alegre nas primeiras horas do dia 1º de

abril, onde foi recepcionado pelo prefeito da capital, Sereno Chaise, do

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no mesmo momento em que o

general Jair Ribeiro, recém-operado, reassumiu o Ministério da Guerra.

Ao chegar, o novo comandante lançou uma proclamação pública,

concitando o III Exército a permanecer fiel à legalidade e ao mandato

constitucional do presidente, juntamente com o povo e a resistência civil.

O governador do estado, Ildo Meneghetti, do Partido Social

Democrático (PSD), adversário político declarado do PTB, fazia parte

do movimento golpista, sendo uma das lideranças nacionais. Requisitou,

por decreto, as emissoras de rádio e televisão sediadas na capital, sob a

justificativa de "evitar a sua utilização para a difusão de pronunciamentos

que possam, de qualquer modo, perturbar a tranquilidade reinante no

nosso estado", procurando evitar que se repetissem fatos como os de

1961. Afirmou também que, diante da crise, manteria a ordem em todo o 3Rio Grande do Sul. O objetivo de Meneghetti era muito claro: evitar a

reorganização da Cadeia da Legalidade. Portanto, na prática, impôs a

censura e o controle estatal, a fim de evitar a reação e rearticulação das

forças contrárias ao Golpe no estado. No plano militar, o governo colocou

a Polícia Militar e a Polícia Civil de prontidão. A guarnição da sede do

governo foi reforçada e a área adjacente ao Palácio Piratini foi interditada

ao trânsito. Veículos policiais e militares foram colocados em prontidão,

3 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.

36

Page 37: VOLUME 1 - GOLPE

4 na necessidade de utilizá-los para deslocar tropas. A sede do governo foi

novamente transformada em quartel-general, protegido por barricadas,

só que, desta vez, a favor do Golpe e contra a ordem constitucional,

embora o discurso dos sediciosos dissesse o contrário. Apesar do governo

afirmar que as medidas eram apenas preventivas para assegurar a calma

no estado, as mesmas visavam à repressão rápida dos focos de resistência.

Tanto o governador como todos os partidos e políticos que

compunham o bloco da Ação Democrática Popular (ADP), que

comandavam o governo do estado (PSD, UDN, PL, PRP, PDC),

vinham participando da campanha de desestabilização do governo

Goulart. Meneghetti participava de articulações nacionais e locais. Foi

assim que, no 22 de março de 1964, recebeu o governador de São Paulo,

Adhemar de Barros, para discutir a situação política nacional e os termos

de um manifesto a ser redigido em conjunto pelos governadores da

oposição. Nessa ocasião, em Porto Alegre, Adhemar de Barros afirmou 5que haveria eleições em 1965, mas tinha dúvidas se Goulart as presidiria,

indicando uma clara posição desestabilizadora. Já em 24 de março,

tornou-se público o manifesto dos generais, alertando para os perigos

representados pelo presidente da República. Ainda antes, em 16 de

março, o mesmo Meneghetti enviou um telegrama ao presidente do

Senado, Auro de Moura Andrade, com cópias ao presidente da Câmara,

Ranieri Mazzilli, e a todos os governadores do país. O telegrama

alcançou repercussão nacional e "definiu" sua posição em face à "situação

nacional" e ao comício da Central do Brasil, marcando sua adesão pública

à conspiração em andamento. O texto, um pouco longo, merece ser citado

pela gravidade do compromisso assumido:

4 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1964, p. 11.5 Correio do Povo, Porto Alegre, 22 mar. 1964, p. 48.

37

Page 38: VOLUME 1 - GOLPE

Neste momento em que a nação assiste alarmada e inquieta a tantos e tão graves ataques às instituições dirijo-me a Vossa excelência para hipotecar em nome do Rio Grande e em meu próprio irrestrita solidariedade ao Congresso Nacional que agora reabre seus trabalhos. A adoção das medidas que visem a modificar a estrutura econômica do país a fim de que ela possa atender aos legítimos anseios do povo, pode e deve ser feita ao amparo das leis e da constituição, pois a democracia constitui exatamente o meio e o caminho para a solução de todos os conflitos. [...] ante os ataques ao Congresso Nacional, lamentavelmente feitos na presença de autoridades responsáveis pela salvaguarda da lei e da legalidade, não posso deixar de exprimir minha indignação e o protesto do povo rio-grandense. Assim como em mais de uma oportunidade, defendi a legitimidade integral do mandato do senhor presidente da República, quando esta foi questionada, agora defendo com a mesma firmeza, o direito, as prerrogativas, e a dignidade do Congresso Nacional. A inquietação e a insegurança, que vêm solapando a todos os setores da vida nacional, põem em grave risco as instituições democráticas. [...] Reafirmo a Vossa Excelência que o Rio Grande do Sul, fiel a suas tradições, reagirá a qualquer atentado à constituição, parta de onde partir, e defenderá a legitimidade dos mandatos seletivos em qualquer circunstância e por

6qualquer meio a seu alcance. [...]

No Rio Grande do Sul, os partidos da ADP e as

autodenominadas Classes Produtoras foram protagonistas na construção

das condições políticas para o Golpe. Vale ressaltar que a ação política

destes havia iniciado, veladamente, ainda em 1961, mas se intensificou no

final de 1963. Seu envolvimento concreto no Golpe foi inquestionável.

Logo nas primeiras horas da noite, após a declaração de

Meneghetti, Plínio Kroeff e Fábio de Araújo Santos, presidentes,

6 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.

38

Page 39: VOLUME 1 - GOLPE

respectivamente, da Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande

do Sul (FIERGS) e da FEDERASUL, foram ao palácio Piratini para

apoiar o governador, em nome dos setores que representavam. Segundo

eles, a mensagem do governador "expressa com fidelidade o pensamento

das classes produtoras do Rio Grande do Sul". Da mesma forma, o

governador recebia muitas manifestações de apoio de entidades, políticos 7e militares de todo o Brasil.

Os setores empresariais, no dia seguinte, divulgaram um

manifesto central no processo de combate aberto ao governo Goulart.

Nele, indicavam que as entidades dos setores empresariais, conscientes de

suas responsabilidades como "forças vivas da nação, sentiram-se no dever

de se manifestar frente à generalizada apreensão" em função das medidas

tomadas pelo governo federal. Manifestaram

seu veemente protesto contra o clima de agitação provocado em todos os setores da vida pública nacional, criando situação de intranquilidade, incerteza, e, sobretudo, de insegurança que impede o normal desenvolvimento de todas as atividades e consequentemente, põe em risco, não só a prosperidade da nação, como a própria sobrevivência das suas instituições […].

As entidades afirmavam, ainda no mesmo documento, que

nunca se haviam negado a colaborar na resolução dos problemas

nacionais, mas que, em sua opinião, era preciso uma nova ordem e agir

contra os que "procuram solapar o regime através da subversão". O

Manifesto foi assinado pelos presidentes da FIERGS e do CIERGS,

Plínio Kroeff, da Federação das Associações Comerciais do Rio Grande

do Sul e da Associação Comercial de Porto Alegre, Fábio Araújo dos

Santos, da Federação das Associações Rurais do Rio Grande do Sul,

7 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.

39

Page 40: VOLUME 1 - GOLPE

Oscar Carneiro da Fontoura e do Sindicato dos Bancos do Rio Grande 8do Sul, João da Costa Ribeiro.

Quanto à ADP, em 20 de março, divulgou o manifesto conjunto

dos partidos que a compunham, propondo um "estado de alerta para

evitar o golpe". Seu conteúdo denunciava que o governo Goulart

demonstrava "inadaptação ao sistema constitucional e legal que

disciplina as instituições democráticas brasileiras" e, ao não conseguir

cumprir suas obrigações básicas, nem conter a inflação, fugia das suas

responsabilidades para atribuí-las a outrem. O documento apontava,

ainda, que:

as greves comandadas por organismos espúrios e insuflados por agentes do próprio governo, afetando serviços públicos essenciais, decretadas por motivos políticos e paralisando a vida da nação; a agitação dos meios rurais, com o desestímulo da produção, a organização dos grupos de guerrilha revolucionária, ostensivamente proclamada e tolerada pelo governo; a pregação aberta ao fechamento do congresso, feita em comício frente as mais altas autoridades da república; as ameaças de controle, supressão ou monopolização dos meios de publicidade e comunicação, [...] estão a indicar um processo subversivo das nossas instituições. Há, incontestavelmente, uma infiltração comunista em todos os setores do governo.

O manifesto finalizava com uma declaração contundente: "Na

defesa intransigente das instituições, os partidos políticos, que somam a

maioria esmagadora da opinião pública rio-grandense, unem seus

esforços, sob uma única bandeira, e conclamam seus correligionários à 9resistência até o último sacrifício".

8 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 24.9 Correio do Povo, Porto Alegre, 20 mar. 1964, p. 7 e 16.

40

Page 41: VOLUME 1 - GOLPE

Desta forma, os caminhos para os ataques ao governo estavam

inteiramente abertos. O jornal Correio do Povo assumiu uma crítica

violenta, acusando Goulart de agitador, violador da democracia,

demagogo e de querer instalar um "neoperonocastrismo" no Brasil (seja lá o

que isso quisesse dizer). Adotava uma linha de questionamento como a

que vinha sendo utilizada por Lacerda e a imprensa do centro do país nos

ataques tanto ao governo federal quanto ao próprio Brizola. Tratava-se

de uma referência explícita aos planos de instalar no Brasil um regime

comunista aos moldes "caudilhescos" e populistas dos pampas; em

decorrência, uma mistura de Perón e Fidel Castro, dois dos maiores 10pesadelos das direitas latino-americanas.

A partir de então, a crise política passou a ser objeto de todos os

debates e discursos na Assembleia Legislativa. Enquanto a Ação

Democrática Popular atacava Goulart e as reformas, o PTB e a Ação

Republicana Socialista (ARS) faziam a sua defesa. A polarização política

era uma realidade. Na Assembleia Legislativa a bancada da ADP, por

iniciativa do deputado Paulo Brossard, tentou votar um requerimento,

manifestando solidariedade ao Congresso Nacional e contra o presidente

Goulart, nos termos já colocados pelo governador. Já o PTB, a ARS e o

Movimento Trabalhista Renovador (MTR), em contraposição, tentaram

colocar em votação um requerimento pedindo ao Congresso para ser

sensível às dificuldades do povo e à necessidade de aprovação das

reformas sociais de forma democrática e popular. Na radicalização, no

debate e nos subterfúgios regimentais, nenhum dos dois requerimentos

foi votado. Em outra sessão, no entanto, a moção da ADP foi vitoriosa 11por 27 votos a 26. O resultado confirma o delicado equilíbrio

institucional entre as forças políticas dos dois campos. Isto indica que a

10 Correio do Povo, Porto Alegre, 17 mar. 1964, p. 4. 11 Correio do Povo, Porto Alegre, 18 mar. 1964, p. 7; Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 7.

41

Page 42: VOLUME 1 - GOLPE

propalada superioridade conservadora é, no mínimo, um exagero do

discurso político partidário. Deputados e líderes políticos da ADP

passaram a fazer constantes pronunciamentos em defesa da "união dos

democratas para salvar a democracia do comunismo e da demagogia". O

presidente e as forças reformistas eram constantemente atacados por

"criar uma situação que paralisava atividades vitais", numa série de

ultimatos que faziam parte de uma campanha aberta contra as

instituições. O governo e as esquerdas teriam feito, segundo o discurso

conservador/golpista, um ultimato à democracia e isso não podia ser 12 tolerado. Nesse sentido, o pronunciamento do deputado Alexandre

Machado, do PSD, na Assembleia Legislativa, foi exemplar. A defesa da

intervenção armada foi categórica.

O deputado declarou abertamente que:

a situação nacional chegou a seu ponto mais crítico. Ou reagimos agora ou seremos tragados pelos comunistas, hoje em nossa pátria, chefiados pessoalmente pelo presidente da República. [...] Marchamos para a expropriação de tudo, em nome do povo, tudo se estatizará. [...] o golpe às instituições está iminente. [...] os inimigos da pátria, corruptos e corruptores, estão se preparando para dar o golpe final nas instituições democráticas, e pisaram, eles, fundo no acelerador da revolução. Vamos agora, eles ou nós, para o abismo. [...] Sei que o governo do estado defenderá com as armas ao seu alcance a vigência do regime que os totalitários querem destruir e ultrajar. Estaremos ao lado do nosso governador, bem como dos governadores de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Guanabara e tantos outros, que estão dispostos a dar suas vidas antes de permitirem, o criminoso, bárbaro, ilegal, arbitrário atentado às liberdades e à democracia. [...] É desejo dos rio-grandenses defenderem seus lares, suas esposas e seus filhos, contra os assassinos e inimigos da pátria, com as armas na mão, dispostos a tudo.

12 Correio do Povo, Porto Alegre, 19 mar. 1964, p. 22.

42

Page 43: VOLUME 1 - GOLPE

Precisamos pôr em arma todos os homens de bem. [...] o Rio Grande não trata de candidaturas. Trata da Salvação

13Nacional.

A Igreja Católica também representou papel ativo e importante

durante todo o processo de tentativa de construção do consenso político

em torno do projeto conservador e contra as reformas sociais,

principalmente através do arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente

Scherer, que, através de sua atividade pública, missas, jornais e seu

programa de rádio A voz do pastor, associava as reformas ao avanço do

"comunismo materialista e ateu", contrário à tradição católica e cristã do

pacífico povo brasileiro. O recado era claro. O arcebispo também

inspirou e apoiou a formação, em 9 de março de 1964, da Ação

Democrática Feminina (ADF), entidade liderada por Ilda Baumhardt e

Ecilda Haensel, e que se definia "apartidária, sem preconceito de religião

e de raças". Seu programa incluía: "Ensinar a amar a pátria, ajudar os

jovens para que se tornem cidadãos conscientes, combater a demagogia, a

subversão e a desordem e reformar o que está errado dentro da disciplina 14da ordem e da lei [...]".

A ADF do Rio Grande do Sul era uma das entidades femininas

católicas e conservadoras que o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

(IPES) financiava e orientava politicamente na desestabilização e 15conspiração contra as forças nacionalistas e João Goulart. Por outro

lado, cabe registrar que o IPES tinha uma seção Rio Grande do Sul, a

IPESUL, fundada em março de 1962, em Porto Alegre. Em meio a esta

efervescência social que vivia o estado, o IPES passava a ser

propagandeado como uma "entidade plural" que defenderia a "revisão

13 Correio do Povo, Porto Alegre, 26 mar. 1964, p. 7. 14 Correio do Povo, Porto Alegre, 10 mar. 1964, p. 4.15 DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe.Petrópolis/RJ: Vozes, 1981. p. 295.

43

Page 44: VOLUME 1 - GOLPE

integral dos padrões sociais vigentes", "defensor das tradições

democráticas, cristãs e ocidentais". Seus organizadores admitiam que a

criação do Instituto na cidade era uma articulação anterior de homens do

comércio e afirmavam a necessidade das reformas "dentro da

democracia". Entretanto, o IPES foi, junto com o Instituto Brasileiro de

Ação Democrática (IBAD), o grande organizador da conspiração contra 16Goulart no Brasil. O primeiro presidente da seção gaúcha (IPESUL)

foi Álvaro Coelho Borges, que, na sua posse, declarou que a organização

era uma aspiração de empresários, profissionais liberais e democratas, na

convicção da necessidade de agir "para melhorar a vida do povo sem 17exigir a perda da liberdade". Álvaro Coelho Borges era, também,

presidente da FEDERASUL e da Associação Comercial de Porto

Alegre (ACPA), fato que indicava, assim, a estreita ligação entre os

setores empresariais do estado e as atividades golpistas desenvolvidas

pelo IPES em nível nacional e estadual. Embora a atuação do IPESUL

tenha sido discreta (assim como a matriz nacional), a sua participação

política na conspiração golpista foi altamente estratégica.

Diante da profusão de manifestos dirigidos à "Nação", entre os

quais os de Mourão Filho, Juscelino Kubitschek, Magalhães Pinto, bem

como os editoriais de jornais de grande circulação no país, exigindo a

deposição do presidente, chama a atenção, no Rio Grande do Sul, a

tomada de posição do Correio do Povo. Assumindo um tom de

dramaticidade latente, publicou em suas páginas um editorial intitulado

"Pela Lei e Pela Ordem", através do qual afirmava que frente aos "graves

acontecimentos de caráter político militar" deveria se manifestar.

16 . 17 Correio do Povo, Porto Alegre, 1 abr. 1962.

DREIFUSS, op. cit

44

Page 45: VOLUME 1 - GOLPE

Este jornal, fiel a linha que traçou seu fundador Caldas Junior, como órgão independente, sem filiações partidárias, nem vinculação de nenhum tipo, com grupos ou organizações de qualquer natureza, segue, no entanto, acima de qualquer injunção uma impessoal postura programática: a defesa das instituições democráticas e da ordem constitucional que as exprime. Mas da verdadeira ordem constitucional, daquela que está não apenas na letra, mas também e mais importante e decisivamente, no seu espírito e no seu exato e profundo significado, o qual não se compadece com atentados ou insuflamentos de atentados à própria dignidade das Forças Armadas e à própria autenticidade do regime, pela inversão da hierarquia e pela quebra de disciplina, com projeção na própria ordem institucional estabelecida.

Clamava, ainda, para que as Forças Armadas cumprissem sua

"histórica missão", de serem "sustentáculos da lei e da ordem", sob o

espírito de sua vocação histórica, o cristianismo e o democratismo-

liberal. O encerramento não poderia ser mais categórico: "O caminho a

seguir nesta hora de decisão não comporta dúvidas ou vacilações: é o do

saneamento ético das cúpulas políticas e administrativas e da anulação

dos inimigos da pátria e da democracia, que se encastelaram

funestamente na própria cidadela do poder". O discurso golpista

transparecia com toda a força e justificava a necessidade de infringir a

Constituição "pelo seu próprio bem e pela manutenção da ordem". O

fundo político dos conspiradores estava explícito. Nessa perspectiva, a

legalidade precisava estar a serviço daqueles que realmente deviam

decidir o que era a "verdadeira ordem constitucional". Tais posições põem

por terra o argumento da suposta neutralidade da imprensa e confirmam

sua tomada de posição inequívoca e responsabilidade na deflagração do

Golpe.

45

Page 46: VOLUME 1 - GOLPE

Retomando o contexto imediato do golpe, a situação do

governador Meneghetti se agravou ainda mais; soube, do então

comandante do III Exército, general Galhardo, que este estava disposto a

apoiar o movimento golpista e prender o general Ladário Pereira Telles,

quando se apresentasse no Rio Grande do Sul. No entanto, quando este

último assumiu efetivamente o Comando do III Exército, ocupou

emissoras de rádio, com tropas fiéis à legalidade, dando oportunidade

para que setores civis organizados em apoio a João Goulart dessem início

ao processo de levante popular, sob liderança de Leonel Brizola e do

prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, tentando repetir a Campanha

da Legalidade de 1961. Um grande número de populares marchou para a

Praça da Matriz, a fim de depor o governador e entregar o governo a

Leonel Brizola. O clima no Palácio Piratini era de extrema tensão. A

tropa de choque da Brigada Militar foi acionada e tomou posição

defensiva. O impasse foi atenuado quando Sereno Chaise convocou a

população a acompanhar o desenrolar dos acontecimentos no Paço

Municipal.

De posse das rádios gaúchas, a Cadeia da Legalidade foi

reeditada, divulgando notas e proclamações de entidades, conclamando o

povo à resistência contra o "golpe dos gorilas". O movimento culminou

com a realização de um comício no Largo da Prefeitura que contou com

oradores como Leonel Brizola, Álvaro Ayala, Vilson Vargas, Floriano

D'ávilla e o próprio Sereno Chaise. Todos pediram a união das forças

populares contra o golpe às instituições. Segundo o Correio do Povo, o

prefeito Sereno Chaise permaneceu em seu gabinete desde o início da

crise, atento ao desenrolar dos acontecimentos, cercado por seus

auxiliares e "elevado número de populares", que se colocaram em frente

da prefeitura. Inúmeras organizações e entidades manifestaram apoio ao

prefeito e ao presidente Goulart: Comando de Reivindicações dos

46

Page 47: VOLUME 1 - GOLPE

Servidores do Estado, Comando Nacionalista de Guarujá, Frente

Nacionalista do Magistério Gaúcho, Conselho Sindical Feminino,

Comando dos Servidores Federais do Rio Grande do Sul, Comissão dos

Profissionais Liberais, Sindicato dos Empregados no Comércio

Hoteleiro e Similares de Porto Alegre, funcionários da Prefeitura

Metropolitana, do MASTER, Sindicato dos Oficiais de Barbeiros e

Similares, da Associação dos funcionários da CEEE e do Sindicato dos

Trabalhadores de Energia Elétrica em Porto Alegre, entre tantas outras.

A sorte da limitada democracia brasileira estava sendo decidida, em

grande medida, no Rio Grande do Sul, onde a resistência depositou suas

últimas esperanças.

O governador Meneghetti percebeu que fracassara a manobra de

requisitar as emissoras de telecomunicações (já ocupadas pelas tropas do

III Exército leais a Goulart), e que se encontrava com pouca base social de

apoio em Porto Alegre. Assim, no 1º de abril, sob pressão do III Exército

e do movimento civil pela legalidade, transferiu a sede do governo para

Passo Fundo, na sede do 3º Batalhão de Caçadores da Brigada Militar.

Desse local, conclamou o povo gaúcho contra Goulart e os inimigos da

democracia.

No dia 2 de abril, diante da notícia de que Goulart abandonara

Brasília, anunciava-se a vitória do movimento "rebelde". O presidente

desembarcou em Porto Alegre, acompanhado por ministros e auxiliares,

entre os quais o general Assis Brasil. Cerca de duzentas pessoas o

recepcionaram com "vivas ao presidente do Brasil". Depois de ser

cumprimentado pelo comandante do III Exército, Ladário Pereira

Telles, pelo prefeito Sereno Chaise e pelo deputado Leonel Brizola, bem

como por diversos deputados estaduais, Goulart foi escoltado até a

residência do comandante do III Exército. Especulava-se que o

47

Page 48: VOLUME 1 - GOLPE

presidente vinha para o Rio Grande do Sul, região onde contava com 18expressiva base política e militar para lutar pela retomada do poder.

Entretanto, a situação militar no III Exército mostrava fissuras

importantes. Embora o quartel-general anunciasse que exercia controle

sobre todo o estado, os jornais informavam que tropas da Divisão de

Cavalaria, em Uruguaiana, da 3ª Divisão de Cavalaria, em Bagé, e da 3ª

Divisão de Infantaria, em Santa Maria, estavam sublevadas. Mais

preocupante ainda para a resistência, a 5ª Região Militar que controlava o

Exército no estado do Paraná, subordinada ao III Exército, também se

sublevou, declarando adesão ao movimento golpista da mesma forma

que as tropas sediadas em Santa Catarina, as quais aderiram ao comando

do 5º Distrito Naval, cerrando fileiras com o levante. E se a 5ª Zona

Aérea, comandada pelo brigadeiro Othelo Ferraz, declarou-se fiel ao III

Exército e à Constituição, a Brigada Militar, que em 1961 foi de

fundamental importância na resistência da Legalidade, agora, em 1964,

colocava-se ao lado do governador Meneghetti e rejeitava a requisição da

tropa feita pelo general Telles.

Apesar da forte mobilização popular e do controle de boa parte

do Rio Grande do Sul, o presidente Goulart avaliou que não teria

condições de resistir ao Golpe, dadas as condições militares existentes.

Recusou-se, por sua vez, a distribuir armas à população que estava

disposta a resistir, como fizera Brizola em 1961. Logo a seguir, agradeceu

publicamente a lealdade do povo gaúcho e das forças do III Exército na

defesa da legalidade e da democracia. Ao final da manhã do 2 de abril,

voou de Porto Alegre para o exílio no Uruguai, de onde não retornaria em

vida, tornando-se o único presidente brasileiro a morrer fora do país.

Anunciada a vitória do Golpe, os sediciosos desencadearam

"ações de limpeza". Mesmo assim, durante os dias 3 e 4 de abril,

18 Correio do Povo, Porto Alegre, 2 abr. 1964.

48

Page 49: VOLUME 1 - GOLPE

ocorreram movimentos de resistência, mas, como amostragem do que

viria a seguir, foram duramente reprimidos. Com o controle da situação,

Meneghetti voltou para Porto Alegre junto com o novo comandante

nomeado para o III Exército, o general Poppe de Figueiredo. Os

apoiadores e partidários de Meneghetti, então, começaram a aparecer e

foi organizada a "festa da vitória da democracia", consubstanciada num

comício realizado pelo governador e pelas autoridades militares. O

arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer, a maioria da imprensa

e as entidades empresariais manifestaram apoio à reorganização e

"limpeza" da nação.

Imediatamente após o Golpe, a nova fase política, que marcaria o

Brasil, começou a tomar contornos. Centenas de pessoas foram presas,

inclusive o prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, mesmo sob

veementes protestos de vereadores e deputados. Leonel Brizola teve de

fugir e se esconder. Ministros de Goulart, lideranças de esquerda e

opositores do Golpe foram presos. A região do Vale do Rio dos Sinos foi

colocada sob intervenção militar, com várias pessoas presas, a fim de

evitar "desordens". Em nível nacional e estadual, teve início o período de

acusações, expurgos e perseguições políticas. O clima de triunfalismo dos

golpistas era evidente. Sob os louros e louvores de uma pretensa "nova

democracia" iniciava-se, assim, a ditadura civil-militar de Segurança

Nacional.

O Golpe de Estado contra o governo do presidente João Goulart

só pode ser compreendido dentro do contexto histórico da Guerra Fria e

da polarização político-ideológico dela decorrente. A compreensão do

Golpe só pode ser efetiva se percebermos a complexa luta política entre os

dois projetos de sociedade naquele momento: o projeto nacional-

reformista e o liberal-conservador. Diante da política de reformas,

resposta parcial às demandas de uma população historicamente

49

Page 50: VOLUME 1 - GOLPE

esquecida e de um projeto de país autônomo e soberano, os setores

dominantes, através dos seus mais diversos mecanismos de dominação, e

o capital internacional a eles associados, desestabilizaram e conspiraram

abertamente contra a administração Goulart. De qualquer forma,

independentemente das contradições ou dos equívocos desta

administração e da radicalização das esquerdas, houve um Golpe de

Estado que foi perpetrado pelo amplo e variado campo da direita. Em

nome do capital, da propriedade privada, da tradição, da família e do

mundo ocidental, um governo democraticamente eleito foi derrubado, a

Constituição virou letra morta, atos institucionais foram impostos,

partidos políticos foram proibidos, o Congresso foi depurado, eleições

foram canceladas, milhares de cidadãos foram vítimas de repressão

estatal e expurgos, censura, prisões políticas, tortura e desaparecimentos

se tornaram marcas profundas de um regime discricionário que imergiu o

Brasil em uma longuíssima noite... uma noite de 21 anos de arbítrio e

autoritarismo.

50

Page 51: VOLUME 1 - GOLPE

Assim como os bravos farroupilhas lutaram dez anos sem esmorecer, os gaúchos também saberão lutar até a vitória final, oferecendo seu sangue generoso pela causa da Pátria e a Constituição. Soldados e oficiais do bravo terceiro exército, soldados e oficiais da gloriosa Brigada Militar! A vós apelo neste momento para que participeis da nossa luta, irmanando-nos aos bravos companheiros de Minas, Goiás, Mato Grosso, São Paulo e de todo o norte, que neste momento marcha para libertar a nossa Pátria da demagogia, da inflação e da miséria política em que nos encontramos.Fragmento do Manifesto de Ildo Meneghetti, em Passo Fundo, dia 1º de abril de 1964

Esse apelo aos gaúchos foi pronunciado pelo governador do

estado do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, no dia 1º de abril de

1964. Meneghetti já havia sido governador entre 1955 e 1959 e foi eleito

para um segundo mandato em 1962. Representava as forças

conservadoras no Estado, capitaneadas pelos partidos da União

Democrática Nacional (UDN), o Partido Libertador (PL) e o Partido

Social Democrático (PSD). Desde 1945, o principal enfrentamento

político, ideológico e partidário no Rio Grande do Sul desenrolava-se

entre os "trabalhistas", liderados por Leonel Brizola, com filiação ao

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e os "conservadores", liderados por

O GOLPE DE 1964: RIO GRANDE DO SUL, "CELEIRO" DO BRASIL

Claudia Wasserman*

* Professora do Departamento de História e dos PPG-História e Relações Internacionais/UFRGS.

51

Page 52: VOLUME 1 - GOLPE

Ildo Meneghetti. Foram quatro embates eleitorais desde 1950 até 1962, a

última eleição estadual do período democrático. Entre 1951 e 1955, foi

governador do estado Ernesto Dornelles, que representava o

trabalhismo; entre 1955 e 1959, Ildo Meneghetti, representante dos

conservadores, teve seu primeiro mandato no governo estadual; e, entre

1959 e 1963, foi a vez de Leonel Brizola, líder dos trabalhistas, ocupar o

governo do estado. A conspiração que preparou o golpe de 1964 começou

com a vitória de Ildo Meneghetti nas eleições estaduais de 1962.

As eleições estaduais de 1962 foram como um divisor de águas na

história regional da ditadura civil-militar brasileira. Depois de negociada

a solução parlamentarista para a posse de João Goulart, o desfecho da

crise foi praticamente transferido para os resultados eleitorais nos

estados, em 1962. As campanhas de candidatos anti-Jango foram

financiadas pelos Estados Unidos, através da Aliança para o Progresso,

num valor aproximado de quatro milhões de dólares, e por intermédio do

Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que teria investido

aproximadamente dois milhões de dólares em candidaturas de deputados

e governadores em vários Estados, inclusive no Rio Grande do Sul.

O Rio Grande do Sul apresentava-se como particularmente

importante nas disputas políticas nacionais por causa da liderança de

Leonel Brizola. Além de ter sido responsável pela campanha da

Legalidade (1961), que permitiu a posse de João Goulart depois da

renúncia de Jânio Quadros, Brizola teve um governo (1959-1963)

marcado pela nacionalização e estatização de empresas estrangeiras

(telefonia, eletricidade e transportes), por assentamentos rurais e por

vultuosos investimentos na educação pública e nas áreas estratégicas para

o desenvolvimento econômico da região. Brizola representava as forças

nacionalistas do País, uma vertente política que preconizava o

52

Page 53: VOLUME 1 - GOLPE

desenvolvimento autônomo do capitalismo brasileiro e que era

hostilizada pelos defensores da integração econômica do País aos centros

hegemônicos do capitalismo.

Ao lado dos nacionalistas estavam as classes populares e os

partidos de esquerda, inclusive o Partido Comunista Brasileiro (PCB). 1 Por isso, a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que recomendava

resguardar o Ocidente da ameaça comunista, não distinguia entre aqueles

que eram socialistas de fato e os defensores do nacional-

desenvolvimentismo. Mercedes Cánepa, em seu estudo sobre os partidos

e a representação política no estado, observa a "tentativa de alguns

deputados (PSD) em estabelecer ligações de Brizola e de algumas

lideranças do PTB [...] com o 'movimento bolchevista internacional',

alertando ao Rio Grande do Sul e ao País do perigo representado por

falsos democratas que se utilizavam de postos de comando para promover 2o caos social".

O golpe de 1964 foi desferido supostamente contra o

comunismo. Mas, além dos comunistas, alvos dos Estados Unidos e dos

seus aliados no contexto da Guerra Fria, o golpe também foi desferido

contra o governo de João Goulart e contra os políticos que defendiam o

projeto nacionalista, como o ex-governador do Rio Grande do Sul

Leonel Brizola, e o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, cujo

apoio a Francisco Julião, fundador das Ligas Camponesas, era visto como

inadmissível pelas forças conservadoras.

1 A Doutrina de Segurança Nacional pode ser definida como um projeto intelectual produzido a partir dos Estados Unidos e reinterpretado pelos setores conservadores das elites civis e militares da América Latina, que serviu para justificar os golpes de Estado nas décadas de 1960/70.2 CÁNEPA, Mercedes Maria Loguércio. Partidos e representação política: a articulação dos níveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945/ 1965). Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005. p. 299.

53

Page 54: VOLUME 1 - GOLPE

Neste sentido, no que tange aos estudos sobre a ditadura, não é

mais possível ignorar o papel das diversas forças estaduais brasileiras no

golpe de 1964. Está mais do que na hora de ultrapassarmos o estágio da

generalização em nossos estudos sobre a ditadura civil-militar

implantada a partir de 1964 no Brasil e nos voltarmos para análises

específicas das diversas regiões do País a partir dos estados. O Rio

Grande do Sul teve um papel bastante importante e pouco estudado até

hoje no desenrolar dos acontecimentos que culminaram com a deposição

de Goulart e o sucesso do golpe civil-militar de 1964.

O fato de presos políticos serem tratados pelos guardas em

prisões e quartéis do Rio Grande do Sul como "tupamaros" exemplifica a

necessidade de aprofundamento das pesquisas regionais a respeito do

período. O exemplo é fornecido por Jorge Fischer Nunes, no livro O riso

dos torturados. Em suas memórias, o autor conta sobre um episódio no

qual um tenente queria encerrar uma conversa com um preso e teria dito:

"Tupamaro bom, é tupamaro morto", ao que podemos estabelecer uma

longínqua conexão com a frase do general Philip Sheridan, que, ao

participar do processo da conquista do Oeste dos Estados Unidos, no

século XIX, teria dito: "os únicos índios bons que já vi estavam mortos".

Assim como nos Estados Unidos tratava-se da conquista de uma

fronteira, no caso do Rio Grande do Sul também estávamos diante de

uma situação em que a proximidade com o Uruguai provocava a confusão

entre as denominações dos militantes, guerrilheiros e revolucionários de

ambos os lados. Esse exemplo singelo retrata bem a pertinência de

estudos regionais para o caso da ditadura civil-militar implantada no País

a partir de 1964.

54

Page 55: VOLUME 1 - GOLPE

O último governador do estado eleito através de sufrágio

universal e democrático foi Ildo Meneghetti, apoiado por uma sigla que

reunia todos os partidos conservadores do estado, a Ação Democrática

Popular (ADP). O conservador Meneghetti assumia o comando do

Executivo estadual, enquanto o Executivo federal se encontrava nas mãos

do PTB de Jango e Brizola. Por isso, o governador do Rio Grande do Sul

conspirou para derrubar João Goulart desde o primeiro dia de seu

mandato, em março de 1963.

O secretário de Segurança de Meneghetti, deputado udenista

Poty Medeiros, mantinha encontros sistemáticos com o comandante do 3III Exército, general Benjamim Galhardo, e com o general comandante

da 6ª Divisão, Adalberto Pereira dos Santos, que em 1973 seria vice-

presidente do general Ernesto Geisel. O Círculo Militar, comandado

pelo coronel Ibá Ilha Moreira, que se tornou secretário da Segurança de

Meneghetti depois do golpe, também fazia parte da conspiração que se

reunia em um apartamento alugado na Av. Salgado Filho. O

relacionamento entre civis e militares conferiu ao ato golpista,

posteriormente, uma significativa coesão dos dois ambientes, ao menos,

entre os setores reacionários de um e outro meio.

No final de 1963, em 14 de dezembro, Meneghetti se posicionou

publicamente através de um manifesto, onde alertava para "os riscos da

comunização do País", pela fragilização do quadro político e a conivência

de Jango com os comunistas. Mais contundente que o Manifesto do

governador foram as respostas que alguns deputados da base aliada a

3 Em artigo sobre o Serviço Federal de Informações e Contrainformação (Sfici), Wilson Machado Tosta Júnior faz a seguinte observação sobre o general: "o Conselho de Segurança Nacional, a cuja Secretaria-Geral era subordinado o Sfici, se opôs à nomeação de um oficial: o general Benjamin Galhardo, em 1963, para o Sul do País. Aconselhado pelo ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, o próprio Goulart foi contra a opinião do CSN e o nomeou para o posto. Segundo Corseuil disse a Carvalho, "a escolha era a pior do mundo" e, se em lugar de Galhardo tivesse sido nomeado o general Ladário Telles, "o III Exército não teria se revoltado".

55

Page 56: VOLUME 1 - GOLPE

Meneghetti deram nos dias seguintes. Um trecho da carta da bancada da

UDN, lida na Assembleia Legislativa do estado pelo deputado Artur

Banchini, constitui exemplo do clima no Rio Grande do Sul:

Quando assistimos estarrecidos à desenvoltura com que os esquerdistas ameaçam impunemente as instituições e a tranqüilidade da família brasileira, querendo, a pretexto de decantadas reformas, implantar no solo pátrio o regime fidelista, a palavra corajosa repulsa do governante rio-grandense à ostensiva conspiração em marcha é o toque de alerta aos democratas para que, unidos, se apresentem para luta, em defesa das instituições democráticas e das tradições

4cristãs de nossa terra.

Desde o início do governo, Meneghetti teve o apoio da maioria

do Legislativo a partir de um acordo realizado logo no começo do ano,

fruto de uma coalizão parlamentar que se propunha a lutar contra a 5bancada do PTB. O apoio parlamentar auxiliou nas medidas repressivas

e autoritárias do governante que visava conter a mobilização popular

estimulada pelo governo anterior de Leonel Brizola. A Brigada Militar

foi atuante e conivente com o poder Executivo estadual na repressão aos

movimentos populares rurais e urbanos. Um episódio exemplar foi a

repressão ao acampamento do movimento dos agricultores sem-terra em

Passo Feio-Nonoai, no dia 4 de fevereiro: os sem-terra foram expulsos,

seus ranchos incendiados e as lideranças sindicais foram presas. Depois

deste episódio, muitos outros se seguiram dentro dos mesmos padrões

repressivos, na direção de outros acampamentos em diversas regiões do

estado, mas também contra os sindicatos urbanos, movimentos de

trabalhadores contra os aumentos de passagens de ônibus, movimento

estudantil, entre outros. Neste sentido, Meneghetti antecipava, em nível

4 Artur Banchini, Anais da Assembleia Legislativa, v. 172, p. 220.5 CÁNEPA, op. cit., p. 393.

56

Page 57: VOLUME 1 - GOLPE

regional, um modelo de comportamento repressivo na direção dos

movimentos sociais que se repetiria a partir de 1964 no resto do País.

No início do ano de 1964, a situação do Rio Grande do Sul era

tão tensa quanto a conjuntura do restante do País, com o agravante da

existência de uma bancada parlamentar pró-Jango bastante significativa

no estado, o que representava críticas contundentes a cada ato repressivo

do governo estadual. Denúncias da iminência de golpe contra o governo

Goulart, por exemplo, foram constantes neste começo de 1964 e partiam

do próprio governo do estado. Depois do Comício da Central do Brasil,

realizado no Rio de Janeiro no dia 13 de março, sob os auspícios de João

Goulart e que reuniu todas as forças do País favoráveis às reformas de

base, o governador Ildo Meneghetti encontrou-se em Porto Alegre com

os governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de São Paulo,

Adhemar de Barros, para articular uma ação política contra o governo

federal.

Outro fator que parecia pesar bastante na divisão política dos

gaúchos estava relacionado à questão da economia do estado. O Rio

Grande do Sul vinha enfrentando uma baixa produtividade, além de

dificuldades estruturais, decorrentes da escassez de transportes, energia e

comunicações. A atividade agropastoril sofria com os melhores

rendimentos do centro do País, onde o setor era mais desenvolvido

tecnologicamente. O êxodo rural também começava a criar problemas na

precária estrutura urbana gaúcha, além de refletir questões relacionadas à

concentração de terras e à reforma agrária.

Aliado aos problemas rurais, o desenvolvimento da indústria, do

comércio e dos serviços, ainda que em índices inferiores ao padrão

nacional, tornava possível a organização dos trabalhadores industriais e

de serviços, como professores e policiais, no sentido de elaborarem suas

57

Page 58: VOLUME 1 - GOLPE

reivindicações e de realizarem greves e manifestações. Estes

trabalhadores pressionavam os representantes da sociedade a dirigirem

suas ações em prol de medidas progressistas. O PTB de Brizola

encampava estas reivindicações e, mesmo que nem toda movimentação

desses setores significasse necessariamente uma adesão a qualquer ideal

mais progressista, revolucionário ou "comunista", esta sinalização foi

suficiente para servir de pretexto aos golpistas de que estava na hora de

bloquear estas atividades reivindicatórias, consideradas subversivas.

Alguns outros episódios revelam o ambiente social e político no

começo dos anos 1960 no Rio Grande do Sul, tais como: a recusa do

comando militar do Exército do estado em receber a visita de uma missão

comercial soviética na Base Aérea de Canoas; a vinda de Francisco Julião

ao Estado, em 1961, e a polêmica que se criou com o cardeal Dom

Vicente Scherer a respeito da reforma agrária; a intensa atividade cultural

de conteúdo social em Porto Alegre, como aquelas realizadas no Clube de

Cultura e pelo Teatro de Equipe, assim como os movimentos de

estudantes do Colégio Estadual Júlio de Castilhos (o "Julinho") e da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); a formação dos

"Grupos de Onze Companheiros" de Brizola, para defender as reformas

de Jango; o descontentamento de comandantes militares com a quebra da

disciplina e com o incitamento à "desordem" social, com destaque para o

general Mourão Filho, que fora comandante da mesma unidade de Santa

Maria que o general Poppe de Figueiredo sublevaria contra Jango, em

1964; os encontros ocorridos entre o mesmo general Mourão Filho e a

FARSUL para apoiar a candidatura de Meneghetti nas eleições estaduais

de 1962; as relações do governo Meneghetti com o embaixador

estadunidense Lincoln Gordon. Isso tudo só para ficar em alguns

exemplos relacionados ao Rio Grande do Sul, eventos que testemunham

no estado gaúcho a repercussão de questões que ecoavam em todo o País.

58

Page 59: VOLUME 1 - GOLPE

O Rio Grande do Sul também não ficou de fora das articulações

do dia do golpe, quando Mourão Filho, comandante da IV Região

Militar, deslocou suas tropas de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro,

instituindo o primeiro ato do golpe de 1964 e obtendo apoio do 1º e 2º

Exércitos. No mesmo dia, o governador Ildo Meneghetti deu início à

Operação Farroupilha: na tarde de 31 de março, reforçou a segurança do

Palácio Piratini e isolou a Praça da Matriz para evitar manifestações

populares; decretou feriado bancário e escolar até o dia 3 de abril;

requisitou todas as emissoras de rádio para evitar outra rede da

Legalidade e se dirigiu para Passo Fundo, onde ficaria durante três dias e

de onde lançaria o manifesto de apoio ao golpe.

O III Exército estava dividido e os cálculos militares indicavam

possibilidades de luta intensa, devido principalmente à influência do ex-

governador do estado Leonel Brizola. O general Ladário Pereira Teles,

comandante do III Exército, leal ao presidente, determinou que suas

tropas entrassem em "prontidão rigorosa". Tudo parecia indicar que um

núcleo de oficiais legalistas comandaria a reação contra os golpistas. A

ação militar "golpista" foi, entretanto, bastante significativa. Teve como

chefes principais os generais Poppe de Figueiredo, da 3ª Divisão de

Infantaria, em Santa Maria; o general Adalberto Pereira dos Santos, que

assumiu o comando militar em Cruz Alta; o general Joaquim

Camarinha, comandante da 2ª Divisão de Cavalaria, em Uruguaiana, e o

general Hugo Garrastazu, comandante da 3ª Divisão de Cavalaria, em

Bagé.

A capital do estado, Porto Alegre, seria o último ponto de parada

do presidente João Goulart antes de deixar o Brasil, onde esteve reunido

com Brizola, Ladário Pereira Telles e outros oficiais fiéis ao governo.

Nesta reunião, Jango ouviu avaliações a respeito da situação e da

59

Page 60: VOLUME 1 - GOLPE

conveniência de resistir ao golpe ou de partir para o exílio no Uruguai.

Jango acabou optando por deixar o Brasil e evitar assim uma possível

guerra civil.

Na madrugada do dia 1º de abril de 1964, o governador Ildo

Meneghetti transferiu a capital para Passo Fundo e foi de lá que enviou

aquela mensagem aos gaúchos. A mensagem ainda completava: "Eu não

poderia, nesta hora, fugir ao meu dever. Frente aos atentados à autonomia

do estado do Rio Grande do Sul, frente à ameaça clara e aberta de

intervenção, cujo processo está em marcha, só tenho um caminho, que é

incorporar-me àqueles que agora, em todo o Brasil, lutam para restaurar a

Constituição e o Direito, livrando nossa Pátria de uma ditadura 6comunista". Meneghetti tentava evitar uma tentativa de sua deposição

pelas forças de resistência ao golpe, fiéis ao presidente João Goulart, que

se articulavam em Porto Alegre. Três dias mais tarde, quando foi

anunciado o exílio de Jango no Uruguai, Meneghetti voltou para Porto

Alegre, escoltado por uma força combinada da 3ª Divisão de Infantaria

do Exército, de Santa Maria, e por tropas da Brigada Militar.

Ao longo dos três dias, enquanto o governador esteve em Passo

Fundo, o chefe de polícia Armando Prates Dias ficou como a principal

autoridade da capital e responsável por inibir as manifestações populares.

Dois pequenos protestos foram reprimidos. No dia 1º, a Brigada teve que

dispersar manifestantes nas proximidades do abrigo da Praça XV e, no

dia 2 de abril, nas proximidades do Mercado Público. No dia 4 de abril, o

Exército e a Brigada ocupavam ostensivamente as ruas do centro da

capital. As mais consistentes manifestações contra o golpe se

concentraram defronte à prefeitura de Porto Alegre, onde o prefeito da

capital, Sereno Chaise, do PTB, prometia resistir. Na madrugada do dia

6 RIO GRANDE DO SUL. Declaração do Governador do Estado Ildo Meneghetti. Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano XXII, n. 213, p. 1, 1 abr. 1964.

60

Page 61: VOLUME 1 - GOLPE

3, Sereno Chaise foi preso pelo DOPS e solto alguns dias depois. O

jornal Última Hora, de propriedade de Samuel Wainer, um órgão

francamente favorável ao PCB e ao PTB, foi fechado no dia 4 de abril. A

Assembleia Legislativa do estado do Rio Grande do Sul foi uma das mais

atingidas pelas sucessivas cassações orquestradas pelo governo militar. A

bancada do PTB diminuiu de 23 para 15 deputados.

Entre 1964 e 1982, foram quatro governadores eleitos

indiretamente para ocupar o poder Executivo estadual. Depois de Ildo

Meneghetti, que havia sido eleito democraticamente e estava no poder

quando o golpe foi desferido, ocuparam o cargo de governador Walter

Peracchi Barcelos, Euclides Triches, Sinval Guazzelli e José Amaral de

Souza. Desde 1945 até 1965, as eleições para governador eram diretas e

não coincidiam necessariamente com as eleições para o poder

Legislativo, assim como o tempo do mandato dos governadores não era o

mesmo em cada unidade da Federação; havia estados em que o mandato

era de cinco anos e outros onde a duração era de apenas quatro anos. Isto

variava conforme as constituições estaduais vigentes. Assim, enquanto o

Rio Grande do Sul e outros estados haviam realizado eleições em 1962,

outros onze estados do Brasil realizaram as últimas eleições estaduais

diretas do período da ditadura em outubro de 1965.

Apesar do veto a determinados candidatos por parte da chamada

"linha dura das Forças Armadas", a oposição triunfou em cinco estados

importantes, tais como a Guanabara e Minas Gerais, o que ensejou o

decreto do Ato Institucional nº 2. O AI-2, publicado em 27 de outubro

de 1965, determinava a extinção dos partidos e a implementação do

bipartidarismo, como resposta aos resultados das eleições que ocorreram

no início do mês. Além da criação dos dois partidos que abrigavam a

situação (Ação Renovadora Nacional – ARENA) e a oposição

61

Page 62: VOLUME 1 - GOLPE

(Movimento Democrático Brasileiro – MDB), a ditadura decreta, em

fevereiro de 1966, o Ato Institucional nº 3 (AI-3), que determinava que

as eleições de governadores e vice-governadores seriam indiretas,

executadas por colégio eleitoral estadual.

Ildo Meneghetti, como a maior parte do PSD gaúcho,

incorporou-se à ARENA, partido de sustentação do regime. Entretanto,

o próprio Meneghetti teve seu governo encurtado pela ditadura militar,

quando em 12 de setembro de 1966 foi substituído prematuramente por

Walter Peracchi Barcelos, escolhido em convenção da ARENA, e eleito

indiretamente pela Assembleia Legislativa.

A nomeação de Peracchi Barcelos pela Assembleia Legislativa

do estado foi garantida pelas sucessivas cassações que reduziram a

oposição e permitiram à ARENA a maioria dos votos. O MDB tinha um

candidato, o jurista Ruy Cirne Lima, que foi obviamente derrotado, mas

recebeu o apoio de uma parte da extinta bancada do Partido Libertador,

cujo líder, Paulo Brossard, havia rompido com a ditadura depois de ter

sido um dos seus primeiros apoiadores. Com esta adesão, o MDB do Rio

Grande do Sul passou a abrigar, simultaneamente, militantes do PL e do

PTB, assim como alguns membros do PCB e outras siglas de esquerda.

O governo do coronel da Brigada, Walter Peracchi Barcelos, de

setembro de 1966 até março de 1971, foi marcado pelos protestos do

movimento estudantil e pela repressão. As passeatas de recepção aos

calouros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul foram as

principais formas de protesto do movimento estudantil gaúcho,

sobretudo porto-alegrense, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970.

As passeatas eram marcadas por humor e satirizavam os principais

algozes da ditadura no País e no estado. A maior manifestação estudantil

do período ocorreu em agosto de 1968. Os universitários gaúchos,

62

Page 63: VOLUME 1 - GOLPE

embalados pelos protestos de maio na França e pela morte de Edson Luís

em março, no Rio de Janeiro, tentaram ocupar a Praça da Matriz e foram

duramente reprimidos pela Brigada, que partiu contra os estudantes.

Neste episódio, que ficou conhecido como o "Protesto da Catedral", um

personagem evidenciou-se como defensor dos estudantes, o cardeal

Dom Vicente Scherer, que abriu as portas da Catedral Metropolitana,

permitindo que os estudantes entrassem, evocando o medieval direito do

Santuário. Durante horas, o próprio Dom Vicente negociou com as

autoridades da Brigada para que os estudantes saíssem presos, mas sem

violência.

Os atos de resistência contra o regime militar foram mais

evidentes a partir do Rio de Janeiro e de São Paulo, mas o Rio Grande do

Sul também protagonizou algumas tentativas de oposição à ditadura. A

primeira tentativa de guerrilha no estado foi comandada pelo ex-coronel

do Exército Jefferson Cardim. Com 22 homens, ex-brigadianos

expurgados logo após o golpe, Cardim ocupou Três Passos em 25 de

março de 1965. Nesta noite, Cardim chegou a Três Passos com seu

"contingente". Assaltaram o posto policial da Brigada Militar, levaram

armamento, fardas e munição. Em seguida, tomaram os transmissores da

Rádio Difusora na cidade, onde Odilon Vieira, com sua voz de locutor,

leu o "Manifesto à Nação", que representava a senha para o início da

"revolução brasileira". No final da proclamação, alguns poucos notívagos,

surpresos e sonolentos, tomaram conhecimento da criação das "Forças

Armadas de Libertação Nacional" (FALN).

Existem dúvidas a respeito da participação de Leonel Brizola no

episódio, do qual Cardim afirma ter sido o mandante. É provável que

Cardim estivesse estimulado pelas palavras de resistência da maior

liderança do PTB no estado, mas também é de supor que as forças

63

Page 64: VOLUME 1 - GOLPE

repressivas estivessem dispostas a vincular Bizola aos atos de violência. A

nota oficial fazia as seguintes referências ao acontecimento de Três

Passos:

O grupo que assaltou os fracos contingentes da Brigada Militar do Rio Grande do Sul nas localidades de Três Passos e Tenente Portela e que se apossou do armamento e da munição ali existentes era chefiado pelo ex-cel. Jeferson Cardim de Alencar Osório, comunista reconhecido e por isso mesmo afastado das fileiras do Exército pelo Ato Institucional. (...) O ex-coronel Jefferson foi preso e, ao ser interrogado, confessou que cumpria missão plenamente entrosada com o ex-deputado Leonel Brizola e que o assalto a Três Passos seria a senha para um movimento de âmbito geral. Foram presos cinco integrantes do bando, sendo que os demais componentes, em número de 15, abandonaram o armamento e a munição e, em trajes civis roubados dos colonos, procuram fugir. A operação para a captura dos fugitivos prossegue, sendo de assinalar que a população civil colabora de forma extraordinária para a identificação e localização dos bandoleiros. O Exército tem a lastimar o falecimento do 3º sargento Carlos Argemiro Camargo, da 1ª Companhia do 13º Regimento de Infantaria que, no cumprimento do dever, morreu em ação, contra maus brasileiros que tentam

7subverter a ordem.

O assalto de Cardim a Três Passos contribuiu para a

desmoralização dos atos de resistência à ditadura, mas também para

ressaltar o envolvimento de Leonel Brizola nas atividades de oposição ao

regime.

As atividades de guerrilha urbana no Rio Grande do Sul

envolveram algumas organizações que existiam em quase todo o Brasil e

outras quase que exclusivamente gaúchas, entre as quais a Ação Popular

7 Banco de Dados da Folha de São Paulo, nota oficial do governo. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_29mar1965.htm>. Acesso em: 1 jul. 2009.

64

Page 65: VOLUME 1 - GOLPE

(AP), na qual estavam envolvidos estudantes católicos. A Ação Popular

teve grande importância no Rio Grande do Sul devido à ação dos dois

bispos católicos que se opuseram vigorosamente ao regime, Dom Aloísio

Lorscheider (Santo Ângelo) e Dom Ivo Lorscheider (Santa Maria). A

AP era a principal força do movimento estudantil gaúcho na época do

golpe. O M3G, em referência a Marx, Mao, Marighella e Guevara,

existiu somente em Porto Alegre entre 1969 e 1970, fundado por Edmur

Péricles de Camargo, que fora anteriormente ligado a Carlos Marighella.

O Movimento 21 de abril também existiu apenas em Porto Alegre, entre

novembro de 1967 e abril de 1969, quando um grupo de alunos do

Colégio Estadual Júlio de Castilhos rompeu com a dissidência do PCB e

fundou o movimento. Outras organizações como o Partido Operário

Comunista (POC), VAR-Palmares, a Vanguarda Popular

Revolucionária (VPR), também atuavam no estado. A maior parte das

ações ocorreu em 1970. Eram expropriações bancárias com o objetivo de

levantar fundos para a organização da resistência ao regime. A VPR, o

M3G e o Movimento 21 de abril protagonizaram três assaltos a bancos

gaúchos entre março e abril de 1970, sempre com resultados pífios e

muita dificuldade de organização, devido à falta de estrutura material dos

grupos. A ação mais espetacular ocorrida no Rio Grande do Sul foi a

tentativa de sequestro do cônsul dos Estados Unidos, em Porto Alegre,

organizada pela VPR e pelo Movimento Revolucionário 26 de Março

(MR-26). A tentativa de sequestro ocorreu em duas ocasiões, no mesmo

dia 4 de abril de 1970, primeiro à tarde, quando, devido ao intenso tráfego

de veículos, o carro dos sequestradores não conseguiu emparelhar com o

carro do cônsul e, à noite, quando sete militantes armados em um fusca

conseguiram fechar a frente do carro onde estava o cônsul, sua mulher e

um amigo, mas não impediram que Curtis Carly Cutter, apesar de ferido

por um tiro, desse a partida no seu automóvel e saísse em disparada.

65

Page 66: VOLUME 1 - GOLPE

O saldo desta ação foi a prisão em massa de militantes de várias

organizações nas dependências do DOPS, da Penitenciária Estadual e da

prisão na Ilha das Pedras Brancas, as principais instituições repressivas do

estado.

Entre os combatentes, segundo Fischer Nunes, estavam

"médicos, pedreiros, advogados, calceteiros (sic), jornalistas, serventes de

obras, funcionários burocráticos, enfermeiros, estudantes. Enfim, um

grupo eclético – em quase todos os sentidos", havendo entre eles

militantes de grupos como o POC, PCB, PCdoB, VAR-Palmares, ALN, 8M3G, Ala Vermelha, etc.

Em 1971 assume o governo do estado um ex-militar, Euclides

Triches, que permaneceu no poder até 1975. Durante este período, a

economia do Rio Grande do Sul acompanhou a euforia do País, devido

ao sucesso da lavoura de soja. A repressão aos movimentos sociais,

estudantis e populares se manteve nas dependências do DOPS em Porto

Alegre, e a censura aos meios de comunicação se intensificou neste

período. Um relatório de 1971, do DOPS, documento identificado por

Caroline Bauer no Acervo da Luta contra a Ditadura, revela que os

órgãos de repressão do estado estavam confiantes quanto ao

aniquilamento da militância de esquerda:

Em virtude do aniquilamento que sofreram os principais grupos subversivos que atuaram no Estado, no decorrer dos anos de 1970 e 1971, dificilmente possuem estes condições materiais e humanas – salvo com auxílio vindo de outros Estados ou mesmo do Exterior – para efetuarem novas ações de vulto. Entretanto, estima-se que […] d) elementos subversivos oriundos de países vizinhos (Argentina e

8 NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados. Porto Alegre: Proletra, 1982. p. 86.

66

Page 67: VOLUME 1 - GOLPE

Uruguai) tem entrado clandestinamente, através da fronteira 9gaúcha, causando preocupação às autoridades.

Esta preocupação dos órgãos de segurança do estado do Rio

Grande do Sul com as fronteiras é outro tema que torna os estudos

regionais sobre a ditadura como fundamentais para explicar este período

da história do Brasil. A Operação Condor, desencadeada para coordenar

ações de repressão em toda a região e conectar as polícias do Chile, Brasil,

Argentina e Uruguai, teve grande parte de suas atividades repressivas

desenvolvidas em território do Rio Grande do Sul. A prisão de diversos

militantes argentinos, como Lorenzo Ismael Viñas e o padre Jorge Oscar

Adur na fronteira, em Uruguaiana, em 1980, bem como o sequestro dos

militantes uruguaios Lilián Celiberti, de seus dois filhos e de

Universindo Díaz, em Porto Alegre, em 1978, são algumas destas

atividades que revelam a conivência entre a polícia do Rio Grande do Sul

e dos países vizinhos.

O governador do estado na época do sequestro dos uruguaios era

Sinval Sebastião Duarte Guazzelli. Membro da ARENA, foi governador

entre 1975 e 1979. Ao final do mandato de Guazzelli, a ditadura

começava a dar sinais de esgotamento. Desde 1974, o MDB vencia

eleições parlamentares em praticamente todos os estados importantes do

Brasil. No Rio Grande do Sul, foi emblemática a vitória de Paulo

Brossard para o Senado Federal, com apoio dos trabalhistas. Ao mesmo

tempo, o MDB elegeu sua maior bancada, 33 deputados estaduais, em

um total de 56 cadeiras. O MDB gaúcho decidira continuar lutando

contra a ditadura e contra a repressão, mas pretendia não interferir na

9 Relatório Anual de Informações – Atividades subversivas 1971. In: BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Estado do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006. p. 74.

67

Page 68: VOLUME 1 - GOLPE

política de "abertura lenta e gradual", proposta pelo presidente Geisel.

Nesta linha, Geisel indicara Sinval Guazzelli para o governo do estado,

contra a vontade do ministro do Exército, Sylvio Frota, por considerar

Guazzelli membro de uma ala progressista da antiga UDN.

O último governo estadual indicado pela ditadura foi de José

Augusto Amaral de Souza, que governou entre 1979 e 1983. Durante seu

governo, foi assinado o decreto da anistia, em 27 de junho de 1979. A

Câmara dos Deputados aproveitou para restaurar os mandatos de dois

vereadores de Porto Alegre, os últimos cassados em 1976, por

denuciarem torturas contra os presos políticos do estado, Marcos

Klassmann e Glênio Peres. Em maio de 1982, o DOPS foi extinto, e o

governador Amaral de Souza ordenou a incineração dos arquivos,

revelando o temor que o regime tinha de que suas ações repressivas e

ilegais fossem reveladas com provas.

O ano de 1979 foi explosivo. A sinalização de abertura do regime

animou a resistência à ditadura. O movimento estudantil restaurava a

União Nacional dos Estudantes (UNE) com o congresso, em Salvador.

Dezenas de estudantes gaúchos viajaram como delegados dos Diretórios

Acadêmicos para o encontro. O movimento sindical ressurgiu com força,

começando pela greve dos operários da construção civil, seguidos pelos

trabalhadores do Polo Petroquímico, pelos mineiros da região

carbonífera do estado, por professores estaduais, pelo setor de vestuário,

de transporte de carga, dos telefonistas e pelos bancários. Os bancários se

revelaram os mais combativos. A greve, liderada pelo presidente do

sindicato, Olívio Dutra, durou dez dias e trouxe a Porto Alegre Luiz

Inácio da Silva, que liderara a greve dos 200 mil metalúrgicos no ABC

paulista. O esgotamento visível da ditadura não impediu que todos estes

movimentos fossem duramente reprimidos e que as lideranças fossem

68

Page 69: VOLUME 1 - GOLPE

presas, ainda que temporariamente, devido ao clamor da sociedade

organizada. O movimento agrário também renasceu com ocupação de

terras em 1979 e 1980, marcando o surgimento do Movimento dos

Trabalhadores Sem-Terra (MST).

O retorno à democracia foi marcado por estas manifestações

sociais e pela reorganização partidária. Fracionados em diversos partidos

de esquerda, os grupos identificados com a resistência à ditadura foram

derrotados nas eleições de 1982. Este retorno à democracia e muitos

outros temas a respeito da ditadura no estado do Rio Grande do Sul

merecem ser revisitados pela historiografia com o objetivo de ampliar o

nosso conhecimento sobre a ditadura no estado e no País. Algumas

temáticas vêm recebendo atenção dos jovens pesquisadores gaúchos, a

partir dos nossos Programas de Pós-Graduação, como, por exemplo, os

relatos de militantes de esquerda, o DOPS e a repressão no RS, as ações

do CCC, o papel dos arrependidos do regime, a imprensa alternativa, o

movimento estudantil, os expurgos da universidade, etc. Estas pesquisas

certamente formarão uma visão menos genérica e mais consistente desse

período da história recente do Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUER, Caroline. Avenida João Pessoa, 2050 – 3º andar: terrorismo de Estado e ação de polícia política do Departamento de Ordem Política e Social do Estado do Rio Grande do Sul (1964-1982). Dissertação (Mestrado em História). Porto Alegre: UFRGS, 2006.

CÁNEPA, Mercedes Maria Loguércio. Partidos e representação política: a articulação dos níveis estadual e nacional no Rio Grande do Sul (1945/1965). Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2005.

D'ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon Soares;

69

Page 70: VOLUME 1 - GOLPE

CASTRO, Celso. Visões do golpe: a memória militar de 1964. Rio de

Janeiro: Ediouro, 2004.

FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964.

In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves

(orgs.). O Brasil republicano: o tempo da experiência democrática – da

democratização ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003. v. 3.

NUNES, Jorge Fischer. O riso dos torturados. Porto Alegre: Proletra, 1982.

SILVA, Hélio. 1964: vinte anos de golpe militar. Porto Alegre: LP&M, 1985.

TOSTA JÚNIOR, Wilson Machado. Informações e Contra-Informação: Depoimentos e Controvérsia em Fragmentos da História. BoletimTempo. Disponível em:<http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&task=view&id=4886&Itemid=147>. Acesso em 1 jul. 2009.

WASSERMAN, Claudia; GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos (orgs.). Ditaduras militares na América Latina. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.

WASSERMAN, Claudia. O golpe de 1964. Tudo o que se perdeu... In: PADRÓS, Enrique Serra (org.). As ditaduras de Segurança Nacional: Brasil e Cone Sul. Porto Alegre: CORAG, 2006.

70

Page 71: VOLUME 1 - GOLPE

AUSÊNCIAS E PRESENÇAS DA RESISTÊNCIA NA DITADURA*

Raul Pont**

O golpe militar não foi algo inesperado. Havia já uma trajetória

de acontecimentos que demonstravam que estava em curso, há muito

tempo, uma crescente organização que não estava muito preocupada com

o respeito às regras e normas democráticas e constitucionais. Isso ficou

evidente na crise do suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, quando houve

um movimento forte de setores das Forças Armadas junto com a União

Democrática Nacional (UDN) no sentido de, primeiro, fazer oposição ao

Getúlio e, após a sua morte, tentar impedir que houvesse uma transição

tranquila e que fosse respeitado o processo democrático. Que o

presidente Juscelino Kubitschek, eleito, viesse a assumir o cargo. Isso já

demonstrava que havia um setor das forças armadas que vinha crescendo

em organização.

Um grupo que vem dos anos 1940, do pós-guerra, da relação dos

militares brasileiros com as forças americanas na Itália e, a partir da

Segunda Guerra Mundial, o clima de Guerra Fria que existia no mundo e

aqui no Brasil. Um clima de Guerra Fria que orientava a formação de

oficiais do Exército e da Aeronáutica nos Estados Unidos, e que traziam

uma influência muito grande para organizar, no Brasil, um alinhamento e

* Depoimento concedido às jornalistas Vânia M. Barbosa e Vanessa Albertinence Lopez em 10 de julho de 2009.** Deputado estadual. Líder estudantil, presidiu o DCE-Livre da UFRGS e participou da fundação do jornal Em Tempo. Fundador do PT, atuou como deputado estadual constituinte, deputado federal (1990) e prefeito de Porto Alegre (1997-2000).

71

Page 72: VOLUME 1 - GOLPE

uma identidade forte com a política externa norte-americana, que

apontava, nesta visão de blocos, como o grande problema da América do

Sul a possibilidade de cair nas garras do comunismo.

Dizia-se na época que se corria o risco da América do Sul escapar

da influência dos Estados Unidos. Nesse grupo chamado Sorbone

despontavam figuras como Golbery do Couto e Silva, Jurandir Bizarria

Mamede, Osvaldo Cordeiro de Farias, Juarez Távora e outros que

compunham um grupo de oficiais que tinham uma participação e uma

influência grande. Essa disputa se dava também em políticas setoriais. De

certa forma, a maior batalha feita em torno da questão da Petrobras

envolvia diretamente, no início dos anos 1950, setores nacionalistas

versus setores defensores de um alinhamento com os Estados Unidos

com uma visão de livre comércio, de integração liberal de uma economia

de mercado com os Estados Unidos e a Europa, e que se colocavam

contrários a qualquer nacionalização destes setores básicos da economia.

Essa disputa esteve muito presente na vida brasileira. O suicídio

de Vargas foi a expressão maior dessa crise. A Carta Testamento é um

documento político profundamente nacionalista, profundamente

marcado pela defesa de um projeto de capitalismo nacional, de

desenvolvimento autônomo capitalista no Brasil. Getúlio e o Partido

Trabalhista Brasileiro (PTB) estavam, naquele momento, ao lado de

comunistas e de esquerdistas, mas tinham um projeto nacional para o

país. Isso conflitava com a conjuntura internacional. Nos anos 1950 e

início dos 1960, havia uma tentativa de construção de um bloco não

alinhado no mundo que envolvia o Egito, a Indonésia, etc. A política

adotada aqui, em um primeiro momento, ainda não tão forte

externamente, pelo governo de Getúlio, mas, depois, com maior

visibilidade, pelo governo de Jânio Quadros, incomodava muito. Não que

72

Page 73: VOLUME 1 - GOLPE

fossem perigosos subversivos os dois presidentes brasileiros, mas

incomodavam muito o alinhamento imposto pelo quadro internacional.

A tentativa de impedir a posse do Juscelino foi uma expressão disso. A

morte do Getúlio foi uma expressão maior ainda. O suicídio carregava

em si uma certa declaração de impotência e das dificuldades daquele

projeto de capitalismo nacional ter a sustentação de uma parcela

significativa da classe dominante brasileira. Nem essa parcela estava

disposta, ao que tudo indica, o que se comprova depois, em 1964, ao

assumir esse projeto.

A morte trágica do Getúlio dá uma espécie de sobrevida a esse

projeto e marca, de maneira trágica, uma crise profunda. Getúlio ainda

tinha mecanismos. Sua morte foi uma comoção nacional. Recordo-me,

tinha dez anos, em Uruguaiana, uma cidade pequena na época, do

desespero e da histeria das pessoas nas ruas gritando, chorando. Primeiro,

porque não era comum um presidente da República se matar. Segundo,

porque ele tinha uma carga de identidade com o Rio Grande do Sul, com

o país e com seu projeto muito forte. Isso foi uma comoção. Se do ponto

de vista científico, sociológico, isso já era uma demonstração de que a

relação de forças caminhava em outra direção, a morte deu uma sobrevida

ao trabalhismo, ao projeto de um capitalismo nacional, autônomo, com

forte participação popular em sua sustentação eleitoral. A vitória de

Juscelino, de novo, é uma vitória, não da UDN, destas forças, mas de um

partido centrista, o Partido Social Democrático (PSD), com sustentação

e apoio do PTB. Inclusive com João Goulart na vice-presidência. Esse

tipo de situação conduz para que o governo Juscelino não tenha o mesmo

projeto de Getúlio Vargas.

O desenvolvimentismo, de certa forma, substitui o nacionalismo

do projeto. A mobilidade social permitida pelo crescimento rápido que o

73

Page 74: VOLUME 1 - GOLPE

país vivia e pelas condições favoráveis do salário mínimo; aliás, esse foi o

período em que o salário mínimo teve o maior poder de compra de toda

história brasileira; comparado a hoje, tinha o poder de compra de duas a

três vezes maior. Foi um momento de geração de emprego, de

urbanização. Juscelino já dava sinais de mudança, mas a herança de

Getúlio, a figura de João Goulart e uma ebulição social muito forte

garantiam que o projeto desenvolvimentista ainda tivesse muita força.

A vitória de Jânio Quadros é, aparentemente, contraditória

porque ele não é da UDN, sua origem é o Partido Democrata Cristão

(PDC), um partido de segunda linha, menor, pequeno, sem expressão

para sustentar uma candidatura de densidade eleitoral, mas a assume. A

figura de Jânio é conflitiva, contraditória. Ele vinha de uma experiência,

em São Paulo, marcada por um populismo de direita que lhe dava uma

expressão nacional forte eleitoralmente. A candidatura que as forças

nacionalistas e populares da época, a esquerda, encontram para essa

disputa não era uma figura popular, por mais méritos e virtudes que

tivesse no momento da crise de 1954 e 1955, como comandante de

postura constitucionalista e democrática. Enquanto Jânio tinha a

vassoura para varrer a corrupção, para limpar o país, Henrique Batista

Duffles Teixeira Lott, o candidato das esquerdas, tinha a espada de ouro.

Ainda que fosse meritória por sua ação em 1955. Ele não era uma figura

carismática. Isso distorce um pouco a continuidade de um projeto que já

estava ferido pelo governo de Juscelino.

O desenvolvimentismo foi acompanhado de um ingrediente que

passou a ser predominante neste período. Se no período anterior, com

Getúlio, a ideia era criar e fortalecer a Eletrobras, a Petrobras, a Ferrobras,

e muitos outros "brases", e um Estado interventor e investidor, no

governo Juscelino isso não aconteceu. O desenvolvimentismo foi

74

Page 75: VOLUME 1 - GOLPE

marcado por uma profunda penetração no país de capital internacional.

É o período das montadoras de automóveis. É a vinda para cá das grandes

montadoras que reformulam radicalmente o país. O período anterior era

o da Fábrica Nacional de Motores. A mobilidade social que isso cria no

país, a urbanização, o rápido crescimento, a melhora das condições de

vida das pessoas é algo muito sensível que dá uma base forte de

sustentação do governo. Mas o rumo está mudando. E Jânio vai

radicalizar isso.

É contraditório. Jânio se elege sem grande sustentação

parlamentar e, de certa forma, se elege com grande parte do voto popular.

Como a eleição para presidente e vice-presidente era separada, no

próprio movimento popular se cria a figura de uma aliança Jan-Jan: Jânio

e Jango. E olha que o Jango era vice do Lott. O vice da chapa adversária é

mais votado. Isso é contraditório, embora a lei eleitoral permitisse essa

situação.

Com Jânio Quadros configuram-se alguns ensaios de maior

autonomia, independência, de uma política externa soberana, mas não é

um governo popular, de esquerda. É um governo muito contraditório,

conflitivo e que cria, permanentemente, uma situação de falta de respaldo

parlamentar. O personalismo de Jânio também estava presente. Até hoje

alguns autores defendem a tese de que a renúncia foi um ensaio, que foi

feita para que ele pudesse voltar com mais força ou para que fossem

diminuídos os poderes do Congresso Nacional. Para que projeto?

Também é uma interrogação. O fato é que ele saiu e ninguém pediu que

voltasse. Como não foi trazido de volta nos braços do povo, nem do

Senado nem da Câmara dos Deputados, o país entrou em uma situação

muito conflitiva. A volta de João Goulart significava a retomada, de

forma até mais radical, do projeto nacionalista que estava interrompido.

75

Page 76: VOLUME 1 - GOLPE

Claro que isso se dá em uma nova conjuntura histórica. Exatamente neste

momento, houve a vitória da Revolução Cubana. O fantasma do

comunismo não paira longe, está ali, mostrando que a revolução está nas

portas do império americano, que a luta armada de um conjunto de

jovens idealistas e revolucionários era viável e podia se concretizar como

estratégia política.

A posse de João Goulart se dá em meio a um confronto de

polarização política. Há a resistência de Leonel Brizola aqui no Rio

Grande do Sul, com o desafio de ter usado de maneira extremamente

ousada as Forças Armadas a partir de uma tropa de segunda linha. A

Brigada Militar não tinha armamentos pesados. Mas a simples

resistência, o fato de abrir alistamento popular, de distribuir revólveres de

pouca eficácia para a população e de haver filas para isso, demonstravam

que havia uma disputa crescente em curso. A conciliação do Exército leva

os militares a terem um recuo momentâneo. Aceitam a posse de Jango;

seu governo assume, sob pressão e apoio popular dos movimentos

estudantis, em um clima cultural muito forte. Há, neste momento, uma

renovação no cinema com o Cinema Novo, no teatro com o Teatro de

Oficina, na música com a Bossa Nova, há um profundo debate sobre o

papel da Universidade. A discussão sobre o subdesenvolvimento se dá

neste momento. Esse debate acadêmico/teórico começa a por em cheque

toda uma visão dominante que existia, sem ainda uma alternativa clara.

Havia uma linha predominante aqui de que, mesmo com reformas de

base, o Brasil cresceria dentro dos parâmetros e das balizas do

capitalismo, com reformas, com melhorias de condições para o povo.

Esse debate sobre o que era o subdesenvolvimento e o que foi a Revolução

Cubana, simultaneamente a isso, e o processo de entrada de novos atores

na vida política – classes médias urbanas, o crescimento numérico das

76

Page 77: VOLUME 1 - GOLPE

universidades que eram estopins de mobilização da juventude –, esse

processo todo fez com que o governo de Jango fosse crescentemente

polarizado.

Claro que as teses predominantes no PTB e na esquerda da

época não preparavam, não construíam a sociedade para um

enfrentamento. A não ser coisas isoladas como a situação dos sem-terra

do nordeste, que não eram as reivindicações das Ligas Camponesas; mais

por condições de trabalho e salário nos canaviais do que por terra para

produzir. Já eram assalariados e isso adquiria um conflito e uma

contradição muito fortes. Mas, no conjunto, principalmente a esquerda, o

Partido Comunista Brasileiro (PCB), seus intelectuais, as pessoas que

analisavam aquele momento, aquela conjuntura, defendiam uma visão

estratégica de que o governo trabalhista, popular, democrático, de

reformas estruturais no país avançaria em aliança com setores da

burguesia, sem ter base sociológica para afirmar isso, sem ter

comprometimento partidário para isso. Tudo era muito fluído. Os

partidos estavam se consolidando. Num período de muita fluidez, de

muita instabilidade, cria-se a expectativa de que do lado destas reformas

estão amplos setores sociais; ninguém está se preparando para a guerra

civil. A educação política é que fez com que não houvesse, por parte do

governo João Goulart e das forças que o apoiavam, do meu ponto de vista

e de muita gente que estuda esse período, uma preparação para enfrentar

o golpe militar. O golpe não era visto como uma possibilidade concreta.

Os militares trabalharam muito bem isso. Eles não estavam sozinhos.

Sozinhos já seriam fortes por estarem no controle das armas, do aparato

repressivo do Estado, isso já dá uma força multiplicada. Havia também,

dentro do Congresso, a UDN, em menor grau, o PSD, setores do PSP, o

PRP, a versão mais modernizada do fascismo no país, o Partido

77

Page 78: VOLUME 1 - GOLPE

Integralista, forças políticas que tramaram e foram favoráveis a uma saída

de força, a uma saída não constitucional, não pela via democrática, pelo

processo eleitoral.

O governo confiou demasiadamente na possibilidade de ter um

esquema militar próprio, de ter generais. Seguidamente, diziam que o

Amaury Kruel, chefe da Casa Militar, alguém ligado diretamente ao

Jango, era o sujeito que fazia a ligação com os setores militares não

golpistas e que, estes, seriam a maioria. Quando ocorre o golpe, logo se vê

que não existe nada disso. Que os oficiais, generais e comandantes mais

próximos do governo estavam do outro lado. E não estavam sozinhos,

tinham apoio da UDN e dos principais meios de comunicação, jornais

como o Estado de S. Paulo, jornais do Rio de Janeiro, igualmente

influentes. E a cúpula da Igreja também deu uma sustentação muito

forte. Ela trabalhou muito bem a questão do temor ao comunismo. O

anticomunismo impregnado em uma classe média que achava que

perderia sua casa, o emprego, toda aquela visão ideológica de uma disputa

cultural profunda que o país estava abarcado. Aqui, os organismos

financiados diretamente pelos Estados Unidos agiam de maneira

escancarada. O Instituto Brasileiro de Ação Democrática publicava

abertamente panfletos pró-Estados Unidos. Lembro-me que no Centro

Acadêmico sempre estavam as pilhas de panfletos produzidos sobre a

Guerra da Coreia, sobre a crise internacional dos anos 1950 sob o ponto

de vista norte-americano e que pregavam abertamente que a América

tinha que ser a salvaguarda da democracia contra o terror comunista. E o

governo não reagia a isso na mesma altura.

Quando acontece o golpe militar, há uma resistência muito

pequena, quase nula, a começar pelo presidente, que não se dispõe a reagir

e a defender o cargo. Já havia sido mostrado que o Rio Grande do Sul,

com a derrota, em 1962, do candidato do PTB, Egydio Michaelsen, para

78

Page 79: VOLUME 1 - GOLPE

Ildo Meneghetti, enfraquecia muito a resistência, porque o comando da

Brigada Militar não era mais do PTB. Embora a primeira coisa que o

Meneghetti tenha feito, quando se dá o golpe, seja sair de Porto Alegre.

Exatamente porque não confiava na cidade e nas Forças Armadas. Têm

depoimentos como o do coronel Pedro Alvarez, por exemplo, que afirma

que, se houvesse recebido ordens para isso, em um movimento de

sargentos, cabos e soldados, tinha condições de tomar os quartéis aqui,

como alguns foram tomados no interior. Depois não sabiam o que fazer

porque não havia direção. Prenderam oficiais e depois não tinham

comando. Livraram os oficiais e acabaram na cadeia, principalmente no

movimento de sargentos. Não havia um plano, uma estratégia. O próprio

Jango sai do Brasil alegando que não quer uma guerra civil, um

derramamento de sangue. Isso desarma muito. Mesmo que o presidente

não quisesse, se um partido, ou se os partidos, ou se setores sociais

estivessem preparados para isso, seria diferente.

Fiz toda essa introdução para dizer que a resistência, em um

primeiro momento, foi muito frágil, pela derrota profunda que a esquerda

e o projeto que a animava sofreu naquele momento. Os militares

rapidamente mostraram que o golpe militar não seria curto, rápido,

cirúrgico, e que, dois meses depois, haveria eleições e o quadro

democrático e as oligarquias voltariam a controlar o Congresso, o Estado

e o aparato, livres do comunismo, como pensava Juscelino e até golpistas

como Carlos Lacerda. Este grupo tinha uma visão anticomunista clara, e

essa era sua principal marca e seu principal vínculo internacional com a

política global dos Estados Unidos; não era liberal, como foi a década de

1930 na Argentina ou como vai ser em outros países da América do Sul.

Os militares haviam construído um projeto, seguramente

antiesquerda, mas que tinha uma marca forte de potência mundial, de

79

Page 80: VOLUME 1 - GOLPE

desenvolvimentismo, de papel importante do Estado ao levar adiante o

crescimento econômico, o Estado visto como um alavancador da

atividade econômica, e os militares vão acabar estatizando mais do que

Getúlio e Brizola juntos. E ninguém acusou os militares de subversivos,

de comunistas escondidos, etc. Mas não era um projeto liberal ou

neoliberal, como vai aparecer mais tarde no mundo, com Ronald Reagan

e Margareth Tatcher. Era um projeto autoritário dentro de um regime

ditatorial, mas com um forte componente de concepção, ao longo prazo,

de um Brasil potência, de um Brasil com crescimento próprio. A tese dos

militares era de que uma espécie de tripé sustentaria toda a infraestrutura:

comunicações, transporte e energia elétrica. Isso ficava para o Estado,

seria um dos pés desse processo de crescimento. Todos os setores de

ponta, os setores de economia de escala, voltados para inovação

tecnológica seriam internacionalizados, portanto, de grandes empresas

internacionais, e o setor tradicional do comércio, dos bancos e de alguns

tipos de serviços menos sofisticados seriam reservados para a burguesia

brasileira.

Pode ter havido alguma ingenuidade política ou uma fé

determinada de que o jogo democrático, o jogo parlamentar não seria

tocado, não seria mexido, por conta de uma visão linear e ufanista de que a

democracia só se consolida, quando não há base histórica para isso. Países

com larga tradição democrática sofreram golpes militares ou tiveram

regimes autoritários ou totalitários, fascistas, nazistas. Não há uma

correspondência direta de que a humanidade só caminha para o bem.

Como agora. Se há uma grande derrocada da ideologia, do programa, do

projeto neoliberal, e tudo favorece e indica que as vitórias eleitorais da

esquerda permitiram a construção de outro projeto mais duradouro e

sólido porque isso não conta com a justiça social, do meu ponto de vista,

80

Page 81: VOLUME 1 - GOLPE

não há garantia de que isso vá acontecer. Pode acontecer. Mas, também,

se não houver competência neste sentido, é possível que apareça mais um

período autoritário se esses setores não forem capazes e competentes para

fazer do governo um instrumento de satisfação de necessidades. Se as

pessoas não tiverem emprego, daqui a pouco uma alternativa autoritária,

de mão-de-ferro, cria falsas expectativas que sabemos que não darão

certo, mas que têm uma audiência e uma capacidade de penetração fortes

por substituir no indivíduo a necessidade de ação direta, da preocupação,

da participação, da própria militância em torno disso. O que é a essência

da ideologia da monarquia absoluta? Não é que o rei, a monarquia, se

impõe absoluta aos súditos. A sociedade, por necessidade do estado de

guerra ou instabilidade social permanentes, se doa ao rei, a um Estado. As

pessoas optam por um Estado forte, transferem sua soberania para que

ele resolva por eles. A contrapartida pode ser o silêncio, a paz dos

cemitérios, mas é uma paz. Você sai da instabilidade.

O problema que houve no Brasil foi esse. É um dos elementos

que explicam, portanto, que a esquerda primeiramente faz um

enfrentamento e tentativa de resistência muito errática, amadora, sem

uma consciência profunda do fenômeno que havia ocorrido. Isso não é só

nos cinco, seis, dez primeiros anos. Acredito que esse processo vai até a

Assembleia Constituinte. Em um primeiro momento, vem a resistência

de tentar negar o regime autoritário, de denunciar a ditadura. Mas a

ditadura, em primeiro lugar, teve alguma legitimidade social. Podia não

ter legitimidade histórica, mas as Marchas com Deus e a Família pela

Liberdade (que a Igreja capitaneava), as classes médias, os setores que

foram às ruas, os Comandos de Caça aos Comunistas e a imprensa davam

a legitimidade social. Rapidamente o regime autoritário vai premiar os

meios de comunicação com anúncios, publicidades. Quanto mais

81

Page 82: VOLUME 1 - GOLPE

comportado e mais fiel o meio de comunicação, maior o apoio. Não é

gratuitamente que a Zero Hora tenha nascido neste momento,

substituindo a Última Hora, sobre seus escombros e suas cinzas. É ali que

é criado um império governista, legitimador do regime militar. Hoje,

quando fazem as críticas, parece que a Zero Hora não tem nada a ver com

isso, que se trata de outro mundo, mas, na época, eram os legitimadores da

repressão, da sua justificativa, do anticomunismo.

A derrota do movimento sindical foi muito profunda. A cabeça

da maioria dos partidos políticos foi decepada ou foi para o exílio ou foi

preso. Até você recompor uma nova direção, uma nova vanguarda, não é

fácil, principalmente quando se trata de uma profunda derrota. Quando

você está em meio a uma guerra e perde alguns generais e a guerra é justa e

está bem encaminhada, a substituição é fácil. O drama não era só

recompor uma nova direção, mas, sim, recompor uma nova teoria, uma

nova leitura, uma nova visão que desse conta de explicar aquilo. Quanto à

minha geração, eu e muitos outros rompemos com o Partido Comunista

Brasileiro (PCB) no qual militávamos nesse período. A ruptura não foi

porque queríamos deixar de ser de esquerda, mas porque a explicação que

o PCB dava do golpe não era cabível, não era crível. Não explicava o

acontecimento. Para nós não era possível levar uma paulada daquele

tamanho, uma derrota daquela dimensão, e ficar tudo bem. "E agora é só

candidatar gente pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), já

que não tem mais o PCB. E buscar aliados na classe dominante e apoiar

os militares nacionalistas". Como? Essa turma toda não está do outro

lado? Não foi isso que o golpe provou. A releitura do pós-64 sobre o

golpe, sobre a formação social brasileira, o comportamento das classes

sociais, o comportamento dos partidos exigiu um trabalho hercúleo dos

militantes. Era um começar de novo. Uma revisão muito grande da

82

Page 83: VOLUME 1 - GOLPE

teoria, da prática, da estratégia, do programa, da reorganização das forças.

E tudo isso em condições extremamente adversas.

A resistência desembocou na ação meio aventureira da luta

armada de pequenos grupos, da ação meio suicida de pequenas

organizações enfrentando um inimigo 200 vezes maior, o abandono da

luta de massas, a confusão entre o que é luta pela democracia e luta de

subordinação à ideologia burguesa. Nesta confusão do pós-64, essa é uma

das razões, inclusive, porque a luta pela Constituinte nos anos 1970 acaba

não se constituindo com a mesma força da anistia e nem aproveita todo o

empuxo e o crescimento do movimento de massa que gerou novos

partidos. É porque a discussão sobre uma constituinte livre, democrática

e soberana, se era realmente uma estratégia correta ou não contra o

regime militar, não unificava nem a esquerda. Não havia unidade sobre

isso. Como não havia unidade em 1965, 1966. O correto era voltar para

dentro do MDB e lançar candidato clandestino e ocupar espaços no

Parlamento ou subir o morro, como tinha feito Fidel Castro, Che

Guevara e outros em Cuba? O leque que se abriu de alternativas de

resistência ao golpe foi muito grande. E pior: do ponto de vista do

movimento de massas, foi quase que exclusivamente a juventude, o

movimento estudantil, que se tornou uma vanguarda de substituição na

ausência de partidos e movimentos sindicais. O movimento estudantil

assumiu um papel de substituição, naquele momento, além de ter de

produzir seu próprio programa, sua teoria explicadora de sua prática.

Claro que o discurso da Revolução Cubana, a tradução dessa

revolução por um cara como Régis Debray que diz que aquilo era um

caminho, o castrismo, com a longa marcha da América Latina,

influenciou. Ele pegava a ideia da longa marcha chinesa e dizia que o

castrismo era a longa marcha latino-americana. A luta de guerrilhas é o

caminho, a estratégia. Se essa luta é uma estratégia, não é uma estratégia

83

Page 84: VOLUME 1 - GOLPE

organizar o movimento sindical, os trabalhadores, construir um

movimento de massas urbano.

Esse é um dos períodos mais ricos da vida política brasileira e de

uma reformulação teórica do campo da esquerda. É neste período que a

esquerda brasileira faz uma autocrítica do estalinismo, de uma estratégia

reformista como uma estratégia equivocada para romper definitivamente

com o subdesenvolvimento, a necessidade de que, para romper com o

sudesenvolvimento, é preciso uma estratégia de ruptura com a

dominação imperialista. De que não tem mais espaço na América do Sul

para que projetos como o do trabalhismo e do capitalismo nacional

consigam cumprir tarefas de soberania nacional, de igualdade de disputa

com o imperialismo. Essas coisas deixaram de ser tarefas possíveis de

serem realizadas pelas classes dominantes brasileira, argentina, uruguaia,

paraguaia. Isso é uma tese. Se defendo essa tese, é evidente que meu

trabalho político, minha visão e minha estratégia tem que ser no sentido

de construir um outro bloco social, político, capaz de levar à frente uma

série de transformações e mudanças que são mais marcadas pela ruptura

do que pelo reformismo ou por uma crença de que teremos aliados entre

setores da classe dominante para fazer isso. Essa questão divide a

esquerda até hoje. Por isso que digo que não é a única tese. É uma das

explicações do porquê, naquele momento, irmos para um lado e não para

outro. Porque há uma grande divisão na esquerda, durante os anos 1970,

sobre como reconstruir um partido. Ou, quando surge a ideia do

movimento pró-Partido dos Trabalhadores (PT), sobre que

características terá esse novo partido. O PT inaugura, efetivamente, uma

novidade na política brasileira ao estabelecer um outro patamar na vida

política do país.

A riqueza deste momento é profunda por envolver os debates

teórico, filosófico e estratégico, a academia e um número grande de

84

Page 85: VOLUME 1 - GOLPE

intelectuais. Tudo isso tem que ser feito sob as condições adversas de uma

ditadura militar que, inclusive, se aproveita e usa muito as experiências de

guerrilha, de resistência armada, de grupos que se dedicam à arrecadação

de fundos, assaltando bancos para organizar aparatos de resistência para

pessoas poderem sobreviver na clandestinidade, para justificar seu

recrudescimento. Para justificar, em 1968, o Ato Institucional nº. 5 (AI-

5), para justificar a tortura, a morte, o assassinato, o fuzilamento, no caso

do Araguaia. As condições para que as classes oprimidas e exploradas

possam realizar a reconstrução teórica e programática de sua estratégia é

extremamente difícil. Não é fácil, mas, a vida é isso: essa dinâmica, essa

dialética. A contradição existente no país vai criar condições para que isso

se construa. A luta dos anos 1970 enfrenta, na metade da década, o

abandono da luta armada. Neste momento, já há uma compreensão de

que essa forma de luta em um país urbanizado como o Brasil, como a

Argentina, como o México, está fadada a cair no isolamento e na derrota.

Isso porque não tem como organizar o cidadão comum para a luta

armada quando ele tem que bater ponto, cumprir oito horas de trabalho.

A VPR chegou a recrutar dirigentes sindicais, como o José Onofre, o José

Ibrain, que, de vez em quando, botavam uma máscara para assaltar um

banco.

Isso é impossível. Não tem como coadunar duas estratégias tão

distintas. Houve uma confusão grande. Pelo fato da esquerda se

caracterizar por uma subordinação aos partidos burgueses reformistas e

ver neles aliados passageiros ou, mesmo, estratégicos, mas ver neles

aliados, no momento seguinte, quando isso cai por terra, identifica-se que

– aí o problema do estalinismo é muito forte – o pacifismo ou a busca de

espaços no Congresso ou no Parlamento são, também, visões

subordinadas. Se está errado estar subordinado, a democracia também

não interessa. É a ditadura da burguesia contra a ditadura do

85

Page 86: VOLUME 1 - GOLPE

proletariado. Perde-se a visão do que é a luta democrática. É possível

fazer uma luta democrática que não seja subordinada ideologicamente a

um partido burguês e ela ter características de luta democrática.

Em uma sociedade capitalista, normalmente, o poder do capital

transforma a democracia numa fachada e não em uma realidade plena,

objetiva, em que as pessoas tenham efetivamente poder de controle sobre

bancos, empresas, e assim por diante. A crítica ao parlamento burguês e à

política de alianças é uma crítica simultânea à luta democrática. E isso

fortalece a ideia da luta clandestina, o conflito da luta armada contra a

luta pacífica. O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) era mais

revolucionário porque defendia a luta armada no Araguaia. O PCB era

pacifista e reformista porque queria eleger o Lauro Hagemann vereador

de Porto Alegre por meio do MDB. Criou-se uma dicotomia e um

conflito por pura fragilidade da esquerda, que não tinha estrutura,

experiência e formações teórica e política para compreender essas coisas.

É difícil, depois dos acontecimentos, dizer que poderia ter sido

diferente. Mas o que mais ajudou a ditadura a ampliar sua legitimidade

social foi o Milagre Brasileiro. Lembro que brincávamos com nossa

geração que a célula foi mais dizimada pelos altos salários possíveis aos

universitários saídos das faculdades, por conta do Milagre Brasileiro, do

que pela repressão. Por quê? Porque a universidade era uma elite. O país

crescia aos saltos e os empregos para profissões universitárias cresciam

em espantosa rapidez. A ditadura e o regime militar tinham uma política

que favorecia essa ideia de consumo restrito extremamente alto e

qualificado para um pequeno setor, e, para a massa em geral, um arrocho

salarial brutal. Ninguém estava preocupado com o consumo de massas,

mas com o sujeito que trocava de carro todos os anos. Esses setores

egressos da universidade rapidamente tiveram uma melhoria de vida que

os retirou, em grande parte, deste movimento. Por outro lado, talvez

86

Page 87: VOLUME 1 - GOLPE

muitos deles, em condições normais de democracia, mesmo ganhando

melhor, tendo um emprego melhor, tivessem ficado em um partido

político. Mas isso não existia.

A repressão e o autoritarismo fazem com que, em qualquer

sociedade, haja um refluxo. O temor da delação, de informantes, a

desconfiança generalizada de todos em relação a todos. Eu era professor.

Imagina, dentro de uma sala de aula... Era um autopoliciamento, uma

autorrepressão permanente. Como eu poderia saber se, em meio a

quarenta alunos, não havia um ou dois informantes? Eu dei aula em

cursos pré-vestibulares e cursos supletivos até 1971, quando fui preso.

Depois fui, por um longo período da ditadura, professor universitário.

Quando saí da cadeia, em 1973, voltei a sobreviver como professor. Voltei

a dar aula em cursinhos pré-vestibulares e, a partir de um mestrado em

Ciência Política, feito em Campinas, comecei a trabalhar na

universidade, na Unisinos, em uma época em que o ingresso não era tão

difícil quanto é hoje. Hoje é preciso ter mestrado, doutorado. É o

exemplo que estou dando de que o crescimento verificado na época abria

as portas. Comecei a trabalhar lá em 1977 e fui até 1991.

Esse é um processo que se vive em condições que não se escolhe.

Não era só o problema das dificuldades de reorganização da esquerda.

Era a ausência do debate, da crítica, da liberdade para discutir qualquer

tema, pois tínhamos que estar sempre nos cuidando. Chega um ponto em

que isso vai fazendo com que as pessoas não decolem, não cresçam.

Minha briga na sala de aula era permanente. Tinha que ficar sacudindo os

alunos, que já entravam com receio (assim como eu) do informante, da

delação, de até perder o emprego. A ditadura cria um clima e uma cultura

que é uma desgraça para qualquer sociedade.

A luta da resistência, a partir de 1974, mostrou uma mudança

sensível na esquerda, que até então defendia o voto nulo, a denúncia do

87

Page 88: VOLUME 1 - GOLPE

bipartidarismo. Viu que havia uma nova conjuntura e que a derrota

sofrida pela Aliança Renovadora Nacional (ARENA) nas urnas,

mostrava que a legitimidade não estava passando de dez anos do golpe. Já

havia um clima completamente diferente. Não que fosse acabar no dia

seguinte, mas que estava "virando a tortilha". Estava se dando um novo

quadro. Parte da esquerda começa a ocupar o espaço permitido da

ARENA e do MDB, principalmente dentro deste, que passa a ser o

guarda-chuva protetor de várias correntes no campo da esquerda, do

centro, dos democratas, dos republicanos. Era uma grande frente. Um

grande movimento democrático brasileiro. Não era um partido, mas uma

resistência legal e permitida pelo regime militar Esse espaço permitia

com que você puxasse mais para cá, mais para lá. Em uma cidade, um

vereador ou um deputado empurrava a cerca mais para cá, mais para lá.

Essas coisas foram criando uma nova situação.

Daí se criou uma reversão do papel da Igreja. Ela começa a

assumir a luta pela Anistia. Alguns bispos mais corajosos, como Dom

Evaristo Arns e outros, engajaram-se nela. Grupos de intelectuais se

reuniram para lutar pela Anistia. Não era contra o regime militar, não era

contra a burguesia. Era difícil de reprimir. Setores da OAB começaram a

assumir a luta. Essas lutas de retorno a prerrogativas individuais diante de

um regime militar que continuava garganteando que era democrático e

defensor da democracia contra o comunismo não era fácil, afinal não era

um regime totalitário. A ditadura brasileira não foi um regime totalitário,

fascista, assim como não foi neoliberal, como foram os militares

argentinos. Estes foram, tipicamente, de um regime liberal. Tinham uma

visão de voltar à Argentina da divisão internacional do trabalho do século

XIX. Isso fez muita diferença para o futuro, para a situação de hoje do

Brasil, da Argentina. As consequências para os países foram muito

diferentes na formação dos partidos, na reorganização desses partidos

.

88

Page 89: VOLUME 1 - GOLPE

políticos. A Argentina continua até hoje dominada pelo fantasma do

peronismo. Mais urbanizada do que o Brasil, com uma média cultural e

experiência sindical superiores às nossas e não consegue sair daquela

contradição entre o radicalismo e o peronismo e não construiu um

projeto alternativo, distinto, diferente, como se constituiu, de certa

forma, a Frente Ampla uruguaia e, com mais nitidez, o PT brasileiro.

A luta pela Anistia desembocou na reorganização partidária, na

volta do exílio, o que gerou um outro quadro. Nós que participamos no

Movimento pró-PT e que nos considerávamos herdeiros dessa disputa

teórico-programática dos anos 1960, achávamos que estávamos nos

reencontrando na construção de um sujeito político histórico capaz de ser

coletivamente responsável por mudanças e por transformações, que é o

que deve ser um partido político. Era um partido de base sindical,

operária, que não se subordinava a uma ideologia burguesa, que não

queria alianças, que queria crescer com suas próprias pernas, que

enfrentou, nos primeiros anos, todos os desafios e problemas para sua

sobrevivência. Isso marcava um caminho inédito. Isso nunca havia ocorrido na política brasileira. Só que o Brasil já tinha 500 anos. 30, 40

anos na história são um agora, um hoje. Foram tão marcantes os

problemas da esquerda em fazer sua autocrítica dos anos 1960 que, no

PT, quando levantamos a bandeira da Constituinte, como a bandeira que

melhor globalizava a disputa com a ditadura, não tínhamos força dentro

do partido. Esse debate levou anos até o PT assumi-lo. No partido, havia

uma corrente muito forte que dizia que a luta pela Constituinte era uma

luta burguesa, que não cabia aos trabalhadores, que significava voltar ao

reformismo do Partidão. Como se fosse a mesma coisa da visão

estalinista, da subordinação ideológica, programática a um partido de

centro ou populista. Tenho guardados documentos no arquivo do partido

de correntes que diziam que o trabalhador não come Constituinte, que

89

Page 90: VOLUME 1 - GOLPE

não se interessava por essas bobagens, porque o trabalhador quando

tomasse o poder iria instituir a ditadura do proletariado. Essa visão

sobreviveu dentro do PT até quase o final dos anos 1980. Depois de 1985,

a derrota das Diretas Já permitiu criar dentro do partido uma postura

majoritária de assumir a bandeira da Constituinte. E fomos, de novo,

derrotados. Não houve Constituinte. Houve um Congresso

Constituinte. Assim como não houve as Diretas, mas um Colégio

Eleitoral; a conciliação das elites brasileiras, inclusive dos setores

democráticos, do próprio MDB com o Colégio Eleitoral e com a

transição lenta, gradual e segura. E isso marcou.

Não tivemos uma Assembleia Constituinte, pois não foi

exclusiva, onde os constituintes são constituintes. É isso em qualquer

lugar do mundo. Não tem constituinte deputado ou senador. É

constituinte. Depois de criar as instituições e as regras, ele se subordinará,

de novo, a essas regras criadas. Mas ele, primeiro, tem que voltar para casa.

Aqui, não. Foi um acordo em que o Congresso Constituinte conciliou

com o Senado do jeito que era, com senador biônico, com tarefas

legislativas idênticas às da Câmara, sem critérios de proporcionalidade

apesar das brutais diferenças entre os estados. Com semelhantes funções

legislativas, isso se transformou numa trampa, em um negócio

completamente antidemocrático. Houve pessoas eleitas, através de

critérios diferentes, legislando sobre as mesmas coisas. Os novos estados

criados pela ditadura se mantiveram com pisos de representação

completamente desiguais (representação de oito deputados sem eleitores

proporcionais para tanto). O que prejudicou enormemente a democracia.

Os avanços conquistados pela Constituinte em relação a

prerrogativas e direitos individuais são bons, ótimos, mas não foram,

como em outros países, conquistados em uma luta mais histórica, secular,

que tenha lhes dado base e sustentação para que essa luta lhes permitisse

90

Page 91: VOLUME 1 - GOLPE

batalhas políticas e sociais futuras, na sequência de seu crescimento de

representação. Misturaram-se conquistas e prerrogativas individuais

com conquistas sociais sem uma sustentação suficiente e que acabaram

não se realizando. Elas não se realizam apenas na lei. Ou se realizam

porque expressam uma determinada relação de forças da sociedade ou

culturalmente, ou na relação de forças políticas. Até hoje, em

determinadas regiões do Brasil, persiste o clientelismo, o

patrimonialismo. Há figuras que ainda têm uma visão do país

patrimonialista. O clientelismo é praticado como direito divino, como

direito de pertencer a uma oligarquia.

Temos, ainda, muito fundamentalismo religioso, preconceitos

recrudescidos, o que mostra que não há uma linearidade de que o homem,

por natureza, só evolui. Ele pode ter evoluído biologicamente, mas

culturalmente e ideologicamente pode ter grandes refluxos e retrocessos

como estamos vivendo hoje, sob vários aspectos. A crise na Europa e em

outros países leva ao ressurgimento de tendência xenófobas, de emprego

para os nacionais e não para os estrangeiros, e isso é a expressão de coisas

que, com a globalização, pareciam superadas. Não estão superadas.

91

Page 92: VOLUME 1 - GOLPE
Page 93: VOLUME 1 - GOLPE

"CAPITÃO, VAMOS TRABALHAR JUNTOS?"*

Emílio Neme**

A Brigada Militar no Movimento da Legalidade

O momento mais grave da Legalidade ocorreu no dia em que

havia a ameaça de um ataque militar ao Palácio Piratini, com uma

multidão concentrada em frente, na Praça da Matriz. Preocupado com

essa ordem vinda de Brasília – dos militares que estavam tentando dar o

golpe em João Goulart –, o governador Brizola determinou que a Casa

Militar tomasse providências para defender o Piratini e a população.

Para montar a defesa, nós primeiro percorremos os quartéis da

Brigada Militar e perguntamos aos o? ciais se pegariam em armas para

defender o governador Brizola. Por unanimidade, todos responderam

que sim.

Levamos para o governador a conclusão e passamos a posicionar

a Brigada nos pontos essenciais para a defesa. Colocamos metralhadoras

no topo da Catedral Metropolitana e do Palácio Piratini, preparadas para

abater aviões. Eram armas produzidas na Tchecoslováquia, muito

e? cazes. Brizola foi conferir tudo pessoalmente e concluiu que estávamos

prontos para enfrentar militarmente a ameaça de bombardear o Palácio

Piratini.

* Depoimento publicado em GONZÁLEZ, Sérgio; RUAS, Tabajara. Um brasileiro chamado Brizola: tempos de luta. Porto Alegre: Extensão Cultural, 2009.** Coronel reformado da Brigada Militar. Ex-chefe da Casa Militar do governo Brizola.

93

Page 94: VOLUME 1 - GOLPE

Para deter um ataque que poderia vir por Santa Catarina,

posicionamos a Brigada Militar em Torres, perto da divisa. E um

destacamento protegendo as torres da Rádio Guaíba, emissora que

liderava a Cadeia da Legalidade. Para sustar algum possível ataque pelo

Rio Guaíba, utilizamos as lanchas do Corpo de Bombeiros com os

soldados fortemente armados. Um capitão do Exército, que na época

comandava a Companhia de Guardas, contou-me depois que, ao receber

ordens de atacar a Rádio Guaíba para silenciar a voz do Brizola,

respondeu: "Mas general, essa minha gente não enfrenta a Brigada. São uns

recrutas, agora é que eles estão aprendendo a lidar com arma. E um soldado da

Brigada vale uns cem dos nossos".

Foi assim que a Brigada Militar deu sustentação militar ao

governador Leonel Brizola no Movimento da Legalidade.

A tentativa de golpe contra o presidente João Goulart fracassou.

Mas os golpistas continuaram com as mesmas intenções de 1961.

Enquanto Jango governava, principalmente a partir da volta do

presidencialismo, em 1963, eles tramavam. E aconteceu o que ficou

tristemente marcado na História contemporânea do Brasil como o

"golpe de 64". Foi quando novamente eu estava ao lado de Leonel

Brizola, na época deputado federal pelo Rio de Janeiro, em defesa das

instituições democráticas.

O golpe de 64 e a dolorosa fuga para o exílio

Quando ocorreu o golpe militar de 1964 e Brizola já se

encontrava em Porto Alegre para tentar a resistência, estávamos saindo

da sua residência quando a imprensa chegou. Ele ? cou na calçada dando

entrevistas. E o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)

passando por perto de Kombi. Eu então o alertei: "O senhor não pode ?car

94

Page 95: VOLUME 1 - GOLPE

falando aqui na calçada. Eles podem matá-lo. Ou o senhor entra e dá

entrevista lá dentro ou vamos embora". Ele se deu conta e encerrou a

entrevista.

Sobre o exílio, lembro bem das palavras dele: "Neme, eu não quero

sair do Brasil. Mas estão me forçando a sair daqui. Eu quero ?car aqui, eu

quero ir para a Assembleia agora e me opor ao golpe militar".

[Neme respondeu] "Mas de que adianta? Eles vão lá e o matam.

Porque a ordem contra o senhor é de matarem, não é de prenderem" .

Era uma situação em que ele tinha que decidir entre sair do Brasil

ou ser morto. Ir para o interior também não adiantava, pois dois

destacamentos militares estavam percorrendo todo o estado atrás dele.

Quando Brizola concluiu que ? car seria um ato insano, consegui

um uniforme de soldado da Brigada Militar para ele passar pelas barreiras

militares. E foi disfarçado de brigadiano que ele entrou no carro do Ajadil

de Lemos, que era dirigido por sua esposa. O Ajadil na frente e Brizola,

de soldado da Brigada, atrás. Assim o carro passaria pelas barreiras. Mas

pensando na possibilidade de reconhecerem o Ajadil e pararem o carro,

Brizola pediu para ele descer. Conseguiram chegar à praia do Quintão.

Lá, o aviãozinho do Jango, levado pelo piloto Maneca Leães, aterrissou.

Brizola entrou, e o piloto manteve o avião voando a 30, 50 metros de

altura sobre o mar para escapar dos radares, até perto do Uruguai. Foi

assim a saída dele para o exílio. Nesse episódio Brizola exerceu o direito

político universal de procurar asilo para não ser morto.

Em 1958, quando foi eleito governador, Brizola colocou a mão

no meu ombro e me disse: "Capitão, vamos trabalhar juntos?" E sua mão

nunca saiu do meu ombro. Nem depois que ele morreu. Porque eu

conheci como era, de fato, o Brizola como homem público. E como ele

era, de fato, como homem comum.

95

Page 96: VOLUME 1 - GOLPE
Page 97: VOLUME 1 - GOLPE

GRUPOS DOS ONZE:LEMBRANÇAS QUE CONTAM

A VERDADE HISTÓRICA

Sérgio Gonzalez*

Os homens fazem a História. Mas nem sempre poderemos saber

exatamente a verdade histórica. Certamente muitos homens que a contam a

distorcem e relatam conforme suas idiossincrasias, desconhecimento ou

inconfessáveis interesses. E passam isso às gerações que se seguem, fomentando

falsos conceitos. É o que ocorre com grande parte das referências aos Grupos dos

Onze.

E o que posso contar de verdade sobre os Grupos dos Onze?

A origem e razões dos Grupos dos Onze

Meu caso de amor com os Grupos de Onze foi simples,

verdadeiro, profundamente honesto e idealista, assim como dos meus dez

companheiros de luta. Saudosos companheiros que nunca mais vi e nem

sei onde foram parar. A verdade daquilo que faz parte das minhas

vivências da juventude é que os Grupos dos Onze foram organizações de

cunho político e social inspiradas por Leonel Brizola. Mais inspiradas do

que comandadas fascistamente como querem fazer crer os seus detratores.

Foi criado em agosto de 1963, quando Brizola era deputado

federal pelo Rio de Janeiro (na época, estado da Guanabara), eleito com

* Publicitário, jornalista e designer. Co-autor de Um brasileiro chamado Brizola: tempos de luta. Participou dos Grupos dos Onze.

97

Page 98: VOLUME 1 - GOLPE

260 mil votos. Proporcionalmente ao número de eleitores, a maior

votação obtida por um candidato a deputado federal no Brasil.

Ninguém precisava fazer "juramento de obediência irrestrita ao

chefe" e nem seguir qualquer decálogo ideológico para ser membro de

um Grupo dos Onze. Lógico que eram todos de esquerda. Defendiam o

trabalhismo de Alberto Pasqualini, base ideológica do PTB de

GetúlioVargas, o socialismo europeu e, os mais radicais como eu, o

marxismo, que estudei por orientação do meu pai.

Tinha apenas de ser alguém desejoso de trabalhar com o objetivo

de evitar que o Brasil saísse dos trilhos da democracia, e levar adiante os

avanços econômicos, sociais e políticos iniciados por Getúlio Vargas,

seguindo sem solução de continuidade no governo do presidente João

Goulart com as Reformas de Base.

Além, é lógico, de começar a campanha para levar Brizola à

presidência da República nas eleições de 1965, quando enfrentaria um

adversário poderoso eleitoralmente e economicamente: o ex-presidente

Juscelino Kubitschek.

Quando o golpe de 64 começou a mostrar suas garras afiadas

O cenário do país era de grande efervescência política.

O programa de reformas do presidente Goulart havia acentuado

a radicalização política, crescente desde 1961. De um lado, os que

queriam as Reformas de Base. De outro, aqueles que achavam que tudo

devia ficar como estava.

Para que reforma agrária? Reforma bancária? Reforma

educacional? Para que a reforma tributária? A Lei de Remessa de Lucros

penalizando as pobres multinacionais? Para que estender os direitos

trabalhistas aos trabalhadores rurais? Promover o desenvolvimento do

98

Page 99: VOLUME 1 - GOLPE

país em bases nacionalistas, como pretendia o presidente João Goulart,

com o apoio dos sindicatos, do Comando Geral dos Trabalhadores

(CGT), da União Nacional dos Estudantes (UNE), do PTB, dos

socialistas e comunistas?

Contra isso, os grupos que condenavam as Reformas de Base

organizavam-se e tramavam. A fauna era formada por espécimes das

mais diversas origens entranhadas na História do Brasil desde o Império

e a Velha República: empresários, fazendeiros, setores militares,

imprensa e parte da classe média manipulada pela Igreja conservadora e

influenciada pela mídia que defendia os interesses dos grandes

anunciantes, na maioria, poderosas multinacionais. No Congresso, o

presidente encontrava forte oposição da UDN e do PSD. A resistência ao

governo era apoiada pelos Estados Unidos, cujos interesses poderiam ser

prejudicados pela política reformista de Jango.

Mesmo enfrentando essa parafernália de opositores, tudo

parecia ir bem. Os movimentos populares se sentiam fortes o suficiente

para pressionar o Congresso e as elites. Menos Leonel Brizola.

Na sua intuição – e Brizola era um homem intuitivo –, ele

captava algo no ar que não eram os "aviões de carreira", como diria o

Barão de Itararé. A mesma intuição que o fez se antecipar à tentativa de

golpe em 1961 por meio do Movimento da Legalidade.

Brizola sentia que os perdedores não tinham humildemente

aceitado a derrota, como um digno boxeur nocauteado pelo adversário

que cumprimenta o vencedor do embate.

E estava certo. Os golpistas de agosto de 1961 estavam tramando

nos porões mal cheirosos dos inimigos do povo a forma de atacar

novamente.

Desta vez pelas costas.

99

Page 100: VOLUME 1 - GOLPE

Pressentindo isso é que Brizola inspirou, articulou e mobilizou

os jovens, como eu e meus companheiros idealistas, para organizarem os

Grupos de Onze.

Dessa forma seria formada uma rede nacional de brasileiros

preparados politicamente para enfrentar qualquer tentativa de golpe.

Como entrei para um Grupo dos Onze

1Meu pai, Demósthenes Gonzalez , com quem eu havia

participado do Movimento da Legalidade, foi quem me instruiu sobre os

Grupos dos Onze e me apresentou a um jovem chamado Pedro

Etchbarne. A missão do Pedro consistia em organizar um grupo de onze

jovens ligado ao Movimento Nacionalista Brasileiro.

Eu tinha uma dívida política com o "velho" e aquele era o

momento de resgatá-la.

Ocorre que na época em que morávamos em São José do Rio

Preto, interior de São Paulo, fui cooptado por um professor do Instituto

de Educação Pública do município a entrar para o Movimento Águia

Branca, ligado ao integralismo de Plínio Salgado, candidato a presidente

da República nas eleições de 1955.

O Movimento Águia Branca operava organizado em centros

culturais. O meu chamava-se Centro Cultural de Farias Brito, filósofo

brasileiro de caráter espiritualista cuja obra era básica na concepção

ideológica do integralismo.

Eu tinha 15 anos. Entusiasmado pelas ideias de Plínio Salgado,

passei a ler seus livros que compunham a biblioteca do Centro Cultural:

A Voz do Oeste, Vida de Jesus, Reconstrução do Homem, O Integralismo

1 Demósthenes Gonzalez – jornalista, compositor, escritor. Um dos autores do Hino da Legalidade, com Lara de Lemos e Paulo César Pereio.

100

Page 101: VOLUME 1 - GOLPE

Perante a Nação, Direitos e Deveres do Homem, O Conceito Cristão de

Democracia, A Doutrina do Sigma e vai por aí.

Tudo bem. Mas meu pai, comunista convicto, membro do PCB,

não gostou da ideia de ver o filho participar da campanha de Plínio

Salgado. Ele, como os comunistas, apoiavam estrategicamente Juscelino

Kubitschek naquela eleição. Contudo, deixou-me à vontade com as

minhas peripécias juvenis. Certamente viu naquela posição coisa de um

adolescente. Passaria com o tempo. E passou.

Bastou sair de Rio Preto, ir para a capital e logo depois para Porto

Alegre.

Alguns companheiros de saudosa lembrança

Quando entrei para o Grupo dos Onze eu era o mais jovem. Mas

já estava casado e com um filho de seis meses.

Não lembro do nome de todos os meus companheiros.

Não mantínhamos relações cotidianas. Todos trabalhavam.

Tinham responsabilidades com suas famílias e estavam em início da vida

profissional. Só nos encontrávamos nas reuniões para articular nossas

ações.

O Pedro Etchbarne, chamado de Pedrinho por ser baixote e

gordinho, era o coordenador do grupo e com quem cheguei a estabelecer

relações mais próximas. Sei que ele morreu ainda jovem, nos anos 80.

Lembro também do Henrique. O mais culto e radical

politicamente e também o mais perseguido após o golpe de 64, pois havia

passado um ano estudando na então Tchecoslováquia. Com ele ocorreu

um episódio tragicômico. Contou-me em uma manhã de abril, no

interior da Igreja do Rosário, onde às vezes nos encontrávamos

rapidamente logo que era aberta, às 6 horas, quando eu estava morando,

101

Page 102: VOLUME 1 - GOLPE

ou melhor, escondido, no apartamento "kitinete" do desenhista

publicitário Nilo Costa e Silva, que ficava na Galeria do Rosário, em

frente à Igreja.

Preso em plena avenida Borges de Medeiros, alguns dias depois

do golpe militar, Henrique foi conduzido aos safanões à presença de um

coronel que comandava a repressão aos que ainda tentavam atuar

corajosamente nas periferias da cidade, conscientizando a população

quanto aos inconfessáveis e verdadeiros objetivos do golpe.

Henrique, sempre de terno e gravata, carregava uma imensa

pasta preta. O coronel deduziu que devia estar recheada de material

subversivo e, quem sabe, de alguma bomba tipo coquetel molotov. Os

policiais que haviam prendido o "perigoso agitador" abriram a pasta na

frente do impetuoso e astuto coronel. Surpresa e frustração. A pasta

estava cheia de bíblias. Inofensivas bíblias que Henrique vendia para a

Casa Publicadora Brasileira. Era o seu meio de vida.

Foi solto depois de declarar que era evangélico. Uma liberdade

efêmera. Dias depois foi novamente preso e levado para um lugar incerto

e não sabido. Nunca mais o vi. Nunca mais tive notícias do seu paradeiro.

Outro companheiro que me recordo chamava-se Zenon. Um

codinome, hoje suponho, pois era ele que nos orientava sobre questões

militares. Estudante de Engenharia cursava o Centro de Preparação de

Oficiais da Reserva (CPOR) e ia às reuniões sempre rigorosamente

trajando o uniforme militar.

Mas o que pretendíamos nós, onze jovens, em vez de tocarmos a

vida e buscarmos o sucesso profissional?

Prepararmos-nos para as guerrilhas, embalados pelo exemplo de

Ernesto "Che" Guevara?

Tomarmos o poder e ajudarmos a implantar o comunismo no

Brasil?

102

Page 103: VOLUME 1 - GOLPE

Nada disso. Nosso trabalho consistia em pesquisar a situação

social das periferias de Porto Alegre, detectando os problemas sociais e

formando um quadro real das carências das populações pobres, suas

necessidades e aspirações.

Atuávamos muito na área rural, no chamado Cinturão Verde,

implantado por Brizola, quando prefeito da capital gaúcha, no âmbito da

então Secretaria Municipal da Produção e do Abastecimento, também

criada por ele em 1956.

Ao mesmo tempo em que fazíamos esse trabalho, sempre nos

finais de semana, conscientizávamos o povo para a situação brasileira e a

necessidade de união entre todos para pressionarmos o Congresso para a

aprovação das Reformas de Base.

Utilizávamos, para isso, os Cadernos do Povo Brasileiro, coleção

produzida a partir de 1962 pela editora Civilização Brasileira, cujo editor,

Ênio Silveira – de modo corajoso e pioneiro –, viabilizou um

empreendimento dessa ordem, em colaboração com o Instituto Superior

de Estudos Brasileiros (ISEB).

Os Cadernos do Povo Brasileiro eram pequenos livros, formato

bolso, vendidos a preço acessível às camadas populares e de conteúdo

inteligível à população menos intelectualizada, visando a esclarecer o

povo acerca dos problemas mais candentes do Brasil.

A maioria dos títulos era de autoria de historiadores, sociólogos e

políticos membros do ISEB, outros de intelectuais engajados com

interesses no mesmo campo político, como Barbosa Lima Sobrinho e

Francisco Julião. Recordo de alguns: Que são as ligas camponesas?

(Francisco Julião), Quem é o povo no Brasil (Nélson Werneck Sodré),

Quem faz as leis no Brasil (Osny Duarte Pereira), Por que os ricos não fazem

greve? (Álvaro Pinto), o profético Quem dará o golpe no Brasil (Wanderley

Guilherme dos Santos), Quais são os inimigos do povo? (Theotônio

103

Page 104: VOLUME 1 - GOLPE

Junior), Como seria o Brasil socialista? (Nestor de Holanda), Que é a

revolução brasileira? (Franklin de Oliveira), O que é reforma agrária?

(Paulo Schilling), Como atua o imperialismo ianque? (Sylvio Monteiro),

De que morre o nosso povo? (Aguinaldo Nepomuceno), Por que existem

analfabetos no Brasil? (Osny Duarte Pereira), Desde quando somos

nacionalistas? (Barbosa Lima Sobrinho), Revolução e contrarrevolução no

Brasil (Franklin de Oliveira).

A coleção dos Cadernos do Povo Brasileiro fazia parte da pequena

biblioteca do nosso grupo, entre outros livros, revistas e impressos que

eram guardados em uma sala que ocupávamos no Edifício Marechal

Mallet. Ficava na esquina da Rua dos Andradas (Rua da Praia) com a

Rua Caldas Júnior, onde hoje está o Shopping Rua da Praia.

A sala era cedida pelo Movimento Nacionalista Brasileiro,

organização presidida pelo professor Antônio de Pádua Ferreira da 2Silva.

Na noite de 31 de março de 1964, ocorreu o último episódio das

atividades do nosso Grupo dos Onze. Está publicado no livro Um 3brasileiro chamado Brizola: tempos de luta.

O fato ocorreu comigo. Em memória do velho companheiro

Pedro, artífice da minha entrada para os Grupos de Onze, o coloquei

como personagem da história que narrei e que reproduzo para encerrar

estes despretensiosos apontamentos resgatados das minhas peripécias da

juventude.

2 Antônio de Pádua Ferreira da Silva – na época, professor de matemática do Colégio Júlio de Castilhos. Atualmente é membro do PDT. 3 Um brasileiro chamado Brizola: tempos de luta – Livro escrito por Tabajara Ruas e Sérgio Gonzalez, editado no âmbito da Lei Rouanet de Incentivo à Cultura e patrocinado pela Eletrobrás e Grupo CEEE, com o apoio da Fundação Mário Soares e da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.

104

Page 105: VOLUME 1 - GOLPE

A noite em que o Brasil entrou na sombra da ditadura

Noite de 31 de março de 1964. Pedro Etchebarne saiu apressado

da Escola de Belas Artes da UFRGS, onde estudava. Pelo radinho de

pilha que sempre carregava, ficou sabendo que a situação em Brasília

estava tensa. O comício das reformas na Central do Brasil tinha

assanhado os safados da elite brasileira que faziam oposição ao presidente

Jango e tremiam de medo do Brizola. Aquele banqueiro governador de 4Minas, o Magalhães Pinto, era um dos piores. Ladino, tinha até usado

um grupo de mulheres católicas em uma manifestação para impedir que o

deputado Brizola falasse em Belo Horizonte. Um canalha. Até o

Adhemar de Barros, que vivia puxando o saco do Getúlio, estava na

trama. Aquela tal de marcha da família que a mulher dele montou em São

Paulo e foi na frente com um rosário na mão mostrou que a direita estava

organizada e tinha muito dinheiro doado por empresários retrógrados.

Pedro era membro de um Grupo dos Onze. Tinha sido

convocado para uma reunião de urgência na sala da organização, no

Edifício Mal. Mallet, Centro de Porto Alegre. Caminhava rápido pela

Rua dos Andradas, quando foi puxado pelo braço. Era o professor

Antônio de Pádua, dirigente do Movimento Nacionalista Brasileiro.

Pedro nunca se esqueceu do que o professor disse: "Avisa aos

companheiros que vocês não devem se reunir na sede. Tirem de lá todos

os arquivos, livros e impressos. Preparem-se para uma emergência. A

situação é grave. O general Kruel traiu o Jango".

O alerta do professor salvou Pedro de ser preso naquela noite.

Passava da uma hora da madrugada quando, de uma Kombi que

4 Magalhães Pinto – além de político, era dono do Banco Nacional de Minas Gerais, que fundou em 1944. Após o golpe de 1964, sua fortuna se multiplicou e incorporou mais seis bancos. Após a redemocratização do país, o banco quebrou de forma fraudulenta e foi incorporado pelo Unibanco. Os Magalhães Pinto, seus filhos que estavam na direção do Nacional, foram condenados por formação de quadrilha e crime de colarinho-branco. IstoÉ Dinheiro, São Paulo, 2 abr. 2003, [s. p.].

105

Page 106: VOLUME 1 - GOLPE

estacionou bruscamente, desceu um grupo soturno de homens que

entrou no prédio. A sala foi arrombada e os poucos móveis revirados. Só

encontraram jornais e revistas velhas.

Enquanto, isso as tropas do general Mourão Filho já tinham se

deslocado de Minas Gerais. Era o golpe previsto por Brizola. Um golpe

para depor João Goulart e prender Brizola e todas as lideranças e pessoas

que tinham ligações com ele.

Jovens e idealistas, Pedro e os companheiros do Grupo dos Onze,

se prepararam para a resistência. Sabiam como agir nessas situações.

Sereno Chaise era prefeito de Porto Alegre e com a vinda de Brizola a

população seria mobilizada. Entretanto, a imprensa havia feito uma

solerte lavagem cerebral na consciência do povo. Principalmente da

classe média, que morria de medo do fantasma do comunismo. Uma

grande besteira, Brizola e Jango eram trabalhistas e democratas.

A população não saiu de casa. Isso deixou Pedro decepcionado e

sem perspectiva. O grupo se dispersou por segurança. A caça aos jovens

ligados a Brizola era impiedosa. Muitos já estavam presos. Pedro nunca

mais os viu. Ficou três meses escondido. Enquanto isso, o dono da

agência de propaganda em que trabalhava – onde já tinham ido ao seu

encalço – agia junto a Tarso Dutra, seu amigo e político de confiança dos

militares, para que interviesse. Pedro ficou sabendo que estava fichado no

DOPS porque era do Grupo dos Onze e estava inscrito para uma bolsa

de estudos na Tchecoslováquia. Tarso Dutra conseguiu livrá-lo de ser

preso. Mostrou que tinha força junto aos militares golpistas. Pedro era

importante e não sabia.

Depois desse episódio, somente voltou a ver Brizola em 1979, na

chegada do exílio. As ideias eram as mesmas, com uma diferença: Brizola

retornou ao Brasil reconhecido pela Internacional Socialista como

grande líder político da América Latina.

106

Page 107: VOLUME 1 - GOLPE

Ironias do curso da vida depois do sonho desfeito

Um ano após esses acontecimentos, em 1965, voltei para São

Paulo. Ingressei como diretor de arte na J. Walter Thompson, a maior

multinacional de publicidade do mundo, agência da Ford Motors

Company e de outras empresas símbolos do capitalismo norte-americano.

O presidente da Thompson no Brasil era o escritor Renato

Castelo Branco. Foi minha sorte. Homem desprovido de preconceitos

políticos e aberto intelectualmente, as minhas peripécias e conceitos

políticos somaram pontos a meu favor. Para ele, como me disse no

primeiro dia de trabalho, não poderia esperar outro comportamento de

quem mexia com criatividade e arte. Mesmo em se tratando de

publicidade.

107

Page 108: VOLUME 1 - GOLPE
Page 109: VOLUME 1 - GOLPE

MEU PRIMEIRO COMÍCIO

Wladymir Ungaretti*

Ainda hoje lembro do meu primeiro comício. Foi na Central do

Brasil, quando o presidente João Goulart anunciou algumas das

Reformas de Base. Estudava na Escola Técnica Nacional, nas

proximidades do Maracanã, no Rio de Janeiro. Nas horas que

antecederam o comício participei da preparação de cartazes no Sindicato

dos Têxteis, próximo da Praça da Bandeira. Pelo que consigo lembrar,

cumpria assim uma tarefa do Comitê Secundarista do PCB (Partido

Comunista Brasileiro). Fui para a Central do Brasil carregando uma

faixa: "Estudantes secundaristas pedem a legalização do PCB". E, do

episódio do derramamento de combustível, na pista da Presidente Vargas

(descrito em matéria do Correio da Manhã), tinha uma vaga lembrança de

que na confusão fiquei imprensado contra um carrinho de pipocas.

Retomei toda a cena do episódio quando li o livro Um jornal assassinado,

de Jefferson de Andrade, em colaboração com Joel Silveira, editado pela

José Olympio. Nessa época, frequentava o prédio da UNE, na Praia do

Flamengo, e estava lá quando alguém entrou correndo na sala da UNETI

(União Nacional dos Estudantes Técnicos e Industriais) anunciando que

Kennedy tinha sido assassinado. Já éramos todos cubanos.

* Jornalista. Professor da Faculdade de Comunicação/UFRGS.

109

Page 110: VOLUME 1 - GOLPE

Transformou-se numa autêntica festa popular o comício realizado ontem na Praça Cristiano Ottoni. Ao encontro do presidente da República, uma incalculável multidão deslocou-se desde as primeiras horas da tarde, entoando cantos e trazendo faixas e cartazes alusivos às suas reivindicações e indicativos do apoio com que pode contar o presidente Goulart nas medidas que vêm tomando na defesa dos interesses nacionais. [...] Pacífica e ordeiramente, o povo compareceu ao diálogo democrático com o presidente da República e disse-lhe, pela voz dos seus líderes autênticos e pela eloquência dos seus cartazes e faixas, o que deseja que seja feito para o bem da Nação. [...] Foi portanto o comício de ontem uma extraordinária demonstração de pujança do regime democrático, com o povo brasileiro unido ao seu presidente em praça pública, em festivo ato de pleno exercício

1 da democracia.

Meu primeiro curso de formação política foi com Apolônio de

Carvalho. Estudava na Escola Técnica Nacional, no Rio de Janeiro, e

iniciava minha militância no Partidão (Partido Comunista Brasileiro).

Estávamos em 1963/64 e o cursinho de formação era realizado em uma

das salas do partido, no centro do Rio, Edifício Santos Vales ou Marquês

do Herval (não consigo recordar em qual dos dois), tinha como fachada

um escritório do deputado Hércules Corrêa dos Santos. As aulas eram

sobre as Reformas de Base do governo João Goulart e algumas noções

básicas de marxismo. Nesse mesmo período, pertencia ao Comitê

Secundarista do Partido, onde militavam os seus filhos René e Raul,

ambos pertenciam à base do Colégio Pedro II. Dos velhos dirigentes que

conheci (entre eles, Prestes), sem dúvida nenhuma, Apolônio de

Carvalho, nascido em 1912, em Corumbá, hoje Mato Grosso do Sul, e

falecido no dia 23 de setembro de 2005, era um dos que mais

impressionavam. Corriam histórias sobre seu passado de luta na Guerra

1 Diário Carioca, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.

110

Page 111: VOLUME 1 - GOLPE

Civil Espanhola e na Resistência francesa contra a ocupação nazista e

sobre o fato de que tinha casado com uma francesa (Reneè) que conheceu

na Resistência. Ingressou no PCB em 1937 e rompeu em 1967 para criar

o PCBR. Foi um dos fundadores do PT, em 1980. Participou da

Intentona Comunista, em 1935, na cidade de Bagé (RS), onde servia

como segundo-tenente. Pertenceu a um Comitê Central do PCB que era

integrado por Prestes, Mário Alves (também um dos fundadores do

PCBR), Carlos Marighella (fundador da ALN), Jacob Gorender (ainda

vivo e também um dos fundadores do PCBR). Do início da minha

militância política, Apolônio e seus filhos, René e Raul, foram figuras

marcantes. E assim continuam, passados todos esses anos.

Guerra civil, fechamento do Congresso, constituinte e até implantação da socialização crescente da economia do País foram os elementos essenciais utilizados pelos oradores do comício de ontem pela reformas de base, do presidente João Goulart ao deputado Leonel Brizola; do presidente da Supra ao representante da CGT. O Sr. João Goulart antecipou o quadro de revolução civil, ao creditar àqueles que se opõem às reformas um possível derramamento de sangue no País. O deputado Leonel Brizola pediu o fechamento do Congresso, seguido de constituinte e de plebiscito para as reformas de base que o parlamento não terá votado ao cabo da atual legislatura. [...] Falando à Tribuna logo após o comício da Central, o governador Carlos Lacerda acusou o Sr. João Goulart de ter, desta vez, furado a barreira da Constituição

2[...].

Ao descobrir o jornalismo como profissão simultaneamente

comecei a imaginar o dia em que teria uma máquina de escrever

Remington. A ideia do lidar com as palavras do texto, da minha língua,

do escrever (definitivamente) me colocou em relação direta com o

mundo. E, num dado momento, agora perdido na memória, descobri que

2 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 14 mar. 1964.

111

Page 112: VOLUME 1 - GOLPE

também se fazia jornalismo com fotos. Pela primeira vez ouvi falar em

Rolleiflex e Leica. Também está perdido num canto qualquer da minha

memória quando, pela primeira vez, ouvi o nome de Henri Cartier-

Bresson e de Robert Capa. Acho que a foto de um republicano, sendo

atingido por um tiro na Guerra Civil Espanhola, de Capa, é decisiva. No

meu primeiro salário, ainda não trabalhando como jornalista, comprei

minha primeira máquina de escrever. Uma Remington usada toda de

ferro. Por isso mesmo é para mim um clássico A máquina de escrever: na era

da mania do ferro, de McLuhan. Talvez o primeiro emprego mais próximo

de todo este universo tenha sido como laboratorista de uma agência de

publicidade, onde tinha como principal atividade fazer cópias

fotográficas para os anúncios. É possível que mais próximo ainda do

universo do jornalismo tenha sido escrever e mimiografar pequenos

jornais, para distribuição em portas de fábricas, no final da década de

60/70, como o Resistência Operária. Ou ainda os panfletos dos tempos do

Colégio Júlio de Castilhos (Porto Alegre). Sempre imaginei que um dia

também teria uma Leica. Pois passados alguns anos – já exercendo a

profissão de jornalista – comprei uma, modelo 1937. E ainda hoje,

quando faço uso desta câmera, fico imaginando como era possível fazer

fotojornalismo com uma máquina que exige tantas regulagens manuais.

Saudades de Cartier-Bresson e dos comícios da minha juventude.

Para atender a velhas e justas aspirações populares, em maré montante que ameaça conduzir o País a uma convulsão talvez sangrenta, sinto-me no grave dever de propor ao exame do Congresso Nacional um conjunto de providências a meu ver indispensáveis, para serem, afinal satisfeitas as reivindicações de 40 milhões de brasileiros. Assim submeto à apreciação de Vossas Excelências, a quem cabe privativamente a reformulação da Constituição da República, a sugestão dos seguintes princípios básicos para a consecução da Reforma

112

Page 113: VOLUME 1 - GOLPE

Agrária: – a ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade. Poderão ser desapropriadas, mediante pagamento de títulos públicos de valor reajustável, na forma que a lei determinar: a) todas as propriedades não exploradas; b) as parcelas não exploradas de propriedades parcialmente aproveitadas, quando excederem a metade da área total. Nos casos de desapropriações, por interesse social, será sempre ressalvado ao proprietário do direito de escolher e demarcar, como de sua propriedade de uso lícito, área contínua com dimensão igual à explorada. O Poder Executivo, mediante programas de colonização promoverá a desapropriação de áreas agrícolas nas condições das alíneas 'a' e 'b' por meio do depósito em dinheiro de 50% da média dos valores tomados por base para lançamento do imposto territorial nos últimos cinco anos, sem prejuízo de ulterior indenização em títulos, mediante processo judicial [...]. Só por esse meio será possível empreender a reorganização democrática da economia brasileira, de modo que efetue a justa distribuição da propriedade, segundo o interesse de todos e com o duplo propósito de alargar as bases da Nação, estendendo-se os benefícios da propriedade a todos os seus filhos [...]. Todas as áreas destinadas ao cultivo sofrerão rodízio e a quarta cultura será obrigatoriamente de gêneros

3alimentícios para o mercado interno [...].

Logo após o golpe de primeiro de abril de 1964 retorno para

Porto Alegre. E minha primeira atividade política, já integrado à base do

PCB, no Colégio Júlio de Castilhos, foi participar do enterro do sargento

Manoel Raimundo Soares, um paraense nascido em 15 de março de 1936

e morto no dia 13 de agosto de 1966, no episódio que ficou conhecido

como o caso das mãos amarradas. Daí em diante foi só a escuridão.

Sou o mesmo e sou um outro. Continuo movido pelos mesmos

sonhos. E, mais do que nunca, acredito que jornalismo é subversão.

A ditadura militar acabou. A ditadura midiática comanda o espetáculo. A luta continua. Ousar lutar, ousar vencer.

3 Trechos da mensagem propondo a reforma agrária.

113

Page 114: VOLUME 1 - GOLPE
Page 115: VOLUME 1 - GOLPE

MEMÓRIAS DE UM COMUNISTA*

João Aveline**

João Aveline foi, sem dúvida, uma das personalidades mais importantes de nosso passado recente; sua história de vida se confunde com a própria história do Rio Grande do Sul e do país. Em sua trajetória como militante político, foi membro do Partido Comunista Brasileiro, participou das principais batalhas travadas pela esquerda no Brasil, resistiu à ditadura, foi preso, perdeu companheiros, lutou pela abertura política e participou da construção da democracia na chamada "Nova República". Em sua carreira como jornalista, atuou nos mais importantes veículos de comunicação do Rio Grande do Sul, como a Rádio Gaúcha e os jornais Tribuna da Imprensa, Última Hora e Zero Hora. Nas redações de jornais ou nas portas das fábricas, fez das letras e da militância uma trincheira.

A entrevista que segue foi realizada em junho de 2005, alguns meses antes de seu falecimento. Sua inclusão nesta série de livros que buscam resgatar a história e as memórias acerca da ditadura no Rio Grande do Sul se justifica não só pela significativa contribuição que traz para a compreensão de tal período, mas porque se constitui em uma homenagem à sua história de luta e a tudo que Aveline representou.

–João Aveline, pode contar um pouco sobre a sua vida, como começou a militância, como

te aproximaste do Partido Comunista? Um panorama sobre a sua experiência.

* A presente entrevista foi concedida a Alessandra Gasparotto, na cidade de Porto Alegre, em junho de 2005. A realização da mesma se deu durante a pesquisa para a elaboração de sua dissertação de Mestrado, defendida junto ao PPG - História / UFRGS. [Nota dos Organizadores]: A entrevista foi reproduzida em seu formato original, buscando, na medida do possível, manter a maior fidedignidade ao áudio e seguindo a ordem das perguntas realizadas. O texto apenas sofreu algumas alterações para facilitar a leitura, sendo que alguns vícios de linguagem e repetições (comuns em entrevistas orais) foram suprimidos. Alguns fragmentos específicos da entrevista, que tratavam de questões delicadas envolvendo os processos de retratação pública de ex-militantes de esquerda – tema da dissertação acima referida –, foram extraídos. ** Jornalista. Membro do PCB.

115

Page 116: VOLUME 1 - GOLPE

– Olha, eu fui influenciado, particularmente, por dois fatores: primeiro

foi a participação da então União Soviética na Segunda Guerra Mundial,

que teve uma atuação destacada contra o nazi-fascismo, sendo o primeiro

exército a chegar na cidadela nazi-fascista, na Alemanha, e perdeu 20

milhões de pessoas na Guerra… Vinte milhões de jovens foram mortos

na Segunda Guerra Mundial… Soviéticos! Os alemães haviam invadido

até os subúrbios de Moscou, haviam tomado cidades como Stalingrado.

Quando estive em Moscou, conheci um rapaz, meu guia, de cuja família

morreram dezoito pessoas, de fome, no cerco de Stalingrado. Este foi um

fator que me influenciou: a exuberância de um regime socialista. Eu só

tinha um pequeno senão à relação da União Soviética com o Brasil: que a

mesma não fosse de dependência.

O segundo fator foi o [Luís Carlos] Prestes. A sociedade, às vezes,

demora um século para produzir um homem como o Prestes, um homem

que esteve nove anos na cadeia, incomunicável. Não foram oito dias, nem

um mês; foram nove anos! Só podia falar com as irmãs e com o Sobral

Pinto, que era o advogado dele. Com as irmãs, o contato era muito

restrito. E ele não pôde ir ao enterro da mãe, porque o governo Vargas não

deixou. O Prestes era um homem muito ilustre. Percorreu o Brasil de

norte a sul, de leste a oeste, duas vezes, com a Coluna que levou o nome

dele. Ele não era o comandante da Coluna, o comandante era um

camarada chamado Miguel Costa, da Força Pública de São Paulo, mas

Prestes era o chefe do Estado-Maior, pela sua personalidade e sabedoria

do ponto de vista militar, e sua capacidade de persuasão.

Foram esses dois fatores que me levaram a entrar para o Partido

Comunista. Em 1943 eu participei da primeira reunião do partido e fui

116

Page 117: VOLUME 1 - GOLPE

militando de lá até aqui. Passamos por diversas fases, o partido nasceu em

5 de março de 1922, no primeiro congresso composto por nove pessoas,

entre as quais um camarada chamado Abílio de Nequete, um dos

delegados do Rio Grande do Sul. O partido participou da Segunda

Guerra Mundial, através da pressão ao governo Vargas, no sentido de

mandar uma força expedicionária para a Europa, no pressuposto de que,

primeiro, era importante que o Brasil participasse da luta contra o nazi-

fascismo. Era até um dever que o continente americano contribuísse com

a tropa brasileira.

Segundo, do ponto de vista tático e político, essa força expedicionária que

fosse defender a democracia na Europa, ao voltar ao Brasil, não iria ter

mais condições de conviver com a ditadura Vargas. A ditadura cairia, e foi

o que aconteceu. O partido participou de todas as campanhas populares

que tinham interesse nacional: "Campanha pela paz"; "Campanha contra

o envio de tropas à Coreia"; "Campanha pela luta para comprar o estatal

de petróleo"; "Defesa da triticultura nacional"; "Defesa da emancipação

nacional"; etc. O partido participou de todas essas campanhas.

– Mesmo quando estava na ilegalidade?

– Mesmo na clandestinidade ele nunca deixou de participar ativamente e

era o pioneiro dessas campanhas. Na Segunda Guerra Mundial, por

exemplo, para o envio de uma tropa expedicionária, ele liderou uma

campanha nacional, de norte a sul, dizendo: "o governo Vargas se dividiu

em duas fatias, uma fascista – nazi-fascista – integrada pelo general

Dutra e o Filinto Müller, ministro da Guerra e o chefe de polícia, e outra

corrente liderada pelo Oswaldo Aranha, que era ministro das Relações

117

Page 118: VOLUME 1 - GOLPE

Exteriores, que se opunha ao nazi-fascismo e propunha que o governo se

aliasse aos americanos na luta pela democracia".

Nós nos aliamos ao Oswaldo Aranha, fizemos uma campanha de norte a

sul, em todo o Brasil, para o envio de uma força expedicionária; alguns

comunistas foram como soldados e até como oficiais. Um camarada

chamado Salomão Malina, que foi dirigente do partido por muitos anos,

foi para a guerra como aspirante e voltou como primeiro-tenente. Era um

especialista em desativar minas. Foi promovido e recebeu a Cruz de

Combate Primeira Classe. Somente três medalhas foram entregues no

Brasil: a dois generais e a ele, um comunista.

Essa foi a vida do Partido Comunista. Numa primeira eleição, em 1945,

elegeu 14 deputados e um senador, que foi o Prestes. Teve alguns anos de

vida e foi cassado logo em seguida, em 1947, quando o Tribunal Superior

Eleitoral cassou seu registro, por três votos contra dois. Entre os

argumentos, uma aberração jurídica: os crimes que o partido cometeria se

um dia ascendesse ao poder.

– Esse foi um dos argumentos utilizados?

– Esse era um dos argumentos e está no acórdão, na sentença. Então, o

partido foi para a clandestinidade, mas continuou atuando; tinha

períodos de semilegalidade e períodos de clandestinidade absoluta,

dependendo dos humores de quem estava no governo.

– Nos períodos de clandestinidade absoluta, como vocês seguiam militando?

– Nos períodos de clandestinidade, nós tínhamos uma organização

ultrarregulada, que reunia normalmente seus dirigentes. No Rio Grande

118

Page 119: VOLUME 1 - GOLPE

do Sul, eram o Comitê Estadual, os Comitês Municipais em todas as

cidades do interior, as Organizações de Base de Militantes (as células); em

Porto Alegre, tinha em Teresópolis, na Glória, no Partenon, no

Navegantes, em São João. E havia as Organizações de Base das fábricas,

de grandes fábricas, e as do movimento estudantil, porque era um partido

enraizado na sociedade.

Ao mesmo tempo, participávamos de campanhas em organizações de

massa que criávamos para participar, porque chamar alguém a militar no

Partido Comunista era impossível, pois era uma organização clandestina.

Por isso criamos organizações de massa, abertas, com sede, como a União

da Juventude Farroupilha, os Comitês de Luta pela Defesa do Petróleo e

os Conselhos estaduais e municipais de Luta em Defesa do Petróleo.

Estes funcionavam legalmente e tinham como participantes pessoas do

Partido Comunista, mas predominavam os não comunistas. Eram

patriotas que se integravam à campanha porque queriam o monopólio

estatal do petróleo. Nesse sentido, havia uma aliança muito ampla, até

com participação de militares, inclusive alguns generais nacionalistas. "O

petróleo é nosso" era o slogan da campanha. Nós percorremos todo o

Brasil, em todos os municípios brasileiros tinha um Comitê de Defesa do

Monopólio Estatal do Petróleo.

Os americanos defendiam a tese, e alguns setores do governo

concordavam com eles, de que o petróleo não podia ser estatal, tinha de

ser explorado por empresas privadas. Tinha a Esso, a Standard Oil e outras

empresas que exploravam o petróleo.

Nossa tese era a seguinte: o petróleo é um combustível de primeira ordem

que conduz, praticamente, ao monopólio. As empresas que controlam o

119

Page 120: VOLUME 1 - GOLPE

petróleo agem por monopólio. Então, um conglomerado de empresas

mantinha o controle do petróleo e dominava países inteiros. Os países

que tinham petróleo eram dominados, como até hoje acontece no Iraque;

essa guerra que aconteceu no Iraque não foi por outra coisa senão pelo

petróleo que existe no solo do Iraque. E, diga-se de passagem, um

petróleo de muito mais fácil extração e, consequentemente, mais barato,

porque o petróleo está quase à flor-da-pele, ao passo que no Brasil, por

exemplo, o petróleo está bem lá embaixo. A vantagem do Brasil é que tem

petróleo também no mar, no subsolo do fundo do mar, a Petrobras tem

perfurado e tem encontrado.

Então, o partido participava dessas campanhas e enfrentava a tese oposta,

que defendia, sem muito pudor, que o petróleo deveria ser entregue a uma

companhia internacional. Quem era a favor do petróleo era tido como

comunista, porque existia a Guerra Fria, e tudo que ocorresse de ruim era

atribuído aos comunistas. Supostamente, a campanha do petróleo era

coisa ruim, cuja autoria era dos comunistas, para deixar na defensiva

aquelas pessoas que lutavam em favor do petróleo. Por isso, nós tínhamos

muita dificuldade, e morreu gente por causa do petróleo.

– Durante essas campanhas?

– Durante a campanha morreram os mártires de DuPont, de São Paulo,

em função da luta pelo petróleo. Outra luta que o partido defendeu aqui

no Rio Grande do Sul foi a Defesa da Triticultura Nacional, com o

pressuposto de que o pão é o elemento principal na alimentação do ser

humano. Quem tem o trigo tem o pão, e o nosso propósito era fazer com

que o Brasil se tornasse autossuficiente na produção de trigo.

120

Page 121: VOLUME 1 - GOLPE

– O Brasil importava?

– O Brasil importava e até hoje importa. Porque depois a campanha

esmaeceu, a campanha não foi totalmente vitoriosa, mas atingimos

grandes metas, conseguindo atingir grandes extensões de terra. Com o

plantio do trigo, a triticultura nacional se desenvolveu. Tínhamos a nosso

favor o fato de que a manufaturação do trigo em farinha também tinha de

ser no moinho nosso. Existia todo um esquema através do qual o

estrangeiro tinha na mão o plantio e a produção de trigo. A muito custo

nós fomos transformando isso, reunimos triticultores... e olha que o

triticultor era um lavoureiro. Era o latifúndio contra nós. Lembro que

uma vez participamos de um congresso de triticultores, em Passo Fundo,

congresso que nasceu sob inspiração nossa e que reuniu todos os

triticultores do estado. Nós fizemos toda a cobertura pelo nosso jornal, A

Tribuna Gaúcha. Os jornais daqui, Correio do Povo e Diário de Notícias,

principais jornais da época, e o Jornal do Dia, só davam pequenas

notinhas. E o Chateaubriand, através de sua cadeia de jornais, inclusive o

Diário de Notícias daqui do Rio Grande do Sul, dizia que, em vez de

plantar trigo, os gaúchos deveriam plantar capim e importar mulheres

francesas…

– Que coisa horrível!

– Era isso que ele propunha para os gaúchos. Mas com toda essa

adversidade nós conseguimos reunir os triticultores, conversar com eles.

Depois de terminar o congresso, o único jornal que deu toda a cobertura

do teor do congresso foi o Tribuna Gaúcha. Eu telefonava de noite de lá,

quando terminavam as reuniões do dia. Eu dava por telefone a cobertura

do congresso, o que se fazia com a maior dificuldade, porque, naquele tempo, as comunicações eram muito difíceis. Mesmo assim a gente

121

Page 122: VOLUME 1 - GOLPE

conseguia falar por telefone e transmitir o resultado das plenárias do

congresso.

– Nessa época, já atuava como jornalista também?

– Eu atuava como jornalista do Tribuna Gaúcha. Quando aquele

congresso chegou ao final, eu e um camarada chamado João Adelino

Fuscella, também jornalista, procuramos os triticultores para pedir

recursos financeiros para o Tribuna Gaúcha. Argumentávamos o

seguinte: "Vocês têm uma posição política e ideológica diferente da nossa, mas

em relação à política do trigo temos uma posição igual. Vocês, porque pretendem

que o Brasil seja autossuficiente, que iniba a importação do trigo e mantenha o

mercado à disposição de vocês. E nós, porque achamos que o desenvolvimento da

triticultura significa emancipação nacional. E quanto melhor for a

emancipação de nosso País, maior será o seu progresso e o fortalecimento da

classe operária. O único jornal que cobriu o congresso foi o nosso. É justo,

portanto, que nós peçamos a vocês que nos ajudem financeiramente". Eu voltei

de lá, naquela época, com 190 mil cruzeiros.

– Bastante dinheiro para a época.

– Para a época era muito dinheiro! Tudo em dinheiro! Dinheiro vivo. Eu

coloquei tudo em uma pasta e peguei um avião, um DC3, e vim para

Porto Alegre, diretamente à casa de nosso tesoureiro, a quem entreguei o

dinheiro.

Na Campanha da Emancipação Nacional da Indústria foi a mesma coisa.

Fizemos uma campanha em defesa da emancipação nacional da

indústria. Fizemos reuniões e uma visita, em Caxias do Sul, a industriais,

122

Page 123: VOLUME 1 - GOLPE

porque era o foco do desenvolvimento industrial, junto com Porto

Alegre. Visitamos um dos principais homens da indústria de Caxias,

metalurgia, em nome do Partido Comunista. Quando nos anunciamos,

nos recebeu e disse, de pé: "Eu quero saber que razão levou os senhores a me

procurarem, porque eu não tenho nada em comum com os senhores,

consequentemente acho estranho que tenham me procurado". Aí eu disse:

"Olha, em primeiro lugar, eu gostaria que o senhor, em nome da hospitalidade

gaúcha, nos recebesse e nos deixasse falar. Quando o senhor nos deixar falar vai

ver que existem razões para nós estarmos frente a frente". Ele respondeu:

"Então sejam breves, porque eu não tenho tempo a perder". Então expliquei a

mesma coisa que disse para os triticultores, num outro plano: "Nós temos

interesse no desenvolvimento industrial, sabemos do seu patrimônio e já

sabíamos que o senhor não é comunista, não tem a menor inclinação para a

doutrina comunista. Mas sabemos que é industriário, há de querer o

desenvolvimento da indústria brasileira para livrá-la do mercado

internacional, que traz produtos manufaturados para cá. Nós sabemos que o

desenvolvimento industrial é uma das metas de vocês, em busca de melhores

lucros, de mercado maior. Nós queremos o desenvolvimento industrial do País

por outros motivos em particular. Em primeiro lugar, através desse

desenvolvimento teremos um surto de desenvolvimento nacional. Nosso País

precisa se desenvolver. Em segundo lugar, fábricas e fábricas deverão nascer, o

número de operários aumentará e, aumentando o número de operários, as

fileiras do nosso partido também irão aumentar. Consequentemente nós

estaremos mais perto de uma vitória eventual". Aí ele baixou um pouco a

crista, conversou bastante conosco e tal. No final das contas disse, já

delicadamente: “Qual é a pretensão dos senhores?” Aí o meu colega,

tesoureiro do partido, colocou logo: “Nós queremos 20 mil cruzeiros do

senhor.” Ele disse: “Muito bem, os senhores não vão receber hoje, mas vão

123

Page 124: VOLUME 1 - GOLPE

receber na próxima semana através de um metalúrgico e artista plástico de

Caxias, chamado Bruno". Ele sabia que era comunista também. "Eu vou

mandar entregar esse dinheiro para ele. Está bom?" Dissemos: "Está certo".

Nós nos despedimos dele e ele disse: "Eu não sou comunista!" Eu disse: "Nós

sabemos disso". Quer dizer, o partido desenvolvia essas campanhas e

mantinha um bom relacionamento com algumas figuras da burguesia

brasileira. Não um relacionamento subordinado, mas uma relação através

da qual a gente expunha o nosso pensamento e, de modo geral, se

identificava com o objetivo deles.

– Então, fazendo ações conjuntas para determinados objetivos.

– Para determinados objetivos, definidos do ponto de vista deles e

definidos em relação a nós: o deles com um objetivo menos remoto e o

nosso mais remoto, mas mesmo assim nos servia. Essa era a política que o

partido desenvolvia.

O Ferreira Gullar, poeta do Maranhão, membro do partido, quando o

partido fez 50 anos disse o seguinte: "Quem quiser falar da história do Brasil

nos últimos 50 anos e não tocar no Partido Comunista, não está falando a

verdade ou está forçando a verdade". Tal era o envolvimento do partido nas

campanhas que desenvolvia. Na luta pela democratização do País, após o

golpe de 64, o partido teve uma atuação destacada. Logo que o País sofreu

o golpe, as oposições se dividiram em duas posições. Uma parte dizia o

seguinte: os militares só sairiam do poder se enfrentados pela via armada.

Isso era o que dizia uma parte importante da sociedade e da esquerda. A

outra parte, liderada pelo Partido Comunista, dizia que não, que o

caminho para enfrentar a ditadura militar não podia ser o caminho das

armas.

124

Page 125: VOLUME 1 - GOLPE

Por quê? Primeiro, porque tu só chama alguém para ir às armas, à luta

pelas armas, quando não existir mais nem um fio de esperança do ponto

de vista democrático. Enquanto houver uma fresta, enquanto a sociedade

vislumbrar, ainda que remotamente, que ela pode vencer sem usar esse

caminho, ela vai procurar o caminho pacífico, até por uma questão de

bom senso.

O Guevara, num de seus livros, Guerras de guerrilhas, diz exatamente isso,

enquanto houver uma fresta de luz, não chamem o povo para a luta armada,

porque ele não vai. Então essa era a primeira razão. No Brasil havia uma

aresta de liberdade, porque os golpistas tiveram a preocupação de manter

o Parlamento aberto. Não manter um ditador permanente, mas manter

um ditador que se revezava através de eleições, que eram uma farsa, mas

que existiam! O voto não era direto, era indireto. Um colégio eleitoral

espúrio. Mas fizeram isso, um simulacro de democracia.

A segunda questão referia-se a que nunca se deve atacar o inimigo onde o

inimigo é forte. Do ponto de vista material os militares eram fortes. Eles

tinham as armas, homens mobilizados, armas sofisticadas e o poder de

praticar "terror de Estado", que era, por exemplo, chegar em uma casa, de

madrugada, prender o chefe de família, a mãe, o sobrinho, o filho, uma

filha, sem que se soubesse para onde essa pessoa iria. Nos jornais, não

dava a prisão no outro dia, porque a imprensa estava censurada. Então,

nesse terreno, nós não poderíamos enfrentar a ditadura militar. A nossa

capacidade de prática armada era mínima.

– O senhor partilhava da ideia do Partido Comunista de ser contra a luta

armada?

125

Page 126: VOLUME 1 - GOLPE

– Eu era membro do Partido Comunista e identificado com essa ideia. O

Partido Comunista defendia essa tese com uma certa autonomia e com

uma certa hegemonia, porque as outras forças democráticas que viam

essa mensagem reconheciam a autoridade do partido, a autoridade de

querer armar e de ser um partido violento, até pela tradição que tinha, a

participação na Revolução de 1935. As pessoas pensavam sobre isso e

davam razão a nós. E nós mobilizamos todo o mundo.

O partido convocou o VI Congresso, com a participação de toda a

militância, em plena clandestinidade, para robustecer essa tese. Esse

congresso foi precedido por um ano de debates, com teses defendidas

sobre como deveria ser e como não deveria ser a vida do partido. Enfim, o

partido fez um congresso tendo em vista a sua organização para traçar

uma política para ele em tempos de crise, com os militares no poder.

O congresso começou em fins de dezembro de 1967 e terminou nos

primeiros dias de 68. Realizou-se nesse período de Natal e Ano-Novo,

porque nas festas as coisas ficavam mais fáceis, qualquer coisa, podíamos

alegar que estávamos participando de uma ação de Natal e Ano-Novo.

Nessas condições, o partido tinha condições de realizar essa reunião, pois

o controle dos órgãos da repressão era mais ameno. O congresso se

realizou durante cinco ou seis dias. As pessoas começaram a entrar no

congresso 10 dias antes e saíram 10, 15 dias depois, saindo aos poucos,

um a um, dois a dois, três a três. Dele participaram uns 100 delegados.

O partido adotou uma resolução política propondo o caminho que

deveria seguir naquela etapa da história de nosso País. Nela destacava

quatro itens para que o Brasil saísse da crise e pudesse afastar os militares

do poder e derrotar a ditadura. Esses quatro itens consistiam: primeiro,

126

Page 127: VOLUME 1 - GOLPE

na convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte; segundo, em

eleições diretas em todos os níveis, particularmente para presidência da

República e governador de Estado, as quais eram, até então, indiretas;

terceiro, na anistia ampla e irrestrita para todos os presos e perseguidos

políticos; quarto, na liberdade de organização de todos os partidos

políticos, inclusive o Comunista. Esses quatro itens eram proposta do

partido e foram vitoriosos. Houve a Assembleia Nacional Constituinte,

houve a Anistia, os partidos políticos tiveram liberdade de se organizar e

os presos políticos foram libertados. Essa era a proposta do Partido

Comunista.

Como nós não tínhamos uma organização para levar essa proposta à

sociedade, tivemos que nos apoiar nas organizações de massa, entre elas o

MDB, nós tivemos que optar por esse caminho... Assim, destacamos

alguns quadros para militar no MDB, que era o grande estuário das forças

de resistência legais. Todas aquelas forças que haviam sido banidas, como

o Partido Trabalhista Brasileiro, o Partido Socialista, o Partido Social

Progressista, que era do Adhemar de Barros, foram para o MDB. Os

partidos da direita foram para a ARENA. A criação do MDB e da

ARENA foi um artifício que a ditadura encontrou para gerar um sistema

bipartidário no Brasil. Um dos objetivos deles era tornar o Brasil uma

república norte-americana.

Enfrentamos isso através daquelas organizações, com as nossas palavras

de ordem: Anistia, Liberdade dos Presos Políticos, Liberdade à

Organização dos Partidos Políticos e Convocação da Assembleia. Muitas

das pessoas com as quais nós lidávamos não aceitavam isso. Acharam que

Constituinte era uma palavra de ordem burguesa. Lembro que em um

congresso de jornalistas, na Assembleia Legislativa, defendi a proposta

127

Page 128: VOLUME 1 - GOLPE

de apresentarmos uma moção de apoio à convocação de uma Assembleia

Nacional Constituinte, que foi aprovada, mas alguns camaradas, dos

quais muitos são hoje do PT, vieram e disseram: Olha, nós não acreditamos

nisso. Essa é uma palavra de ordem burguesa, pequeno burguesa. Mas em

consideração a ti, que tem uma atuação de luta, nós aprovamos, mas não

acreditamos.

Na campanha das Diretas, nós participamos numa aliança com o PMDB,

com Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Aécio Neves, Leonel

Brizola… Em suma, foi uma campanha de norte a sul. No dia do voto,

toda a imprensa era a favor do voto. É bom que se diga que a imprensa

brasileira desde o seu nascedouro é uma imprensa que está sempre a

serviço das classes dominantes, assim foi no tempo da abolição da

escravatura, assim foi no tempo da República, assim foi durante a

Revolução de 30, assim foi em 45, quando o Partido Comunista veio para

a legalidade, assim foi no golpe militar… A imprensa sempre pegou o

lado pior. Faz parte da história da nossa imprensa isto: pegar o lado mais

negativo.

– Aveline, mas parte do PCB, durante toda essa discussão, teria rachado, não é? Uma parte do PCB foi em direção à luta armada…

– Quando o partido se definiu pelo caminho pacífico, pelo caminho de

somatório de forças através do debate político, algumas forças expressivas

do Partido Comunista se retiraram: Marighella, Jacob Gorender, Aloísio

Alves… Não é Aloísio, é outro nome… Não chegaram a rachar o partido,

mas elas romperam com ele. Mas o Partido Comunista continuou

íntegro no seu Comitê Central e preencheu as vagas, houve reformulação

nas direções. Essas pessoas que saíram, que optaram pela via armada,

128

Page 129: VOLUME 1 - GOLPE

eram muito sérias, não eram aventureiros, mas se equivocaram na sua

avaliação política.

– Qual é a sua visão, hoje, sobre a luta armada daquela época?

– A visão que a gente faz deles [dos combatentes] é a seguinte: pessoas

honestas, sérias, que achavam que os militares só poderiam ser derrotados

pelo caminho armado. Era uma superestimação da força física do inimigo

e uma subestimação da capacidade de articulação política. Por um lado

superestimava a força física do inimigo, achando que isso era tudo. Não

levavam em conta que o inimigo no plano político era fraco. E, por outro

lado, a subestimação da nossa capacidade de articular uma mensagem

política. Uma certa dificuldade em avaliar a sociedade brasileira.

A resistência começou, apesar das dificuldades, logo no primeiro dia do

golpe, logo que o golpe estoura. Essas pessoas, com a sua autoridade,

influenciaram fortemente setores muito importantes da sociedade,

inclusive o setor universitário, por exemplo, fortemente atingido por isso.

Nós respeitamos essas pessoas porque elas pagaram com a vida lutando

por um objetivo no qual acreditavam, através de um processo de luta em

que eles acreditavam. Perderam a vida. Então a gente tem por eles o maior

respeito. Mas, ao mesmo tempo, não se pode negar, do ponto de vista

histórico, que houve um equívoco. A ditadura não foi derrubada pela luta

armada, não foi. Isso é histórico, todo mundo sabe, não precisa ter muita

saliva para explicar que a ditadura não foi derrotada pela luta armada: a

ditadura foi esmagada no plano político, exaurida na sua capacidade de se

manter no poder sem mensagem. Foi isso que aconteceu com a ditadura

militar no Brasil. Houve muitos equívocos.

129

Page 130: VOLUME 1 - GOLPE

Quando nós participamos da campanha das Diretas, tinha tudo contra

ela, inclusive a imprensa. A imprensa só foi se sensibilizar com a

campanha das Diretas quando dois milhões de pessoas participaram na

Central do Brasil, no Rio. Dois milhões tomaram toda a Avenida Getúlio

Vargas, em frente à Candelária, e tomaram conta das ruas do Rio de

Janeiro. Aí O Globo noticiou, no Jornal Nacional, e daí em diante parecia

até que ele era o dono da campanha, publicando tudo sobre a campanha.

Mas a campanha foi derrotada, porque, quando foi a votação no

Congresso da Emenda Dante de Oliveira, não houve quórum. A

Emenda passou, mas não houve quórum, tinha um quórum privilegiado

de 50% […], se não me engano. Ela teve quórum majoritário, mas não

atingiu isso. Tinha gente que chorava em palanque. Muita gente boa que

qualifica os salões da República hoje chorava no palanque.

Nós, comunistas, junto com outras pessoas, dizíamos que a luta tinha de

continuar, a luta não parava aí. Nós tínhamos que ir ao Colégio Eleitoral,

mesmo sendo um organismo espúrio, criado pela ditadura para eleger o

presidente da República. Vamos ao Colégio Eleitoral, tinha um calendário

eleitoral, marcaram que ia haver eleições… Mas o Colégio Eleitoral é uma

arma do inimigo. Mas se é uma arma do inimigo, nós vamos usar a nosso favor.

Os candidatos eram Tancredo Neves e Paulo Maluf. Diante de Tancredo

Neves e Maluf não precisa ser gênio para escolher o Tancredo. Então, vamos ao

Colégio. O Brizola fez uma metáfora muito inteligente: Um ladrão bate em

nossa porta, arromba nossa casa, chega com revólver na mão para nos assaltar.

Se a gente puder tirar essa arma desse ladrão e usar contra ele, nós vamos usar. É

isso que nós vamos fazer no Colégio Eleitoral, nós vamos usar a arma do

inimigo contra ele. Foi o que aconteceu, o Tancredo ganhou!

130

Page 131: VOLUME 1 - GOLPE

– Aveline, em uma entrevista de 1999, falando sobre a militância, o senhor falou que, depois de 64, a militância era diferente da que se fazia antes do golpe.

Como foi a militância no Partido Comunista depois de 64?

– É o seguinte: quando ocorreu o golpe, houve afluxo e refluxo, muitos

setores da militância recuaram. Muitas pessoas que tinham a militância

normal, um trabalho de massa ostensivo, não suportaram uma vida

clandestina, uma militância clandestina absoluta. Não suportando isso,

houve uma modificação na militância. O partido passou a ser mais um

partido de quadros e menos um partido de massa. O Partido Comunista

adotou a medida de restringir as direções, do ponto de vista numérico,

para ter maior mobilidade. Porque um partido na clandestinidade

rigorosa tinha de ter uma certa mobilidade. Uma direção muito grande,

de 20, 30 membros, não podia ser. Então, os comitês ficaram reduzidos

numericamente. O Comitê Municipal, a executiva do municipal, por

exemplo, ficou restrita a quatro pessoas: eu; um camarada chamado Paulo

Silveira; um outro camarada chamado Carlos Aveline, meu primo; e um

outro camarada chamado Osvaldo.

Nós, dentro desse processo, mesmo sendo mais um partido de quadros do

que de militância, de massa, apoiávamos campanhas de grande

envergadura, como a Campanha das Diretas, mas também realizávamos

atos localizados. Aqui no estado, por exemplo, não sei se tu já ouviste falar

de uma crônica "Macaco subversivo desafiou a ditadura", que eu escrevi 1 em um livro. É o seguinte, nós propúnhamos a luta pacífica, o somatório

de forças, mas isso não significava que não devesse haver ações de massas.

Tinha que haver ações de massas, legais. Para isso, tínhamos de colocar a

1 Aveline refere-se ao livro da sua autoria, Macaco preso para interrogatório. Porto Alegre: AGE, 1999.

131

Page 132: VOLUME 1 - GOLPE

cabeça a funcionar para levar à prática esse tipo de política, que não era

fácil. Tu te esconderes atrás de uma trincheira para uma luta, com arma na

cintura e apontando para o inimigo, aparentemente, é mais fácil. O mais

difícil é tu ires para a praça pública brigar com a palavra, com o

argumento como artifício.

Então, o Comitê Municipal de Porto Alegre fez uma reunião na rua

Protásio Alves, no apartamento do Paulo Silveira, e começamos a discutir

sobre algum ato público, o que fazer em relação à ditadura do ponto de

vista de massa, de ação de massas. Aí surgiu a ideia dos "macacos". Por

que "macacos"? Porque o macaco era associado ao "gorilismo", e eram os

gorilas que estavam no poder. A expressão "gorila" era uma expressão que

começara na Argentina identificando militares golpistas; depois veio

para cá. Então o "macaco" foi escolhido pela associação ao gorilismo.

Nós decidimos o seguinte: soltar dois macacos, um na Praça XV, um na

Praça da Alfândega. Os macacos tinham na cintura uma plaquinha: Eu

não disse que ia baixar o custo de vida? Mensagem com a qual a ditadura

acenava para ter apoio do povo: baixar o custo de vida, que era muito

elevado. Destacamos dois companheiros carpinteiros; eles fizeram as

gaiolas com portas falsas; quando o macaco se mexesse, a porta se abria.

Eles levaram os macacos, de manhã, um para a Praça da Alfândega e o

outro para a Praça XV. O macaco da Praça XV logo que foi solto acabou 2 em cana. Diziam que o macaco não tinha vocação para a tarefa. [risos] O

da Praça da Alfândega, ao contrário, era um macaco vermelho, grande,

possante, raçudo e muito bravo, uma fera! O camarada sentou, colocou a

2 Assim é relatado no livro: "[...] nem bem a gaiola havia sido posta no chão, saiu a passos como se fosse um desocupado qualquer. Foi logo em cana. Um brigadiano o pegou pelo pescoço, levando-o aos safanões para o camburão. Decididamente era um macaco sem a menor vocação para a tarefa". In: AVELINE, João, op. cit., p. 11.

132

Page 133: VOLUME 1 - GOLPE

caixa do lado do banco e abriu o jornal para ler esperando que o macaco se

mexesse. Daqui a pouco, quando o macaco se mexeu ele saiu. Ele fora

alertado para que não tivesse muita preocupação com a questão da

segurança, porque, no momento em que o macaco saísse da gaiola, todas

as atenções iam convergir para o macaco e não para ele. Foi o que

aconteceu, todo mundo "grilou" no macaco. O macaco subiu na árvore,

aqueles jacarandás grandes que há na praça, e lá começou a fazer piruetas.

A massa lá de baixo acompanhava. A polícia foi para lá. Veio um corpo de

bombeiros com escada Magirus, espichou a escada e, lá em cima, um

bombeiro jogava água no macaco. E o Estado-Maior da Segurança do

estado, gente do Terceiro Exército, gente da polícia, gente da Polícia

Federal, da Brigada, todos reunidos para estabelecer uma tática de como

fariam e tal.

E tinha todo um aparato para saber como tinha sido, qual era a origem

daquilo, se não podia ser um macaco selvagem que tinha chegado ali, se

alguém tinha colocado… começaram a especular.

O prefeito de Porto Alegre, um camarada que já morreu, chamado Célio

Marques Fernandes, reuniu a imprensa; isso aconteceu durante toda a

tarde. A praça lotada de gente, o macaco lá em cima da árvore e o

bombeiro querendo derrubá-lo. O Célio convocou a imprensa e deu

entrevista coletiva para dizer que o macaco não era próprio do município.

Queria tirar qualquer suspeita em relação a ele, preocupado com a

carreira política dele. O macaco foi preso no fim da tarde, ali pelas 18

horas. Foi solto de manhã, às 11 horas.

A Folha da Tarde disse que havia umas 10 mil pessoas na Praça da

Alfândega e adjacências, Rua da Praia, Rua Sete de Setembro e Largo dos

133

Page 134: VOLUME 1 - GOLPE

Medeiros. A praça ficou lotada de gente. Prenderam o macaco e levaram-

no depois de muita luta. No outro dia, os órgãos de segurança emitiram

uma nota pública advertindo as pessoas e casas especializadas que

vendiam animais silvestres de que todas as pessoas que quisessem

comprar macacos tinham que apresentar carteira de identidade.

Veja o ridículo a que ficou exposta a ditadura. A ditadura ficou nua na

praça. Foi um ato público de massa que serviu para desmoralizar a

ditadura. Toda a televisão noticiou de noite, os jornais todos noticiaram,

todo mundo ficou sabendo que tinha havido um ato contra a ditadura no

centro de Porto Alegre. Os jornais do Rio de Janeiro publicaram também,

em repercussão nacional, e na França dois jornais publicaram, o Le Monde

e o L'Humanité. O L'Humanité chamou na capa: No Brasil, não sei o

que… macaco na rua contra o golpe militar.

Então, esse tipo de ação era uma ação de massa eminentemente política e

com condições de fazer. Era só vontade de fazer, não tendo outro

caminho, porque o caminho da luta armada não era promissor, não

levaria a lugar nenhum. Pelo contrário, a luta armada servia para a

ditadura justificar os crimes que ela praticava, para tomar as atitudes que

tomava, criminosas, de banditismo, em relação à militância política e ao

povo brasileiro, com base no fato de que aconteciam coisas daquele tipo.

Isso não significa que as pessoas que participavam da luta armada

tivessem consciência disso, as pessoas não se davam conta que esse tipo de

ação dava armas para a ditadura.

Então essa foi a luta do Partido Comunista durante esse período, período

de luta muito duro. Na nossa avaliação o golpe militar de 64 foi o que de

mais nefasto, do ponto de vista político, ocorreu no século passado, no

Brasil. Pelo menos a minha opinião é essa. Nos fatos históricos de nossa

134

Page 135: VOLUME 1 - GOLPE

vida política dois se destacam, o golpe militar de 64 e a escravatura, que

durou trezentos e poucos anos. O Brasil foi o último país a abolir a

escravatura.

– Aveline, o senhor chegou a ser preso, não é?

– Eu fui preso pelo seguinte: um camarada foi preso em São Paulo. Ele

tinha uma ligação aqui e, por infelicidade nossa e dele, terminou falando

sobre algumas coisas que aconteceram no Rio Grande do Sul. Dentre

elas, uma ligação que tínhamos com o Partido Comunista Argentino.

Essa ligação nem era feita pelo Comitê Estadual do Rio Grande do Sul

com os argentinos, era feita lá em cima pelo Comitê Central com o

Comitê Central argentino e consistia na saída de pessoas do Brasil, via

Argentina, que de lá iam para a Europa, porque viajar diretamente daqui

era muito difícil. Para alguém como o Prestes, por exemplo, sair do Brasil

e pegar um avião no aeroporto, no Rio de Janeiro, em São Paulo, em

Pernambuco ou em Porto Alegre, era muito difícil. Então, a gente tinha

de sair, clandestinamente, de automóvel, numa viatura individual trazida

por alguns companheiros, atravessar a fronteira, pegar um avião e ir para a

Europa. Foi assim que ele e outros saíram. Para operar essa ligação, eles

usavam o Comitê Central e colocavam alguns companheiros nossos à

disposição. Nós, aqui, cedemos alguns quadros para isso, alugamos casa

na fronteira; em Porto Alegre tínhamos uma casa na qual ficavam as

pessoas que vinham do Rio de Janeiro. Depois, eram transferidas para a

fronteira e, dali, para Buenos Aires e Montevidéu. Uma das pessoas que

mais se destacou nesse papel de levar gente foi um camarada chamado

Leopoldo, um cantor nativista, advogado, um companheiro muito bom

com o qual convivi muito, até me emociono quando falo o nome dele. O

Leopoldo foi uma das pessoas que teve um papel saliente nesse trabalho.

135

Page 136: VOLUME 1 - GOLPE

Nós fomos presos sob alegação de que estávamos revendendo dólares de

Moscou via Argentina. Foi essa a acusação. Esse negócio de dólares de

Moscou me faz lembrar do "ouro de Moscou". Sobre o ouro de Moscou,

durante o tempo da Guerra Fria, o Barão de Itararé [Apparício Torelly]

foi acusado de ter recebido ouro de Moscou, processado e levado ao

Tribunal de Segurança Nacional, que era presidido por um camarada

chamado Himalaia Virgulino. Como foi absolvido, o Barão pediu a

palavra e o Tribunal atendeu o pedido. O Barão disse assim: "Olha, eu fui

acusado e absolvido de ter recebido ouro de Moscou. Eu, efetivamente, não

recebi este ouro. Por isso o tribunal me absolveu, porque não tinha prova

nenhuma que eu tivesse recebido. Mas pelo que eu sei, pelas acusações da polícia,

que é uma polícia séria, esse ouro deve estar aqui no Brasil para mim. Deve

estar nos escaninhos do Correio, que não mandou me entregar. Então, peço ao

tribunal que providencie a entrega, porque estou muito necessitado". Isso

também está no meu livro. Então, foi isso que aconteceu, nós fomos

presos, mas acabamos absolvidos pela inconsistência das provas.

– Ficou muito tempo preso?

– Fiquei dois meses preso. Sessenta e um dias.

– Isso foi em que ano?

– Em 75. Eu fui preso em 18 de março de 75 e saí em maio.

– Aveline, em uma outra entrevista sua achei muito interessante que vocês, enquanto militantes, sentiam-se cheios de responsabilidades, como se o futuro da Revolução dependesse de vocês, das ações que praticavam. Isso tem muito a ver também com aquela disciplina do militante, bem dura. Poderia falar um pouco sobre como era essa coisa da militância?

136

Page 137: VOLUME 1 - GOLPE

– A disciplina do partido era muito dura. Quando o partido, em 1947, foi

para a clandestinidade, cometeu o erro de aceitar a clandestinidade.

Aceitando a clandestinidade passou a se comportar como se o País

estivesse ocupado, dado o rigor da clandestinidade e da disciplina.

Para se ter uma ideia, vou citar um fato de disciplina militar e de

rigorismo, do ponto de vista até moral. O Comitê Estadual, certa vez,

estava reunido para preencher uma vaga, pois um camarada tinha

morrido. Foi indicado, então, um nome para ser o titular da vaga. Os

membros do Comitê votaram, mas um se absteve: Fulano votou, fulano

sim, fulano sim, fulano sim… fulano… eu me abstenho! Aí o sujeito que

estava presidindo os trabalhos suspendeu a reunião. O secretariado do

Comitê Estadual se reuniu com o camarada que se absteve e perguntou:

"Tu deves conhecer algum fato muito grave do companheiro para não ter

votado nele. Não tem fato nenhum, não tenho, eu simplesmente me abstive.

Não, tem que haver alguma coisa. Nós não podemos nos dar ao luxo de colocar

alguém no Comitê Estadual sobre o qual há alguma suspeita. Se tu não votaste

nele é porque alguma coisa existe". O camarada disse que não, que não, e

negou até o fim. No fim admitiu que se absteve de votar por negligência.

"Então tu não tens nada contra ele, então tu vais modificar o teu voto". Abriu a

reunião novamente, o plenário pôs em votação e ele votou a favor. Tu vês,

aí se caracterizam algumas coisas, primeiro, o purismo; segundo, [um

caráter] antidemocrático; terceiro, a imposição… Além de não ter

democracia, era imposição.

Os casamentos eram feitos pelo Comitê Estadual. Dois jovens

comunistas, por exemplo, se aproximavam um do outro, o Comitê casava,

juntava os dois. Juntava e separava também, entendeu? Dava chancela,

porque, às vezes, acontecia de um camarada clandestino namorar uma

137

Page 138: VOLUME 1 - GOLPE

menina que não fosse clandestina, que tinha vida legal. Namoravam. Aí

surgia um problema: ao relacionar-se com uma pessoa que tinha

atividade pública, colocava em risco a atividade dele como clandestino.

Quando surgia esse tipo de problema, casavam. Aí ela passava para a

clandestinidade com ele, ou ele passava para a vida legal. E quando havia

desavença entre o casal, quando ficava insuportável a convivência, a

direção do partido, no pressuposto de que isso prejudicava a militância,

separava, embora, depois, procurava conciliar.

Uma outra hipótese era evitar casamentos. Uma vez nós passamos uma

noite reunidos com um jovem militante muito ativo, membro da

Comissão de Organização do Comitê Estadual, cargo muito importante

na organização do partido no interior do estado. Ele viajava por todo o

estado e namorava uma companheira, filha de comunistas também. A

direção do partido no estado, através do secretário-geral do partido,

Pedro Camargo, um cara muito honrado, muito sério, mas muito sectário

e rigoroso, decidiu interferir. Meteu na cabeça que, se aquele militante

casasse com aquela companheira, acabaria se afastando da militância

partidária. Também pensava que ela era fútil e não aguentaria os rigores

da militância clandestina.

– Era uma interferência bem grande.

– Era uma interferência rigorosamente fora da realidade. Nós passamos

uma noite inteira discutindo isso. Quando terminou a reunião, no outro

dia, em torno das 6 horas da manhã, começamos a sair da casa. A primeira

coisa que o jovem companheiro fez foi ir na casa da guria falar com os pais

dela. Pediu a certidão de nascimento dela e foi num cartório tratar do

casamento, determinado a casar e viver toda a vida junto, não há

138

Page 139: VOLUME 1 - GOLPE

problema nenhum. Mas era um equívoco do secretário-geral imaginar

que o casamento seria um desastre para ele. Ela era membro de uma

família comunista, muito militante, muito ativa, com lotes de assinaturas

contra o envio de tropas à Coreia e campeã de assinaturas pelo apelo de

paz contra a bomba de hidrogênio. O jovem camarada, no outro dia, com

medo de vacilar, foi lá, e o pai da moça: "Aconteceu alguma coisa? Por que tu

queres casar com essa rapidez?" Naquele tempo, relação sexual antes de

casar não existia. "O que houve? Alguma coisa houve! Porque tu queres…" E

diz: "Não, não houve nada! Não é o que vocês estão pensando. Depois, mais

tarde, vocês vão saber por que eu estou querendo..." Depois a família soube.

Bom, esse era o rigorismo do partido. O salário dos militantes e

funcionários eram pagos de forma muito irregular. Ninguém recebia

integralmente o salário que tinha. Os salários só foram corrigidos, aqui

no estado, quando veio para cá Salomão Malina, herói na Segunda

Guerra Mundial. O Malina morou aqui e corrigiu essa situação de salário

pago pela metade. Décimo terceiro salário não existia, férias não existiam.

Um militante profissional vai ter que ter essas coisas normalmente. Vai ter que

ter férias para repousar, décimo terceiro, vai ter que ter isso. Mas, de modo

geral, durante muitos anos, vigorou isso. Muita gente não aguentava. Por

que isso acontecia? Porque na nossa concepção, a Revolução era um

negócio muito próximo.

– Que iria acontecer.

– Que iria acontecer rapidamente. Se isso era verdade, havia razão para a

gente ter aquele rigorismo, não só na observância da disciplina como no

cumprimento das tarefas. A gente fazia loucuras com base no fato de que

139

Page 140: VOLUME 1 - GOLPE

estava sendo feito em função do nosso objetivo imediato, que era a

tomada do poder. Na nossa cabeça havia uma frase que dizia o seguinte:

"Cumpre as tuas tarefas com tal entusiasmo, como se delas dependesse o futuro

da Revolução". Então, todo mundo se atirava nas tarefas feito umas feras!

Eu passei um bom período da minha vida colocando a minha família em

plano secundário. Até quando a minha mulher morreu, num sábado...

não deu tempo de colocar convite para o enterro. Só na segunda-feira

coloquei um aviso de falecimento. E eu me despedi dela dizendo o

seguinte: "Em nossa contabilidade matrimonial, se tivesse que ser feita, eu

devia muito mais a ela do que ela a mim". Porque durante um período muito

grande eu fui um pai ausente, e as tarefas domésticas, a vida de nossa casa,

praticamente eram comandadas e executadas por ela. Por isso eu devia

isso a ela. Muita gente abandonou a família, no sentido de não ser

presente, passar a maior parte do tempo longe da família, longe de casa.

Eu saía de casa seis e meia, sete horas para cumprir tarefas, ir para portas

de fábricas. Lá, no bairro Navegantes, por exemplo, as portas das fábricas

abriam às sete horas da manhã. Então, na entrada das fábricas, nós, às

vezes, íamos fazer comícios-relâmpagos contra o envio de tropas para a

Coreia ou em função da luta pela paz.

Eu viajava para o interior em função da campanha da Defesa da Cultura

Nacional. Quando eu viajava, minha mulher não sabia aonde eu ia nem

quando voltava. Por que isso acontecia? Porque, na nossa concepção, esse

sacrifício valia a pena, pois a Revolução estava aí. Era só questão de mais

um empurrãozinho.

– Aveline, queria perguntar sobre um ponto específico, o caso dos que a ditadura chamava de "arrependidos". Um deles foi Gay da Cunha, não é? Ele era um líder comunista aqui no Rio Grande do Sul também…

140

Page 141: VOLUME 1 - GOLPE

– O Gay da Cunha… quando falo no Gay da Cunha, apesar disso tudo,

falo com respeito à memória dele. Ele foi um comunista histórico. Na

Espanha comandou uma Brigada Internacional. Mas esse problema não

é um problema de valentia pessoal, porque valentia pessoal ele tinha.

– Ele foi herói, não é?

– Ele comandou uma Brigada Internacional por ser o mais competente

não só do ponto de vista de tática militar, mas do ponto de vista de

coragem física, coragem pessoal. O Gay, depois de passar por essa

peripécia toda, foi expulso do Exército; formou-se como advogado e foi

ser advogado na Caixa Econômica Estadual. Ele era uma das pessoas

com as quais a gente contava para a passagem dos caras para irem para a

Argentina. Às vezes, um militante parava na casa do Gay, em Ipanema.

Uma vez que veio para cá um camarada chamado Dinarco Reis, que tinha

lutado com ele na Espanha, ele disse: Eu quero parar na casa do Gay,

porque os dois se davam. Um dia, estando o Gay na Caixa Econômica, de

repente, chegaram dois caras e disseram para ele: Dr. Gay, somos da polícia.

Estamos atrás do senhor para saber o seguinte: o senhor tem a carteira de

identidade do seu filho? Tem a fotografia do seu filho? Ele disse: Por quê?

Disseram: Seu filho sofreu um acidente. Aí ele saiu desesperado…

Disseram: O senhor precisa nos acompanhar, porque ele está lá, foi acidente de

automóvel. O Gay vestiu o paletó correndo, saiu até na frente dos carros.

Chegou lá no carro e, quando ele sentou, disseram-lhe: Não houve nada

com o seu filho, o senhor está preso. Quer dizer, o fato de colocarem para o

Gay que tinha acontecido um troço com o filho dele já desmanchou o

Gay. O camarada Giocondo Dias, do Comitê Central do Partido

Comunista, pessoa de muito respeito, dizia o seguinte: "Numa prisão o

141

Page 142: VOLUME 1 - GOLPE

sujeito pode até morrer fisicamente, por morte física e, às vezes, pode ser

quebrado politicamente, anulado politicamente na base da tortura". O que

aconteceu com alguns desses companheiros foi isso. O Gay se

desmontou. E é um terror ideológico, porque o Gay era um cara valente.

O terror ideológico levou-o à derrocada. Deve ter demonstrado tal

fragilidade que os caras devem ter feito proposta para ele fazer uma

declaração pública de que tinha sido ludibriado [pelo partido]. E ele

terminou se prestando a isso. Isso aconteceu com outras pessoas também,

pessoas que foram fisicamente quebradas, derrotadas, política e

ideologicamente esmigalhadas e que terminaram claudicando. Eu

mesmo, quando estive preso no DOI-CODI, vestido somente com uma

camisola e um capuz. Só! Fiquei oito dias assim. Logo que cheguei, perdi

um pivô. Tinha um cabo que me deu um soco porque fiz uma bobagem.

Como o Geisel estava falando [na época] em distensão lenta e gradual,

admitindo que o golpe militar estava em distensão lenta e gradual, eu

disse: "Eu não sei por que vocês estão fazendo isso com a gente […], como estou

sendo preso de capuz e cadeado se o presidente da República disse isso?" O cara

ficou tão indignado quando eu disse que o governo se dividia em duas

metades, uma que estava se entregando e outra que era a linha dura, dos

porões, que me deu um soco e me arrancou um pivô; um outro me jogou

no rosto um negócio que eu não sabia bem o que era, mas depois percebi

que era uísque. Ele estava tomando uísque e me jogou um copo de uísque

na cara. Encharcou o capuz.

Nesses oito dias que estive lá, praticamente não comi. Não sei se os caras

se assustaram comigo ou se imaginaram que aquilo fosse protesto. Não

sei o que imaginaram. Um dia chegou um cara para mim, eu de capuz, e

fez a seguinte pergunta: "Você não tem comida aí, não tem? O que está

142

Page 143: VOLUME 1 - GOLPE

havendo?" Eu disse: "Ah, é o seguinte, eu não tenho fome e eu não tenho

condições de comer de capuz". Para beber tinha que esticar o capuz. Eu sei

que tomei água e leite. Tinha que esticar o capuz, não podia tirar o capuz

para comer, nem para beber água. Eu bebi água e, uma vez, tomei um

copo de leite. Água eu bebia para não desidratar, porque água é tudo.

Água tu bebes tendo ou não tendo vontade. Comida, tu não tendo

vontade, tu não comes. Então ele disse assim: "Quem sabe você quer fazer

uma declaração pública aí de que você tem algum problema com os seus

comandantes políticos?" Eu disse: “Olha, eu não tenho nenhum tipo de

problema dessa natureza e, se eu tivesse, não ia ser nessa hora… se eu tivesse

algum tipo de divergência com a qual eu não pudesse conviver, não ia ser na

prisão que eu ia me declarar". Aí ele disse: "Está bem!" Como quem diz: "Tu

queres, então está bem!" E ficamos assim. As pessoas que foram para a

televisão foram com o texto escrito pelo torturador, pelos torturadores,

escrito para eles lerem.

– Como foi a repercussão, na época; como vocês estavam vendo isso exatamente?

– Os casos que eu tomei conhecimento aqui, quando aconteceram, eu

estava preso. Fui saber depois. Ah, sabe que o Gay… o que aconteceu com o

Gay? Houve assim um sentimento de, não sei se... não é de pena... como é

que eu posso dizer? É de frustração! Um sentimento assim, de frustração.

A mim não fez bem, porque eu conhecia muito o Gay, me dava muito

bem com ele. A mim me fez mal. Não fiquei revoltado contra ele, não

fiquei aborrecido… eu não vi nenhuma manifestação de repúdio à

atitude dele. O que todos nós sabemos é que foi um mal, os caras

desmontaram com ele. E nós temos que levar em conta o que ele fez no

passado, na Guerra Civil Espanhola, da qual ele participou, nas

143

Page 144: VOLUME 1 - GOLPE

contribuições que ele deu ao processo político brasileiro, ao

desenvolvimento da sociedade brasileira, a ação dele. Ele fez tantas coisas

que não vai ser um negócio desse tipo que vai aniquilar totalmente a

biografia dele, embora a gente gostaria que isso nunca tivesse acontecido.

– Aveline, nas minhas pesquisas vi que foram à televisão, mais ou menos, 20

militantes políticos, não é? O Gay teria sido o último, em 75. Lembra de mais

alguma coisa sobre esses casos, de como as pessoas que militavam se sentiram

diante disso?

– Essas pessoas ficaram política e pessoalmente arrebentadas. Nunca

mais tiveram convivência com a gente, se retraíram totalmente. E a

imprensa, safadamente, deu esse título de "renegado", mas é um título

falso, como se eles tivessem se arrependido. O único caso de safadeza que

tem nesse tipo de coisa é o do cabo Anselmo, que renegou mesmo e

passou para o outro lado. Há quem diga que ele passou para o outro lado

na prisão, porque não teria resistido à tortura e passou para o outro lado. E

há quem diga que não, que ele teria começado muito antes. Aquele

negócio dos marinheiros de entregar as armas, aquele tipo de provocação

que foi feita, aquilo já fazia parte da condição dele de agente imperialista,

de agente da CIA. Há quem diga. Eu não posso afirmar nada sobre isso

porque eu não tenho conhecimento concreto disso.

– Aveline, o senhor tem mais alguma coisa para colocar?

– Não, não… valeu!

144

Page 145: VOLUME 1 - GOLPE

Um convite para escrever sobre 1964, por mais que me vigie,

desperta em mim um mundo complexo e, até certo ponto, confuso, de

ideias, sentimentos, paixões, emoções e, infelizmente, ainda de alguns

sofrimentos. Mas, como sempre procuro ouvir o que os parceiros(as) me

dizem e pedem, vou arriscar aqui algumas reflexões.

Após dedicar algum tempo à relembrança de algumas

circunstâncias e fatos, inclinei-me a tecer alguns comentários, dando

ênfase, principalmente, a uma finalidade pedagógica e crítica sobre a

complexidade implicada num acontecimento como esse e, de modo

muito especial, sobre a dificuldade de se poder ter consciência e discernir

quando se está envolto no turbilhão dos acontecimentos. Uma coisa é

falar de 1964 agora, 45 anos depois. Outra, bem diferente, é colocarmo-

nos nas circunstâncias em que esses fatos aconteceram e ver quais as

reações, conflitos, confusões, contradições e dificuldades de

discernimento presentes naquele exato momento. Por isso, é necessário

cuidado e paciência no julgamento daqueles atores. Mas, ao mesmo

tempo, a análise desse momento pode oferecer-nos preciosos elementos

que serão muito úteis na análise de outros acontecimentos, como os que

* Atualmente é professor convidado da UFRGS. Doutor em Psicologia Social, atuando principalmente nos seguintes temas: mídia, ideologia, representações sociais, ética, comunicação e educação.

LIÇÕES DE 1964

Pedrinho Guareschi*

145

Page 146: VOLUME 1 - GOLPE

se nos são apresentados hoje. É nesses possíveis elementos que gostaria

de me concentrar: aprender como agir nessas circunstâncias.

Vou imprimir, pois, a essa reflexão um cunho didático. Procurar

analisar alguns momentos ligados ao que chamaria "os anos do golpe",

que se prolongariam até inícios da década de 1970. Tentar mostrar como

é difícil, em meio ao fogo cruzado, poder conservar a capacidade de

discernimento. E o mais difícil, que para mim isso continua sendo a

questão crucial, como manter a luta no momento presente, esperando

que as coisas se esclareçam e se confirmem muito tempo depois. Trago,

para isso, ao final, além dos fatos daqueles idos, outros que se deram mais

tarde, para concluir com um desafio para o momento presente: há

situações, hoje, em que se pode vislumbrar a força e os interesses escusos e

mistificadores de determinados grupos, e diante das quais é preciso

continuar a lutar e denunciar. O objetivo didático e pedagógico consiste

em sublinhar que o que sucedeu naqueles tempos, repete-se, sob outras

aparências, nos dias de hoje. Naqueles momentos se tentou lutar e se

criaram estratégias para ir minando o poder, denunciando as forças

discricionárias e autoritárias. Hoje, mutatis mutandis, vivemos situações

parecidas. A análise daqueles fatos pode, creio eu, ajudar-nos a lidar com

eles e a lutar contra eles no momento presente. É preciso desenvolver

uma consciência crítica diante de situações complexas e confusas, e

aprender a discernir diante desses momentos de crise. Que critérios

adotar para se poder fazer uma análise mais realista e acertada do

fenômeno em questão?

Em meio ao fogo cruzado

Fazia meus estudos superiores em São Paulo, numa instituição

de ensino superior. É importante dizer que era em São Paulo, pois isso

146

Page 147: VOLUME 1 - GOLPE

tem muito a ver. E digo logo o porquê: só quem experimentou, sabe das

ridicularizações e deboches pelos quais passava quem era gaúcho, como

eu, por ocasião da tentativa de desestabilizar o governo após a renúncia de

Jânio Quadros, em 1961. Não fosse a resistência de Brizola, outros teriam

sido os destinos do Brasil. A aristocracia do tempo só aceitou Jango de

volta após a instalação de um regime parlamentarista que vingou,

miseravelmente, por alguns meses. Mas foi o preço que se teve de pagar

para que Jango retornasse. Pois naquela ocasião a "ideia geral" dos colegas

(os gaúchos eram uns dez, dentro de mais de uma centena) era

exatamente que tanto Jango, como Brizola, eram "comunistas

disfarçados". E ai de quem mostrasse um mínimo de simpatia para com

eles. Mas pelo fato de sermos gaúchos, como Brizola, tínhamos certa

"empatia" para com ele, e essa empatia nos ajudava a não aderir

totalmente ao pensamento "dominante".

O que quero enfatizar é a existência de um pensamento

"dominante", de uma opinião pública profundamente arraigada na

população, mesmo entre pessoas de nível superior, de que o governo de

Jango e a linha de atuação da maioria de seus ministros era de extrema-

esquerda – leia-se comunistas ou simpatizantes das nações comunistas,

como China, Cuba, etc. É somente a partir desse contexto que se pode

entender por que a população em geral, e a maioria das instituições, como

as igrejas, as universidades, as associações, chegaram a apoiar tão

prontamente ao golpe.

Analisando esse fato em retrospecto, é possível encontrar

algumas razões que podem ajudar a compreendê-lo. E uma delas, para

mim a mais importante, é a influência da mídia. Vários estudos estão

revisando hoje a maneira como a mídia hegemônica, de maneira

praticamente uniforme, colocou-se contra o governo da época. Mino

147

Page 148: VOLUME 1 - GOLPE

1Carta traz algumas considerações ilustrativas de quem via e lia a mídia

daqueles dias. As manchetes eram diárias e definitivas. "Basta!".

Principalmente as manchetes, mas também os editoriais, que não

deixavam dúvida sobre a não legitimidade dos governantes e da

necessidade de tirá-los do poder.

Mas qual teria sido a estratégia empregada pela mídia e pela

aristocracia para incentivar, fundamentar e legitimar a derrubada do

governo? Para quem vivia no meio do povo e escutava os grupos e as

pessoas, como era meu caso, creio que a estratégia mais central e

importante foi a capacidade dessa aristocracia e desses meios de

comunicação de conseguir ligar o governo, e as pessoas do governo, ao

comunismo. Vejo agora, trabalhando com representações sociais, como

foi importante e estratégica a criação dessas representações, e a força que

elas mostraram em fazer com que as pessoas agissem dessa maneira. E a

representação que se criou sobre os perigos, os danos, os crimes do

comunismo foi profundamente bem elaborada.

Como um exemplo, gostaria de trazer aqui o extraordinário

trabalho realizado pelo Consulado Americano na formação dessa

representação social anticomunista. O consulado (ou algum órgão ligado

a ele, mas para nós era o "consulado americano") oferecia filmes

gratuitamente para as instituições que quisessem mostrá-los à população.

Lembro que na instituição em que vivia, todos ficávamos felizes quando

corria voz de que à noite haveria sessão de "filmes do consulado".

Importante assinalar que naquele tempo, no início da década de 1960,

eram raras as famílias que tinham televisão, e que os filmes exerciam uma

atração extremamente forte nas pessoas, principalmente entre os de

classe média baixa e baixa. Nós não tínhamos ainda capacidade de

perceber, por detrás desses filmes, a ideologia sutil do anticomunismo.

1 CARTA, Mino. Saudades da marcha. Carta Capital, São Paulo, 2 set. 2009, p.16.

148

Page 149: VOLUME 1 - GOLPE

Lembro de um desses filmes, pois o assisti diversas vezes, um deles

projetado em praça pública, numa cidade do interior de São Paulo (o

"consulado" oferecia até mesmo projetores para quem quisesse mostrar

esses documentários). O filme mostrava os horrores que o comunismo

chinês estava causando em muitos países da Ásia, principalmente em

relação aos católicos. Nesse filme havia uma cena que mostrava a

celebração do Natal em uma pequena aldeia de um país da Ásia. Numa

técnica de flashback, o filme começa a reproduzir, como em sonho, o

conteúdo de uma carta que um dos presentes à cerimônia de Natal tinha

recebido de um parente seu que vivia num país sobre o "tacão" do

comunismo. A carta contava os horrores que os comunistas faziam ao

povo, as torturas, as perseguições, as mortes brutais, etc. E a cena

terminava narrando como soldados comunistas estavam perseguindo o

piedoso sacerdote da aldeia e como o tinham assassinado, à queima-

roupa, com um tiro na testa... E, nesse momento, a pessoa acorda,

assustada, como se o tiro tivesse sido dado em sua cabeça e vê que era

apenas um sonho, que aqui onde ele estava, um país não comunista, as

pessoas tinham liberdade, podiam celebrar o Natal, felizes, bem ao

contrário dos locais onde predominava o regime de terror do comunismo.

Esse é apenas um exemplo. Vi esse "documentário" inúmeras

vezes, em lugares do interior, projetado em todo lugar e até hoje está

marcado em minha mente. Era impressionante a estratégia de

propaganda do "consulado". E junto com essa propaganda, devemos

somar ainda a mídia impressa, a difusão feita pelas rádios, etc.

Por que estou trazendo esses exemplos de propaganda

anticomunista? Analisando o golpe hoje, vejo com muita clareza que, na

ocasião, criou-se uma espécie de círculo férreo, uma argumentação lógica

clara, que legitimaria qualquer ação contra o governo. O silogismo era

149

Page 150: VOLUME 1 - GOLPE

assim construído: a premissa maior – o comunismo é ateu, criminoso,

diabólico. A premissa menor – os atuais governantes são comunistas. E a

conclusão era evidente, inevitável: logo, esse governo não pode continuar!

Se não houvesse essa premissa geral, essa representação social,

fortemente arraigada entre a população de que o comunismo traria o

terror, creio que, unicamente a partir de razões políticas e econômicas,

não teria sido possível o apoio da população para a execução do golpe.

Gostaria de ressaltar mais uma vez a centralidade do elemento

religioso para a fortificação e legitimação do golpe e a ligação entre

religioso e anticomunismo. Olhando em retrospecto, pode-se afirmar,

com forte evidência, que o principal argumento para a derrubada do

governo foi o fato de ele ser comunista, e o comunismo é ateu, criminoso,

perseguidor da igreja, etc. Não fosse o emprego da dimensão religiosa,

dificilmente dar-se-ia o golpe, ou ao menos ele não teria sido tão bem

aceito pela população. E uma das táticas empregadas pela aristocracia e

opositores do governo foram as assim chamadas marchas da família com

Deus pela liberdade. A família foi outro elemento empregado, e ele se

coaduna intrinsecamente com a religião (Deus), e tudo o que vai contra

isso, nega a liberdade.

E assim o golpe se deu. A adesão por parte da população foi

muito grande. Ninguém ousava discordar. Mesmo os que tivessem

mostrado alguma simpatia para com o governo, diante da avalanche dos

que celebravam a "revolução", recolheram-se cuidadosos.

Foi somente aos poucos que foi possível ir examinando mais

detalhadamente o que acontecera. Era como que ir acordando de um

sono. E começou-se a refletir. Que momentos difíceis. Mas a reação foi

começando aos poucos.

150

Page 151: VOLUME 1 - GOLPE

Creio, paradoxalmente, que a primeira reação foi exatamente por

parte da própria igreja que se tinha prestado, ao menos tacitamente, à

legitimação do golpe. Algumas lideranças foram percebendo que tinham

sido enganadas e ludibriadas. Algumas até se sentiram envergonhadas.

Em 1966, os bispos da região Centro-Oeste publicaram um documento,

"Eu ouvi os clamores de meu povo", em que se questionava a ação do

governo, principalmente as perseguições e torturas que começavam a se

disseminar. Mas o documento mais importante que, para mim, foi o que

marcou a reação contra o golpe, foi um artigo de D. Cândido Padim,

bispo de Bauru e ligado à CNBB, intitulado "A Ideologia da Segurança 2Nacional". Era feita nele uma análise bem aprofundada e crítica do que

representava mesmo o golpe, e que "Segurança Nacional" não passava de

uma ideologia legitimadora do capitalismo internacional, a pretexto de

querer proteger a América Latina e o Brasil dos perigos (sic) do

comunismo internacional (Rússia, Cuba, etc.). Afirmava nele que o golpe

era um movimento fascista, para "unir o povo contra aqueles que queriam

entregar o Brasil ao comunismo…" e, consequentemente, a favor dos

interesses americanos no país. D. Padim tinha sido assistente nacional da

JUC ( Juventude Universitária Católica), e esse grupo possuía uma

consciência bem mais aprofundada e crítica sobre política internacional e

não aceitava que a religião fosse instrumentada para favorecimento do

capitalismo.

O regime começou, então, a guerra contra esses grupos de igreja,

até mesmo contra a CNBB, para mostrar que eles estavam infiltrados de

comunistas. E essas ideias atingiam, infelizmente, muitas pessoas, até

mesmo padres e bispos que continuavam ainda a defender a legitimidade

do golpe.

2 PADIM, Cândido. A ideologia da Segurança Nacional. In: SEDOC – Serviço de Documentação. Sedoc Especial. Petrópolis/RJ: Vozes, 1977. p. 432-444.

151

Page 152: VOLUME 1 - GOLPE

O fato que segue é, para mim, um ótimo exemplo do que gostaria

de refletir nessas memórias. Em 1969, lecionava na PUCRS, no curso de

pós-graduação em Sociologia, e falei em aula de um documento que dizia

que muitos militares brasileiros eram treinados no exterior, como na

Academia de Polícia de Washington, em Fort Braggs, Canal do Panamá,

etc., em táticas de antiguerrilha e tortura. Na ocasião, fui fortemente

contestado, até mesmo por autoridades da universidade, e fui intimado a

me retratar, sob pena de perder o emprego. Mas há alguns anos, foram

divulgados documentos que comprovavam esses fatos, exatamente como

tinham sido apresentados na ocasião.

Pois aqui está um ponto que para mim é o fundamental e que

gostaria de sublinhar: a dificuldade de se poder discutir, pesquisar e agir

em situações onde a repressão, e muitas vezes a tortura, se fazem

presentes. A simples denúncia de fatos, mostrados como verdadeiros 30

anos depois, é razão para que se sofram represálias, repressões e

descriminações. Mas essa é a difícil tarefa de quem quer ser coerente com

seus valores e ideais: descriminação e tortura. As pessoas têm de ser

corajosas para não desanimarem e se entregarem. São poucos os que

conseguem sobreviver. Mas são esses que conseguem mudar situações de

injustiça e governos ditatoriais. Esses constituem o que Moscovici chama 3de "minorias ativas", responsáveis pela transformação de uma sociedade.

No caso brasileiro, creio que os fatos que mais diretamente

contribuíram para minar a credibilidade do sistema e, posteriormente,

sua queda, foi o emprego da tortura. O livro de D. Evaristo Arns, Brasil: 4Nunca Mais, que já circulava clandestinamente antes de sua publicação

oficial, constituiu-se num marco decisivo de início do fim do regime. A

prova disso é que, economicamente, o Brasil crescia significativamente,

3 MOSCOVICI, Serge. Psicología de las minorías activas. Madrid: Morata, 1991.4 ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985.

152

Page 153: VOLUME 1 - GOLPE

apesar de ser através de empréstimos que o endividaram profundamente.

Mas o que ninguém podia aceitar eram as agressões e torturas contra

pessoas e grupos. A consciência nacional começou a reagir. Foi o começo

do fim.

Duas questões para refletir

O que venho tentando ressaltar, nessas memórias, por um lado, é

a dificuldade de discernir com relativa segurança, em meio aos

acontecimentos; e, por outro, como poder tornar críveis e divulgar

situações e acontecimentos que, no momento, são taxados como

absurdos, até mesmo ridículos, mas que depois vão se confirmando. Este

foi o caso do preparo de militares brasileiros em centros de treinamento e

tortura dos Estados Unidos, ou mesmo a participação ativa e concreta dos

Estados Unidos no golpe, algo que foi negado durante muito tempo, até

que se divulgassem os documentos que confirmavam as intervenções.

Quem afirmasse tais fatos poderia até mesmo ser preso e processado.

Rememorando esses acontecimentos, fica-se com certa sensação de

impotência, senão, de desânimo. Mas esse é o preço que têm de pagar os

que pensam na transformação, ontem, como hoje.

Nessa perspectiva pedagógica, gostaria de acrescentar mais duas

situações que, no meu entender, podem ser úteis a quem deseja

desenvolver seu senso crítico e de discernimento em meio a situações

mantidas forçosamente na penumbra, e a quem pensa numa perspectiva

de mudança.

A primeira tem a ver com a luta árdua e constante de inúmeros

grupos sociais comprometidos com uma sociedade com mais justiça e

bem-estar, como foi, e em parte está sendo, a luta contra o neoliberalismo

153

Page 154: VOLUME 1 - GOLPE

e suas práticas nefastas. Quanta discussão, pesquisa, argumentação e

esforço para poder denunciar e alertar que a irracionalidade da

especulação financeira, por exemplo, não poderia prolongar-se por muito

tempo. Quem há algum tempo tentasse trazer o assunto à baila era

imediatamente taxado de leviano, sonhador, fora do mundo, sem

fundamento na realidade, etc. As práticas neoliberais eram consideradas

como naturais e as únicas verdadeiramente sadias, "científicas", de gente

de bem. Lembro-me, muito bem, de um artigo de Roberto Campos, um

dos think tanks do pensamento conservador, intitulado de "O

neobobismo dos jesuítas", publicado em vários jornais (Folha de São 5Paulo, Zero Hora, etc.). Ele fazia referência a um documento publicado

por um grupo de jesuítas, no qual alertavam para as irracionalidades do

neoliberalismo. Pode-se ver logo o tom "respeitoso" do ilustre pensador e

"cientista". Afirmava, sem pejo, que todos os que fizessem ressalvas às

práticas financeiras e políticas neoliberais não passavam de pessoas

despreparadas, agitadores, ignorantes: numa palavra, de "bobos".

Perguntamos: como fica a situação agora, quando toda essa

irracionalidade veio à luz, exatamente como era denunciada? Depois da

queda do segundo muro, da Wall Street, quem seriam os "neobobos"? E

como devolver o devido crédito aos que lutaram, sofreram vexames e

represálias, por tentarem mostrar que essas irracionalidades não se

sustentariam? Eis um exemplo da pressão do poder sobre as mentes e as

práticas dos desprovidos de recursos e oportunidades de poderem fazer

ouvir sua voz.

A segunda questão que arrisco trazer à consideração é, entre

tantos outros, um problema candente que se desenrola diante de nossos

olhos, aqui e agora: a sangrenta batalha que, por muitos anos, já vem se

travando nas questões referentes à terra.5 CAMPOS, Roberto. O neobobismo dos jesuítas. Zero Hora, Porto Alegre, 6 abr. 1997, p. 22.

154

Page 155: VOLUME 1 - GOLPE

Quem prestar um mínimo de atenção à mídia impressa, falada e

televisionada, pode constatar a execração e a criminalização dos que se

arriscam em questionar o "direito sagrado de propriedade", ou a tentar

discutir a questão da democratização da posse e uso do solo, urbano ou

rural. As principais vítimas desse bombardeio são, evidentemente, os

assim chamados sem-terra e sem-teto. Revistas de circulação nacional

produzem regularmente matérias espantosas, extremamente agressivas,

divulgando até mesmo invenções e inverdades sobre esses deserdados da

sorte. Nesses próprios momentos em que vivemos, que tremenda pressão

sobre essa gente, responsáveis, segundo a mídia, por forçar o presidente a

assinar a regulamentação sobre os índices de produtividade. Quando, na

verdade, são as próprias instituições governamentais (IBGE, INCRA),

ou da sociedade civil (ABRA), que há anos vêm mostrando essa urgente e 6importante tarefa.

Que significa isso? Como discernir a respeito dessa verdadeira

guerra?

Essa questão é importante, pois a questão da terra é uma questão

fundamental. Em todos os momentos de nossa história, como ainda hoje,

quando o problema é a terra, quem entra em jogo são as forças repressivas,

até mesmo o Exército! Desde o Contestado, chegando até a

Encruzilhada Natalino. A terra passa a ser problema de segurança

nacional. Para quem? Evidentemente, para quem possui a terra. Lembro-

me dos tempos em que se discutia a realização da Constituinte, em 1988.

Trabalhava na CNBB nacional, em Brasília. Naquela ocasião, fizeram-se

abaixo-assinados sobre possíveis proposições que poderiam constar da

futura constituição. Uma delas era redigida mais ou menos assim: "Terra

6 MANDELA, Luís Cláudio. A galinha dos ovos de ouro. 9 set. 2009. Disponível em: <http://www.caritas.org.br/artigos.php?id=141&filtro=2>.

155

Page 156: VOLUME 1 - GOLPE

para quem nela trabalha". Foram ao redor de cinco milhões de

assinaturas. Ajudei a D. Luciano Mendes de Almeida a carregar essas

assinaturas para a Câmara (num carrinho de supermercado). Mas,

conseguiu-se alguma coisa? Praticamente nada. Como poderiam

latifundiários e outros proprietários aprovar uma lei desse teor? O

máximo que se conseguiu foi uma proposição um tanto vaga, de que a

terra deve ter uma função social. E como comprovar que ela tem uma

função social? É aqui que se coloca a questão dos "índices de

produtividade", foco da discussão que se trava hoje. Estamos vivendo um

capítulo central dessa batalha, que se concentra, hoje, na grande polêmica

dos "índices de produtividade".

É impressionante ver e ouvir na mídia, principalmente na

televisão, a voz de comentaristas de peso, altamente legitimados, lendo

editoriais veementes e candentes, com ameaças até mesmo ao presidente,

afirmando que se tal lei for assinada, será o fim da nação e a guerra estará

declarada. O tom não fica longe disso.

O que está por detrás, contudo, e que poucos percebem, é que tal

lei poderá, ainda que de maneira indireta ou longínqua, fazer com que os

grandes latifundiários de nosso país percam alguns de seus incontáveis

privilégios. E isso porque poucos se dão conta também de que nossa

mídia tem "donos", contra a própria Constituição, que diz claramente

que a mídia eletrônica é uma concessão. E poucos ainda percebem que

esses "donos" da mídia defendem as mesmas ideias (quando não são os

mesmos) dos donos dos grandes latifúndios. Não se pode entender de

outro modo esses editoriais tão extremos e catastróficos.

Por que trago essa questão ao final dessas memórias sobre os idos

de 1964? Pois vejo muita coisa em comum. As elites, como em 1964,

percebem que estão perdendo "alguns" privilégios. Naquele tempo, o

156

Page 157: VOLUME 1 - GOLPE

inimigo era o "comunismo ateu" e alguns líderes, de inspiração marxista,

estavam "iludindo" as massas; hoje são os "fora da lei", os que "mandam e

obrigam o governo a fazer as coisas", como dizia, exatamente assim, um

editorial de uma grande rede de televisão.

Concluindo

É fundamental recuperar a história, para que esses

acontecimentos não se repitam. Alguém já disse que a história só pode ser

repetida de duas maneiras: ou como tragédia, ou como farsa. Nenhuma

delas nos convém.

Sugiro duas lições que poderiam nos ajudar:

– A importância da mídia é crucial. É ela que constroi as

representações sociais dentro das quais a população se movimenta, tanto

ontem, como muito mais nos dias de hoje. Nossa infelicidade, no Brasil, é

que a mídia tem "donos", como vimos acima. Razão tinha nosso querido

Betinho (o sociólogo Herbert de Souza), de que enquanto não houver

participação da população na comunicação, não haverá democracia numa

sociedade. E brincando seriamente afirmava: teremos democracia

quando o presidente da Rede Globo for escolhido por eleição direta. A

construção de um anticomunismo exacerbado, principalmente através da

mídia, foi decisivo para os interesses das elites. O único trabalho que

tiveram foi ligar o governo ao comunismo. O resto foi apenas

consequência.

– O fator religioso, no caso brasileiro, foi de suma importância. A

religião foi instrumentalizada para dizer que o comunismo era ateu e

materialista. Muitos religiosos estão hoje não só envergonhados, mas

arrependidos, de terem servido de massa de manobra para interesses

157

Page 158: VOLUME 1 - GOLPE

escusos das elites nacionais. Mas essa estratégia não foi totalmente

abandonada. Resta ainda pessoas e grupos que não se dão conta dos

verdadeiros interesses dos detentores do poder, principalmente dos

donos das terras.

Desculpem os leitores, mas não posso deixar de revelar, bem aqui

ao final, um possível "critério" que poderia, creio eu, nos ajudar no

discernimento dos fatos, presentes e futuros. Não pretendo que seja um

critério absoluto. Mas para mim ele se revelou extremamente útil e eficaz

no exercício de minha prática cidadã. Fazia parte de minhas convicções,

mas o encontrei, posteriormente, nos escritos de um pensador peruano,

Ricardo Antoncich, onde ele escrevia: "Tanto na atividade teológica,

como científica, o principal fator desideologizante fica sendo a opção 7pelos pequenos e pobres". Em outras palavras: você quer ter relativa

segurança de que está no caminho certo, tanto na interpretação dos fatos,

como na ação cidadã? Tente colocar-se na perspectiva dos pobres, dos

perseguidos, dos execrados do poder. Pois eles não têm nada a esconder.

Não precisam justificar seus interesses e privilégios. Eles desnudam toda

e qualquer ideologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTONCICH, Ricardo. Ensino social da Igreja. Petrópolis/RJ: Vozes, 1992.

ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985.

CAMPOS, Roberto. O neobobismo dos jesuítas. Zero Hora, Porto Alegre, 6 abr. 1997, p. 22.

7 ANTONCICH, Ricardo. Ensino social da Igreja. Petrópolis/RJ: Vozes, 1992. p. 61.

158

Page 159: VOLUME 1 - GOLPE

CARTA, Mino. Saudades da marcha. Carta Capital, São Paulo, 2 set. 2009, p.16.

MANDELA, Luís Cláudio. A galinha dos ovos de ouro. 9 set. 2009. Disponível em:<http://www.caritas.org.br/artigos.php?id=141&filtro=2>.

MOSCOVICI, Serge. Psicología de las minorías activas. Madrid: Morata, 1991.

PADIM, Cândido. A ideologia da Segurança Nacional. In: SEDOC – Serviço de Documentação. Sedoc Especial. Petrópolis/RJ: Vozes, 1968. p. 432-444.

159

Page 160: VOLUME 1 - GOLPE

O governador Leonel Brizola, o vice-presidente João Goulart e o capitão da Brigada Emílio Neme na Campanha da Legalidade. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 set. 1961. Acervo pessoal de Emílio Neme.

Page 161: VOLUME 1 - GOLPE

Ante a ameaça dos aviões da FAB, que já haviam realizado voos rasantes, bombardearem o Palácio Piratini, várias metralhadoras foram instaladas no terraço. Temia-se também pela sorte da Cúria Metropolitana (ao fundo). O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 set. 1961. Acervo pessoal de Emílio Neme.

Page 162: VOLUME 1 - GOLPE

Todos, na sede do governo gaúcho, se preparam para lutar defendendo a sua causa. Até mesmo o cozinheiro do Palácio Piratini passou a preparar a comida com panela na mão e revólver na cintura. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 set. 1961. Acervo pessoal de Emílio Neme.

Page 163: VOLUME 1 - GOLPE

Condecoração do coronel Emílio Neme, pelo governador Olívio Dutra, por serviços prestados ao Rio Grande do Sul. Acervo Pessoal: Neme.

O Sr. João Goulart, cuja posse como Presidente da República é motivo do mais sério impasse na vida nacional durante os últimos tempos, recebeu numerosas manifestações de carinho de todo o povo gaúcho e deu a sua primeira entrevista em solo brasileiro, afirmando que tudo deveria ser resolvido pacificamente. Na foto, o vice-presidente João Goulart e o capitão da Brigada Emílio Neme. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 16 set. 1961. Acervo pessoal de Emílio Neme.

Page 164: VOLUME 1 - GOLPE

Passeata em defesa da Legalidade Democrática em frente ao Palácio Piratini, 27 ago. 1961. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Tropas da Brigada Militar para a fortificação do Palácio na resistência durante a Campanha da Legalidade, 27 ago.1961 Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa / Setor de Fotografia.

Tropas da Brigada Militar para a fortificação do Palácio na resistência durante a Campanha da Legalidade, 27 ago. 1961. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa / Setor de Fotografia.

Povo defronte ao Palácio Piratini na chegada do presidente João Goulart, 1 set. 1961. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Page 165: VOLUME 1 - GOLPE

Golpe em Porto Alegre, 1964. Autor desconhecido, Acervo do Museu Joaquim Felizardo/Fototeca Sioma Breitman.

Golpe em Porto Alegre, 1964. Autor desconhecido, Acervo do Museu Joaquim Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman.

Page 166: VOLUME 1 - GOLPE

Manifestação popular durante o golpe, 1964. Autor desconhecido, Acervo do Museu Joaquim Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman.

Page 167: VOLUME 1 - GOLPE

Chegada de João Goulart em Porto Alegre. Após, Jango partiria para o exílio no Uruguai. Jango chegou: reagirei contra o golpe. Última Hora, Porto Alegre, 2 abr. 1964, p. 1. Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Imprensa.

Page 168: VOLUME 1 - GOLPE

Governador Ildo Meneghetti discursa na cidade de Passo Fundo, quando da transferência da capital do estado para esse município. Passo Fundo, 1 abr. 1964. Czamanki, Acervo do Museu Joaquim Felizardo/ Fototeca Sioma Breitman.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade saúda o governador Ildo Meneghetti. Porto Alegre, 3 abr. 1964. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Page 169: VOLUME 1 - GOLPE

Em visita ao Rio Grande do Sul, presidente Castelo Branco é saudado no Palácio Piratini pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade, 22 maio 1964. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Presidente Castelo Branco é recebido no Aeroporto Salgado Filho pelo governador Ildo Meneghetti, 22/05/1964. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Page 170: VOLUME 1 - GOLPE

Desfile do presidente Castelo Branco na Rua dos Andradas, 22/05/1964. Arquivo do Palácio Piratini, Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa/ Setor de Fotografia.

Page 171: VOLUME 1 - GOLPE

Presidente João Belchior Marques Goulart . Acervo pessoal de Christopher Goulart.

João e seu neto Christopher Goulart em Londres, 1976. Acervo pessoal de Christopher Goulart.

Goulart

Page 172: VOLUME 1 - GOLPE

O jornalista João Aveline. Foto: Luiz Abreu.

Page 173: VOLUME 1 - GOLPE

Sergio Gonzales. Acervo pessoal de Sergio Gonzales.

O professor Pedrinho Guareschi. Acervo pessoal de Pedrinho Guareschi.

O jornalista Luiz Cláudio Cunha. Acervo pessoal de Luiz Cláudio Cunha.

O jornalista Wladmyr Ungaretti. Foto: Adriano Santos

Page 174: VOLUME 1 - GOLPE

O deputado estadual Raul Pont. Acervo pessoal de Raul Pont.

Raul Pont, Marcos Júlio Fuhr, entre outros, emcampanha para a direção do Sinpro/RS.1986

Page 175: VOLUME 1 - GOLPE

No ano passado [2008], em 6 de dezembro, completaram-se 32

anos do falecimento do meu avô, João Belchior Goulart. Essa é a minha

idade. Eu nasci em outubro de 1976, e meu avô faleceu em dezembro de

1976. Eu queria fazer um evento que reverenciasse essa data. E estou

fazendo uma peregrinação por todo o estado do Rio Grande do Sul,

contextualizando as Reformas de Base. Costumo dizer, pelos lugares

pelos quais tenho passado, que é uma espécie de reflexão sobre a biografia

e a trajetória política de João Goulart.

Começo em 1919, quando meu avô nasceu em Iguariaçá, no

interior de São Borja, e, fazendo um paralelo, falo no coronel Vicente, cito

a situação da Segunda Guerra Mundial e depois a Guerra Fria, passando

pela quartelada de 64 até o assassinato de meu avô no exílio em 1976.

Eu tenho orgulho de ter tido um avô que evitou duas guerras civis

no Brasil. Tenho orgulho de ter tido um avô que, em 1961, tinha essa

preocupação e percepção com extrema propriedade e sapiência. Este fato

está narrado em depoimentos, no livro O governo João Goulart, de Moniz 1Bandeira, quem registrou um depoimento pessoal do meu avô no exílio.

* Síntese dos discursos proferidos em 31 de março e 1º. de abril de 2009, no evento "45 anos do golpe de 64, a noite que durou 21 anos", realizado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.** Presidente do Instituto João Goulart. Neto do ex-presidente.1 [Nota dos Organizadores]: Refere-se à obra de Luiz Alberto Moniz Bandeira, O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil 1961-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

SOBRE JOÃO GOULART*

Christopher Goulart**

175

Page 176: VOLUME 1 - GOLPE

Jango disse com todas as letras: "Em 1961, eu aceitei aquela

condição de parlamentarismo". E aceitou pelo seu perfil conciliador, pelo

seu perfil pacífico. Naquele momento, a Campanha da Legalidade já

havia tomado conta de todo o país, com a articulação e a energia do

governador Leonel Brizola – que é meu tio-avô –; certamente aqui se

evitara aquele golpe branco, como diziam Almino Afonso, que foi

ministro do Trabalho, e tantos outros.

Evitou-se uma guerra civil. Em 1964, o massacre seria enorme.

João Goulart certamente sabia, por exemplo, daquela Operação Brother

Sam, que consistia no envio de uma frota de navios dos Estados Unidos

pela costa do Brasil.

A primeira historiadora que narrou isso foi a americana Phyllis 2Parker, que trabalhou com documentos desclassificados pelo governo

dos Estados Unidos. Qual é a imagem que vinha, então, naquele

momento? Por exemplo, a das tensões entre Coreia do Sul e Coreia do

Norte e da guerra do Vietnã.

A guerra civil que se evitou no Brasil provavelmente seria um

massacre. Num primeiro momento, poderia haver algum tipo de

resistência, mas certamente depois ocorreria um massacre. Isso é um fato

que deve ser considerado por todos nós aqui.

Quando meu avô assumiu a presidência no governo

parlamentarista, em 7 de setembro de 1961, o que ele falou naquele dia

para toda a Nação, para testemunho de todos? Ele disse: "Prefiro

harmonizar a estimular ódio. Prefiro pacificar a estimular ressentimentos".

Esse era o seu perfil. Essa foi a condição, as características

peculiares que o conduziram à presidência da República em 14 anos [de

vida política]. Ele saiu lá de São Borja, onde era fazendeiro bem-

2 [Nota dos Organizadores]: Refere-se à obra de Phyllis R. Parker, 1964: o papel dos Estados Unidos no golpe de Estado de 31 de março. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.

176

Page 177: VOLUME 1 - GOLPE

sucedido. Não tinha, em princípio, quando jovem, interesse em entrar na

política. Mas entrou pela mão de Getúlio Vargas, em 1947. Sempre leal,

sempre com toda a devoção àquilo que Getúlio Vargas lhe ensinou com

muita sapiência, que era o anteparo entre trabalho e capital.

É necessário pensar em todas as teses, todas essas questões de

comunismo, protocoladas pelo IBAD, pelo IPES e pela Escola Superior

de Guerra, que era amparada pelo National War College, lá dos Estados

Unidos.

Esse é um fato. Outro fato a considerar diz respeito a quantas

vidas o meu avô salvou. Quantas vidas poderiam ter sido perdidas no

Brasil, não fosse um gesto de grandeza, desapegado de qualquer vontade

excessiva de poder? Evidentemente, nem ele imaginava que a ditadura

demoraria 21 anos. Isso é fato. Todavia, talvez tenha pensado que poderia

ocorrer algo similar ao que aconteceu em 1945, quando Getúlio se

autoexilou em Itu e depois voltou pelas urnas em 1950.

São fatos que deixamos para uma reflexão sobre aquele que,

quiçá, tenha sido um mártir da democracia brasileira, e, dessa forma, deve

ser reconhecido pelo povo brasileiro: o presidente João Goulart.

177

Page 178: VOLUME 1 - GOLPE
Page 179: VOLUME 1 - GOLPE

Rio 40 graus.

O mundo inteiro sabe que o verão carioca é tórrido. Assim, o

leitor mais atento da primeira página do Jornal do Brasil daquele sábado,

14 de dezembro de 1968, estranhou o quadro da previsão do tempo,

publicado no canto superior esquerdo, ao lado do logotipo do mais

influente jornal do país naqueles idos tão estranhos:

Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O

país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38°, em Brasília. Mín.: 5°,

nas Laranjeiras.

MÁXIMAS E MÍNIMAS: OS VENTOS ERRANTES DA MÍDIA NA

TORMENTA DE 1964

Luiz Cláudio Cunha*

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 dez. 1968.

* Jornalista, autor de Operação Condor: o sequestro dos uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto Alegre: L&PM, 2008.

179

Page 180: VOLUME 1 - GOLPE

No canto superior direito, outra informação inusitada: "Ontem

foi o Dia dos Cegos". A explicação para tal cegueira estava abaixo, na

manchete sobre o fato do dia: "Governo baixa Ato Institucional e coloca

Congresso em recesso por tempo ilimitado". Acontecera na véspera o

golpe dentro do golpe de 1964, com a edição do AI-5, que escancarou a

ditadura no Brasil. O locutor Alberto Curi, sentado ao lado do ministro

da Justiça, Gama e Silva, no Palácio das Laranjeiras, no Rio, leu o texto do

ato em cadeia nacional de rádio. A fala do locutor ainda ecoava no ar

quando cinco oficiais uniformizados do Exército – um major e quatro

capitães – invadiram a redação do JB no Rio de Janeiro para censurar o

noticiário.

Diante da ocupação, o editor-chefe Alberto Dines começou a

trabalhar com o chefe de redação Carlos Lemos para encontrar maneiras

de driblar o controle militar. O editorial censurado da página 10 foi

substituído por uma foto vertical de arquivo em que um enorme campeão

mundial de judô, numa brincadeira familiar, se deixava derrubar pelo

filho pequeno e franzino. Uma fina alegoria que enganou a tesoura do

censor. Mas Dines queria mais, para contornar o bloqueio da primeira

página. Chamou o copidesque Roberto Quintaes e lhe pediu que

recriasse a previsão do tempo com dois números cabalísticos: o 38,

número do Ato Complementar que fechou o Congresso, e o 5, marca do

ato que enterrou a liberdade. E assim nasceu, para a história do

jornalismo brasileiro, a curiosa previsão de tempos em que o Brasil

daquele verão esquisito oscilava dos 38° em Brasília para os 5° das

Laranjeiras, sede do palácio carioca onde foi anunciado o AI-5. A nova

versão do clima turbulento foi enxertada nas oficinas, quando o jornal já

tinha sido censurado e a nota cifrada escapou da revisão dos militares para

ganhar um espaço eterno na memória da luta contra a ditadura.

180

Page 181: VOLUME 1 - GOLPE

No dia seguinte, domingo, 15 de dezembro, Dines nem precisou

se ocupar da edição. O Jornal do Brasil não foi impresso, como protesto

pela ordem de prisão contra um de seus diretores, embaixador José Sette

Câmara, ex-governador da Guanabara e aliado de Juscelino Kubitscheck.

Era uma edição gorda de Natal, cheia de anúncios, que nem saiu da

gráfica. Solidários, os anunciantes transferiram toda a propaganda para 1as edições seguintes.

A meteorologia política do país piorou muito. O AI-5 durou 10

anos e, do olho do furacão autoritário, ventaram mais 12 atos

institucionais, 59 atos complementares e oito emendas constitucionais.

"Salvamos a democracia, voltando às origens do poder revolucionário",

discursou o general Arthur da Costa e Silva, falando ao país em cadeia no

réveillon de 1968. Duas semanas mais tarde, em 13 de janeiro de 1969, o

então coronel João Batista Figueiredo, futuro presidente da República,

foi bem mais sincero e preciso. Escrevendo ao capitão Heitor Ferreira,

anos depois secretário particular dos generais Geisel e Golbery no

Palácio do Planalto, Figueiredo chegou a antecipar o julgamento da

história: "Os erros da Revolução [de 64] foram se acumulando e agora só 2restou ao governo partir para a ignorância".

O peso maior da ignorância militar golpeou a classe política. O

Congresso ficou fechado até outubro de 1969, quando reabriu para

chancelar a escolha pelo Alto Comando das Forças Armadas do general

Garrastazú Médici como sucessor do general Costa e Silva, vítima de um

derrame. Cassou para isso quase três centenas de mandatos (111

deputados federais, cinco senadores, 162 deputados estaduais, 22

prefeitos, 23 vereadores), além de 28 funcionários do poder Judiciário.

1 DINES, Alberto. AI-5, quarenta anos. Uma história para não esquecer. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 dez. 2008.2 PORTAL Folha de S. Paulo – Especial 40 anos do AI-5. Site produzido pelos integrantes da 46ª. turma do Programa de Treinamento em Jornalismo Diário da Folha. Dezembro, 2008.

181

Page 182: VOLUME 1 - GOLPE

Antes de completar um mês, o AI-5 decapitou três ministros do

Supremo – Hermes Lima, Vítor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva – e

aposentou até um dos conspiradores de 64, o general Pery Constant

Bevilacqua, ministro do Superior Tribunal Militar: "Dava habeas corpus

demais", justificou uma fonte do Palácio do Planalto. Sessenta e seis

professores foram expulsos das universidades, entre eles Caio Prado Jr.,

Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.

A primeira vítima da área cultural, sempre visada nos surtos

autoritários, apareceu no dia seguinte à edição do AI-5. Na noite de

sábado, 14 de dezembro, o comediante Ary Toledo fez uma piadinha no

final do seu espetáculo, o show A criação do mundo segundo Ary Toledo, que

estreava no Teatro de Arena, em São Paulo.

— Pessoal, este é um espetáculo subdesenvolvido. Não tem

garotas de bunda de fora. No palco, somos eu e meu violãozinho, e só.

Como diz o ditado popular: 'Quem não tem cão, caça com gato. Quem

não tem gato, cassa com o ato...'

Todo mundo riu, menos dois homens da plateia, que foram até o

camarim pedir explicações. Eram agentes do DOPS, o Departamento de

Ordem Política e Social, que levaram Toledo para a delegacia, na Praça da

Luz. Ali ficou detido durante cinco horas, até ser liberado por um

delegado que era seu fã, mas que antes lhe passou uma descompostura

pela gracinha. Ditadura, como se sabe, é coisa séria.

A censura desembarcou com mais força nos jornais e revistas de

Rio e São Paulo, centro político e econômico do país. No lugar de

notícias, comentários e editoriais, começaram a proliferar versões de

Camões n'O Estado de S.Paulo, receitas de bolo no Jornal da Tarde e

imagens de diabos e da árvore símbolo da Editora Abril nas páginas da

revista Veja. Era proibido deixar espaços em branco, a censura censurava a

182

Page 183: VOLUME 1 - GOLPE

revelação sobre a censura. Preferia versos, receitas e imagens diabólicas

nas páginas esquartejadas. O semanário Opinião sentiu a violência antes

mesmo de estrear nas bancas. Em novembro de 1972, quando preparava

seu número zero, a edição experimental, bastou a notícia do lançamento

para alertar o governo. O decreto-lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970,

estabelecia a censura prévia para matérias ofensivas "à moral e aos bons

costumes". Não reconhecia a censura política, que era inconstitucional.

Ela existia apenas nos telefonemas discretos ou nos bilhetinhos sem

assinatura enviados pelos funcionários quase anônimos do Sigab, o

Serviço de Informação do Gabinete do Ministro da Justiça, um órgão

secreto que fazia a ligação direta entre o ministro e a Polícia Federal.

Um telefonema do Sigab convocou o editor do Opinião,

Fernando Gasparian, à sede da Polícia Federal no Rio. O major Braga

tentou despistar:

— Eu quero avisar ao Sr. que aqui no Brasil não existe censura

prévia, a não ser por problemas morais. O Sr. pode publicar o que quiser.

E tirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que a imprensa não

podia publicar – por censura prévia ou autocensura. Gasparian pediu uma

cópia para avaliar, o major negou.3— Ela é secreta.

Assim, secretamente, o regime asfixiou o semanário a partir do

oitavo número. Primeiro, mandando recados. Depois, com o censor

dentro da redação. Por fim, exigindo a remessa do jornal impresso para

Brasília, antes de liberar a venda nas bancas. Em quatro anos e meio,

Opinião sofreu ameaças, prisões, apreensões de edições inteiras, processos

judiciais, o lançamento de uma bomba na redação e um decreto

presidencial, baseado no AI-5, ratificando a censura prévia que o jornal

3 PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Opinião x Censura. Momentos da luta de um jornal pela liberdade. Porto Alegre: L&PM, 1978. p. 23.

183

Page 184: VOLUME 1 - GOLPE

tinha derrubado, como ilegal, no Tribunal Federal de Recursos. Foram

publicadas 5.796 páginas, mas quase o dobro – 10.548 páginas – precisou

ser produzido para suprir a falta do material vetado. Gasparian cansou da

censura e, em 1°de abril de 1977, mandou para as bancas uma edição

diferente da que enviara a Brasília para revisão. Corajosamente, incluía

um editorial avisando ao regime que aquele seria o último número sob

censura. Na semana seguinte, na edição n° 231, com uma ilustração do

presidente e a manchete "Geisel, o AI-5 de novo" na primeira página, o

jornal trazia um carimbo abaixo do título de Opinião: "Livre". A primeira

edição sem censura foi apreendida. O jornal nunca mais voltou às bancas.

Estes são alguns dos momentos dignos de reação da imprensa

brasileira à violência da ditadura, exacerbada a partir do AI-5. Mas o

passado condena, na remissão das origens da conspiração que levou ao

golpe de Estado de 1964. Nele está a digital da mídia que ajudou, por

atos, fatos e versões, na criação do clima político que aguçou posições e

lançou o país num abismo autoritário de 21 anos. A revisão da imprensa, a

partir da radicalização do AI-5, que a fez engolir versos e receitas de bolo,

não apaga seu envolvimento original no golpe militar. Ninguém dissecou

isso melhor do que o professor uruguaio René Armand Dreifuss (1945-

2003), doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Glasgow,

Reino Unido. Em 1981, aos 36 anos, ele publicou no Brasil sua tese de

doutorado produzida nos cinco anos anteriores na Escócia. O livro 1964:

a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe (Ed. Vozes) é um

trabalho literalmente de peso. Em suas 814 páginas, Dreifuss produziu

um clássico de pesquisa histórica que confirma uma tese dos golpistas:

1964 não foi uma simples quartelada, muito menos um movimento

improvisado de um general impulsivo que de repente botou os tanques

nas ruas de Juiz de Fora, na madrugada de 31 de março.

184

Page 185: VOLUME 1 - GOLPE

Como na loucura de Hamlet, havia método na ditadura. E muita

organização, preparo, cálculo, frieza, tática, estratégia e dinheiro, muito

dinheiro. A história do golpe remonta ao fracasso do golpe anterior, o de

1961, quando os ministros militares tentaram vetar a posse

constitucional do vice-presidente João Goulart, alçado ao poder pela

renúncia de Jânio Quadros. A reação popular e a firme resistência do

governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, quebrando a unidade

militar, fizeram vitoriosa a 'Campanha da Legalidade'. Jango tomou

posse e os generais compreenderam que, sem o apoio da opinião pública,

o golpe não passaria. Três anos antes dos tanques rolarem sobre Juiz de

Fora, os militares começaram a tramar com os recursos e a organização do

empresariado brasileiro o golpe final que os levaria ao poder por duas

décadas. E a grande imprensa estava lá, na trincheira da conspiração.

A releitura de Dreifuss, mais do que revelar, permite relembrar

fatos decisivos que o tempo e a memória vão apagando. Em novembro de

1961, três meses após a renúncia de Jânio, nasceu no Rio o IPES,

Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais. Reunia a nata do empresariado,

nacional e multinacional, com todos os nomes, sobrenomes e siglas que

ainda hoje enfeitam as listas das maiores empresas do país. Um

empresário de origem americana no Rio, Gilbert Huber Jr., dono das

Listas Telefônicas, articulou-se com um empresário de uma

multinacional em São Paulo, João Batista Leopoldo Figueiredo, ex-

presidente do Banco do Brasil no governo Jânio e tio do futuro presidente

Figueiredo. Acabaram recrutando militares da reserva, um deles o

general Golbery do Couto e Silva. Parecia um inocente clube de homens

de negócios. Mas, na sua face oculta, sob siglas e codinomes, o IPES

concentrava a execução metódica de um pensado plano da burguesia

nacional para combater, de forma clandestina, os seus três principais

185

Page 186: VOLUME 1 - GOLPE

inimigos: o governo Jango, a aliança nacionalista do PTB e o comunismo,

que aparentemente resumia tudo aquilo. O braço político ostensivo do

IPES era o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que apesar

do nome tinha ligações com o MAC, Movimento Anticomunista, e com

a organização da direita católica Opus Dei. O fundador do IBAD em

1959 foi o integralista Ivan Hasslocher, dono da Promotion, uma agência

de publicidade que promovia o lobby do IBAD e seu braço parlamentar, a

ADP – Ação Democrática Popular, um núcleo conservador de 160

parlamentares da centro-direita no Congresso reunido em torno da

UDN, PSD e PSP. A ADP fazia contraponto à Frente Parlamentar

Nacional, que orbitava no universo do PTB e dos aliados da esquerda.

Segundo Dreifuss, a ADP tinha sua ação política patrocinada pela

estação no Rio de Janeiro da CIA, a agência de inteligência americana 4 focada em campanhas políticas e grupos de pressão.

Homens da mesma linha de pensamento e com igual propósito

juntaram, a partir de 1962, as duas entidades: nascia o complexo

IPES/IBAD, matriz ideológica e operacional da conspiração que daria o

golpe e, depois, forneceria os quadros e dirigentes do aparato estatal que

sustentou o regime militar. O IPES operava como centro estratégico, e o

IBAD, como uma unidade tática. O gaúcho Raul Pilla, líder do Partido

Libertador que integrava a ADP, definiu o complexo: "Duas instituições

muito úteis foram organizadas... levando-as a cumprir seus deveres 5patrióticos". O monstro crescia junto com a conspiração. Em 1963, os 80

membros originais do IPES pularam para 500. Eram sócios 26 dos 36

líderes da FIESP, a maior federação industrial do país. A entidade se

espalhava pelas capitais do país. Em Porto Alegre, a versão local tinha o

4 DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 3. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1981. p. 103.5 PILLA, Raul. A influência do dinheiro. O Globo, Rio de Janeiro, 24 ago. 1963.

186

Page 187: VOLUME 1 - GOLPE

nome de IPESUL e sobrenomes ilustres como o lojista Fábio Araújo

Santos, da rede JH Santos, José Zamprogna e Ary Burger, diretor do

Grupo Gerdau.

A articulação dos empresários com os militares era feita pelo

Grupo de Levantamento da Conjuntura (GLC) do IPES, comandado

pelo general Golbery, que atuava sobre o I (Rio) e III (Porto Alegre)

Exércitos. A "ordem de serviço com calendário" do GLC, que definia a

estratégia de ação, tinha uma edição limitada de 12 exemplares, que não

eram registrados nas atas do IPES. A equipe de Golbery distribuía nos

quartéis uma circular bimestral mimeografada, sem citação da fonte,

avaliando a atividade "comunista" no país, apontando o dedo para

subversivos infiltrados no governo e mapeando suas ações. Só no Rio de 6 Janeiro o GLC de Golbery tinha três mil telefones grampeados. O grupo

do general ocupava quatro das 13 salas que o IPES havia alugado no 27°

andar do Ed. Avenida Central, na Av. Rio Branco, no centro da cidade. A

conta do telefone era faturada em nome do general da reserva Henrique

Geisel, irmão de Ernesto. Em Porto Alegre, o IPESUL operava no

quarto andar do Ed. Palácio do Comércio, na Praça da Alfândega.

O GLC escrutinava a produção diária da imprensa do país, um

total de 14 mil edições no ano, e produzia mensalmente cerca de 500

artigos, disseminados pelos jornais ou divulgados em forma de palestras.

O Grupo de Atuação Parlamentar (GAP) do IPES tinha vergonha do

que fazia. Proibia qualquer menção à sigla, que era camuflada como

"Escritório de Brasília". Ele coordenava a campanha anti-Jango na

capital, mas quem aparecia publicamente era o IBAD e o fazendeiro

baiano João Mendes, deputado udenista e líder ostensivo da Ação

Democrática Parlamentar. O plano era simples e mortal: o IPES, através

6 DREIFUSS, op. cit., p. 188.

187

Page 188: VOLUME 1 - GOLPE

do IBAD e da ADP, emparedava o governo no Congresso, criando um

beco sem saída parlamentar e um ponto morto do Executivo. A inércia

legislativa levaria ao clamor popular pelo poder "moderador" das Forças

Armadas, única instituição capaz de tirar o país daquele atoleiro

fabricado pela conspiração no Parlamento.

Neste trabalho era fundamental manipular a expressão da

sociedade. O objetivo central do Grupo de Opinião Pública (GOP) do

IPES era disseminar seus objetivos na imprensa falada e escrita.

Dissimulado, o grupo evitava o nome "opinião pública", preferindo as

expressões "divulgação" e "promoção". O GOP era "a base de toda a

engrenagem", definia o general Heitor Herrera, um dos líderes do IPES.

José Luís Moreira de Souza, dono da Denison Propaganda, dizia que

"conquistar a opinião pública" era a essência da ação política do grupo. O

principal articulador do GOP era um ex-comissário de polícia, José

Fonseca, que estreara como 'tira' no 16° Distrito Policial de São

Cristóvão, um subúrbio operário da zona norte do Rio, no réveillon de

1952.

Ele tomava um copo de leite em Copacabana na noite de 5 de

agosto de 1954 quando ouviu a cerca de 100 metros o som de tiros. Por

pouco não viu o tiroteio da rua Toneleros, o atentado que deu um tiro no

pé de Carlos Lacerda, matou o major Rubens Vaz e 19 dias depois

disparou a bala fatal do suicídio de Getúlio Vargas. Quatro anos depois

trocou a delegacia por um cargo de relações públicas da Light, a empresa

americana de energia que se tornaria uma das líderes do IPES e da

conspiração. Em 1963, um ano antes do golpe, o ex-comissário José

Rubem Fonseca deu aos 38 anos seu primeiro tiro certeiro na literatura:

lançou o livro de contos Os prisioneiros com o nome literário de Rubem

Fonseca. O festejado autor de Feliz Ano Novo, A grande arte e Bufo &

188

Page 189: VOLUME 1 - GOLPE

Spallanzani tornou-se nas décadas seguintes o maior contista vivo do

país, ganhador em 2003 do Prêmio Camões, uma espécie de Nobel para

escritores da língua portuguesa.

Outros destaques do GOP no Rio eram os jornalistas Glauco

Carneiro e Wilson Figueiredo, este do corpo editorial do Jornal do Brasil.

Em São Paulo, o GOP atuava com Geraldo Alonso, dono da Norton

Propaganda, e nomes ilustres de O Estado de S.Paulo, como Ênio Pesce e

Flávio Galvão. Contava ainda com Jorge Sampaio e Alves de Castro, os

dois nomes centrais do Repórter Esso da TV Tupi, o equivalente ao Jornal

Nacional de hoje, patrocinado pela Esso do Brasil, membro importante do

IPES.

Em tempos sem e-mail ou twitter, o GOP se valia da tecnologia

da época: enviava milhares de cartas e telegramas e fazia chamadas

telefônicas, antecipando em décadas o advento do infame telemarketing.

Em novembro de 1962 chegava a três mil nomes a lista de organizações

de rádio e TV mobilizadas pelo GOP. Aliado a ele funcionava o GPE,

Grupo de Publicações/Editorial, que disseminava material impresso

pelo país. Esta campanha de guerra psicológica era tarefa do ex-

comissário e contista Rubem Fonseca, que incluía intelectuais

respeitados como Augusto Frederico Schmidt, Odylo Costa Filho e

Rachel de Queiroz, prima do general Castello Branco, líder do golpe que

derrubou Jango. Dez anos antes de Fonseca, a cearense Rachel foi a

primeira mulher a ganhar o Prêmio Camões, reconhecimento a uma obra

consistente que começou em 1930, aos 20 anos, com O Quinze, romance

realista que mostra a luta do povo do sertão nordestino contra a miséria e

a fome. Dois anos antes, antecipando seu viés literário, ela formava o

primeiro núcleo do Partido Comunista em Fortaleza. Rachel de Queiroz

foi presa no golpe do Estado Novo, em 1937, acusada de subversiva, e teve

189

Page 190: VOLUME 1 - GOLPE

seus livros queimados. Um quarto de século depois, a comunista de

Fortaleza era uma intelectual engajada na equipe de propaganda de

direita de Rubem Fonseca no IPES. O primo Castello Branco, já ex-

presidente, morreu num acidente aéreo em 1967 quando retornava de um

passeio à fazenda da prima Rachel.

Os propagandistas do GOP atuavam em três frentes: artigos

para jornais e revistas, panfletos para circular entre estudantes, militares e

operários, e livros que comparavam a democracia com a empresa privada.

Em comum, eram todos anticomunistas, antitrabalhistas e

antipopulistas. Nomes fortes do mercado editorial, como Saraiva, Cia.

Editora Nacional e GRD Editora, colaboravam na publicação da

chamada "literatura democrática".

Em janeiro de 1963 a demanda por recursos era tão grande que o

comando do IPES decidiu aprovar uma contribuição anual padrão de ½

por cento do capital de cada sócio. O caixa 2 ou "contabilidade paralela"

da entidade já somava US$ 4 milhões. O orçamento oficial do ano

anterior estabelecia despesas mensais de 10 milhões de cruzeiros (US$

300 mil na época, cerca de R$ 580 mil hoje) só no IPES carioca. A

projeção do novo ano previa o dobro das despesas. Nesse total não estava

incluído o gasto com atividades encobertas e sigilosas. Os valores eram

bem mais respeitáveis. A CPI que investigou a ligação do IPES com o

IBAD apurou que, nas eleições gerais de outubro de 1962, a ADP do

complexo IPES/IBAD injetou algo entre 5 bilhões e 20 bilhões de

cruzeiros (em termos atuais, uma fornida soma que varia de 260 milhões 7a 1 bilhão de reais) para financiar 250 candidatos. Foram eleitos 110.

7 O embaixador americano no Brasil Lincoln Gordon, bem mais modesto, disse que o valor investido não superara US$ 5 milhões (cerca de 10 milhões de reais hoje). DREIFUSS, op. cit., p. 330.

190

Page 191: VOLUME 1 - GOLPE

No Rio Grande do Sul, a aliança de centro-direita da ADP era

integrada por PSD, UDN, PL, PDC e PRP. O vitorioso Ildo

Meneghetti, um dos oito governadores apoiados pelo IPES/IBAD no

país, enfatizou que a indústria e o comércio locais – "sob a égide do

IPESUL" – garantiram o resultado das urnas. Dois dos deputados eleitos

pelo IPESUL eram Peracchi Barcelos (PSD) e Euclides Triches (PDC),

mais tarde nomeados governadores do Rio Grande na safra de eleições

indiretas da ditadura.

A escolha dos agraciados com o apoio financeiro obedecia a uma

regra rígida, quase um contrato de compra e venda. Quem se habilitava a

integrar a lista de "democratas convictos e anticomunistas de primeira

ordem" passava pelo crivo dos analistas do complexo IPES/IBAD. Mais

importante do que a filiação partidária era a orientação das ideias. Cada

candidato era compelido a assinar um 'ato de compromisso ideológico',

pelo qual prometiam lealdade ao IBAD acima da fidelidade ao seu

partido, comprometendo-se ainda a lutar contra o comunismo e a

defender o investimento estrangeiro. E eram compulsoriamente 8 alistados na ADP liderada por João Mendes.

Mas a mercadoria custava caro. O chefe do GAP (Grupo de

Ação Parlamentar) do IPES, o banqueiro Jorge Oscar de Mello Flores,

avaliava os candidatos pelo coeficiente eleitoral. De início, ele calculava

que cada deputado "custaria" cerca de 6 milhões de cruzeiros (cotação

atual: R$ 317 mil), mas percebeu que esta seria a conta de nomes da

Paraíba e outros estados menores. O preço aumentava no Ceará e ainda

mais na Bahia. "Os candidatos de Rio e São Paulo eram muito mais

caros", explicou Mello Flores a Glycon de Paiva, ao avaliar a conta per

capita dos deputados no balcão do IPES: 15 milhões de cruzeiros

8 DREIFUSS, op. cit., p. 324.

191

Page 192: VOLUME 1 - GOLPE

(cotação atual: R$ 792 mil). Paiva recomendava a escolha de "indivíduos

de caráter, bons anticomunistas", enquanto Mello Flores imaginava um 9 pacote inicial de 50 deputados. O orçamento de um candidato 'apagado',

isto é, pouco conhecido e de limitada agressividade eleitoral, incluía

despesas com equipamento de som, 40 mil cartazes, 600 faixas,

fotografias, espaço em jornais, mensagens no rádio e TV, discos de jingle,

gasolina, correspondência e pessoal de apoio... Tudo isso ao custo de uns

10 milhões de cruzeiros, o que não era pouca coisa. Dez milhões, que hoje

valem R$ 528 mil, equivaliam então à renda diária de 20 mil 10trabalhadores de salário mínimo.

Outras empresas ligadas ao IPES colaboravam com seus

serviços, como no caso das passagens aéreas gratuitas liberadas pela

Panair, Cruzeiro do Sul e Varig, que faziam a conspiração voar alto pelo

país. Uma única empresa estrangeira, a Deltec, do americano David Beaty

III, sócio do IPES, abriu uma "caixinha" de US$ 7 milhões de um fundo

originário das ilhas Nassau. O IPES recebeu apoio financeiro de 297

corporações americanas. Passavam o chapéu entre empresas britânicas,

suecas, alemãs. A Fundação Konrad Adenauer, órgão do Partido

Democrata Cristão alemão, canalizava recursos pelo sólido complexo

siderúrgico Mannesmann e pela gigante Mercedes Benz. O general

Golbery encarregou-se pessoalmente do contato com o presidente da

Mercedes.

A presença americana se faria sentir no momento dramático da

troca de poder. Na noite de 2 de abril de 1964, em que o senador Auro de

Moura Andrade declarou vaga a presidência da República, quando Jango

ainda estava em Porto Alegre aguardando a evolução dos

acontecimentos, alguns parlamentares golpistas foram ao Planalto. O

9 Dreifuss, op. cit., p. 328.10 Ibid., nota 243, p. 356.

192

Page 193: VOLUME 1 - GOLPE

palácio estava na escuridão, causada por um corte de energia. Eles

acompanhavam o ato que reconheceria Ranieri Mazzili, presidente da

Câmara, como sucessor de Jango. Quando acenderam os fósforos

naquele ambiente, o deputado baiano Luiz Viana Filho (UDN) viu ao

seu lado Robert Bentley, o jovem secretário da Embaixada americana em 11Brasília.

Dois anos antes, os chefes supremos de Bentley já mostravam

intimidade com o tema brasileiro em Washington. O presidente John

Kennedy entrou no Salão Oval na segunda-feira, 30 de julho de 1962, e

ligou pela primeira vez seu novo brinquedinho, instalado no fim de

semana: o sistema secreto de gravação de voz da Casa Branca. A estreia

prometia: era uma conversa cabeluda de Kennedy com o seu embaixador

no Brasil, Lincoln Gordon, pavimentando o caminho para o golpe

militar que derrubaria João Goulart dois anos depois. Começava pelo

gasto não contabilizado de US$ 8 milhões nas eleições de 1962,

adubando secretamente candidatos apoiados pela CIA e simpáticos aos

EUA. A conexão do mundo político com os militares golpistas era feita

pelo discreto adido militar da Embaixada, coronel Vernon Walters, que

chegaria a vice-diretor da CIA no auge do Caso Watergate, que derrubou

Nixon.

A transcrição das fitas mostra, numa frase de Gordon para

Kennedy, que o alvo central da conspiração era o próprio Jango:

— Para expulsá-lo, se necessário – disse o embaixador,

esclarecendo:

— O posto da CIA no Brasil deixará claro, discretamente, que

não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em

absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é...

11 VIANA FILHO, Luiz. O governo Castello Branco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. p. 46.

193

Page 194: VOLUME 1 - GOLPE

— ... Contra a esquerda – completou o presidente Kennedy, 12dando o sinal verde para o golpe que aconteceria vinte meses depois.

Na véspera da eleição de 1962, a Promotion de Ivan Hasslocher,

líder do IBAD, arrendou o jornal carioca A Noite por 90 dias, ao custo

mensal de 2 milhões de cruzeiros (cerca de R$ 100 mil no câmbio atual)

para propaganda direta. A revista Repórter Sindical também era operada

pela entidade. O órgão oficial do IBAD, Ação Democrática, circulava

mensalmente com 250 mil exemplares e textos de gente como o

economista Eugênio Gudin e o líder udenista Aliomar Baleeiro. Era

gratuita e, ainda assim, não tinha um único anúncio. No início de 1963,

um manifesto de 500 profissionais de prestígio, organizados pelo Centro

Democrático de Engenheiros, ligado ao IPES, foi publicado no Jornal do

Brasil e em O Estado de S.Paulo. Manifestos variados, todos

"democráticos", proliferavam na imprensa e eram retransmitidos pela

dupla IPES/IBAD. Eles tinham uma agência de notícias, a Planalto, que

redistribuía o material a 800 emissoras de rádio e jornais do país. Tudo

gratuito, tudo pela pátria, tudo pela democracia.

Um milhão de cópias da Cartilha para o Progresso, feita pelo

IPES, exaltando os benefícios da Aliança para o Progresso do governo

americano, foi encartada como suplemento da Fatos&Fotos, revista de

grande circulação da Editora Bloch. Em janeiro de 1963, na Faculdade de

Direito de São Paulo, 22 mil pessoas se reuniram durante uma semana

para o I Congresso Brasileiro para Reformas de Base, uma resposta da

elite econômica ao que se discutia no governo de Jango. Dali nasceram 80

propostas de diretrizes que redefiniam o país no plano político, social e

econômico. Mais do que uma proposta para chegar ao poder, era um

autêntico programa de governo organizado pelos grupos de estudo do

IPES de Rio e São Paulo. Oficialmente promovido pelos jornais Correio

12 WEINER, Tim. Legado de cinzas. Uma história da CIA. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 219.

194

Page 195: VOLUME 1 - GOLPE

da Manhã e Folha de S.Paulo, o congresso teve seus 23 documentos finais

publicados pelo Jornal do Brasil.

Num país de elevado analfabetismo, os golpistas perceberam a

importância do rádio e da nascente televisão. O IPES gastou 10 milhões

de cruzeiros para produzir 15 programas de TV para três canais

diferentes. Eram entrevistas de questionários preparados pela entidade,

com jornalistas de confiança e gente selecionada para responder sobre

reforma agrária, custo de vida, democracia. Estavam escaladas neste time

algumas personalidades gaúchas como o senador Mem de Sá, os

deputados Daniel Faraco, Egydio Michaelsen e Raul Pilla, o prefeito

Loureiro da Silva e o arcebispo Dom Vicente Scherer. Em 1962, o IBAD

operava diariamente mais de 300 programas de rádio no horário nobre

das principais cidades do país. A rede de mais de 100 estações ligadas a ele

formava a 'Cadeia da Democracia', sob o comando do senador João

Calmon, dos Diários Associados, que tinha o cuidado de ir ao ar no

mesmo horário das transmissões do líder trabalhista Leonel Brizola, que

os derrotara um ano antes com a 'Cadeia da Legalidade'.

O maior produtor de filmes comerciais do país, Jean Manzon, foi

contratado pelo IPES para produzir filmes como Que é a democracia,

Deixem o estudante estudar, Uma economia estrangulada, Criando homens

livres. Eram filmetes de 10 minutos, projetados antes do vibrante faroeste

exibido nas matinês do interior do país, onde se espalhavam três mil salas

de cinema. As cópias ficavam sob guarda de Luiz Severiano Ribeiro, o

maior distribuidor e proprietário de salas do Brasil. Quando a plateia não

aparecia, o cinema ia até o público. O IPES montou o projeto do 'cinema

ambulante' em caminhões abertos e ônibus com chassis especiais, que

percorriam favelas, bairros populares e cidades distantes. Era um mutirão

democrático: a Mesbla fornecia os projetores, a Mercedes Benz

emprestava os caminhões e a CAIO montava a carroceria dos ônibus.

195

Page 196: VOLUME 1 - GOLPE

O IPES jogava seu charme também sobre as mulheres. Custeava,

organizava e orientava politicamente as duas organizações femininas

mais importantes do país: a CAMDE, Campanha da Mulher pela

Democracia, no Rio de Janeiro, e a UCF, União Cívica Feminina, de São

Paulo. O MAF, Movimento de Arregimentação Feminina, na capital

paulista, tinha 6 mil filiadas em São Paulo e era presidido por Antonieta

Pellegrini, irmã de Júlio de Mesquita Filho, dono de O Estado de S.Paulo e

um dos principais patronos do IPES. Com um rosário nas mãos e um

afiado discurso anticomunista na língua, as donas de casa foram à luta

para mobilizar as esposas de militares, sindicalistas e funcionários

públicos. Mais de 50 mil cartas atulharam o correio dos parlamentares no

Congresso, em Brasília. A primeira reunião da CAMDE no Rio

realizou-se no auditório de O Globo, que garantia espaço no jornal e na

rádio para a agitação das mulheres. E, apesar dos colares de pérolas, dos

penteados elegantes e do ar de velhinhas recatadas, elas sabiam agitar. Em

janeiro de 1964, ao saber de um iminente congresso da CUT da América

Latina em Belo Horizonte, a LIMDE, Liga da Mulher Democrata,

ameaçou invadir o aeroporto da Pampulha e deitar as militantes na pista

para impedir a reunião subversiva. O encontro foi transferido para

Brasília. Em fevereiro, quando Leonel Brizola passou por lá para

defender as reformas, o auditório da Secretaria da Saúde na capital

mineira foi invadido por um pelotão de mulheres, com o terço nas mãos,

slogans contra o belzebu vermelho e orações para exorcizar o anticristo

do PTB. Brizola teve que se calar, diante do tumulto e dos objetos voando

pelo salão, num episódio conhecido como a 'Noite das Cadeiradas'.

No comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de

março, duas semanas antes do golpe, Jango mirou nas mulheres: 'Não

podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa

196

Page 197: VOLUME 1 - GOLPE

justiça social mais humana e na dignidade das suas esperanças', discursou,

ao lado da mulher, Maria Tereza. O IPES traduziu calculadamente o ato

como uma bofetada nas mulheres e em Nossa Senhora. Uma semana

depois, 19 de março, a UCF paulista reagiu no dia de São José, santo

protetor da família, com uma marcha na Praça da Sé com cerca de 500 mil

pessoas, uma multidão cinco vezes maior do que o comício da Central.

Eram puxadas pela reza fervorosa do padre americano Patrick Peyton,

financiado pelo IPES, e bradavam sua graciosa palavra de ordem:

"Vermelho bom, só batom". O sucesso da "Marcha da Família com Deus

pela Liberdade", que originalmente deveria se chamar "Desagravo ao

Santo Rosário", inflamou o movimento. Marcaram outra, maior ainda,

para o Rio de Janeiro em 2 de abril. Mas o general Olympio Mourão

Filho sacou primeiro em Juiz de Fora, 48 horas antes da marcha do Rio. E

o ato de protesto virou a “Marcha da Vitória”: quase um milhão de

pessoas, lideradas pelo CAMDE e pelo IPES, tomaram a Av. Rio Branco

em transe cívico, pontuado por rezas e cânticos, para saudar a nova ordem

vitoriosa e a queda de Jango.

Na medida em que avançava a conspiração, crescia a presença

militar sobre a base parlamentar. Era hora de sair do discurso para a

prática. O IBAD cede seu lugar de destaque para outra sigla – a ESG, da

Escola Superior de Guerra, de onde provinha o núcleo fardado do golpe.

O novo complexo IPES/ESG alinhava 330 oficiais, de majores a generais

de Exército, fazendo a ligação do mundo empresarial com os quarteis.

Sempre sob a liderança de Golbery, lá estavam nomes que, mais tarde,

fariam parte do poder revolucionário, como ministros ou até presidentes.

Orlando Geisel, Mário Andreazza e Walter Pires formulavam planos

com Castello Branco, Ernesto Geisel e João Figueiredo.

Um grupo que Dreifuss nomeia como 'Extremistas de Direita' tem como destaque o coronel (depois brigadeiro) João Paulo Moreira

197

Page 198: VOLUME 1 - GOLPE

Burnier, veterano da fracassada revolta de Aragarças no Governo JK. São

definidos como fanáticos anticomunistas e a favor da modernização

industrial conservadora. Curiosamente, o grupo era mais ligado ao

jornalista Júlio de Mesquita Neto, expoente da 'linha dura' paulista que

pregava uma forte mensagem anticorrupção e contra a esquerda. Com

Mesquita estavam seu irmão Ruy e os deputados Roberto Abreu Sodré e

Paulo Egydio Martins, depois governadores indicados pelos quartéis em

São Paulo. Foi Burnier quem montou o plano de proteção ao Palácio

Guanabara do governador Carlos Lacerda, no dia do golpe, onde se

refugiaram figuras como o homem de TV Flávio Cavalcanti e o jornalista

Hélio Fernandes, diretor do jornal lacerdista Tribuna da Imprensa.

No início de 1962 oficiais das Forças Armadas, falando em

nome de um trio histórico de conspiradores – o marechal Denys, o

almirante Heck e o brigadeiro Grun Moss –, foram a São Paulo para um

encontro com Júlio Mesquita Filho, a quem entregaram um documento

sobre as normas que iriam orientar o governo militar após a queda de

Jango. O grupo, integrado pelos generais Cordeiro de Farias e Orlando

Geisel, foi mais explícito com o dono do Estadão: o regime discricionário

teria de ficar no poder por pelo menos cinco anos. Animado com a

conversa, Mesquita chegou ao ponto de sugerir oito nomes para o futuro

ministério revolucionário, incluindo entre eles Mem de Sá, Roberto

Campos, Dario de Almeida Magalhães e Milton Campos. Todos os

quatro chegaram lá. Com o jurista Vicente Rao, advogado da mineradora

americana Hanna, Mesquita chegou a fazer o rascunho de um Ato

Institucional para fechar Senado, Câmara e Assembleias e cassar

mandatos – o mesmo instrumento de força que a ditadura anos depois 13faria seu jornal engolir com o AI-5, na forma de versos e receita de bolo.

13 STACCHINI, José. Março 64: a mobilização da audácia. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965.

198

Page 199: VOLUME 1 - GOLPE

"Até ali [o AI-5], nós vínhamos divergindo em caso e número, mas não

em gênero, porque sabíamos que o processo tinha que ser aquele,

achávamos que devia ser aquele", reconheceria anos depois Ruy 14Mesquita, irmão de Júlio e também diretor de O Estado de S.Paulo.

A velocidade da conspiração dava maior desenvoltura e ousadia

aos golpistas. Em abril de 1963 o comando do complexo IPES/IBAD

enviou um convite aberto para uma reunião pública no estádio do

Pacaembu. Cerca de 400 figuras importantes do movimento anti-Jango

estavam lá. Uma outra reunião, mais reduzida, aconteceu horas depois no

apartamento de Júlio Mesquita Filho, encarregado de coordenar o apoio

aos ativistas através da mídia. No final de junho, o encontro no estádio

evoluiu para um comício, conhecido como 'Convenção do Pacaembu'.

Levaram sindicalistas e estudantes de onze estados, com uma plateia de

quase 4 mil pessoas, todos conspiradores. Entre os líderes maiores, lá

estavam os governadores Carlos Lacerda (Rio) e Adhemar de Barros

(SP). A festa acabou produzindo um efeito decisivo sobre os militares,

que se viram abertamente apoiados pelo que imaginavam ser um bloco de

trabalhadores, estudantes e classe média. Era o povo, enfim, que lhes

faltara no fiasco golpista de 1961.

No Rio Grande do Sul, quartel-general da maior concentração

de tropas do Exército brasileiro e foco principal da resistência de Brizola

na 'Campanha da Legalidade', dois terços da oficialidade já estavam

engajados na rebelião. O deputado Peracchi Barcelos (PSD), coronel da

Brigada Militar eleito pela lista do IPESUL, tratava de sublevar a força

pública do estado. O general da reserva Armando Cattani organizava

grandes fazendeiros no interior em unidades paramilitares que seriam

acionadas na hora precisa. Tudo sob as bênçãos do governador Ildo

Meneghetti, membro ilustre da lista vitoriosa do complexo IPES/IBAD.

14 VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.

199

Page 200: VOLUME 1 - GOLPE

Na dura expressão de René Dreifuss, "o IPES conseguiu

estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública" pela relação

especial com os principais veículos da mídia nacional. Um de seus alvos

centrais era Assis Chateaubriand – o dono dos Diários Associados, então

a maior cadeia de imprensa do país, era mais poderoso que o Roberto

Marinho do Sistema Globo, que floresceu depois do golpe. No início da

década de 50, Chateaubriand foi citado pelo The New York Times como o

Cidadão Kane brasileiro, versão tupiniquim do magnata americano

William Randolph Hearst, que inspirou o filme clássico de Orson Welles

e carimbou na primeira metade do século 20 a chamada 'imprensa

marrom', formada por veículos sensacionalistas e de baixo padrão ético.

O americano não era páreo para o brasileiro. Diante dos 28 jornais e 18

revistas de Hearst, Chateubriand ostentava um rosário midiático de 34

jornais, 36 emissoras de rádio e 18 de TV integrantes da rede Tupi, a

revista O Cruzeiro (a maior tiragem do país, 700 mil exemplares no auge

dos anos 50, a mesma do lançamento de Veja duas décadas depois, em 151968 ), uma revista mensal (A Cigarra), uma agência de notícias e várias

revistas infantis.

Esperto e inimigo mortal de comunistas, Chateaubriand cravou

seu diretor-geral, Edmundo Monteiro, num dos postos de comando do

IPES carioca. Outro prócer da mídia, Octávio Frias, dono da Folha de

S.Paulo, ingressou no IPES paulista. O empresário Herbert Levy, que

mantinha os filhos operando dentro da conspiração, lançou o jornal

Notícias Populares para conquistar o público de baixa renda. A coluna

15 Veja penou até se consolidar. A tiragem caiu para 500 mil na segunda semana, 300 mil na terceira, 150 mil na quarta, 100 mil na quinta. Durante 20 semanas, a revista não vendeu mais que 16 mil exemplares. Em 1972, a redação de São Paulo, sede da revista, tinha definhado de 46 para 10 repórteres. Apesar da censura prévia, Veja encontrou o tom para revelar os bastidores do regime militar. Acabou o ano superando a marca dos 100 mil exemplares, uma escalada de vendas que nunca mais parou. ALMEIDA, Maria Fernanda Lopes. Veja sob censura: 1968-1976. São Paulo: Jaboticaba, 2009. p. 39-51.

200

Page 201: VOLUME 1 - GOLPE

política 'Seção Livre', assinada por Pedro Dantas (pseudônimo de

Prudente de Morais Neto), era publicada em O Estado de S.Paulo

seguindo a cartilha ideológica do IPES. A escritora Nélida Piñon,

secretária do IPES do Rio, ajudava também nos esforços de propaganda

contra o governo.

A derrocada de Jango explodiu, com euforia, nos editoriais da

grande imprensa:

"Multidões em júbilo na Praça da Liberdade. Ovacionados o

governador do estado e os chefes militares. O ponto culminante das

comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do

movimento pela paz e pela democracia, foi, sem dúvida, a concentração

popular defronte ao Palácio da Liberdade", comemorou o Estado de

Minas.

"Desde ontem se instalou no país a verdadeira legalidade... A

legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas...

Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na

luta fratricida, na desordem social e na corrupção generalizada", atacou o

Jornal do Brasil.

"Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam se unir todos os

patriotas [...] para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.

Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, o Brasil livrou-se do

governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para os rumos contrários

à sua vocação e tradições... Salvos da comunização que celeremente se

preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os

protegem de seus inimigos", agradeceu O Globo.

"Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como

imperativo de legítima vontade popular o Sr. João Belchior Marques

Goulart, infame líder dos comunos-carreiristas-negocistas-sindicalistas.

Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou, o Sr. João

201

Page 202: VOLUME 1 - GOLPE

Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes

covardes que ela já conheceu", tripudiou a Tribuna da Imprensa.

O apoio da mídia a 1964 foi quase unânime no país, até por suas

ligações ideológicas e operacionais com os mentores do complexo

IPES/IBAD. Com exceção da Última Hora de Samuel Wainer, fiel até o

fim a Jango e ao PTB que financiou seu jornal, todos os grandes veículos

foram ostensivamente partidários do golpe, antes e depois. Pelo menos

até a ruptura violenta do AI-5, que transformou velhos companheiros em

vítimas da violência.

Em alguns casos, mais do que apoio da mídia, houve adesão ao

novo regime, chegando ao extremo da colaboração. Essa tese explosiva,

que remete ao abjeto colaboracionismo do governo títere de Vichy com as

tropas de ocupação de Hitler na França, é levantada pela pesquisadora

Beatriz Kushnir, autora de um trabalho inquietante, pouco comentado,

publicado pela Boitempo Editorial em 2004: Cães de guarda: jornalistas e

censores, do AI-5 à Constituição de 1988. Trabalhando em cima do arquivo

do Departamento de Censura e Diversões Públicas do regime e do

material da Academia Nacional de Polícia, que treinava os censores,

Kushnir avançou uma grave conclusão: "A maioria da grande imprensa

colaborou com o regime. Quando digo 'colaborou', quero dizer que foi 16mais que um pacto. Eles se engajaram mesmo". Ela explica melhor o

título de seu livro: "Os jornalistas e donos de jornal, ao apoiar os governos

militares naquele momento, optaram por estar ao lado do poder, se

tornaram tanto agentes como vítimas dessa autocensura. Permanecer no

palco das decisões era mais importante que a busca e a publicação da

verdade. Por isso, esses jornalistas colaboracionistas são aqui vistos como 17cães de guarda".

16 KUSHNIR, Beatriz. A estreita união entre imprensa e ditadura. Portal Vermelho, entrevista a André Cintra, 22 abr. 2009. Disponível em: <http://www.vermelho.org.br>. Acesso em: 10 jul. 2009. 17 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 48.

202

Page 203: VOLUME 1 - GOLPE

Dos anos 50 até a Constituição de 1988, ela apurou, o Brasil teve

220 censores, com a missão de percorrer todo o país para checar jornais,

revistas, as artes e a propaganda. Havia jornais, diz Kushnir, que

declaradamente optaram por uma posição cínica, defendendo nos anos

70 uma "censura inteligente", feita por profissionais política e

intelectualmente mais bem preparados. Era o tempo da censura

transmitida por telefones e bilhetinhos, apócrifos, já que nenhuma lei

autorizava a violência. A origem dos recados, o Serviço de Informação do

Gabinete (Sigab) do ministro da Justiça, bastava para impor a ordem.

Sem a autocensura, a alternativa era a censura prévia.

Assustados com a zoeira anticomunista, setores da sociedade

cobravam do governo mais rigor no controle da mídia. Em 1972, um

certo 'Movimento de Recuperação da Juventude Brasileira' enviou ao

Ministério da Educação um apelo para endurecer a censura. A divisão de

segurança do MEC repassou a proposta à Polícia Federal. Para

demonstrar sua tese da colaboração, a pesquisadora usa o exemplo da

Folha de S.Paulo. O jornal de 1962 que tinha o editor Octávio Frias como

membro militante do IPES e da conspiração é o mesmo jornal de 2009

que tem o editor Octávio Frias Filho pilotando um editorial onde a

ditadura de 64 ganhava o honroso neologismo de 'ditabranda'.

O objeto de estudo de Kushnir é um diário do Grupo Frias, a

Folha da Tarde, que mudou de lado dramaticamente com a edição do AI-

5. Até 1968, era um jornal de esquerda, mais inquieto, que concorria

diretamente com o irmão mais novo do Estadão, o Jornal da Tarde. No

comando da redação estava um jornalista egresso da Última Hora

janguista, Jorge Miranda Jordão, que tinha sob seu comando alguns

jornalistas ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo da luta

armada liderada por Carlos Marighella. O advento do AI-5 deixou o ar

203

Page 204: VOLUME 1 - GOLPE

irrespirável, como advertia a previsão do JB. Houve uma limpeza na

redação, e, a partir de julho de 1969, a Folha da Tarde converteu-se num

jornal que o jornalista Cláudio Abramo resumiu numa palavra: "sórdido".

Os antigos militantes de esquerda foram substituídos por policiais que

escreviam, mantendo até o duplo emprego entre redação e repressão.

Frias botou no lugar de Jordão um jornalista especializado em cobertura

policial, Antônio Aggio Jr. "Ele veio de Santos e trouxe dois

companheiros, um deles com forte influência nas forças de repressão", diz

Kushnir. Um jornalista da editoria de 'Mundo' cumpria dupla jornada:

trabalhava à tarde no jornal e, de manhã, no DOPS (Departamento de

Ordem Política e Social), comandado pelo delegado Sérgio Fleury, o

mais ilustre nome da máquina de tortura brasileira. "Muitos jornalistas

andavam armados na redação. O Aggio mesmo circulava com uma

maleta em forma de violino. Era uma carabina turca", acusa Kushnir. (Ela

está sendo processada na Justiça por estas denúncias, que Aggio rebate.)

Por tudo isso, a Folha da Tarde paulista era conhecida como "o

jornal de maior tiragem" – uma piada lúgubre sobre a taxa de 'tiras'

(policiais) que infestavam sua redação, também conhecida como

'delegacia'. Com acesso privilegiado ao poder, o jornal sabia antes dos

outros sobre o que acontecia nos porões da ditadura. Kushnir lembra que

os militantes da esquerda presos pela ditadura morriam antes nas páginas

do jornal: em 17 de abril de 1971, a Folha da Tarde anunciou em primeira

mão o fim do matador do industrial dinamarquês Henning Albert

Boilesen, 55 anos, naturalizado brasileiro e alto executivo do Grupo

Ultra. "Morto o assassino do industrial Boilesen", dizia a manchete,

horas antes do metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, codinome Roque,

aparecer morto nas celas do DOI-CODI do II Exército. Como a maioria

da grande imprensa, diz Kushnir, o jornal de Frias engolia a versão

policial de que Roque morrera vítima de uma troca de tiros na rua.

204

Page 205: VOLUME 1 - GOLPE

Na ótica da guerrilha, Boilesen fora 'justiçado', como financiador

do aparato repressivo reunido em torno da OBAN (Operação

Bandeirantes) que integrava militares e o DOPS no combate à guerrilha.

Ele foi morto em 15 de abril em seu Ford Galaxie, numa rua de São Paulo,

por guerrilheiros de dois grupos de esquerda – a Ação Libertadora

Nacional (ALN) de Carlos Marighella e o Movimento Revolucionário

Tiradentes (MRT). Era um ilustre membro do IPES que construiu o

golpe, nos dez anos anteriores. Era alto dirigente do Ultra, um dos

maiores grupos petroquímicos do país (faturamento em 2006 de R$ 5

bilhões e lucro de R$ 230 milhões), com destaque para a Ultragas, líder na

distribuição de gás de cozinha e presidida por Boilesen. No início da

década de 60, Pery, o filho do fundador do Grupo Ultra, Ernesto Igel,

aproximou-se de dois nomes fundamentais para seus negócios

petroquímicos: Hélio Beltrão e Ernesto Geisel, dois nomes influentes do

IPES e da conspiração.

"Pery Igel era intuitivo, arrojado", lembrava o empresário Olavo

Monteiro de Carvalho, presidente do grupo Monteiro Aranha, que

testemunhou seu entusiasmo pela nova ordem militar. Igel deu todo o gás

ao golpe. Uma de suas empresas, a Supergel, abastecia os órgãos da

repressão com marmitas de comida congelada, e a Ultragas de Boilesen,

suspeita-se, teria emprestado caminhões de sua frota a órgãos de 18segurança. Por pouco Igel não teve a mesma sorte de seu executivo

Boilesen, que segundo a lenda tinha como distração visitar os porões da

OBAN para ver os torturadores em ação. Em abril de 2009, Carlos

Eugênio Paz, o chefe do GTA (Grupo Tático Armado) da ALN, a

temida ala militar da organização de Marighella, confirmou: "A ALN

tinha conhecimento de vários financiadores da OBAN. Entre eles

18 CASTANHEIRA, Joaquim. A química de Paulo Cunha. Isto é Dinheiro, São Paulo, 8 nov. 2006.

205

Page 206: VOLUME 1 - GOLPE

estavam o sr. Frias, presidente do Grupo Folha, o presidente da Ultragas,

Henning Albert Boilesen, o presidente do Grupo Ultra, Pery Igel, o

presidente do Bradesco, Amador Aguiar, e o presidente da FIESP,

Theobaldo de Nigris, que cedia a sede da Federação das Indústrias de São

Paulo para reuniões de arrecadação de fundos. Havia provas cabais e 19contundentes".

Era comum, também, a versão sobre a colaboração material que o

Grupo Folha dava à repressão naqueles tempos irrespiráveis. As peruas

Chevrolet C-14, da frota que transportava jornais para as bancas, muitas

vezes foram usadas para levar ou trazer gente torturada na OBAN. Paz, o

chefe do GTA, reforça: "A ALN queimou vários carros da Folha como

represália à participação do Grupo Folha no financiamento da repressão

e ao uso de seus carros na repressão direta. Ao fazer isso, atuando na

guerra, o Grupo Folha era passível de sofrer as sanções e as represálias da

guerra. O Grupo Folha apoiou o golpe de estado, financiou, participou 20diretamente da repressão e jamais fez autocrítica disso".

Em 18 de abril de 2009, Beatriz Kushnir lembrava alguns desses

detalhes constrangedores no Memorial da Resistência em São Paulo,

num auditório com 150 pessoas ali reunidas para debater o papel da

mídia na democracia e na ditadura. Dez presentes da plateia pediram a

palavra, três reafirmaram terem sido conduzidas aos centros de tortura

em peruas do Grupo Folha. Rui Veiga, jornalista e ex-preso político, fez

uma acusação ainda mais grave: "Um repórter da Folha acompanhou meu

transporte da OBAN até o DOPS e me aconselhou a não esconder nada,

a colaborar com o regime", denunciou.

19 PAZ, Carlos Eugênio. Entrevista a Rodrigo Vianna. O Escrevinhador. 17 abr. 2009. Disponível em: <http://www.rodrigovianna.com.br>. Acesso em: 19 set. 2009.20 Ibid. Acesso em: 7 abr. 2009.

206

Page 207: VOLUME 1 - GOLPE

No Rio Grande do Sul, nunca se soube de tal envolvimento

material. Mas sobraram conivência e complacência da imprensa gaúcha

com o golpe, antes e depois de 1964. A razão é simples. O alinhamento

dos jornais com a conspiração e com o regime militar era natural. O

Diário de Notícias, de Chateaubriand, tinha orientação do dono para

bater no governo e apoiar a oposição empresarial e militar. Zero Hora já

nasceu depurada e lavada ideologicamente em 4 de maio de 1964, um

mês e quatro dias depois do levantamento militar do general Olympio

Mourão. Herdou as máquinas e a antiga sede na Rua Sete de Setembro,

no centro de Porto Alegre, do jornal Última Hora, mas livrou-se

rapidamente do logotipo, da cara e da comprometedora fidelidade

ideológica de seu antecessor nas bancas e de seu dono no expediente,

Samuel Wainer.

Amigo pessoal de Getúlio Vargas e ex-repórter do conspirador

Chateaubriand, Wainer arrumou dinheiro do Banco do Brasil, na volta

do getulismo ao poder, e fundou em 1955 a edição da Última Hora no Rio

de Janeiro. Tinha um nobre propósito, segundo seu fundador: "Romper

com a formação oligárquica da imprensa brasileira e dar início a um tipo

de imprensa popular e independente". O jornal conquistou novos leitores

na área trabalhista e sindical e cresceu. Em 1961, quando Jango chegava

ao poder e o IPES nascia para derrubá-lo, a UH de Wainer era uma

vibrante, crescente e ágil rede nacional diária que, além de Rio e São

Paulo, já publicava edições simultâneas em outros nove centros

importantes do país – Belo Horizonte, Recife, Niterói, Curitiba,

Campinas, Santos, Bauru, a emergente região sindical do ABC paulista

(Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano) e, finalmente,

Porto Alegre. Na capital do Rio Grande do Sul, berço de Getúlio, Jango e

Brizola e centro da resistência mais forte ao golpe, circulava a edição mais

207

Page 208: VOLUME 1 - GOLPE

21jacobina da rede de jornais de Samuel Wainer. Era natural, portanto,

que herdasse também todos os inimigos e a santa ira da nova ordem

militar. A UH de Porto Alegre sentiu o golpe, literalmente. Tentou

manter a linha editorial e o sonho de uma resistência de Jango ao levante

militar até o dia 5 de abril. Resfolegou numa impossível neutralidade por

mais três semanas e, afinal, sucumbiu em 25 de abril do ano da graça de

1964. O diretor da edição gaúcha, Ary de Carvalho, ainda procurou

manter a equipe, a marca e a estrutura do velho jornal. Viajou ao Rio, para

uma conversa de negócios com Wainer, então exilado na Embaixada do

México. Carvalho fez a proposta, e Wainer topou vender as máquinas de

escrever, as oito máquinas fotográficas, as quatro lambretas, os dois carros 22e o arquivo de fotos – mas não aceitou vender o título do jornal.

Wainer mandou fechar o jornal. Com outros três empresários,

Carvalho comprou máquinas e equipamentos da redação, segurou alguns

membros da equipe e tratou de fundar um novo diário em maio de 1964.

Pediu ao chefe da diagramação, o argentino de nascimento Aníbal

Bendatti, uma logomarca para o novo jornal – "parecida, mas diferente da 23Última Hora". Bendatti datilografou a palavra Zero Hora, ampliou os

tipos da máquina de escrever, livrou o título antigo do retângulo e cravou

a nova marca num quadrado comportado. Preservou apenas o azul dos

velhos tempos na cara do diário que já nascia simpático ao regime de

1964. A simpatia dos conspiradores foi ainda maior.

Ary de Carvalho trazia ligações de família decisivas desde

Birigui, cidade do interior paulista onde se iniciou em 1926 a carreira de

sucesso de um antigo office-boy de uma agência local do Banco Noroeste

21 BARROS, Jefferson. Golpe mata jornal. Desafios de um tablóide popular numa sociedade conservadora. Porto Alegre: Já, 1999. p. 156.22 Morre o jornalista e empresário Ary de Carvalho. O Dia, Rio de Janeiro, 4 jul. 2003.23 BARROS, op. cit., p. 158.

208

Page 209: VOLUME 1 - GOLPE

chamado Amador Aguiar. Décadas depois, Aguiar tinha um emprego

novo e o seu próprio banco, o Bradesco, ambos engajados de corpo e alma

no projeto golpista do IPES. Nada mais natural, assim, do que ajudar o

velho amigo de um jornal que já nascia amigo dos vitoriosos de abril de

64. Com o dinheiro do Bradesco, Carvalho livrou-se dos antigos sócios e

cresceu. Ganhou anos depois um novo parceiro, o radialista Maurício

Sirotsky, que em 1962 criara a TV Gaúcha, então filiada à Rede Excelsior.

Juntos compraram em Chicago, EUA, a moderna máquina de impressão

em off set que tornou a Zero Hora o segundo jornal do país a adotar a

novidade (o primeiro tinha sido a Folha de S.Paulo de Frias).

O esforço fez o jornal cambalear financeiramente, e, em abril de

1970, seis anos após o golpe, Carvalho vendeu as ações que tinha ao sócio

e retirou-se para o Rio de Janeiro. Sirotsky, agora o único dono de Zero

Hora, fizera em 1965 um movimento tático decisivo: trocou a Excelsior

pela Globo de Roberto Marinho, a organização jornalística que mais

cresceria sob a ditadura. No vácuo deste sucesso nasceu, cresceu e

apareceu a RBS, a Rede Brasil-Sul de Sirotsky, hoje o grupo de mídia

mais poderoso do sul do país, nascido dos escombros da Última Hora

esmagada pelos tanques de 64.

Até aparecer a RBS, a empresa jornalística mais influente e rica

do Rio Grande do Sul era a Caldas Júnior, que editava o jornal mais

importante do estado, o Correio do Povo, operava a rádio mais ouvida, a

Guaíba, e mantinha um vespertino de larga penetração, a Folha da Tarde.

Atravessou sem sobressaltos a turbulência de 1964 porque era uma

empresa conservadora, mantida sob o rígido controle de seu dono, Breno

Caldas. Tinha apenas 25 anos quando assumiu o jornal, em 1935. O pai,

fundador do Correio do Povo meio século antes, morrera prematuramente

aos 45 anos, em 1913, mergulhando a empresa numa crise financeira que

durou até a chegada de Breno Caldas.

209

Page 210: VOLUME 1 - GOLPE

Breno Caldas cultivava uma previsível hostilidade contra as

reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o

cunhado do presidente, Leonel Brizola – que na crise de 1961 requisitou

a sua rádio Guaíba para montar em torno dela a 'Rede da Legalidade' que

brecou o golpe militar e garantiu a posse de Jango.

Nos idos de 1962, o líder do IPES carioca José Luiz Moreira de

Souza, dono da Denison Propaganda, viajou a Porto Alegre para botar a

Caldas Júnior no balaio da conspiração. Ganhou as graças de Arlindo

Pasqualini, irmão de Alberto, ideólogo do trabalhismo que o IPES

combatia. Arlindo, diretor da Folha da Tarde e o sucessor natural do dono

da empresa, Breno Caldas, recebeu a missão de produzir uma série de

artigos contra Leonel Brizola, que já não tinha a simpatia da casa desde a 24Campanha da Legalidade do ano anterior.

A animosidade cresceu no governo Jango. Brizola pegou gosto

pelo microfone e batia regularmente em Breno Caldas às sextas-feiras, no

seu programa noturno na rádio Farroupilha, que curiosamente fazia parte

da rede dos Diários Associados do golpista Chateaubriand. O ex-

governador adotava um tom coloquial e direto ao falar na rádio: "Dr.

Breno, eu sei que o senhor está me ouvindo aí no seu iate ancorado no

Guaíba...". A chicotada vinha em seguida: "O Correio do Povo, que já foi

jornal do povo, hoje não é. Agora é um órgão da oligarquia, dos 25monopólios, dos trustes internacionais...", batia Brizola. A resposta

vinha na primeira página da Folha da Tarde, nos artigos assinados por seu

diretor, Arlindo Pasqualini, o homem do IPES dentro da Caldas Júnior.

Como bom fazendeiro e criador de cavalos, Breno tinha afinidades

campeiras com Jango, a quem chamava por "tu", expressão de intimidade

24 DREIFUSS, op. cit., p. 233.25 PINHEIRO MACHADO, José Antônio. Breno Caldas. Meio século de Correio do Povo. Glória e agonia de um grande jornal. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 72.

210

Page 211: VOLUME 1 - GOLPE

entre gaúchos. (Para manter a distância, Breno sempre tratava Brizola

pelo cerimonioso "doutor"). Quando o golpe aconteceu, acabaram as

cerimônias.

No editorial da primeira edição do jornal, no longínquo 1° de

outubro de 1895, Caldas Jr. tinha definido um lema e uma linha para o

jornal que se tornaria centenário: "Independente, nobre e forte –

procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma

facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna."

Nos primeiros editoriais após o golpe de 1964, o jornal abandonou sua

histórica divisa, aderiu à facção vitoriosa e adotou uma postura subalterna

à nova ordem militar. E escancarou seu apoio em editoriais didáticos para

explicar por que os revolucionários de 31 de março estavam certos:

"Aquele era o único caminho para salvar o Brasil", dizia o jornal que se

anunciava independente, nobre e forte, fazendo coro com a grande 26imprensa golpista do centro do país.

Falando, Breno Caldas tentava matizar o que era mais explícito

nos editoriais. Em 1987, dois anos antes de morrer, em entrevista ao

jornalista José Antônio Pinheiro Machado, ele reconhecia: "A Revolução

de 1964, de certo modo, contou com a nossa participação, ou pelo menos

com a nossa simpatia. O pessoal que foi ao poder em 1964... não é que

fosse ligado a nós – não tínhamos ligações políticas com ninguém –, mas

eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho. Quando

houve a tal conspiração do Castello Branco, eu não sabia de nada

oficialmente. Até que o general Adalberto Pereira dos Santos, que

comandou o movimento por aqui, fez um contato comigo, me disse que a

situação era crítica, que iria acontecer alguma coisa. 'Fique atento a uma 27 manifestação do general Castello Branco', me disse ele".

26GALVANI, Walter. Um século de poder: os bastidores da Caldas Júnior. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995. p. 411.27PINHEIRO MACHADO, op. cit., p.78.

211

Page 212: VOLUME 1 - GOLPE

A intimidade de Breno Caldas com o regime militar tinha uma

explicação cavalar. Dono do Haras do Arado, um dos mais qualificados

do estado, nas redondezas de Porto Alegre, Breno ganhou fama como

renomado criador de cavalos puro-sangue inglês de corrida, entre eles

Estensoro, o maior campeão da história do turfe gaúcho. O general Costa

e Silva, primeiro ministro do Exército da ditadura e sucessor de Castello

Branco na presidência, adorava corridas de cavalo – e sempre conversava

com Breno sobre o assunto. Quando o filho de Breno, Francisco Antônio,

prestou o serviço militar, foi requisitado por Costa e Silva, então

comandante da III Região Militar de Porto Alegre, para ser seu motorista

particular. "A ideia do Costa e Silva não era se aproximar do Correio do

Povo, mas sim ter por perto alguém ligado ao turfe!...", desconfiava

Breno, orgulhoso porque o filho era um soldado raso que almoçava na

mesa generosa do poderoso general e de sua mulher, dona Yolanda Costa

e Silva. O chefe do Estado-Maior do III Exército, na época, era outro

amante de cavalos: o general Emílio Garrastazu Médici, futuro

comandante da tropa no sul e sucessor de Costa e Silva no Planalto.

Estas equinas relações de amizade não ajudaram Breno Caldas a

evitar os arreios da censura. Em 1972, quatro anos após a edição do AI-5,

O Estado de S.Paulo que ajudara a montar o golpe vivia sob forte censura,

que o obrigava a cobrir os espaços em branco com versos de Camões. O

regime não permitia a exposição da censura e disparava cortes por

telefones ou bilhetinhos, sem assinatura, ordens atribuídas ao ministro

Alfredo Buzaid, da Justiça. Em 19 de setembro de 1972, a redação do

Estadão recebeu outro papelucho proibindo "a publicação de notícias,

comentários, entrevistas ou críticas de qualquer natureza sobre a abertura

política ou democratização, ou assuntos correlatos, anistia a cassados ou

revisão parcial dos seus processos, críticas ou comentários ou editorais

212

Page 213: VOLUME 1 - GOLPE

desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira ou problema

sucessório e suas implicações". Apenas isso, nada além disso.

O diretor do Estadão, Ruy Mesquita, perdeu a paciência com os

velhos companheiros de conspiração de 1964 e disparou um telegrama

violento para Buzaid: "Sr. Ministro, ao tomar conhecimento dessas

ordens emanadas de V.Excia., o meu sentimento foi de profunda

humilhação e vergonha. Senti vergonha pelo Brasil, degradado à

condição de uma república de Uganda qualquer por um governo que

acaba, de forma incrível, de decretar o ostracismo dos próprios

companheiros de Revolução, que ocuparam ontem os cargos em que se

encontram hoje, e não cogitam cinco minutos do julgamento da História.

O senhor, Ministro, deixará de sê-lo um dia. Todos os que estão hoje, no

poder, dele baixarão um dia, e, então, Sr. Ministro, como aconteceu na

Alemanha, na Itália ou na Rússia, o Brasil ficará sabendo a verdadeira

história deste período, em que abandonaram os rumos traçados pelo seu

maior líder, marechal Castello Branco".

O petardo de Mesquita foi lido da tribuna do Senado pelo líder

da oposição, o senador Franco Montoro, do MDB paulista. Foi

contestado pelo líder governista, o senador Filinto Müller, ex-chefe de

u polícia da ditadura do Estado Novo getulista: "Não há nenhum ato o

as documento do Ministério da Justiça disciplinando as matéri

ue publicáveis nos jornais do país", mentiu o líder da ARENA, alegando q

da notícias de censura eram "campanha organizada para perturbar a vi

a pública brasileira". O Correio do Povo queria publicar esta notícia, com

na denúncia da oposição e a mentira do governo, numa nota discreta

o, página 8, em duas colunas enxutas na edição festiva de 20 de setembr

de data de mais um aniversário da Revolução Farroupilha. A Revolução

64 sacou primeira.

213

Page 214: VOLUME 1 - GOLPE

Na véspera do feriado dos farrapos, na tarde de terça-feira, 19 de

setembro, adentrou a redação do Correio do Povo um jovem de cabelos

compridos e encaracolados, grossas costeletas emoldurando um par de

óculos grande e de armação pesada, que contrastava com o sorriso

simpático. Poderia ser um frequentador retardatário do festival hippie de

Woodstock, não fosse o traje de sempre, terno escuro e gravata, e a

mensagem habitual da censura. Roque Gilberto Chedid desviou-se ao

final do curso de Direito para a rotina torta da Delegacia de Censura da

Polícia Federal no sul. Ele só se materializava pessoalmente em graves

ocasiões. Preferia sempre se manifestar pelo telefone, mais discreto e

imperceptível. Sua voz, educada e um tanto constrangida, atingia a Zero

Hora pelo ouvido sensível de Lauro Schirmer, diretor de redação entre

1970 e 1990, a quem cabia ouvir as ordens inoportunas e castradoras da

ditadura.

O jornalista Elmar Bones da Costa, gaúcho de Santana do

Livramento, lembra bem de Chedid. De volta a Porto Alegre em 1972,

após uma passagem por Veja em São Paulo, ele acabava de assumir a

chefia de redação da Folha da Manhã, o jornal mais novo e rebelde da

pacata Caldas Júnior. O ex-motorista de Costa e Silva, Francisco

Antônio, filho de Breno, tentava uma última cartada para salvar o jornal,

que agonizava com uma rala redação de duas dezenas de jornalistas e uma

tiragem minguada de sete mil jornais. Junto com Elmar vinha da capital

paulista um respeitado repórter da revista Realidade, José Antônio

Severo, gaúcho de Caçapava do Sul, que assumiria a direção da Folha da 28Manhã em sua fase mais brilhante. Conta Elmar:

Havíamos decidido também não aceitar censura por telefone. Nos primeiros meses não houve problema, não tivemos notícia do censor. No final de 1972, talvez por causa do

28 Depoimento ao autor em 3 set. 2009.

214

Page 215: VOLUME 1 - GOLPE

embate pela sucessão do general Médici, a censura recrudesceu. Um dia fui comunicado pela direção que um agente da Polícia Federal viria à redação com orientação sobre assuntos que não deveriam ser noticiados. Apresentou-se, então, um jovem estudante de Direito, simpático, compreensivo, um tanto sem jeito. Chamava-se Roque Chedid. Disse que cumpria ordens e revelou total inexperiência no assunto. Expliquei que, por princípio profissional, eu era contra qualquer censura, mas que era empregado e a orientação da empresa era acatar as determinações. Falei da nossa orientação de não aceitar censura por telefone, até para evitar trotes, e ele concordou. Ele disse que não iria interferir na redação, nem ler matérias, nem nada. Viria apenas quando houvesse algum assunto proibido.E passou a comparecer periodicamente. Uma ou duas vezes por semana ele aparecia. Não trazia ordens escritas, nem determinações detalhadas. Puxava um papelzinho do bolso e lia o que estava anotado, geralmente apenas o tema a ser suprimido. Por exemplo: "Protestos e manifestações de rua no Rio e em São Paulo". "Movimento de guerrilha no Araguaia". Muitas vezes, era ele que nos trazia a notícia, uma vez que a censura exercida na origem junto às agências de notícias que nos abasteciam com o noticiário nacional já suprimia os tais assuntos proibidos. Ele também não sabia direito do que se tratava. Lia o que estava anotado no papel.Um dia, ele apareceu para proibir qualquer notícia sobre o incidente daquela manhã no Rio de Janeiro. Ninguém sabia do que se tratava. Chedid contou que eram os protestos pela presença na cidade do secretário de Estado de Nixon, William Rogers. Chedid nem sabia ao certo quem era. "É a visita do Rogers, Rogers..." Não conseguia lembrar do primeiro nome do visitante. Alguém da redação ajudou: "Ah, o Roy Rogers?". Ele agradeceu: "É, isso mesmo, o Roy Rogers", respondeu, sem atentar para a diferença entre o secretário americano e o velho herói dos filmes de faroeste. Assim era a nossa censura. Como a minha mesa ficava no fundo, ele tinha que atravessar toda a redação e muitas vezes, quando o pessoal estava de bom humor, era saudado com uma salva de palmas quando se retirava. Ele saía ruborizado, constrangido.De repente, assim como veio, Roque Chedid desapareceu. Nunca mais o vi. Há uns dois anos li uma notícia na Zero

215

Page 216: VOLUME 1 - GOLPE

Hora sobre sua aposentadoria como desembargador ou algo assim. A nota de poucas linhas não mencionava a sua experiência como censor.

Naquela terça-feira de setembro de 1972, a grave missão de

Chedid exigia sua presença na redação do Correio do Povo. Exasperado

como Ruy Mesquita, Breno Caldas reagiu à proibição de publicar o

telegrama do diretor do Estadão. Ele engrossou a voz e pediu a ordem de

censura por escrito. Chedid insistiu com o recado verbal, mas não

adiantou. Breno saiu do jornal à noite, deixando uma determinação clara

ao chefe de redação, Adail Borges Fortes:

— Se não vier a ordem escrita, vamos publicar!

O impensável iria acontecer. O provecto e conservador Correio do

Povo batendo de frente com o regime militar. Chedid alertou o comando

gaúcho da Polícia Federal, que repassou a notícia espantosa a Brasília. E o

governo do general Médici, que tinha o gaúcho Carlos Fehlberg como

seu secretário de imprensa, deu a ordem final:

— Apreendam!

A tropa de choque do Exército cercou o jornal, na Rua Caldas

Júnior, esperando o jornal sair da boca das rotativas, a partir das 4h da

madrugada. O comandante da operação queria que a edição apreendida

fosse transportada nos caminhões do próprio jornal até a sede da Polícia

Federal, na avenida Paraná. Breno Caldas vetou a proposta indigna, e os

militares tiveram que requisitar caçambas que trabalhavam no cais do

porto, a três quadras de distância, para cumprir a missão da censura. Para

não perder a viagem, os militares levaram, junto com o Correio do Povo, a

edição da quarta-feira, 20 de setembro, da Folha da Manhã de Severo e

Elmar, que também publicava o telegrama maldito de Ruy Mesquita. A

rara trombada com o regime e a brava reação de Breno Caldas é uma

216

Page 217: VOLUME 1 - GOLPE

exceção que confirma a regra de plácida convivência da imprensa gaúcha

com a censura e a consequente autocensura, que nivelava tudo por baixo.

Seis anos depois já se falava em abertura, em anistia, e não havia

mais censura prévia – mas o fantasma da autocensura ainda sobrevoava

gabinetes ilustres da imprensa gaúcha em 1978. Uma norma não escrita

da mídia do Rio Grande diz que, onde há gaúcho, tudo fica mais

importante e prioritário. Um terremoto no Cazaquistão ganha a primeira

página, por exemplo, se existe gaúcho entre as vítimas.

Este dogma foi atropelado impiedosamente no caso do

sequestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lilían Celiberti e seus dois

filhos, Camilo e Francesca, em novembro de 1978 em Porto Alegre. Era

uma incursão binacional do Brasil e Uruguai no âmbito da Operação

Condor, o 'Mercosul do Terror' engendrado pelas ditaduras que

infestavam o Cone Sul na década de 70. O jurista francês Jean Louis Weil

passou uma semana na capital gaúcha investigando o caso e, pouco antes

do deixar o país, deu uma contundente entrevista coletiva no Rio dando

nomes aos bois – os militares uruguaios e os policiais brasileiros

envolvidos no sequestro. O delegado gaúcho Pedro Seelig, apontado por

Weil, era a mais reluzente estrela da repressão no sul. Merecia, portanto,

todas as manchetes que sua condição de filho da terra lhe garantia. O que

aconteceu acabou sendo uma página vergonhosa de submissão da

imprensa gaúcha ao aparato repressivo da ditadura, um caso explícito de 29autocensura que eu retrato no meu livro.

No aeroporto do Galeão, Jean Louis Weil falou à imprensa na

segunda-feira, 11 de dezembro. O francês identificou os autores do

sequestro nos dois lados da fronteira. A sigla de lá que ninguém ainda

conhecia aqui era o OCOA, Organismo Coordinador de Operaciones

Antisubversivas. A de cá era o velho DOPS de guerra. Weil denunciou o

29 CUNHA, op. cit., p. 143-152.

217

Page 218: VOLUME 1 - GOLPE

nome do militar uruguaio a quem estava subordinado o OCOA, o

general Amaury Prantl. E apontou o chefe brasileiro do sequestro: o

notório delegado Pedro Seelig, um gaúcho famoso o bastante para

garantir qualquer manchete na imprensa local.

No dia seguinte, terça-feira, 12 de dezembro, os jornais da

província reagiram com exagerada cautela à acusação contra o temido

Seelig. Inexplicavelmente suprimiram do texto da matéria o nome do

delegado gaúcho denunciado pelo jurista francês. Precavidos, os jornais

de Porto Alegre se eximiram de responsabilidade, identificando a

Agência Jornal do Brasil (AJB) como a fonte da notícia em que os nomes

pareciam mais constrangedores do que os fatos.

Na Caldas Júnior, nenhum de seus três jornais publicou a grave

acusação de Weil. O principal jornal do trio, o Correio do Povo, publicou

uma nota envergonhada no meio do noticiário de polícia, na página 5,

com uma manchete que escondia mais do que revelava: "Advogado

francês denunciou as autoridades responsáveis". Teve o cuidado de não

dar no texto nenhum nome brasileiro. Disse que o sequestro tinha sido

realizado por um comando do OCOA uruguaio, "comandado pelo

general Amaury Prantl, com a participação de policiais brasileiros do

DOPS de Porto Alegre". O mesmo embuste foi cometido pelos outros

dois jornais da casa, a Folha da Manhã e a Folha da Tarde. Só 48 horas

depois, na quarta-feira, 13, o vespertino atreveu-se a escrever o nome do

delegado, em uma notícia sob outra manchete camuflada na página

interna: "Sequestro. Advogado faz novas acusações contra os integrantes

da polícia gaúcha".

No texto acovardado da Folha da Tarde, o nome de Seelig só

aparece no sexto parágrafo. Ainda assim dedica quatro linhas à acusação e

quinze à defesa do delegado, em que ele mesmo desdenha da denúncia. O

jornal Zero Hora teve um tropeço ainda mais visível na edição de terça-

218

Page 219: VOLUME 1 - GOLPE

feira, 12. Estampou sua falta de coragem na primeira página, com uma

manchete igualmente medrosa: "Advogado francês acusa general

uruguaio pelo sequestro". O surdo e cego editor do jornal não ouviu nem

leu o nome de Seelig na denúncia.

O tal general "teria contado com o auxílio de policiais

brasileiros", desinformava o vago subtítulo do jornal. Lá dentro, em

matéria secundária da página central, Zero Hora continuava escondendo

a informação essencial sobre o nome do primeiro agente brasileiro

denunciado. A coragem que sobrou para identificar o general Prantl

faltou vergonhosamente na hora de nomear Seelig. Era a segunda vez que

Zero Hora tropeçava clamorosamente diante do sequestro.

Treze dias antes, na noite de quarta-feira, 29 de novembro, o

jornal tinha nas mãos um material explosivo: o depoimento de Camilo, o

garoto de oito anos, filho de Lilián Celiberti, apontando o prédio do

DOPS gaúcho como seu local de cativeiro na capital. Era um material

exclusivo enviado de Montevidéu pelos repórteres da Agência

CooJornal, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre. A

reportagem havia sido comprada também por outros dois jornais, um

paulista e outro brasiliense. O editor-chefe do jornal, Carlos Fehlberg,

secretário de Imprensa do Palácio do Planalto no governo Médici (1969-

1974) – o período mais truculento e repressivo da ditadura –, só baixou a

reportagem para a oficina com uma insólita ressalva na abertura do texto:

Esta matéria, redigida pelo repórter Tomás Pereira, da CooJornal, está sendo publicada hoje simultaneamente nos jornais Folha de S.Paulo e Jornal de Brasília.

Não adiantou nada. Durante a madrugada a reportagem

desapareceu misteriosamente na boca da rotativa. Foi substituída na

manhã seguinte, quinta-feira, 30, por explicações pouco convincentes do

219

Page 220: VOLUME 1 - GOLPE

editor-chefe aos irritados editores da redação. O leitor gaúcho, ao

contrário dos outros brasileiros que leram jornal naquele dia, não ficou

sabendo que sua própria polícia estava envolvida no sequestro binacional.

A notícia só saiu na Zero Hora do dia seguinte, sexta-feira, 1° de

dezembro, assim mesmo reverberando cautelosamente a reação no

Legislativo gaúcho. "Debate na Assembleia sobre o envolvimento do

DOPS no sequestro", dizia a cuidadosa chamada na primeira página do

jornal. Jogava a denúncia na boca do deputado Waldir Walter, do MDB,

"baseando-se em matéria publicada no jornal Folha de S.Paulo" –

esclarecia o diário gaúcho, lavando as mãos com a própria incompetência

jornalística.Afinal, o jornal paulista tinha publicado sem ressalvas e sem

medo a mesma reportagem da Agência CooJornal que a Zero Hora tinha

comprado com exclusividade e esquecido na gaveta. Mais estranho ainda:

Carlos Fehlberg era um jornalista experiente e um calejado editor

político. Deixou a assessoria de imprensa do Planalto no final do governo

Médici, em 1974, para assumir por 17 anos o comando do jornal que, sob

sua chefia, tornou-se o mais importante do estado. Diante do sequestro,

porém, ele parecia um iniciante.

Fehlberg voltou a tropicar feio em janeiro de 1979, quando a

missão da OAB rastreava corajosamente o sequestro lá mesmo em

Montevidéu. Dessa vez, a hesitação do editor-chefe foi denunciada por

um subordinado direto, João Aveline, seu secretário de redação, que 20

anos depois revelou toda sua frustração num texto carregado de 30melancolia a partir do título: "A notícia não saiu. Velório na redação".

Aveline lembrava que, após um doloroso período de censura, os

jornais se atiravam em cima do caso do sequestro como se quisessem

30 1999. p. AVELINE, João. Macaco preso para interrogatório: retrato de uma época. Porto Alegre: AGE, 64-65.

220

Page 221: VOLUME 1 - GOLPE

"recuperar o tempo perdido e ganhar a credibilidade dos leitores". Até o

velho Correio do Povo disputava notícias, tanto que publicou um "furo de

reportagem" com as andanças da comissão da OAB gaúcha na capital

uruguaia. Outra vez, graças à ousadia do CooJornal, que tinha um repórter

ao lado dos advogados para repassar suas reportagens aos jornais

brasileiros. Fehlberg resolveu combater o concorrente da Caldas Júnior

com suas próprias armas: mandou comprar, com exclusividade, o material

do repórter Tomás Irineu Pereira. Era uma nova denúncia do CooJornal, a

partir da identificação de outros policiais do DOPS pelos filhos de Lilián

Celiberti. O texto e as três fotos foram comprados por Zero Hora, com

exclusividade para o Rio Grande do Sul (o mesmo material seria

publicado também no Rio e em São Paulo). Conta Aveline:

A edição estava quase fechando quando o estafeta da cooperativa chegou com a preciosíssima encomenda, que foi logo encaminhada à oficina pelas mãos do diretor do jornal, jornalista Lauro Schirmer. Como eram momentos de grande expectativa vividos nas redações dos jornais, todos sabiam que no outro dia Zero Hora tinha novidades exclusivas sobre o sequestro dos uruguaios. Mas nesse mesmo "outro dia" a redação parecia um velório. Na face de cada um, a máscara da tristeza. Em cada gesto, um total desânimo. A tal matéria-bomba não saíra. Folha de S.Paulo e O Globo publicaram. E com chamada de capa. Parece até que nós havíamos comprado a matéria para garantir sua ausência nos jornais do Rio Grande do Sul. Zero Hora deu no dia seguinte ao dia seguinte. Provavelmente porque a responsabilidade, na ótica de quem vetou, seria de quem divulgou primeiro.

Não parece, mas a história narrada pela imprensa é uma lenta,

articulada sucessão de dias que se sucedem, um dia seguinte ao outro. O

fio caprichoso que une fatos, cenas, pessoas e motivações variadas acaba

tecendo o relato que define tempos, homens e biografias. Mais cedo ou

221

Page 222: VOLUME 1 - GOLPE

mais tarde, apesar dos atos de força, dos surtos de violência, das vacilações

de caráter e das razões subjacentes e subalternas de uns e outros, a verdade

acaba aflorando e prevalecendo.

A mesma imprensa que hesita, vacila e tropeça pode, no dia

seguinte, reparar erros, remediar falhas, recontar momentos e resgatar a

ética de sua função essencial – contar o que é, por que é, como é.

A crônica de máximas e mínimas da imprensa brasileira – antes,

durante e depois do golpe de 1964 – mostra que sempre há o dia seguinte.

Contra todas as previsões, nossa obrigação é lembrar e contar.

Não importa o tamanho da treva, o sufoco do tempo, o chumbo

do ar, a força da ventania.

Sempre haverá o dia seguinte.

O dia para lembrar. E contar.

222

Page 223: VOLUME 1 - GOLPE

CRONOLOGIA

O RIO GRANDE DO SUL E O GOLPE CIVIL-MILITAR*

Graciene de ÁvilaMarcos Machry

Mariana Ferreira e SilvaMarla Barbosa Assumpção**

O golpe civil-militar brasileiro insere-se dentro de um processo

que articula, dialeticamente, as questões internacionais e nacionais.

Contudo, nesta cronologia, buscamos, sem desprezar de forma alguma o

contexto global do período, sistematizar os fatos mais importantes

ocorridos no Brasil e, sobretudo, no Rio Grande do Sul. A compreensão

dos fenômenos ocorridos no estado, por sua vez, vem se revelando cada

vez mais essencial em qualquer trabalho com a pretensão de compreender

o contexto geral da ditadura militar.

Desde a eleição de Brizola para governador, passando pela

Campanha da Legalidade, até o exílio de João Goulart, encontramos

inúmeros indícios que comprovam o protagonismo gaúcho no desenrolar

dos acontecimentos que culminaram com o primeiro de abril de 1964. O

Rio Grande do Sul esteve no proscênio dos acontecimentos do período,

no qual atuaram boa parte dos atores principais e secundários do processo

histórico: tivemos aqui do presidente deposto a cinco ditadores do regime

(três deles nasceram no estado, mas todos estudaram por algum período

no Colégio Militar de Porto Alegre).

* É importante destacar que as cronologias dos quatro volumes complementam-se entre si. ** Graduandos em História/UFRGS.

223

Page 224: VOLUME 1 - GOLPE

Na elaboração desta cronologia, contudo, surgiram algumas

dificuldades que devem ser mencionadas. De um lado, dispúnhamos de

uma enorme quantidade de informações espalhadas em diversas fontes

sobre os acontecimentos de âmbito nacional – o que também implicava

na árida sistematização e hierarquização do material; por outro lado, no

caso do Rio Grande do Sul, oscilávamos entre a abundância e a escassez

de referências sobre determinados fatos, normalmente dispersos e

fragmentados em diversos objetos de pesquisa. Esses obstáculos,

contudo, evidenciam a importância desta contribuição para a

organização dos fatos, que podem ajudar no desenvolvimento de outras

pesquisas sobre o golpe civil-militar nas diversas esferas (estadual,

nacional e até mesmo internacional, como vemos com a Operação

Condor, por exemplo).

Como foi citado acima, diferentemente dos acontecimentos

nacionais que pudemos recorrer à extensa bibliografia existente, no caso

do contexto do golpe no Rio Grande do Sul, foi preciso garimpar outros

materiais. A pesquisa no jornal Última Hora, que apoiava o governo João

Goulart e que foi extinto logo após o golpe, foi essencial para

localizarmos e datarmos os fatos pertinentes ao referido período no

estado. Esta fonte, conjuntamente com material encontrado na Internet

(sites de universidades, centros de pesquisa, etc.) e com os trabalhos

acadêmicos surgidos recentemente, foi fundamental na elaboração de

todo esse trabalho, o qual certamente não se encerra com este breve

levantamento.

224

Page 225: VOLUME 1 - GOLPE

CRONOLOGIAOs fatos referentes às questões do

Rio Grande do Sul encontram-se em itálico.

1958

1959

1960

OutubroBrizola, do PTB, é eleito com 55% dos votos, derrotando Walter Peracchi Barcelos, do PSD. Vence as eleições com importante apoio do Partido de Representação Popular (PRP).

Março

Maio

O candidato à presidência Jânio Quadros integra uma comissão que visita Cuba a convite de Fidel Castro.

Através do Decreto nº 10.466, o governador Leonel Brizola, pelo valor simbólico de um cruzeiro, adquire os contratos de concessão e declara de utilidade pública, para fins de fins de desapropriação, os bens aplicados pela Companhia Energia Elétrica Rio - Grandense (capital estadunidense), nos serviços de eletricidade de Porto Alegre e Canoas.

3

11

Page 226: VOLUME 1 - GOLPE

Outubro

Dezembro

Agosto

Jânio Quadros é eleito presidente pela UDN, com 5,6 milhões de votos. João Goulart é eleito vice-presidente pelo PTB, com 4,5 milhões de votos.

João Goulart visita países do Leste Europeu e da Ásia, com ênfase na China, de onde recebeu um convite oficial do presidente Mao Zedong.

Na Conferência de Punta del Este, a delegação diplomática brasileira defende a permanência de Cuba na OEA, enfrentando dura oposição dos Estados Unidos.

Ernesto Che Guevara, ministro da Indústria e do Comércio de Cuba, recebe do presidente Jânio Quadros a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, condecoração honrosa entregue a líderes estrangeiros.

Jânio Quadros renuncia, sete meses depois de assumir a presidência, alegando sofrer pressão de "forças ocultas".

Com a renúncia de Jânio Quadros, diante dos movimentos golpistas, o governador gaúcho Leonel Brizola começa a "rede da legalidade" para permitir a posse do vice-presidente João Goulart. Utiliza a Rádio Guaíba, instalada no porão do palácio do governo gaúcho, visando a transmitir discursos para vários estados, chamando as pessoas a defenderem a posse de Jango. A Campanha da Legalidade espalha-se pelo país, tendo grande participação da população. A pressão leva o Congresso a aprovar a emenda constitucional que instala o parlamentarismo e permite a volta de Jango.

É sancionada a Lei nº 4.073, de Retomada dos Serviços Telefônicos, que autoriza a criação da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT). A companhia, no entanto, será oficialmente constituída em 8 de março de 1962.

3

30

5

19

25

26

1961Janeiro

Jânio Quadros tomou posse como presidente do Brasil.31

Page 227: VOLUME 1 - GOLPE

O presidente interino, Ranieri Mazzilli, comunica ao presidente do Congresso Nacional que os ministros militares manifestaram a "absoluta inconveniência" do regresso do vice-presidente João Goulart ao país.

28

1

2

7

25

23

24

Setembro

Outubro

Novembro

João Goulart chega a Porto Alegre via Uruguai.

O Congresso Nacional aprova a emenda parlamentarista que retira o efetivo poder do cargo de presidente e o transfere para o de primeiro-ministro.

João Goulart assume o cargo de presidente da República no regime parlamentarista e diz ser o guardião da união nacional e o responsável pelo não derramamento de sangue no país.

A Frente de Libertação Nacional é criada por um grupo de políticos nacionalistas que defendem a legalidade, o controle do capital estrangeiro e o confisco de fortunas ilícitas. O movimento terminou depois das eleições de outubro de 1962.

O Brasil restabelece relações diplomáticas com a URSS.

1962Janeiro

Na Conferência de Punta del Este, o Brasil, como outros países latino-americanos, mantém uma posição de neutralidade em relação a Cuba: ao mesmo tempo em que não aceita as medidas punitivas propostas pelos EUA, abstêm-se na votação sobre a suspensão do país da Organização dos Estados Americanos (OEA). Cuba acaba sendo expulsa.

Page 228: VOLUME 1 - GOLPE

2

1

26

3

Fevereiro

Maio

Junho

Setembro

Outubro

É criado o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), formado por grupos empresariais, com o objetivo de combater a "ameaça comunista" no governo Goulart.

Ao discursar em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, Jango apresenta o Plano de Reformas de Base.

PSD e PTB rompem por divergências a respeito da reforma agrária.

Entra em vigor a Lei da Remessa de Lucros para o Exterior, importante medida proposta por João Goulart e defendida por setores nacionalistas.

Ildo Meneghetti vence as eleições no Rio Grande do Sul. A divisão no PTB, entre Alberto Pasqualini e Fernando Ferrari, acaba favorecendo a oposição. O novo governador renova a aliança entre conservadores e liberais.

6

1963Janeiro

É realizado o plebiscito para a escolha do regime político. Em torno de 82% dos eleitores escolhem o presidencialismo. Com essa mudança, acirram-se as disputas entre os grupos que apoiam João Goulart e os que são contrários ao seu governo.

7

Page 229: VOLUME 1 - GOLPE

12

29

Setembro

Novembro

Dezembro

Cabos, sargentos e suboficiais da Marinha e da Aeronáutica revoltam-se depois da confirmação, pelo Supremo Tribunal Federal, da impossibilidade de sargentos assumirem mandatos nos órgãos do poder Legislativo.

Leonel Brizola propõe a organização dos "Grupos de 11 Companheiros" ou "Comandos Nacionalistas" para defender a democracia e resistir a qualquer tentativa de golpe. Brizola entrega a coordenação nacional do Grupo a Herbert de Souza, o "Betinho".

Plínio Cabral, chefe da Casa Civil do governo de Ildo Meneghetti, denuncia um suposto golpe, articulado pelas forças de esquerda, contra o governo do estado. O golpe deveria acontecer no início de janeiro. A notícia teve repercussão nacional e fez com que a Assembleia Legislativa convocasse uma sessão extraordinária.

2

4

7

1964Janeiro

Plínio Cabral concede entrevista à imprensa, falando da iminência do golpe. Fernando Gay da Fonseca (Secretaria do Interior) e o general Amaro da Silveira (Secretaria de Justiça e Segurança Pública) são demitidos.

O Partido Democrata Cristão (PDC), base aliada de Ildo Meneghetti, cogita romper com o governador. Alegam que este "precisa se libertar", pois, segundo o PDC, há um grupo por trás de Ildo que está comandando suas ações.

O Partido Liberal (PL) denuncia a ingerência de um "grupo íntimo" no governo de Meneghetti. Dizem que Plínio Cabral é o "agente executivo" desse grupo que passa a governar o estado.

Page 230: VOLUME 1 - GOLPE

24

13

19

25

30

31

1

João Goulart regulamenta a Lei de Remessa de Lucros para o Exterior.

Cerca de 200 mil pessoas reúnem-se para assistir ao discurso do presidente João Goulart no Comício da Central do Brasil.

A despeito dos votos contrários das bancadas do PTB, do Movimento Trabalhista Renovador (MTR) e da Aliança Republicana Socialista (ARS), foi aprovada, em plenário, uma manifestação de solidariedade da Assembleia gaúcha ao Congresso Nacional. O Legislativo nacional afirmou que, se o presidente continuasse governando por decretos, fecharia o Congresso.

500 mil pessoas reúnem-se na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, contra Jango, em São Paulo.

Marinheiros comparecem a uma reunião do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, contrariando a ordem do ministro da Marinha, Silvio Mota. Foi emitida ordem de prisão para os organizadores do evento, mas Jango proíbe a invasão do local. Tudo isso provoca o pedido de demissão de Sílvio Mota. Os revoltosos são anistiados por Goulart.

João Goulart discursa para cerca de 5 mil sargentos e suboficiais no Automóvel Clube do Brasil. As entidades componentes do Secretariado da Ação Católica da Arquidiocese de Porto Alegre lançam manifesto de apoio às reformas de base de João Goulart.

Inicia-se o golpe civil/militar contra o presidente João Goulart.

Março

Abril

A cidade gaúcha de São Francisco de Paula reúne 5 mil pessoas de diversos municípios da região em protestos contra João Goulart. Vários partidos de direita estão na organização desta manifestação.

Porto Alegre transforma-se em um reduto trabalhista e de apoio a Jango. Duas mil pessoas fazem comício pela legalidade em frente à sede do governo. Ildo Meneghetti isola o Palácio Piratini e, em seguida, transfere a capital do estado para Passo Fundo.

19

30

Page 231: VOLUME 1 - GOLPE

As entidades estudantis do estado se manifestam contra o golpe.

Cerca de mil estudantes tomam a rádio da UFRGS para participar da campanha pela legalidade. As faculdades e

institutos da universidade entram em greve, juntando-se, assim,

aos estudantes na luta contra o golpe.

É incendiada a sede da UNE, na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro.

2

3

9

10

Ao sair de Brasília, Jango chega a Porto Alegre, onde concede entrevista coletiva à imprensa gaúcha, afirmando ainda ser o presidente do Brasil. Após reunir-se com os militares do III Exército, percebe que não terá o apoio necessário para resistir ao golpe. Parte às 11 horas e 45 minutos no avião presidencial Viscount para o exílio em Montevidéu.

O presidente do Congresso Nacional, Auro Moura Andrade, declara vaga a presidência da República, mesmo sabendo que João Goulart encontrava-se no país. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assume a presidência.

Deputados da Ação Democrática Popular (ADP) e das bancadas do PSD e do PL vão à tribuna da Assembleia gaúcha referenciar as Forças Armadas. Os deputados da oposição fazem duras críticas à intervenção dos militares, acusando-os de depor um presidente constitucionalmente eleito.

O jornal Última Hora, defensor da legalidade, é sabotado e não circula neste dia.

É decretado o Ato Institucional nº 1, que permite, mediante investigação sumária, demissão, disponibilidade ou aposentadoria dos que "houvessem atentado contra a Segurança do País". Além disso, confere ao presidente da República a faculdade de suspender direitos políticos e cassar mandatos legislativos. Juntamente com o ato, seguem listas contendo a suspensão de direitos políticos de cidadãos, cassação de mandatos de membros do Legislativo, de cargos executivos e transferência de militares para a reserva.

A UnB é invadida por soldados da Polícia Militar de Minas Gerais; 17 professores e alguns estudantes são levados para "depor"; os professores ficam presos por vários dias.

Armando Temperani Pereira, deputado federal do PTB e professor da Faculdade de Economia da UFRGS, tem seus direitos políticos cassados, sendo, por isso, também expurgado da universidade.

1

1

1

2

3

9

Page 232: VOLUME 1 - GOLPE

11

14

21

O Congresso elege, indiretamente, o general Castelo Branco para a Presidência. São instaurados, em todo o país, os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para enquadrar aqueles considerados adversários do regime.

Marino dos Santos, da ARS, é o primeiro deputado estadual a ter o mandato cassado no Rio Grande do Sul.

Ildo Meneghetti expurga 48 oficiais da Brigada Militar, acusados de apoiarem Brizola e serem contrários ao golpe militar.

Têm seus mandatos cassados e seus direitos políticos suspensos por 10 anos os seguintes deputados estaduais do PTB: Antônio Simão Visintainer, Beno Orlando Burmann, João Caruso Scuderi, José Lamaison Porto, Justino da Costa Quintana, Rubens Dario Porciúncula, Sereno Chaise (também prefeito de Porto Alegre) e Wilson Vargas da Silveira. No mesmo dia, todos foram presos na própria Assembleia, com exceção de Beno Burmann, que não se encontrava no local.

Professores da UFRGS são expurgados: Antônio de Pádua F. da Silva e Cibilis da Rocha Viana, ambos da Faculdade de Economia, e Antônio Ajadil de Lemos, da Faculdade de Direito.

Célio Marques Fernandes assume a prefeitura de Porto Alegre.

22 Visita do general Castelo Branco ao Rio Grande do Sul.

Maio

7

9

24

Setembro

Intensifica-se a política de expurgos na UFRGS. Até o final da "Operação Limpeza" serão afastados: Antônio Ajadil de Lemos, Brasil Rodrigues Barbosa (Direito); Antônio Santos Flores (Medicina); Antônio Pádua Ferreira da Silva, Armando Temperani Pereira (Economia), Cibilis da Rocha Viana e Claudio Francisco Accurso (Economia); Ernani Maria Fiori (Filosofia); Luiz Carlos Pinheiro Machado (Agronomia e Veterinária); Luiz Fernando Corona (Belas-Artes); Demétrio Ribeiro, Edgar Albuquerque Graeff, Edvaldo Pereira Paiva, Enilda Ribeiro e Nelson Souza (Faculdade de Arquitetura); na Faculdade de Direito de Pelotas – na época vinculada à UFRGS – são expurgados Appio Claudio de Lima Antunes e Hugolino de Andrade Uflacker.

7

Page 233: VOLUME 1 - GOLPE

9

Novembro

Sancionada a Lei nº 4.464 (Lei Suplicy), proibindo atividades políticas estudantis. A Lei Suplicy de Lacerda coloca na ilegalidade a UNE e as Uniões Estaduais de Estudantes (UEEs), que passam a atuar na clandestinidade. Todas as instâncias da representação estudantil ficam submetidas ao Ministério da Educação e Cultura (MEC).

13

13

9

27

1965Março

Abril

Junho

Intelectuais assinam um manifesto, pedindo liberdade e democracia. Luta-se, igualmente, por anistia aos perseguidos políticos.

Renato Sousa assume a prefeitura de Porto Alegre.

Célio Marques Fernandes assume novamente a prefeitura de Porto Alegre.

O MEC firma com uma agência norte-americana, a United States Agency for Internatinal Development, um acordo que previa a transformação das universidades estaduais brasileiras em fundações privadas. Foi o acordo MEC-USAID, que estabelecia a cobrança de matrículas em universidades até então gratuitas.

Prisão dos integrantes do Movimento Nacional Revolucionário que tentaram fazer um levante armado na cidade de Três Passos e Tenente Portela. Aqueles do grupo que não haviam sido detidos lançaram, posteriormente, o Movimento 26 de março (MR-26), em homenagem ao coronel Jefferson Cardim Osório, que estava preso e havia sido submetido a torturas. Este novo grupo esteve presente em ações armadas em Porto Alegre.

Page 234: VOLUME 1 - GOLPE

16

27

24

5

5

Cerca de dois mil estudantes protestam nas ruas de Porto Alegre contra a ditadura.

Castelo Branco edita o Ato Institucional nº 2, que extingue os partidos políticos e cassa seus registros. Além disso, o ato acaba com as garantias constitucionais de estabilidade, vitaliciedade, inamovibilidade e possibilita a decretação do estado de sítio.

Ato Complementar nº 4 institui o bipartidarismo, criando a ARENA, governista, e o MDB, vinculado à oposição.

O Ato Institucional n° 3 termina com as eleições diretas para governadores e prefeitos das capitais.

IPM, iniciado no Quartel General da 3ª Região Militar, em Porto Alegre, indicia 15 réus acusados de articularem um plano de contragolpe liderado por Brizola, a partir do exílio. O contragolpe seria supostamente deflagrado por membros da Brigada Militar e do Exército gaúcho.

Setembro

Outubro

Novembro

1966Fevereiro

Março

Na primeira eleição indireta para o estado, o governador Ildo Meneghetti, que havia sido mantido no cargo pelos militares, indica como candidato o coronel da Brigada Walter Peracchi Barcelos. Para garantir sua eleição na Assembleia estadual, a ditadura não hesitou em cassar deputados da oposição, garantindo a maioria à bancada governista.

25

Page 235: VOLUME 1 - GOLPE

7

19

7

24

3

12

28

2º Festival da Música Popular no Rio Grande do Sul.

Show de Chico Buarque em Porto Alegre.

O Ato Institucional n° 4 obriga o Congresso Nacional a votar o projeto da nova Constituição em um curto período de tempo.

É encontrado no Rio Jacuí – perto da Ilha das Flores –, com as mãos amarradas às costas, o corpo do preso político Manoel Raimundo Soares, ex-sargento do Exército. Ele havia sido preso e torturado pelo DOPS dias antes de sua morte.

Eleições indiretas para presidente e vice no Congresso Nacional elegem, respectivamente, Arthur da Costa e Silva e Pedro Aleixo. A bancada do MDB, como forma de protesto, retira-se da votação.

Castelo Branco fecha o Congresso Nacional.

A Frente Ampla lança um manifesto em que exige a restauração do regime democrático. Este movimento civil de oposição ao regime militar reúne Carlos Lacerda, ex-governador da Guanabara, e os ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek.

Maio

Novembro

Dezembro

Agosto

Outubro

Constituição de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar as circunstâncias que motivaram a morte do ex – sargento do Exército Nacional, Manoel Raimundo Soares, bem como o tratamento dispensado aos presos políticos, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Presidente da Assembleia: Alfredo Hofmeister (Arena). Membros da CPI: Ayrton Barnasque, Presidente; Porcínio Pinto (Arena), pela Mesa Diretora, Vice – Presidente; Antônio Fornari, Relator, pela Arena; Walter Bertolucci, Lidovino Fanton, pelo Modebrás; Hed Borges e Gudbem Castanheira pela Arena.

31

3 Eleição de Walter Peracchi Barcelos para o governo do estado.

Setembro

Page 236: VOLUME 1 - GOLPE

7 Castelo Branco sanciona a Lei de Imprensa com o objetivo de punir os meios de comunicação e os jornalistas contrários ao regime militar.

Fevereiro

24 É promulgada a nova Constituição.

11

3

11

15

Março

Abril

Julho

Outubro

Castelo Branco edita a nova Lei de Segurança Nacional.

Término da guerrilha do Caparaó; oito militantes políticos são presos.

1º Festival Sul-Brasileiro da Canção Popular no Teatro Leopoldina.

Entra em vigor a nova Constituição. O general Costa e Silva assume a Presidência.

29 Plebiscito dos estudantes sobre intervenção da reitoria no DCE da UFRGS.

1967

14

Maio

É promulgada a nova Constituição do estado do Rio Grande do Sul, sob a coordenação do presidente da Assembleia Legislativa, deputado Carlos Santos (MDB), primeiro “homem de cor“ eleito para o cargo. A representação do MDB ainda possuía a maioria das cadeiras no Legislativo, o que permitiu a aprovação da proposta do deputado Pedro Simon (MDB) para que fosse retirada a emenda que criava o cargo de vice – governador. A medida garantiu que, em caso de ausência do governador do estado,o presidente da Assembleia deveria assumir tal função. Alguns dias depois, devido a uma viagem de Peracchi Barcelos, o deputado Carlos Santos assume o governo do estado, que pela primeira era chefiado por um homem negro.

13 João Goulart, no exílio, convoca um grupo de prefeitos, vereadores e correligionários políticos, a fim de instruí-los na organização da Frente Ampla no Rio Grande do Sul.

Page 237: VOLUME 1 - GOLPE

FONTES

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Bauru/SP: Edusc, 2005.

ARQUIDIOCESE de São Paulo. Brasil: Nunca Mais. 11. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985.

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

CASTRO, Celso; SOARES, Gláucio Ary Dillon; D'ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

______. Os anos de chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

______. A volta aos quartéis: a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.

GUTIÉRREZ, Cláudio Antônio Weyne. A guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999.

HOLZMANN, Lorena; PADRÓS, Enrique (orgs.). 1968: contestação e utopia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2003.

HOLZMANN, Lorena et al (orgs.). Universidade e repressão: os expurgos na UFRGS. Porto Alegre: L&PM, 2008.

KÜHN, Fábio. Breve história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Leitura XXI, 2007.

PADRÓS, Enrique Serra. O Rio Grande do Sul e a conexão repressiva no Cone Sul: do exílio brasileiro no Uruguai ao voo rasante da Operação

237

Page 238: VOLUME 1 - GOLPE

RODEGHERO, C. S. Regime militar e oposição no Rio Grande do Sul. In: GERTZ, René; GOLIN, Tau; BOEIRA, Nelson (orgs.). História Geral do Rio Grande do Sul – República: da Revolução de 1930 à ditadura militar (1930-1985). Passo Fundo/RS: Méritos, 2007. v. 4. p.83 -112.

Assembleia Legislativa do RS. Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar as circunstâncias que motivaram a morte do ex – sargento do Exército Nacional, Manoel Raimundo Soares, bem como o tratamento dispensado aos presos políticos. Porto Alegre/RS, 1966.

JORNAIS

Correio do PovoÚltima HoraZero Hora

SITES

<http://www.al.rs.gov.br><http://www.cpdoc.fgv.br><http://www.fgv.br/><http://www.folha.uol.com.br/><http://www.fpabramo.org.br><http://www.institutojoaogoulart.org.br/jango3atos/><http://www.revistadehistoria.com.br><http://www.senado.gov.br/sf/><http://www.torturanuncamais-rj.org.br><http://www.ufmg.br><http://www.ufrj.br>

238

Page 239: VOLUME 1 - GOLPE

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAA Alianza Anticomunista Argentina

ABI Associação Brasileira de Imprensa

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados

ADiex Adidos do Exército

ADIAer Adidos da Aeronáutica

ADIDAL Adidos da Marinha

ADP Ação Democrática Popular

AEP Associação de Educadores e Pesquisadores

AI Ato Institucional

AI-1 Ato Institucional N° 1

AI-5 Ato Institucional N° 5

AID Agência Internacional de Desenvolvimento

ALN Ação Libertadora Nacional

AP Ação Popular

ARENA Aliança Renovadora Nacional

ARI Associação Rio-Grandense de Imprensa

ARS Aliança Republicana Socialista

CADA Comisión Administradora de Abastos de Carne

CBA Comitê Brasileiro pela Anistia

CCC Comando de Caça aos Comunistas

CEEE Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense

CEJIL Centro pela Justiça e o Direito Internacional

CELAM Conferência Episcopal Latino-americana

239

Page 240: VOLUME 1 - GOLPE

CEMPD Comissão Especial Mortos e Desaparecidos Políticos

CENIMAR Centro de Informações da Marinha

CFMD Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos

CGIOR Centro Geral de Instrução para Oficiais da Reserva

CGT Comando Geral de Trabalhadores

CIA Agência Central de Inteligência

CIDE Comisión de Inversiones y Desarrollo Económico

CIDH Comissão Interamericana de Direitos Humanos

CIE Centro de Informações do Exército

CIEx Centro de Informações do Exterior

CISA Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica

CLT Consolidação das Leis do Trabalho

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

CNT Convención Nacional de Trabajadores

COLINA Comando de Libertação Nacional

COPESNI Comando Operacional do Serviço Nacional de Informações

CRT Companhia RioGrandense de Telecomunicações

CUTR Central Única dos Trabalhadores

DCE Diretório Central de Estudantes

DEOPS Departamento Estadual de Ordem Política e Social

DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos

Socioeconômicos

DINA Dirección de Inteligencia Nacional

DNII Dirección Nacional de Información y Inteligencia

240

Page 241: VOLUME 1 - GOLPE

DOI-CODI Destacamento de Operações de Informações – Centro de

Operações de Defesa Interna

DOPS Departamento de Ordem Política e Social

DSI Divisão de Segurança e Informações

DSN Doutrina de Segurança Nacional

DVS Destaque para Votação em Separado

EC Emenda Constitucional

ELN Ejército de Libertación Nacional

ENE Encontro Nacional de Estudantes

ERP Ejército Revolucionario del Pueblo

ESG Escola Superior de Guerra

ESMA Escuela de Mecánica de la Armada

EsNI Escola Nacional de Informações

EUA Estados Unidos da América

FA Forças Armadas

FARP Forças Armadas Revolucionárias do Povo

FAU Federación Anarquista Uruguaya

FBT Fração Bolchevique Trotskista

FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor

FEUU Federación de Estudiantes Universitários del Uruguay

FIDEL Frente Izquierdista de Liberación

FUSNA Fusileros Navales

GAU Grupos de Acción Unificadora

IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática

241

Page 242: VOLUME 1 - GOLPE

IBASE Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas

IEPES Instituto de Estudos Políticos e Sociais

IML Instituto Médico Legal

IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais

IPM Inquérito Policial-Militar

ITT Internacional Telephone and Telegraph

JAC Juventude Agrária Católica

JCR Junta Coordenadora Revolucionaria

JEC Juventude Estudantil Católica

JIC Juventude Independente Católica

JID Junta Interamericana de Defesa

JOC Juventude Operária Católica

JUC Juventude Universitária Católica

JUP Juventud Uruguaya de Pie

LCF Lei Complementar Federal

LSN Lei de Segurança Nacional

MASTER Movimento dos Agricultores Sem Terra

MDB Movimento Democrático Brasileiro

ME Movimento Estudantil

MEC Ministério da Educação e Cultura

MFPA Movimento Feminino pela Anistia

MIR Movimiento de Izquierda Revolucionario

MJDH Movimento de Justiça e Direitos Humanos

MLN-T Movimiento de Liberación Nacional – Tupamaros

242

Page 243: VOLUME 1 - GOLPE

MNR Movimento Nacionalista Revolucionário

MPB Música Popular Brasileira

MR-26 Movimento Revolucionário 26 de Março

MR-8 Movimento Revolucionário 8 de Outubro

MRO Movimiento Revolucionario Oriental

MRT Movimento Revolucionário Tiradentes

MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra

MTR Movimento Trabalhista Renovador

MUC Movimento Universidade Crítica

M3G Marx, Mao, Marighella e Guevara

OAB Ordem dos Advogados do Brasil

OBAN Operação Bandeirantes

OCOA Organismo Coordinador de Operaciones Antisubversivas

OEA Organização dos Estados Americanos

OIT Organização Internacional do Trabalho

OLAS Organização Latino-Americana pela Solidariedade

ONU Organização das Nações Unidas

OPEP Organização dos Países Exportadores de Petróleo

OPP Organização Pré-Partidária

OPR-33 Organización Popular Revolucionária – 33 Orientales

ORM-POLOP Organização Revolucionária Marxista – Política Operária

PEC Proposta de Emenda à Constituição

PL Partido Liberal

POC Partido Operário Comunista

243

Page 244: VOLUME 1 - GOLPE

PCB Partido Comunista Brasileiro

PCdoB Partido Comunista do Brasil

PCBR Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

PCU Partido Comunista Uruguayo

PDC Partido Democrata Cristão

PDS Partido Democrático Social

PDT Partido Democrático Trabalhista

PFL Partido da Frente Liberal

PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro

POC Partido Operário Comunista

POLOP Política Operária

PPS Partido Popular Socialista

PRP Partido de Representação Popular

PRT Partido Revolucionario de los Trabajadores

PSB Partido Socialista Brasileiro

PSD Partido Social Democrático

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PT Partido dos Trabalhadores

PTB Partido Trabalhista Brasileiro

PUC Pontifícia Universidade Católica

PP Partido Popular

PVP Partido por la Victoria del Pueblo

RBS Rede Brasil Sul de Comunicação

ROE Resistencia Obrera Estudantil

244

Page 245: VOLUME 1 - GOLPE

SEDH Secretaria Especial de Direitos Humanos

SEEB Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários

SID Servicio de Inteligencia de Defensa

SIJAU Secretariado Internacional de Juristas por la Amnistía en el

Uruguay

SN Segurança Nacional

SNI Serviço Nacional de Informações

SOPS Seção de Ordem Política e Social

STM Superior Tribunal Militar

TDE Terror de Estado

TFP Tradição, Família e Propriedade

TSE Tribunal Superior Eleitoral

245

Page 246: VOLUME 1 - GOLPE
Page 247: VOLUME 1 - GOLPE

DEPUTADOS ESTADUAIS DO RIO GRANDE DO SUL

CASSADOS (1964-1966)

ANEXO I

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)

Álvaro Petracco da CunhaEm 8 de julho de 1966 teve cassado o mandato e direitos políticos por 10 anos, de acordo com o artigo 15 do Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, e comunicado pelo Sr. Presidente desta Casa, em sessão plenária de 8 de julho de 1966.

Antônio Simão VisintainerCassado em 7 de junho de 1966.

Beno Orlando BurmannEm 12 de maio de 1964 teve cassado seu mandato de deputado estadual pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

Hélio Ricardo Carneiro da FontouraEm 8 de julho de 1966 teve cassados o mandato e direitos políticos por dez anos, de acordo com o artigo 15 do Ato Institucional nº 2 de 27 de outubro de 1965, e comunicação do Sr. Presidente desta Casa em Sessão Plenária de 8 de julho de 1966.

João Caruso ScuderiPresidente do PTB. Em 11 de maio de 1964, teve cassado seu mandato de deputado estadual, pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

José Lamaison PortoEm 11 de maio de 1964, teve cassado o seu mandato, pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

247

Page 248: VOLUME 1 - GOLPE

Justino da Costa QuintanaEm 11 de maio de 1964, teve seu mandato cassado pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

Rubens Dario PorciúnculaEm 11 de maio de 1964, foi cassado seu mandato de deputado.

Seno Frederico LudwigCassado em 19 de julho de 1966 (deputado suplente).

Sereno ChaiseEm 1º de janeiro de 1964 assumiu a prefeitura de Porto Alegre. Em 7 de maio de 1964 foi cassado pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

Wilmar Corrêa TabordaEm 21 de julho de 1966, lhe foi cassado o mandato parlamentar e suspenso seus direitos políticos por dez anos, de conformidade com o decreto do Senhor Presidente da República de 16 de julho do corrente ano, e comunicação do Senhor Presidente da Assembleia Legislativa, nesta data.

Wilson Vargas da SilveiraEm 11 de abril de 1964, foi cassado seu mandato de deputado estadual pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.

Movimento Trabalhista Renovador (MTR)

Cândido Norberto dos SantosCassado em 21 de julho de 1966.

Osmar LautenschleigerCassado em 19 de julho de 1966.

Aliança Republicana Socialista (ARS)

Marino Rodrigues dos SantosCassado em 14 de abril de 1964.

248

Page 249: VOLUME 1 - GOLPE

Cassados em 14 de abril de 1964, os suplentes:

Carlos Lima AvelineAlberto SchroetterJorge Alberto CampezattoOttomar Ataliba Dillemburg

Cassados em 7 de maio de 1964, os suplentes:

Edson MedeirosJair de Moura CalixtoFloriano Maia d'ÁvilaNelson Amorelli ViannaGuilherme do Valle TonniguesBruno SegallaFúlvio PetracoVicente Martins RealCarlos Moraes Rodrigues - Entre 29 de agosto a 19 de setembro de 1963 e 25 de maio a 27 de maio de 1964 assumiu a vaga de Marino Rodrigues dos Santos. Em 8 de julho de 1966 foi cassado de acordo com o artigo 15 do AI-2.

FONTES

RIO GRANDE DO SUL. Assembleia Legislativa. Parlamentares gaúchos: das cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). Porto Alegre: Assembleia Legislativa, 1996. p.155-157.

<http://www.al.rs.gov.br/biblioteca/legislaturas.asp>

249

Page 250: VOLUME 1 - GOLPE
Page 251: VOLUME 1 - GOLPE

GRANDE EXPEDIENTE 45 ANOS DO GOLPE – 31 DE MARÇO DE 2009

ANEXO II

O SR. ADROALDO LOUREIRO (PDT) – Sr. Presidente, Sras. e Srs.

Deputados:

Saúdo o diretor do Instituto João Goulart, Sr. Christopher

Goulart, neto do saudoso presidente Jango; o subchefe da Casa Militar,

tenente-coronel Marco Antônio Quevedo, neste ato representando o

governo do estado; o representante do Sr. Procurador-Geral de Justiça,

promotor e caro conterrâneo Victor Hugo de Azevedo Neto; o vice-

prefeito de Porto Alegre, Sr. José Fortunati, ex-deputado desta Casa; o

ex-deputado estadual e ex-líder do governo João Goulart na Câmara dos

Deputados, Sr. Ney Ortiz Borges; o presidente da CGTEE e ex-prefeito

cassado de Porto Alegre, Sr. Sereno Chaise; a cara companheira

Miguelina Vecchio, que nesta solenidade representa o nosso glorioso

PDT; o representante da Ajuris, Sr. Rinez da Trindade; o representante

do Ministério Público Estadual, Sr. Marcelo Lemos; o representante da

CUT, Sr. Celso Woyciechowski; o presidente do PCdoB, Sr. Adalberto

Frasson, e o líder da bancada do PDT na Câmara Municipal de Porto

Alegre, vereador Mauro Zacher.

Saúdo também o ex-deputado federal e caro amigo Wilson

Müller Rodrigues; os companheiros Carlos Alberto Tejera de Ré e João

Alexandre Goulart, também neto do saudoso presidente João Goulart, e

251

Page 252: VOLUME 1 - GOLPE

o professor Nero Buralde, representante da Secretaria Municipal de

Educação.

Colegas deputadas e deputados, completam-se hoje 45 anos

desde que a terrível noite do arbítrio abateu-se sobre o Brasil e os

brasileiros.

Foi no dia 31 de março de 1964 que começou o movimento

golpista que derrubou o governo legalmente constituído do presidente

trabalhista João Goulart e instalou no país um regime autoritário que

perdurou longos anos, suprimindo direitos constitucionais, censurando a

imprensa, perseguindo, reprimindo e suspendendo as liberdades

democráticas.

O resgate da história e o esclarecimento dos fatos sobre a

caminhada do povo brasileiro, bem como sua luta e resistência, são

formas de dar consequência à nossa democracia – democracia esta que

não se realiza, não se afirma e não se alarga se estiver destituída de sua

própria memória.

Parafraseando o poeta Federico García Lorca, não há nada mais

vivo que uma recordação. Quem não aprofunda a compreensão de sua

história passada corre o risco de repeti-la no futuro. E o objetivo deste

grande expediente é exatamente este: lembrar sempre o doloroso fato

para que nunca mais aconteça.

O regime militar significou um profundo retrocesso no processo

democrático brasileiro: cassou mandatos, fechou o Congresso Nacional,

intimidou o poder Judiciário, reprimiu a mobilização dos trabalhadores

do campo e das cidades, tirou a estabilidade dos funcionários públicos,

estancou o amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso

no país e impediu a implantação das reformas institucionais pelo governo

João Goulart, que retomava as bandeiras do presidente Getúlio Vargas.

252

Page 253: VOLUME 1 - GOLPE

Os golpistas aproveitaram-se da crise política iniciada em 1961,

provocada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, quando o

governador gaúcho Leonel Brizola liderou o movimento pela legalidade,

garantindo a posse de João Goulart na presidência em um regime

parlamentarista. Foi no plebiscito de 1963 que o povo brasileiro,

comparecendo maciçamente às urnas, restabeleceu o regime

presidencialista, assegurando todos os poderes constitucionais ao

presidente João Goulart.

Sr. Presidente, dignas autoridades, quero aqui prestar uma

reverência ao grande e saudoso líder Leonel Brizola. Uma das maiores

vítimas do golpe militar de 64, foi cassado, exilado e confinado no

Uruguai pelo temor que tinham os golpistas de sua liderança e pela

possibilidade concreta de vir a ser eleito presidente do Brasil e, assim,

fazer as mudanças pelas quais o país tanto ansiava.

Leonel Brizola esteve aqui nesta Casa há cinco anos, quando

rememoramos os 40 anos do golpe militar. E foi esse o último ato público

do qual participou aqui no Rio Grande antes do seu falecimento.

Aproveito este momento para fazer um desagravo à memória de

Leonel Brizola, quando são divulgados pela imprensa relatórios de

conteúdo mentiroso, meramente difamatórios, querendo macular sua

imagem, mas apenas vêm confirmar que a ditadura, por meio do SNI,

espionava permanentemente a sua vida desde 1964. E o fez também após

a retomada democrática. Mas o povo brasileiro sabe que a honra do ex-

governador Leonel Brizola é inatacável.

Sr. Presidente, dignas autoridades, o governo Jango foi marcado

pela abertura às organizações sociais, aos movimentos populares de

estudantes e de trabalhadores. Suas prioridades eram as chamadas

reformas de base – agrária, tributária, educacional e eleitoral –, que até

hoje não foram efetivadas em nosso país.

253

Page 254: VOLUME 1 - GOLPE

No grande comício da Central do Brasil, no dia 13 de março de

1964, diante de mais de 150 mil pessoas, no Rio de Janeiro, Jango

decretou o monopólio das refinarias de petróleo, fortalecendo a

Petrobras, assinou a desapropriação de terras para fins de reforma agrária

e determinou o controle da remessa de lucros pelas empresas

multinacionais.

Essas atitudes arrojadas, de cunho nacionalista, somadas à

implantação do 13º salário para os trabalhadores, à limitação dos valores

dos aluguéis populares, à criação da Embratel e à garantia de

sindicalização aos trabalhadores rurais, desencadearam a ira dos

conservadores, do grande capital internacional, dos banqueiros, dos

latifundiários e a reação dos Estados Unidos, que, em coro com os

militares golpistas, pretextavam uma guinada do Brasil para um regime

socialista. Era a época da chamada Guerra Fria.

Farta documentação, senhoras e senhores, confirma que a 4ª

Frota Naval norte-americana se deslocava em direção à costa brasileira a

fim de dar suporte a um eventual ataque das tropas golpistas à capital

federal, o que poderia resultar num verdadeiro banho de sangue. E essa

foi uma das razões pelas quais o presidente Jango abdicou do

enfrentamento defendido por Leonel Brizola, então deputado federal

pelo Rio de Janeiro.

Para evitar uma guerra civil fratricida, Jango amargou longos 12

anos de exílio até sua morte, em 6 de dezembro de 1976, na Argentina.

Jango foi o único presidente do Brasil a ter de viver e morrer longe da

Pátria que ele tanto amava.

Mas o sacrifício pessoal do presidente Jango não foi suficiente

para aplacar a sanha odiosa dos golpistas. A ditadura foi, pouco a pouco,

endurecendo. Vieram o AI-5, a Lei de Segurança Nacional, o DOI-

254

Page 255: VOLUME 1 - GOLPE

CODI, os anos de chumbo, a violência, as perseguições, as prisões, a

tortura, os assassinatos, os desaparecimentos. O sangue generoso do povo

brasileiro manchou as ruas do país.

Heróis foram torturados e mortos. E surgiram outros heróis, os

da resistência, nos parlamentos, na Igreja Católica, através da CNBB –

sob a inspiração de Dom Hélder Câmara e do saudoso gaúcho dom

Aloísio Lorscheider –, e nos valorosos comitês pela anistia.

E, neste momento, permito-me homenagear o bravo

Movimento Feminino pela Anistia do Rio Grande do Sul. Guerreiras

como Lícia Peres, Mila Cauduro, Quita Brizola, Maria Flor Vieira, Enid

Backes e Lais Rocha, que lutaram incansavelmente para trazer de volta à

Pátria os exilados e para restaurar os direitos políticos e o regime

democrático, são dignas do nosso reconhecimento e de homenagens por

sua bravura e coragem.

Saúdo também aqueles que tombaram e aqueles que resistiram

na luta pela retomada da democracia no nosso país. E aqui quero fazer

referência ao meu caro professor Pádua, ao Dr. Sereno Chaise, que foi

cassado pelo arbítrio, e a Ney Ortiz Borges, que foi líder do governo João

Goulart na Câmara e que tem sua foto estampada no jornal Folha da

Tarde como um dos primeiros a serem cassados pela ditadura, juntamente

com Jango, Brizola e outras figuras. Todos eles merecem a nossa

homenagem na oportunidade em que promovemos esta rememoração

para aprender com o passado lições para o futuro.

Embora tenhamos, colegas deputados e deputadas, com sangue,

suor e lágrimas, restaurado o regime democrático, muitos fatos ainda não

foram devidamente esclarecidos. Dentre esses, permanecem obscuras as

circunstâncias sobre a morte do presidente João Goulart e também a

situação de 169 brasileiros desaparecidos no período. E a consolidação da

democracia passa necessariamente pelo resgate dessa página de nossa

memória histórica.

255

Page 256: VOLUME 1 - GOLPE

O relatório de uma subcomissão desta Assembleia Legislativa,

por mim coordenada, aponta fortes indícios de que o presidente Jango

veio a falecer após ingerir comprimidos adulterados, contendo

substâncias químicas mortíferas.

Graças à luta de muitos – com destaque para o Movimento de

Justiça e Direitos Humanos, coordenado pelo companheiro Jair

Krischke, e para o Instituto João Goulart, aqui representado e

coordenado por Christopher Goulart, neto do saudoso presidente, ao

lado de movimentos internacionais, vem a público farta documentação

sobre a famigerada Operação Condor, que unificava as ações dos órgãos

de repressão das ditaduras do Cone Sul, comprovadamente responsável

pelos assassinatos de muitas lideranças de oposição no Brasil, na

Argentina, no Paraguai, no Chile, na Bolívia e no Uruguai.

A revista Carta Capital, do último dia 18, estampa na sua capa

uma reportagem exclusiva sob o título "A obscura morte de Jango", em

que documentos inéditos da repressão reforçam a tese de assassinato do

presidente deposto pelo Golpe de 64.

Essa reportagem vem reforçar as conclusões da subcomissão

sobre os fortes indícios de que Jango morreu dentro da famigerada

Operação Condor e de que houve a participação da repressão do Brasil na

sua morte.

Jango foi anistiado pela Comissão de Anistia do Ministério da

Justiça em julgamento realizado em Natal, no Rio Grande do Norte, no

dia 15 de novembro de 2008. Mas a verdadeira anistia e o verdadeiro

tributo que devemos ao imortal presidente João Belchior Marques

Goulart é o esclarecimento das circunstâncias nebulosas da sua morte. Só

assim o digno presidente Jango terá efetivamente a sua memória

resgatada.

256

Page 257: VOLUME 1 - GOLPE

Temos buscado junto ao Ministério Público Federal, ao

Ministério da Justiça e à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da

Presidência da República viabilizar a oitiva daquele agente que ainda vive

e que está nos Estados Unidos, Frederick Latrash, porque Mario Neira

Barreiro, presidiário que está em Charqueadas, disse que quem trouxe o

veneno para matar Jango foi Latrash.

É também fundamental a imediata liberação, pelo governo

brasileiro, de todos os arquivos que ainda não foram revelados e que estão

junto às Forças Armadas e em outros lugares deste nosso país.

As famílias dos mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura,

merecem libertar suas memórias, que permanecem encarceradas nesses

arquivos.

O conhecimento da história, a plena consciência dos valores

democráticos e o respeito aos direitos humanos são a garantia de que a

tragédia daqueles anos de chumbo não se repetirão jamais no nosso país.

A seguir, ocupará esta tribuna o deputado Adão Villaverde, que

concluirá este nosso grande expediente em que rememoramos os 45 anos

do golpe militar.

Viva o Brasil! Viva a democracia e viva o povo brasileiro!

Muito obrigado.

O SR. PRESIDENTE IVAR PAVAN (PT) – Concedo a palavra ao

deputado Adão Villaverde, também proponente deste grande expediente

especial.

O SR. ADÃO VILLAVERDE (PT) – Sr. Presidente, Sras. e Srs.

Deputados:

Saúdo as autoridades já nominadas.

Agradeço ao deputado Adroaldo Loureiro, em nome da nossa

bancada, por nos proporcionar partilhar este momento.

257

Page 258: VOLUME 1 - GOLPE

Nunca esqueceremos a noite de terror que durou 21 anos neste

país.

A importância de relembrarmos, sempre que possível, fatos

lamentáveis e de triste memória não se deve ao mero capricho protocolar

de não deixar passar a data e nem a qualquer atitude revanchista, mas,

sim, para não deixar transitar versões que buscam revisar a história. São

tentativas de caracterizações, como a do recente editorial do influente

jornal do centro do país Folha de S. Paulo, publicado no mês de fevereiro,

que classificou o regime militar brasileiro, compreendido entre 1964 e

1985, como uma ditabranda.

Não podemos deixar que afirmações como essa passem como

verdade ou possibilitem, inclusive, a alteração da história recente deste

país.

De acordo com o periódico, os governos autoritários partiam de

uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas

controladas de disputa política e acesso à Justiça.

Esse absurdo histórico e inaceitável posicionamento foi

contestado imediatamente por intelectuais brasileiros do porte da

cientista política Maria Victoria Benevides e do jurista Fábio Konder

Comparato, que, espantados e indignados, escreveram ao jornal.

Perplexa, Benevides disse: Mas o que é isso? Que infâmia é essa de

chamar os anos terríveis da repressão de 'ditabranda'? Quando se trata de

violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de

todos, sem comparar ´importâncias´ e estatísticas. Pelo mesmo critério do

editorial, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi ´doce´ se comparada

com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com

a senzala – que horror!

Comparato também reagiu: O autor do vergonhoso editorial de 17

de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar

258

Page 259: VOLUME 1 - GOLPE

de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi

descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito

devido à pessoa humana.

A posição daquele periódico também foi duramente criticada

pelo presidente da ABI. Na sua opinião, o jornal não só alinhou uma série

de equívocos de caráter político, como talvez estivesse querendo alterar a

história.

Ao dizer que foi uma 'ditabranda', o jornal esquece, por certo, das

mortes ocorridas durante a ditadura. Esquece dos milhares que tiveram seus

direitos políticos cassados, que tiveram que se exilar, sem contar os torturados

nas masmorras do regime. É lamentável que se proceda a uma revisão histórica

dessa natureza. O que era negativo passa a ser positivo, dando absolvição

àqueles que violaram os direitos constitucionais e cometeram crimes, como o

assassinato do jornalista Vladimir Herzog nos porões do DOI-CODI,

completou o presidente da ABI, Maurício Azêdo.

Aliás, nesse episódio, ocorrido em 1975, tentaram criar a ideia de

um suicídio, uma história inverossímil e surrealista que desencadeou uma

forte pressão da sociedade contra a ditadura militar à época.

Em resposta à enxurrada de críticas, o jornal rebateu explicando

que na comparação com outros regimes, a ditadura brasileira apresentou níveis

baixos de violência política e institucional. E respondeu à cientista e ao

jurista de forma absolutamente agressiva: atacou-os dizendo que eles

tinham uma posição cínica e mentirosa.

Portanto, quem defende que ocorreram atrocidades neste país é chamado

de cínico e de ter uma posição mentirosa.

Diante dessa inaceitável incorreção histórica e, por que não dizer,

de uma tentativa de fraudar a história, não podemos ficar indiferentes.

Temos que contestar e repudiar sempre tais fatos, permanentemente,

com a veemência e a intransigência que momentos como este exigem,

259

Page 260: VOLUME 1 - GOLPE

sobretudo para que jamais sejam esquecidos e para que não se repitam

nunca mais na história do nosso país.

O nobre deputado Adroaldo Loureiro já discorreu

brilhantemente sobre a etapa que antecedeu o golpe, que foi o

coroamento de uma longa série de articulações e de tentativas golpistas,

nada tendo de espontâneo nem sendo decorrente de situações

conjunturais à época, as quais foram apenas pretextos, jamais causas do

golpe militar. Há quem localize os primórdios desse golpe na articulação

da UDN – representando a elite mais reacionária – com setores das

Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio Vargas já em 1954.

Na renúncia de Jânio Quadros, em 1961, as Forças Armadas

vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente

com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só

voltando atrás diante da resistência do povo gaúcho, que foi às ruas, do

governador Leonel Brizola, que encampou e liderou essa mobilização, e

do apoio por ele recebido à época do comandante do III Exército, aqui no

Rio Grande do Sul, gerando a ameaça de uma guerra civil. Foi o nosso

episódio de resistência, conhecido como Legalidade.

Em 1964, enfim, articulado e executado com apoio do governo

americano, desfechou-se o golpe, a quartelada contra um governo

legitimamente constituído. Fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-

se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil,

foram presos, brutalizados, colocados para fora deste país ou mortos

cidadãs e cidadãos brasileiros.

Não é à toa que nos referimos a esse período vergonhoso de nossa

história recente como anos de chumbo. Estudantes, ativistas, militantes,

políticos, intelectuais, músicos, artistas, sindicalistas, líderes

comunitários e rurais, todos eram subversivos. Bastava pensar diferente

260

Page 261: VOLUME 1 - GOLPE

ou reunir-se em pequeno grupo para questionar o regime para ser

classificado como uma ameaça às instituições, como subversivo ou

mesmo como terrorista.

Uma elite de coturnos e punhos de seda apropriou-se deste país e

impôs o slogan arrogante e autoritário: Brasil, ame-o ou deixe-o. Muitos,

então, tiveram até de abandonar o país, enxotados da sua terra para sofrer

com a exclusão e com o distanciamento do exílio.

As ciências, as artes, o teatro, o cinema, a música, a imprensa e o

pensamento eram cerceados pela censura, e ocorriam sistematicamente

perseguições, pressões políticas, prisões, atentados, espancamentos,

enfim, ações paramilitares consentidas pelo próprio regime.

Havia corrupção também, sim, mas a imprensa era impedida de

noticiar o que acontecia em projetos faraônicos, como a Transamazônica,

a Ferrovia do Aço, Itaipu, Paulipetro e outros grandes investimentos que

o país fazia à época.

O golpe militar de 31 de março de 1964 causou profundos danos

ao Brasil e aos brasileiros naqueles tristes idos, os quais até hoje se

refletem na vida de cada um e de cada uma dos nossos cidadãos. Basta ver

as discussões que ainda se travam hoje, com fervor, com relação às

indenizações às vítimas do arbítrio, aos arquivos da ditadura ou ao

alcance da anistia, promulgada em 1979 com a correlação de forças

possível à época, que perdoou vítimas e algozes a um só tempo. Basta ver

as repercussões nas vidas destroçadas pelas perseguições, pela torturas,

pelas mortes que foram legadas a parentes, amigos e conhecidos das

vítimas, marcando gerações com a dor da violência e das perdas.

Penso que aqui, neste instante, não é preciso detalhar ainda mais

a noite de horror que vivemos nestes 21 anos.

Temos usado espaços importantes do Parlamento gaúcho para

fazer debates políticos de ideias divergentes e convergentes. Isso graças à

reconstrução da democracia.

261

Page 262: VOLUME 1 - GOLPE

Aqui mesmo, em março do ano passado, em grande expediente

especial, saudei a trajetória dos que resistiram à ditadura, dos que lutaram

pela anistia e dos que construíram a redemocratização e deram uma

perspectiva de futuro para este país. Simbolizei a homenagem em

algumas figuras, em personagens importantes que, nesse período de

trevas, estiveram presos em cárceres da América Latina.

O governo que se instalou nessa noite de terror no nosso país

também, como referiu o deputado Adroaldo Loureiro, fez parcerias de

horror com outros regimes ditatoriais do Cone Sul por meio da chamada

Operação Condor.

O SR. PRESIDENTE IVAR PAVAN (PT) – Deputado, informo que

os apartes terão de ser concedidos dentro do tempo destinado ao grande

expediente especial.

O SR. ADÃO VILLAVERDE (PT) – Já concluo, Sr. Presidente.

Hoje, neste plenário de uma instituição que, muitas vezes, se

levantou contra o regime de exceção e defendeu a democracia e as

liberdades individuais, é um dia para se dizer, em alto e bom som, não.

Não à tortura, que violenta e humilha seres humanos, que lastima

almas, alucina corações, enlouquece mentes e até leva ao suicídio; não às

mortes, que acabam com vidas preciosas, geram perdas irreparáveis,

destroçam famílias, machucam, comprometem e ferem gerações; não às

guerras, em que todos perdem e só lucram as indústrias bélicas, que

colocam indefesas crianças, mulheres, homens, idosos diante do imenso

poder destrutivo das metralhadoras, dos canhões, dos mísseis, das armas

químicas.

Não à brutalidade, que diminui a todos nós, que apequena e

iguala a raça humana a seres irracionais, que nos faz rastejar

262

Page 263: VOLUME 1 - GOLPE

envergonhados; não à barbárie, que ainda somos capazes de produzir e

reproduzir, apesar dos nossos avanços científicos e tecnológicos; não ao

esquecimento desse passado doloroso, que desmente nossa religiosidade

crédula e nossa inteligência por vezes arrogante.

Não, para que não se esqueça e, sobretudo, para que nunca mais

aconteça! Obrigado.

O SR. ALCEU MOREIRA (PMDB) – V. Exa. permite um aparte?

(assentimento do orador).

Saúdo o presidente Ivar Pavan; o Sr. Ney Ortiz Borges; e, nas

pessoas do Sr. Sereno Chaise e do Sr. Christopher Goulart, saúdo a todos

os integrantes da mesa.

Cumprimento os proponentes deste grande expediente,

deputados Adão Villaverde e Adroaldo Loureiro.

Por gratidão e fidelidade às mulheres e aos homens que disseram

não ao regime que se instalou no Brasil em 31 de março de 1964,

pronuncio-me neste momento em nome da bancada do Partido do

Movimento Democrático Brasileiro.

Para nós nunca haverá de se calar cada uma daquelas vozes. Suas

palavras são ainda as nossas palavras; seus sonhos são ainda os nossos

sonhos. Jamais poderemos esquecer cada grito de dor, cada lágrima

chorada, cada gota de sangue sangrada nos abomináveis porões da

ditadura.

Os tempos de hoje são outros. Há até mesmo quem não lembre

mais daqueles dias; há os que deles pouco ou quase nada sabem porque

sequer haviam nascido e há até mesmo os que alimentam saudades. Nós

não temos saudade.

Quero lembrar o que dizia Tancredo Neves sobre aqueles

tempos: Ainda que o movimento de 1964 tivesse transformado a nossa Pátria

263

Page 264: VOLUME 1 - GOLPE

em um paraíso, eu não me arrependo de lhe ter feito oposição. Para meu ideário

político, o valor absoluto da vida é a liberdade. O paraíso, se estiver cercado,

será sempre o inferno.

Mas virada a página triste, repugnável, vergonhosa da ditadura,

nossa geração, no poder – legitimado pela única legitimidade a partir da

qual se pode admitir o poder, a do voto livre –, continua a enfrentar

desafios, inúmeros e cotidianos desafios.

Poderia falar de muitos, mas quero me referir àquele que, no meu

entender, enquanto não vencido, acaba fazendo com que não seja

completa a caminhada grandiosa e patriótica da luta pela liberdade

democrática. Falo do desafio de alcançarmos a justiça social neste país.

E lembro as palavras de outro de nossos grandes comandantes

daqueles tempos, Teotônio Vilela: A maior tragédia do Brasil não é a dívida

externa, nem a dívida interna: é a dívida social.

Siga, portanto, a história do Brasil, a história livre do Brasil, a

história do Brasil da liberdade, da liberdade brotada das urnas, vinda da

vontade do povo, em busca da justiça social.

Trinta e um de março nunca mais, para que nunca mais se

esqueça, para que nunca mais aconteça!

Ensinou Ulysses Guimarães: A verdade poderá temporariamente

ser ocultada, nunca destruída. O futuro e a história são incensuráveis.

Obrigado.

O SR. RAUL CARRION (PCdoB) – V. Exa. permite um aparte?

(assentimento do orador).

Saúdo o deputado Adroaldo Loureiro, proponente deste grande

expediente, secundado pelo deputado Adão Villaverde; o deputado Ivar

Pavan; o Sr. Christopher Goulart, neto do ex-presidente João Goulart; o

tenente-coronel Marco Antônio de Oliveira Quevedo; o representante

264

Page 265: VOLUME 1 - GOLPE

do Ministério Público, promotor Victor Hugo Palmeiro de Azevedo

Neto; o vice-prefeito de Porto Alegre, Sr. José Fortunati; a Sra. Miguelina

Vacchio; o Sr. Ney Ortiz Borges, grande líder do governo João Goulart; o

presidente da CGTEE, Sr. Sereno Chaise, hoje aniversariando – meus

parabéns; as Sras. e os Srs. Deputados.

Na pessoa do presidente do meu partido e membro do comitê

central, camarada Adalberto Frasson, saúdo a todas as lideranças

presentes.

Evidentemente, relembrar essa data não tem, deputados Adão

Villaverde e Adroaldo Loureiro, nenhuma intenção revanchista, mas

fazer com que não se perca a memória dos chamados anos de chumbo,

para que nunca mais se repitam.

O movimento militar de 1º de abril de 64 nunca foi revolução.

Foi um golpe militar contrarrevolucionário de inspiração norte-

americana que tentou bloquear as lutas que avançavam no nosso Brasil

pela reforma agrária, pela soberania nacional, pelas bandeiras

nacionalistas, pela ampliação da democracia principalmente para o povo

trabalhador. Causou terríveis prejuízos à democracia no país, com

milhares de presos, de torturados, de processados, de demitidos, com

centenas de mortos. Causou a desarticulação do movimento social

brasileiro.

Quero lembrar que no dia 1º de abril, a sede da União Nacional

dos Estudantes, na Praia do Flamengo, foi incendiada. Os sindicatos, as

federações, as centrais, os movimentos sociais em geral foram

violentamente reprimidos.

O PCdoB, que é o partido que mais sangue derramou no

enfrentamento dessa ditadura, até hoje luta pela abertura dos arquivos da

265

Page 266: VOLUME 1 - GOLPE

ditadura e pela devolução dos corpos insepultos dos guerrilheiros do

Araguaia.

Por tudo isso, somamo-nos a esta manifestação e inclinamos

nossas bandeiras de combate em homenagem a todos aqueles que caíram,

tombaram e foram perseguidos pelo regime militar.

A tentativa de criminalização dos movimentos sociais que vemos

também no nosso Estado em alguns momentos, tratando-os como se

marginais ou bandidos fossem, alerta-nos para que defendamos as

liberdades democráticas e não permitamos que novamente tais

acontecimentos enlutem o nosso Brasil. Muito obrigado.

O SR. CASSIÁ CARPES (PTB) – V. Exa. permite um aparte?

(assentimento do orador).

Saúdo o presidente desta Casa, deputado Ivar Pavan; o Sr.

Christopher Goulart, neto do ex-presidente João Goulart; o tenente-

coronel Marco Antônio de Oliveira Quevedo, neste ato representando o

governo do Estado; o representante do Ministério Público, promotor

Victor Hugo de Azevedo Neto; o vice-prefeito de Porto Alegre, Sr. José

Fortunati; a Sra. Miguelina Vecchio, representando o PDT; o ex-

parlamentar desta Casa Sr. Ney Ortiz Borges; o presidente da CGTEE,

Sr. Sereno Chaise – muito prejudicado também, na ocasião, pelo regime

militar; os proponentes deste grande expediente especial, deputados

Adroaldo Loureiro e Adão Villaverde.

Como são-borjense, tenho belíssimas lembranças do saudoso

João Goulart. Uma pessoa dócil, um bonachão – usando uma expressão

bem popular no interior –, com coração excepcional. Ele reunia milhares

de crianças na sua granja na entrada da cidade, no Dia das Crianças, para

distribuir brinquedos.

266

Page 267: VOLUME 1 - GOLPE

Um homem com um coração grandioso e que, no meu entender,

foi muito injustiçado.

Os partidos mais de centro-esquerda desembocaram no PTB,

PDT, PT, PMDB. Naquela oportunidade, o partido mais prejudicado foi

o PTB, que tinha uma força muito importante.

Saliento que Jango foi eleito duas vezes vice-presidente, tendo

alcançado, em uma delas, votação superior ao presidente da República.

Como ministro do Trabalho, concedeu um aumento de 100% ao salário

mínimo, e foi incompreendido. Um homem que tentou implantar a

reforma agrária, que até hoje não se concretizou. Por tudo isso podemos

perceber quem foi Jango. No entanto, a sociedade ainda não entendeu

isso, e devemos mostrar, principalmente para a nossa juventude, quem foi

Jango.

Quanto à revolução, deputado Adão Villaverde, ela tinha um

objetivo que foi desvirtuado. A intenção, todos sabemos, era de realizar

uma eleição direta. Mas os aproveitadores, que no meu entender não

foram os militares, mas alguns civis, tomaram conta do poder e não

queriam mais entregá-lo para a sociedade. E saliento que ali se

cometeram erros de esquerda e de direita. A esquerda radical foi contra

Jango, e a direita, no seu extremo, também foi contra Jango e contra o

poder democrático.

Portanto, que possamos tirar ensinamentos desses fatos e

recuperar essas imagens públicas, que são muito importantes para nós,

para o trabalhismo, que hoje está acoplado em vários partidos de

oposição.

Parabéns, deputado Adão Villaverde!

O SR. RAUL PONT (PT) – V. Exa. permite um aparte? (assentimento

do orador).

267

Page 268: VOLUME 1 - GOLPE

Cumprimento V. Exa., deputado Adão Villaverde, e o deputado

Adroaldo Loureiro pela iniciativa que ambos tiveram não só de fazer esse

registro, mas também de participar da organização deste evento, que

continua hoje à noite e amanhã.

Com a permissão do deputado, cumprimento o presidente da

Casa e todas as autoridades já nominadas.

Desejo registrar, em nome da nossa bancada, que o Golpe de 64

foi o epílogo de um processo que se iniciou um pouco antes. As forças

militares e civis, porque também existiram forças civis envolvidas no

golpe, as forças vinculadas à UDN e aos militares, principalmente o

grupo Sorbonne, que se organizava desde a 2ª Guerra Mundial, estavam

já presentes na pressão que levou à morte Getúlio Vargas. Estiveram

também presentes quando tentaram impedir a posse de João Goulart

como vice-presidente, constitucionalmente e legalmente eleito em 1961.

Só não conseguiram impedir porque, no Rio Grande do Sul, a ação de

Leonel Brizola como governador e também do povo gaúcho foi eficaz em

defesa da Constituição.

Infelizmente essas forças eram muito poderosas e conseguiram,

em 1964 – com o apoio da cúpula da Igreja, da UDN e dos grandes

banqueiros deste país –, não apenas derrotar João Goulart, mas também

as profundas reformas implementadas pelo governo. Sabiam eles que

havia uma direção popular, o traçado de um rumo para um outro país,

com soberania nacional, com desenvolvimento.

Revi o belíssimo documentário feito sobre a vida de Jango em

que estão muito presentes os verdadeiros motivos que o levaram a sofrer

aquele golpe.

Era o aprofundamento de uma revolução popular pela educação

e pelo direito ao voto, com a incorporação dos analfabetos e das mulheres.

268

Page 269: VOLUME 1 - GOLPE

Era isso que a direita e a minoria deste país sempre temeram. E

continuam temendo.

Vimos, infelizmente, que não bastou derrotar a ditadura militar.

Vivemos mais um ciclo, um período de neoliberalismo, em que a força

das armas foi substituída pelo poder econômico.

Mesmo avançando nas lutas sociais, sabemos que muito temos

ainda para conseguir nesse processo. Parabéns pela iniciativa. Muito

obrigado. (palmas)

O SR. JORGE GOBBI (PSDB) – V. Exa. permite um aparte?

(assentimento do orador).

Com a permissão do deputado, saúdo o presidente, deputado

Ivar Pavan; o subchefe da Casa Militar, tenente-coronel Marco Antônio

de Oliveira Quevedo, neste ato representando o governo do Estado; o

vice-prefeito José Fortunati; os demais componentes da Mesa; as Sras. e

os Srs. Deputados; as demais pessoas aqui presentes.

Parabenizo V. Exas., deputados Adão Villaverde e Adroaldo

Loureiro, por essa iniciativa que permite a esta Casa o resgate de um fato

histórico do Rio Grande do Sul.

Essa reflexão sobre os princípios da justiça social, da liberdade e

principalmente da democracia todos temos de fazer.

Os fatos que decorreram desse acontecimento todos somos

sabedores. Temos de ser os defensores da democracia, mas, acima de tudo,

temos de tirar desse episódio a lição acerca da importância da luta do

povo brasileiro pela democracia.

E nós, nesta Casa, devemos estar sempre atentos para a defesa da

democracia, da liberdade e da justiça social. Defendo aquela assertiva que

às vezes se divulga por aí de que eventualmente é melhor termos a pior

269

Page 270: VOLUME 1 - GOLPE

das democracias do que a melhor das ditaduras. Ou seja, sempre

defendemos a democracia como suporte para o nosso povo brasileiro, por

isso devemos estar atentos nesta Casa, sejamos de esquerda ou de direita.

Parabéns, em nome da bancada do PSDB, por essa iniciativa, por

esse registro histórico. Muito obrigado.

O SR. MANO CHANGES (PP) – V. Exa. permite um aparte?

(assentimento do orador).

Com sua permissão, deputado, desejo saudar o presidente desta

Casa e, na sua pessoa, a todas as autoridades já mencionadas no

protocolo.

Parabenizo os proponentes deste grande expediente especial,

deputados Adão Villaverde e Adroaldo Loureiro, pela pertinente

iniciativa.

Se aprendemos algo na vida é que violência gera violência.

Graças a Deus que a ditadura faz parte da história do nosso país.

Nós, políticos, bem como a sociedade como um todo, temos a

obrigação de perpetuar a democracia no Estado do Rio Grande do Sul,

no nosso país e no nosso planeta, porque é através da democracia que a

maioria das pessoas tem voz e tem vez.

Muita gente, há 20 ou 30 anos, tinha um conceito sobre

subversão. Quando entrei nesta Casa, pelo meu jeito de falar, pelo meu

tênis quadriculado, muitas pessoas pensavam que eu era um deputado

polêmico ou até, quem sabe, subversivo. Em nenhum momento, esse

preconceito me abala, porque é através da personalidade e da luta que

mostramos o que pretendemos na vida.

Tenho certeza de que esta é a nossa obrigação: continuar lutando

para que a ditadura, seja ela de esquerda ou de direita, fique apenas na

270

Page 271: VOLUME 1 - GOLPE

história do nosso país. Precisamos continuar lutando para que isso

aconteça.

Como presidente da Comissão de Educação, não poderia deixar

de relatar que é através da educação, de uma ferramenta de aproximação e

de disciplina em relação a professor e aluno que podemos ter uma

democracia melhor e ensinar cada vez mais nosso povo a votar e a exercer

o maior poder democrático, que é o voto.

O SR. ADÃO VILLAVERDE (PT) – Agradeço aos deputados pelos

apartes.

Sr. Presidente, antes de encerrar, gostaria de fazer um convite a

todos os participantes deste grande expediente especial.

Com o objetivo de darmos continuidade a este momento de

reflexão e de resistência que estamos chamando de A noite que durou 21

anos, organizamos atividades para hoje e amanhã à noite, às 19 horas, no

auditório Dante Barone.

Convido-os a hoje assistirmos à abertura desse seminário com o

filme referido pelo deputado Raul Pont: Jango, de Silvio Tendler, com

debates e comentários, e, amanhã, presenciarmos um debate sobre os 45

anos do Golpe de 64, com pesquisadores, pessoas qualificadas e

renomadas, que estudam esse tema dentro e fora do estado.

Ao reiterarmos este convite, afirmamos e reafirmamos, em nome

deste deputado, do deputado Adroaldo Loureiro e de nossas bancadas,

que é uma honra muito grande termos partilhado este momento aqui,

porque vários de nós partilhamos a história, o passado, a trajetória de

resistência. Consideramos justo afirmar e reafirmar nossas posições e,

sobretudo, nossas perspectivas de futuro.

Agradecemos pela presença das autoridades e de todos os

participantes deste momento na Casa. Muito obrigado. (palmas)

271

Page 272: VOLUME 1 - GOLPE

Este livro foi diagramado em novembro de 2009,

com tipos Caslon, nos textos e Century Schoolbook nos

títulos e legendas.