Voz Acadêmica - Crise Democrática

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PODER E MÍDIA: ATÉ ONDE VAI A CRISE BRASILEIRA? 08/ ARTIGO 11/ INFORMA LIBERDADE CERCEADA 18/ ENTREVISTA FREI BETTO JORNAL OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA VOZ - CRISE POLÍTICA.indd 1 10/05/2016 15:24:00

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Jornal Voz Acadêmica, idealizado pela Diretoria de Imprensa do Centro Acadêmico Afonso Pena, com o tema Crise Democrática.

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PODER E MÍDIA: ATÉ ONDE VAI A

CRISE BRASILEIRA?

08/ ARTIGO

11/ INFORMALIBERDADE CERCEADA18/ ENTREVISTAFREI BETTO

JORNAL OFICIAL DO CENTRO ACADÊMICO AFONSO PENA

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A instauração do processo de Impe-achment foi o estopim da crise política vivenciada pelo governo federal Dilma Rousseff. É notável que tal conjuntura não surgiu de forma gratuita ou espon-tânea, mas é o resultado de um proces-so de desgaste da representatividade e, principalmente, da situação econô-mica nacional. Apesar disso, é claro um oportunismo midiático e partidá-rio, que se aproveitando da condição de um governo enfraquecido, deturpa o devido processo legal para realizar um combate seletivo da corrupção e, simultaneamente, tomar o poder.

Nesse contexto, torna-se proble-mático o posicionamento implícito de um setor da mídia que se autodeclara imparcial. A grande mídia possui in-teresses e opiniões próprias, corres-pondentes àquelas de seus acionistas, de forma que todo conteúdo publicado reflete essa visão. Tal manipulação se mostra muito mais sutil do que nor-malmente imaginado, tornando pos-sível percebê-la em cortes de edição, escolha de palavras, enfoque seletivo e discricionariedade de imagens. Sen-do ela a principal fonte de informação no que se refere à política e economia, acaba influenciando de forma unilate-ral o processo de formação da opinião popular.

Diante do exposto, é notável que as notícias veiculadas são, na realidade, uma opinião, sendo problemático o fato de que essa tendência nunca foi admitida pela grande mídia, pelo con-trário, a imparcialidade é levantada para dar pretensão de verdade aos po-sicionamentos de um grupo específico. O posicionamento midiático não é ne-gativo em si, mas o que aqui se crítica é a venda dessa informação enquanto fato.

Questionamos também os critérios usados na seletividade de informações divulgadas pela mídia, como muito bem retratado em nosso texto de capa

“Poder e Mídia: até onde vai a crise bra-sileira?”. O que justifica que a maior emissora de televisão brasileira opte por divulgar amplamente um grampo telefônico contra a Presidenta da Re-pública, divulgação essa considerada ilegal, mas que se abstenha dias depois de publicitar a lista da Odebrecht, que contava com nomes de importantes políticos de direita, usando a justifica-tiva de ilegalidade da divulgação? Até onde podemos aceitar uma seletivida-de de critérios na escolha de informa-ções publicadas? O que a mídia diz ao público geral, mesmo que entrelinhas, é que só podemos ver o que eles que-rem que nós vejamos.

Desse modo, o Voz Acadêmica, en-quanto publicação jornalística do Cen-tro Acadêmico Afonso Pena, posicio-na-se a favor da democratização da grande mídia, e a favor de um maior compromisso com a distinção daquilo que é verdade e daquilo que é opinião. Que não haja um conluio de divulgação de notícias entre os meios de comuni-cação de massa mas, pelo contrário, que o público possa se valer de uma pluralidade de informações e, assim, decidir por si mesmo sobre aquilo que toma como certo ou errado.

ED ITOR IAL

EXPEDIENTE

www.facebook.com/vozacademicacaap

MODERADORA: Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel João Pedro Sturm DIRETORIA DE IMPRENSA: Letícia Delavy Bruna Demetrio Bruno Prota Arthur Andrade Marina Guimarães Ana Luise Bruno Bicalho Gabriel Rocha

CAAP: Túlio Campos e Ana Menezes PÓS-GRADUAÇÃO: João Paulo Mansur GRADUAÇÃO EM DIREITO: André Bueno Arthur Gandra Gabriela Ruzzene Letícia Leite DIAGRAMAÇÃO: Ana Luiza Bongiovani IMPRESSÃO: O Lutador

A obra de capa é de autoria de Cândido Portinari, um artista bra-sileiro mundialmente reconhe-cido. A sua arte subversiva, “As Feras” (1955), é parte do painel “Guerra e Paz”, que ilustra a sede das Nações Unidas.

Sempre problematizando os conceitos de desigualdade e poder, não há artista melhor para ilustrar essa edição do Voz Acadêmica que vem criticar os abusos judiciários, midiáticos e partidários presentes nesse momento no país. Envie suas críticas, dúvidas e sugestões para o VOZ ACADÊMICA pelo e-mail:

[email protected]

A VOZ DO LEITOR

SUA VOZ AQUI

03 Editorial 04 Voz ArtigoA CRISE DO PROCESSO PENAL

06 Voz AcadêmicaDEMOCRACIA EM CRISE: uma análise a respeito dos antagonismos políticos

08 Voz Artigo CAPA

PODER E MÍDIA: ATÉ ONDE VAI A CRISE BRASILEIRA?

11 Voz InformaLIBERDADE CERCEADA

12 Vozes Malditas

13 Voz LiteraturaPANELAÇO

14 Voz ArtigoA ANATOMIA DE UMA CRISE:considerações sobre a crise política brasileira

16 Voz ArtigoDEMOCRACIA, CRISE E ELEI-ÇÕES: TRUMP E SANDERS.

18 Voz EntrevistaFREI BETTO

20 Voz ArtigoÉ POSSÍVEL UMA CRISE DE REPRESENTATIVIDADE NA DEMOCRACIA BURGUESA?

24 Voz IndicaDESOBEDIÊNCIA CIVIL E O RE-FERENCIAL QUE PERDEMOS

Emanuella Ribeiro Halfeld Maciel e João Pedro Nunes Sturm

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povo a análise dos seus significados.Mais do que parcial, a mídia hoje está atu-

ando em uma via contrária ao que a jurista francesa defendia. O que se está difundindo é a ideia de um sistema legal falido, um or-denamento inoperante e fraco, mas que pode ser salvo por grandes heróis do judiciário. Ora, não deveria ser o judiciário o ente im-parcial e cego que somente decidiria após a construção dos fatos pela acusação e defesa?

Interessante a explicação de Richard Hellie sobre o desenvolvimento do Judiciá-rio5. Para o autor em uma forma menos com-plexa de Estado a justiça se realizava inter-partes, sendo o juiz um funcionário público a quem as partes pagavam uma taxa para ape-nas mediar. A esse modelo o autor denomina “diático”, indicação da paridade de partes. Nessa fase da história o juiz costumava inclu-sive exercer o papel inquisitorial assumindo o local de uma das partes conforme os inte-resses e leis do Estado. O juiz era ao mesmo tempo a acusação e aquele que decidiria os fatos. A medida que o Estado e o Direito se tornavam mais complexos, o judiciário se transformava assumindo uma modalidade denominada “triádica”. Nesse novo modelo, o juiz se tornava uma terceira parte no jul-gamento, o ente imparcial que escutaria a construção fática das duas partes em enfren-tamento para então tomar uma decisão.

Parace-nos então que o Brasil retor-na para a fase “diática”, na qual o juiz inte-gra o banco da acusação e lança-se contra os acusados. A divulgação da mídia desse fenô-meno transforma em heroica essa atuação do juiz e insere na sociedade a certeza quanto ao cometimento do crime pelo acusado, sem nem mesmo ser necessária a prova do crime ou do seu cometimento pelo réu. Diante des-se cenário de certeza, a demora para a efe-tuação da prisão aparenta impunidade, não sendo nada alem do justo processo legal. O caos chega a tal ponto que se apela a qual-quer solução desde que venha com rapidez: ditadura, impeachment, condenação... Não importam os crimes, não importam os fatos, não importam as vítimas.

O povo quer justiça, mas nem mesmo reflete sobre o que seria o justo, convictos de estarem certos, refutam a opinião divergente. A agressividade das massas chegou ao ponto de impossibilitar o antagonismo democrático de Mouffe, contrariar o senso comum é cor-rer o risco de ataques violentos, considerados nada mais do que justos. Sobre esse fenôme-no muito adequado é o posicionamento de Túlio Vianna no texto Injustiça com as Pró-prias Mãos6:

boas intenções nem sempre trazem bons resultados. Foram necessários séculos de civilização para se perceber que não é razoável sair por ai quei-

mando pessoas simplesmente por te-rem sido acusadas de bruxaria pelo vi-zinho. O Direito Ocidental consagrou princípios como legalidade, contradi-tório e ampla defesa não para “defen-der bandidos”, como muitos insistem em dizer, mas para defender acusados da fúria dos bem-intencionados.

Frente a esse cenário o que se percebe é que a justiça já não está mais vendada, mas ergue-se de olhos bem abertos, personifica-ção do panóptico, violenta a estabilidade de-mocrática com sua espada e segura a balança já desequilibrada.

1Nesse sentido: TAVARES, Juarez. Teoria do in-justo penal, 3. Ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003 e LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.

2LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo pe-nal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.

3FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – La ley del más débil. Madrid: Trotta 1999.

4DELMAS-MARTY, Meirelle. Por um direito co-mum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp.21-23.

5HELLIE, Richard. The law. In: PERRIE, Maure-en (org). The Cambridge History of Russia. 1º volu-me. Editora Cambridge University Press. Nova York. 2006, pp. 385-386

7VIANNA, Túlio. Injustiça com as próprias mãos. O Estado de S. Paulo, est_supl1, Disponível em: <http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,in-justica-com-as-proprias-maos,1688657>. Acesso em: 24 de março de 2016.

A CRISE DO PROCESSO PENAL

Paula Rocha Gouvêa Brener

1. CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Pilares, 2009.

2. CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

3. DELMAS-MARTY, Meirelle. Por um Direito Comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

4. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias – La ley del más débil. Madrid: Trotta 1999.

5. FOUCAULT, Michel.Vigiar e Punir, nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 20ªed. Petrópolis: Vozes, 1999.

6. HELLIE, Richard. The law. In: PERRIE, Maureen (org). The Cambridge History of Russia. 1º volume. Nova York: Cambridge University Press, 2006.

7. LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.

8. MOUFFE, Chantal. Deliberative Democracy or Agonistic Pluralism. Viena: Institut für Höhere Studien (IHS), Desembro de 2000.

9. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, 3. Ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

10. VIANNA, Túlio. Injustiça com as próprias mãos. Coordenado por O Estado de S. Paulo. Disponível em: <http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,injustica-com-as-proprias-maos,1688657>. Acesso em: 24 de março de 2016.

11. YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. (Des)medidas contra a corrupção e garantias constitucionais. Coordenado por Empório do Direito. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/erro-supremo-por-leonardo-isaac-yarochewsky/>. Acesso em 15 de janeiro de 2016.

ARTIGO

O Brasil vive hoje um momento de inegá-vel instabilidade democrática. O povo se con-forma em uma efervescente massa, ao trans-formar em fúria os sentimentos de medo e insegurança, criados pelo propalado discurso midiático de uma situação de suposta cala-midade e profunda insegurança. O judiciário encabeça constantes violações à Constituição e o Processo Penal se encontra cada vez mais banalizado. O risco às garantias e direitos fundamentais salvaguardados por esses di-plomas legais tornam essencial a discussão em torno da crise do processo penal, apre-sentada a seguir.

É fácil perceber que a história da socieda-de funciona de forma pendular, idas e vindas para os direitos humanos, avanços e retroces-sos na democracia. Há pouco tempo a dou-trina1 já afirmava convictamente a superação do paradigma de um direito processual penal que serve ao direito penal subjetivo, defendi-do como o direito do estado de punir. O que acertadamente se defende é a ideia de que o Estado possui o poder de punir, o qual é li-mitado pela Constituição e o Processo Penal. Em um breve espaço de tempo, no entanto, o pendulo fez sua volta e o povo se dispõe a tro-car suas garantias por uma sensação de segu-rança, apelando ao Direito Penal e clamando por um Judiciário Leviatã.

A sensação de insegurança se tornou latente nos últimos anos, em que descarada-mente a mídia se esforçou pela divulgação de um crescimento enorme da violência e crimi-nalidade e propalou com todas as forças sua ideologia do medo. A sociedade do espetáculo não se resumiu à seara do crime, mas a cria-ção midiática de um caos econômico insaná-vel e ascendente durante o final do governo Dilma até o período recente é um empreen-dimento que causou inegável resultado: um temor social desproporcional ao momento econômico do país.

O apelo à seara penal, todavia, advém da errônea concepção do processo penal en-quanto instrumento de pacificação social e segurança pública. Conforme Rubens Casa-ra, trata-se de um mito oriundo do discurso repressor utilitário que atribui um errôneo

caráter instrumental ao processo penal. O real fundamento de existência do processo penal é abalizar o Estado, protegendo o in-divíduo2. Suas regras não operam pela impu-nidade, mas pelas garantias fundamentais. O que deve buscar sempre justificação é o poder punitivo do Estado. Mas, em prol de maior segurança e estabilidade econômica, o povo aplaude medidas policiais e judiciais que vio-lam o justo processo legal e a Constituição.

Em defesa dos (ab)usos do judiciário o que se defende é que os direitos do réu, enquanto direitos individuais, são sobrepostos em um sopesamento de direitos para os princípios de transparência e o direito do povo de saber o que dizem e fazem seus governantes, direi-tos esses públicos. No entanto, é preciso re-forçar a posição de Aury Lopes Jr. ao afirmar: os direitos do réu não são direitos individu-ais. São na verdade garantias constitucionais abarcadas pelos direitos fundamentais, que inegavelmente pertencem ao público.

De forma alguma o que se quer aqui é desmerecer a importância da diversida-de de opiniões e das manifestações sociais. Deve sim o povo brasileiro se politizar e vi-ver em um Estado Democrático é sim viver uma política marcantemente antagonista. Como defende Chantal Mouffe, importante expoente da vertente da Democracia Radical, é um equivoco acreditar que na democracia há sempre concordância sobre as decisões to-madas. É esse um paradigma homogeneiza-dor que busca pacificar minorias e manter as hierarquias construídas. Não há que se negar o modelo adversarial da política, a ideia de Democracia Deliberativa em que se chega a um consenso camufla a verdade: há sempre o embate e a cada tomada de decisão alguma parte teve que ceder à outra.

No entanto, viver uma democracia plena é ter seus direitos fundamentais as-segurados, é ter a segurança de discordar e mesmo de estar posicionado no polo mino-ritário antagônico. Até mesmo por que a de-mocracia não é um governo da maioria, mas uma forma de governo do povo e para o povo que escuta a voz da maioria, mas assegura e protege as garantias de todos. Tendo por ho-

rizonte essa compreensão, podemos inserir na discussão a ideia de lei do mais fraco, de-fendida por Ferrajoli3. Conforme o autor, no âmbito do Direito Penal a vítima é quem re-cebe a tutela do Estado, sua atenção e prote-ção. Em se tratando do direito PROCESSUAL penal, o vulnerável é o réu! É indefensável a ideia de uma paridade de armas se posicio-narmos os indivíduos sob julgamento do lado oposto da balança em relação ao poder esta-tal, conformado em um Leviatã para atender aos clamores sociais. Em especial se o juiz se coloca enquanto parte no processo, violando a lei de forma parcial.

A quebra de sigilo de interceptações tele-fônicas foi apenas uma das irregularidades da Operação Lava-Jato por parte do judiciá-rio. Para começar, trechos divulgados para a mídia foram gravados após suspensão da or-dem judicial para interceptação, requisito ne-cessário para que seja lícita a prova. Ademais, compete ao Supremo Tribunal Federal anali-sar a relevância e o teor de interceptações que envolvam a Presidência da República, outra exigência legal básica desrespeitada. Por fim, foi ainda desrespeitada a intimidade dos in-vestigados, garantia assegurada na Constitui-ção de 1988 e que somente pode ser excetu-ada em relação à autoridade competente no decorrer da investigação, de forma alguma devendo ser “vazada” para a mídia.

Esse abuso do poder judiciário foi ainda agravado pela mídia que repercutiu ao má-ximo os áudios e insuflou as massas ignaras. Apesar de todas as criticas, há autores que creditam à mídia um importante papel para o direito processual penal. Delmas-Marty acre-dita que é essencial o espetáculo em torno do Direito Penal, como forma de tornar conhe-cidas as proibições e de reafirmar a força do ordenamento4. Houve um enfraquecimento do processo enquanto espetáculo, cabendo à mídia esse papel de divulgar as proibições e a efetividade da Lei. No entanto, a própria autora critica a forma como os veículos mi-diáticos encaram os julgamentos atualmente, espetacularizando-os de forma parcial, exer-cendo o papel de acusação, enquanto na ver-dade deveriam apresentar os fatos e deixar ao

Referências

Shaun Gardiner

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DEMOCRACIA EM CRISE: uma análise a respeito dos antagonismos políticos

Gabriela Pedrosa de Menezes

A democracia em seu modelo representa-tivo é desfecho de um processo histórico-so-cial de crescimento estrutural das sociedades e, consequentemente, de redução drástica da influência pessoal do cidadão na política (CONSTANT, 1819). Diferentemente das so-ciedades antigas, em que a liberdade somen-te era concebida a partir da efetivação direta das faculdades políticas concedidas ao cida-dão, a democracia representativa é fruto de um passado histórico recente e corresponde à liberdade dos modernos, fundamentada na autonomia, ou seja, na não intervenção esta-tal na esfera privada (BRITO, 2013).

A contemporânea crise da democracia re-presentativa tem a sua origem no distancia-mento entre as ações dos representantes e as demandas dos representados. Nesse sentido, a intensa atuação desregulamentada de gru-pos de pressão, a decadência dos partidos políticos e a soberani-a do capital apresen-tam-se como os principais obstáculos na edi-ficação de uma democracia global. O antago-nismo de interesses de grupos particulares e partidos que integram a sociedade tornam-se relevantes no atual cenário brasileiro e refle-tem a decadência da máxima democrática: um governo do povo, pelo povo e para o povo.

De acordo com o cientista político Paulo Bonavides,

“a representação e os governos são apenas a superfície que oculta as for-ças vivas e condicionantes do processo governativo, forças que jazem quase sempre invisíveis ao observador desa-tento” (BONAVIDES, 1967).

O autor faz referência aos grupos de pres-são, organizações que, por meio de uma série de mecanismos, atuam direta ou indireta-mente na condução das decisões do poder po-lítico conforme as suas inclinações. No Brasil, a manipulação dos veículos de informação, a instrumentalização da opinião pública, o conveniente financiamento de campanhas eleitorais, a intimidação de representantes políticos e, até mesmo, a corrupção de seto-

res públicos englobam a diversidade de ações desencadeadas por esferas restritas da so-ciedade em uma tentativa de politicamente resguardar os seus próprios interesses. Nesse sentido, os representantes, sob a ingerência desmedida dos grupos de pressão, assumem a posição de comissários e, dessa forma, per-dem parte relevante da sua autonomia (BO-NAVIDES, 1967).

Através da publicidade remunerada e do apelo persuasivo, os grupos de pressão de-sencadeiam um processo de dominação dos meios midiáticos, cujo objetivo final consiste na manipulação da opinião pública como for-ma de fornecer legitimidade às propostas de-fendidas. Dessa forma, a vontade popular, na condição de instrumento indireto dos grupos de pressão, perde a sua essência democráti-ca e se torna um reflexo ilusório e distante da realidade. A democratização dos veículos de comunicação, iniciativa fundamental ao combate à hegemonia midiática tradicional, busca a pluralização dos meios de produção cultural como forma de promover o seu aces-so à diversidade dos movimentos sociais.

Analogamente aos grupos de pressão, os partidos políticos inserem-se no contexto contemporâneo como organizações políticas detentoras de uma ideologia em comum e que têm como objetivo conquistar, por meios legais, total ou parcialmente o poder estatal. Nesse sentido, os partidos vinculam a con-duta do representante aos interesses do re-presentado, organizando os eleitores e cana-lizando o seu voto. Entretanto, na realidade brasileira, o cerne democrático dos partidos políticos perde espaço para a sua generaliza-da decadência.

Inicialmente, a crise partidária é desen-cadeada pelo multipartidarismo excessivo, marcado pela hiperfragmentação de inte-resses e pela fragilidade e efemeridade das agremiações. No Brasil, a existência de trinta e dois partidos reflete um dos maiores desa-fios da governança atual: o apoio partidário no interior das casas legislativas. Essa busca pela maioria de votos exige o surgimento de

coligações, alianças políticas norteadas por interesses políticos casuísticos em detrimen-to da essência ideológica da organização. As-sim, a erosão das bases partidárias, no con-texto atual, retrata o constante processo de heterogeneização estrutural das agremiações no empenho de conquistar um mercado po-lítico repleto de demandas diversas. Nessa tentativa de eleger os seus representantes, os partidos vem, ao longo dos anos, perdendo a sua coerência ideológica interna para ideais difusos e gerais. Diante disso, o sacrifício do posicionamento militante e a defesa de dis-cursos abstratos denunciam a busca alienada pelos votos de uma sociedade plural.

O avanço dos meios de comunicação, ocorrido durante a década de 80, alterou de forma profunda a estrutura do modelo re-presentativo (COSTA, 2012). A intermedia-ção entre a sociedade civil e o representante político, antes realizada pelo partido, perde o seu espaço para a promoção direta da can-didatura pelo próprio candidato através das novas mídias. Este, por sua vez, tem a sua personalidade exaltada pelos diversos canais de comunicação e assume certa autonomia frente aos posicionamentos ideológicos da agremiação política. Nesse sentido, consa-gram-se como vitoriosos não aqueles sujeitos à identidade do partido, mas os que se reve-lam líderes carismáticos.

A mobilização dos partidos políticos so-bretudo em períodos pré-eleitorais e o de-clínio generalizado da participação eleitoral consciente refletem a perda da imperativi-dade do sistema representativo nos moldes contemporâneos. O abismal e crescente dis-tanciamento das ações e dos interesses que envolvem a relação entre representante e re-presentado desencadeia o descrédito nas ins-tituições públicas e o desencantamento polí-tico. As grandes manifestações eclodidas ao longo de todo o país, em momentos de fervor nacional, refletem a aspiração popular pela construção de uma democracia mais dialógi-ca e cidadã.

A instrumentalização da política pública

brasileira pelos mais influentes setores em-presariais detentores de capital, em detri-mento das demais esferas da sociedade, tem como consequência a exclusão do povo do espaço decisório público. O capital conduz as deliberações que cercam a política brasileira em conformidade com os seus interesses e, dessa forma, gera graves prejuízos à sobera-nia popular. O estabelecimento de contratos licitatórios fraudulentos, o direcionamento de políticas públicas e a manipulação do pro-cesso de criação de leis são somente alguns dos muitos mecanismos de manuseio da de-mocracia utilizados pelas grandes institui-ções empresariais.

A título de exemplificação, a Operação La-va-Jato, investigação da Polícia Federal de-sencadeada em março de 2014, revelou o en-volvimento de uma série de empresários com elevadas instâncias do poder político em uma tentativa de direcionar uma série de decisões públicas. Membros do mais alto escalão de empresas como Odebrecht, Mendes Júnior, Andrade Gutierrez, Construtora Queiroz e Galvão, Camargo Côrrea Construções, Enge-vix, OAS e diversos outros respondem judi-cialmente por crimes de lavagem de dinheiro, corrupção e formação de organização crimi-nosa.

O setor empresarial deve ter assegurado o seu direito de manifestação acerca das inú-meras questões englobadas pela política bra-sileira. Entretanto, o prejuízo democrático observado na atualidade surge no momento em que tais setores são os únicos protagonis-tas detentores dessa garantia. A supremacia do capital deve ceder espaço para participa-ção, no espaço público, de agentes livres de transformação, incorporados na figura de representantes de Organizações Não Gover-namentais (ONGs), setores de órgãos locais, professores e alunos de instituições de ensi-no, associações, agremiações estudantis, mo-vimentos minoritários e de diversas outras esferas da sociedade.

Nas palavras de José Luiz Quadros de Ma-galhães,

“democracia não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcan-çar e depois se acomodar, pois é cami-nho e não chegada. É processo e não resultado” (MAGALHÃES, 2004).

Nesse sentido, o exercício democráti-co se fundamenta no processo constante de edificação da soberania popular conforme as transformações sociais, econômicas e po-líticas que acompanham o momento histó-rico presente. A consolidação de espaços de comunicação plurais; a construção, a partir dos princípios de tolerância e respeito, de uma atmosfera dialógica; a preservação da liberdade de expressão e a materialização da

garantia da dignidade humana representam elementos essenciais ao processo de reafir-mação e de reconstrução da democracia.

O corpo de alunos e professores da Facul-dade de Direito da UFMG, diante da oportu-nidade de compor uma instituição marcada pela edificação de uma consciência crítica e engajada com a realidade do país, assume uma responsabilidade de caráter singular frente à crise democrática vivida atualmente no Brasil. A Vetusta Casa de Afonso Pena re-presentou, ao longo da História, um espaço dialógico e analítico, uma base de resistência à ditadura militar e um forte a favor das mais diversas lutas sociais pela igualdade, liberda-de e dignidade da vida humana. A instabili-dade política, econômica, social e, acima de tudo, democrática marca o momento presen-te e exige, da prezada Faculdade de Direito, uma performance militante na defesa das ga-rantias individuais, da integridade das insti-tuições, da imparcialidade do judiciário e da supremacia da Constituição.

Referências

ALVES, Adamo Dias. A Crise da Democracia Representativa. Publica Direito. Manaus

BRITO, Laura Souza Lima. Liberdade e o Princípio Representativo na Ordem Democrá-tica. Revista da Faculdade de Direito da UFMG n° 63, 2013.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. Ma-lheiros Editores. Brasil, 1967.

CONSTANT, Benjamin. A liberdade dos an-tigos comparada à dos modernos. Discurso pro-nunciado no Athénée royal de Paris, 1819.

COSTA, Homero de Oliveira. Crise dos Par-tidos e as Transformações dos Governos Re-presentativos. Periódicos UFRN, vol. 11, n.° 1. Natal.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O Res-gate da Democracia Representativa Através da Democracia Participativa. Revista da Faculda-de de Direito da UFMG, n° 44, 2004.

James Makepeace Boswell

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midiática. Os comportamentos passam a se pautar pela lógica binária estabelecida pelos grandes meios de comunicação. O aforismo alienante é simples: quem está a favor da Pre-sidência da República e, por conseguinte, da legalidade constitucional é defensor da imo-ralidade e da corrupção, sendo, por tal, digno da execração e violência pública.

O sociólogo português Boaventura de Souza Santos resume com maestria o atual quadro de aliança entre a portentosa mídia brasileira e o judiciário paladino. Segundo ele,

“[...] A Operação Lava Jato, em si mesma uma operação extremamente meritória, foi o instrumento utiliza-do. Contando com a cultura jurídica conservadora dominante no sistema judicial, nas Faculdades de Direito e no país em geral, e com uma arma mediática de alta potência e precisão, o bloco conservador tudo fez para des-virtuar a Operação Lava Jato, des-viando-a dos seus objetivos judiciais, em si mesmos fundamentais para o aprofundamento democrático, e con-vertendo-a numa operação de ex-termínio político. O desvirtuamento consistiu em manter a fachada insti-

tucional da Operação Lava Jato, mas alterando profundamente a estrutura funcional que a animava por via da sobreposição da lógica política à lógi-ca judicial. Enquanto a lógica judicial assenta na coerência entre meios e fins ditada pelas regras processuais e as garantias constitucionais, a lógica política, quando animada pela pulsão antidemocrática, subordina os fins aos meios, e é pelo grau dessa subor-dinação que define a sua eficácia [...]”7.

A ofensiva conservadora encontra nos meios de comunicação uma arma qualificada para a consecução de seus objetivos. Nesse aspecto, a Rede Globo, principal meio de co-municação nacional revela-se como a grande patrona do projeto político-ideológico de to-mada do poder, mesmo que para isso a liber-tinagem de expressão, o engano e a seletivi-dade tenham que imperar sobre a precisão, a imparcialidade e a verdade, preceitos tão caros a todo jornalista que se preze.

Só será possível o aprofundamento da de-mocracia quando a informação for democra-tizada. Neste sentido, o advento da recente regulamentação da mídia na Argentina, por meio da Lei 26.522/2009, reacende os de-

bates sobre a promoção de uma Democracia plural com enfoque na quebra de monopólios no setor de radiodifusão. Quando tratamos do cenário brasileiro, observa-se que esse setor é regulamentado pelo Código Brasilei-ro de Telecomunicações de 1962 e que fora substancialmente modificado pelo Decreto-lei nº: 236 de 1967, devendo hodiernamen-te, ser analisado à luz dos Artigos 220 ao 224 da CF/88. Mas, como se estrutura o cenário de radiodifusão no País? A promoção de um novo liame de regulamentação no Brasil seria o caminho para uma mídia mais compromis-sada com o Estado Democrático de Direito? A regulamentação seria sinal de cerceamento da liberdade de expressão?

Em um breve escorço histórico-legislati-vo, verificamos que o Brasil optou, ainda na década de 1930, pelo chamado trusteeship model, isto é, entregar o setor da radiodifu-são, prioritariamente, à exploração comercial de empresas privadas através de concessões da União. Somente em 1988 a nova Consti-tuição fala em complementariedade entre os sistemas privado, público e estatal (arti-go 223) e, mesmo assim, a norma nunca foi regulamentada e não teve nenhuma eficácia. Nesse sentido, nos atesta Venício A. de Lima que:

PODER E MÍDIA: ATÉ ONDE VAI A CRISE BRASILEIRA?

Yan Amorim

ARTIGO CAPA

“[...] Naquela hora, presenciando tudo aquilo, eu senti que tinha travado co-nhecimento com um engenhoso apa-relho de aparições e eclipses, espécie complicada de tablado de mágica e espelho prestidigitador, provocando ilusões fantasmagóricas, ressurgi-mentos, glorificações e apoteoses com pedacinhos de chumbo, uma máquina Marinomi e a estupidez das multidões. Era a imprensa, a onipotente impren-sa, o quarto poder fora da Constitui-ção [...]”.

Lima Barreto¹.

A televisão chegou ao Brasil em 1950 por obra do então jornalista e empresário Assis Chateaubriand. Ao longo das décadas de 60, 70 e 80, o novo meio de comunicação agi-gantou-se. Em 1969, quatro anos após sua inauguração, a Rede Globo começava a se destacar, tendo como lema “o padrão Globo de qualidade”. Lançou em setembro daquele ano o Jornal Nacional, primeiro noticiário transmitido em rede nacional para todas as emissoras afiliadas, e que assumiria em pou-co tempo o status de principal informativo da televisão brasileira2. De lá para cá, o grupo Marinho tornou-se a maior sociedade de mí-dia no Brasil, composto por diversos jornais, revistas, rádios, canais de televisão aberta e fechada. A “menina dos olhos” do poderoso conglomerado midiático é, sem sombra de dúvidas, a Rede Globo de televisão, que se notabiliza por ser a segunda maior emisso-ra comercial do mundo. Assistida por mais de 200 milhões de pessoas diariamente, for-ma opinião, dita padrões de consumo e, até mesmo, coloca em xeque a jovem democracia brasileira.

Desde as eleições de 2014 a ala conserva-dora brasileira tem perpetrado diversos ata-ques à Presidência da República com o claro intuito de desestabilizar o governo eleito de-mocraticamente. O pensamento é: já que não ganhamos, vamos apelar para o famoso “ta-petão”. Como de praxe, a televisão brasileira, histórica aliada dos interesses do capital in-

ternacional, não poderia ficar de fora; puxou o enredo e hoje possui papel fulcral na atual crise que atravessamos.

Seja na seletividade de informações vei-culadas pelos jornais, como na midiatização do direito penal e na espetacularização de fa-tos truncados, o jornalismo de William Bon-ner é, sem dúvida, o maior representante do golpe branco que se acerca. A retórica nunca foi tão bem empregada. Os sofismas assu-mem proporções de causar inveja ao próprio Protágoras. E a sociedade brasileira assiste boquiaberta ao desmantelamento de suas instituições. É o Estado Democrático de Di-reito que se encontra na berlinda e, pelo que parece, a “República de Curitiba” continua-rá a apontar sobre o seu pescoço a espada da justiça messiânica e salvadora.

O quadro é preocupante. A grande mídia brasileira galgou tanto poder que tem a seu dispor a admiração e ainda a conivência de diversos profissionais do Estado. Em plena vigência da Constituição de 1988, o juiz Ser-gio Moro, em flagrante violação ao artigo 5º, inciso XII da CF, bem como dos ditames da Lei 9.296/96 e da Resolução n. 59/2009 do CNJ, foi capaz de fornecer aos grandes meios de comunicação trechos de interceptações telefônicas em que a Presidente da Repúbli-ca estabelecia diálogo com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A razão é eviden-te, o “douto” magistrado paranaense procu-rava blindar-se das críticas emergentes da determinação ilegal de condução coercitiva do ex-presidente petista para fornecimento de depoimento no processo investigatório da operação Lava Jato.

Como bem apontado pelos juristas Ale-xandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andra-de Cattoni de Oliveira3, a decisão monocráti-ca do Ministro Teori Zavascki na Reclamação 23.457 contribui para analisarmos o flagrante quadro de ilegalidade em que se enveredou a justiça “salvadora” de Sergio Moro. Com efei-to, o arguto conteúdo decisional aporta que a conduta do magistrado:

“[...] acabou por usurpar a competên-cia do Supremo Tribunal Federal ao captar conversas telefônicas da Presi-

dente da República, bem como que a divulgação de tais conversas telefôni-cas não poderiam ter sido realizadas pela 1ª instância, pois a interlocutora detém prerrogativa de foro perante o STF e, ainda, pediu a sustação da de-cisão e o imediato envio dos autos de quebra de sigilo telefônico para o Su-premo Tribunal Federal [...]”,

e mais,

“[...] No caso em exame, não tendo havido prévia decisão desta Corte sobre a cisão ou não da investigação ou da ação relativamente aos fatos indicados, envolvendo autoridades com prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, fica delineada, nes-se juízo de cognição sumária, quando menos, a concreta probabilidade de violação da competência prevista no art. 102, I, b, da Constituição da Re-pública”34

O que causa maior espanto é a cobertura que a Rede Globo de Televisão deu aos fa-tos. No mesmo dia, manifestantes compare-ceram em frente à residência do ministro e hastearam uma faixa com os dizeres: “Deixa o Moro trabalhar”5. Seletivamente, dois dias após este ocorrido, o Jornal Nacional invoca ‘legalidade’ e omite a lista da Odebrecht, na qual figuravam importantes nomes de polí-ticos ligados à direita brasileira. E não para-mos por aqui. Dias antes, em 18 de março de 2016, realizaram-se ao longo do país diversas passeatas em prol da democracia. A cobertu-ra destes eventos, como era de se esperar, foi mínima.

A situação beira o caos. A sensação de medo e desconfiança excede os padrões. Cer-tos comportamentos, que eram típicos do período da ditadura civil-militar, voltam a aparecer. Não se pode defender a democra-cia sem, hoje, ser taxado de “petralha” ou ser violentado em plena Igreja, como foi aquele triste caso em que uma fiel agrediu o então Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer6, Tais fatos não estão dissociados, mas pro-fundamente interligados pela superestrutura

Banksy

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O Centro Acadêmico Afonso Pena (CAAP), objetivando discutir o posicionamento político da Faculdade de Direito da Universidade Fede-ral de Minas Gerais (UFMG) sobre o processo de impeachment, convocou uma Assembleia Extraordinária a ser realizada no dia 29 de abril de 2016. Pouco antes da realização do evento, porém, o Centro Acadêmico foi surpreendido por um oficial de justiça. Este comunicou uma decisão judicial cuja resolução proibia a efetiva-ção da reunião, sob sanção de R$500,00.

Os autores dessa ação que impossibilitava a realização de Assembleias cujo tema fosse o impedimento da presidenta da República foram dois alunos da faculdade. Os argumentos usa-dos foram de que uma discussão do tipo fugiria das atribuições estatutárias do Centro Acadêmi-co, justificativa esta que não é válida, pois des-considera todo o histórico de luta e mobilização estudantil desta entidade. Além disso, viola-se uma série de garantias fundamentais tais como a liberdade de expressão, associação e reunião, demonstrando o claro caráter inconstitucional e cerceador dessa liminar.

A decisão possuía como argumentos outras diversas declarações mentirosas como apare-lhamento político e convocação de movimento grevista. Essas afirmativas não possuem qual-quer fundamento, sendo absurdo considera-las a fim de se impedir a mobilização política entre estudantes. Outra colocação extremamente pro-blemática encontrada na liminar é a reprovação do fato de o CAAP ter supostamente “estimula-do a utilização do espaço interno da faculdade por moradores de rua”. Essa argumentação de-monstra um aspecto higienista e segregador por parte dos autores e da juíza, que desconsideram a humanidade de um grupo marginalizado de pessoas.

Apesar de todo abuso jurídico-político, os es-tudantes não se deixaram intimidar. Planejada para ser uma Assembleia acerca da conjuntura política brasileira, a reunião dos estudantes - embora proibida de ser realizada -, aconteceu, tendo como novo ponto de pauta a recente li-mitar proposta por alunos da Casa. Após um longo debate, em que mais de 100 alunos esta-vam presentes, decidiu-se pelo adiamento da Assembleia para a próxima quarta-feira, dia 04

de maio. Com a dissolução da reunião, ocorreu, então, um novo movimento de estudantes. Os alunos subiram os 14 andares da Faculdade de Direito proferindo frases de ordem como “não vai ter golpe” e “aqui está presente o movimen-to estudantil”. Dessa forma, demonstrou-se, não por meio dos mecanismos judiciais, mas pela via política, que a voz dos estudantes existe e deve, sim, ser considerada.

Nesse sentindo, é preciso lembrar que o Brasil tem ao menos a pretensão constitucional de se caracterizar como um Estado Democráti-co de Direito. Uma violação institucionalizada como essa demonstra um abuso paradoxal e inaceitável. Quando o órgão responsável pela promoção de justiça é o mesmo que pratica de-liberadamente uma ação de injustiça, é preciso que a população, consciente da sua soberania, se mobilize para manter seus direitos funda-mentais à democracia. Por isso, o CAAP, en-quanto representante dos alunos de Direito da UFMG, não se calará.

INFORMA

“[...] A tibieza legal fez com que uma das características identificadoras da radiodifusão brasileira fosse a ausên-cia de restrições efetivas à propriedade cruzada, isto é, à possibilidade de que um mesmo grupo empresarial contro-le jornais, revistas, emissoras de rádio e de televisão em um mesmo merca-do. Isso fez com que a radiodifusão se estabelecesse oligopolisticamente em nosso país. Os maiores concessio-nários de emissoras de rádio foram os grupos que já eram proprietários de jornais. O mesmo aconteceu com as concessões de televisão. Foi dessa maneira que se formaram os maiores grupos de mídia nacionais e regionais do Brasil, resultando num sistema de mídia concentrado e controlado por um reduzido grupo de empresas. Os principais exemplos são os Diários Associados, até a metade do século passado, e as Organizações Globo, a partir da década de 1970. Consolidou-se, portanto, entre nós um sistema de mídia concentrado, liderado pela tele-visão e, em boa parte, controlado por grupos familiares vinculados às elites políticas regionais e locais. Essas ca-racterísticas específicas é que fazem com que no Brasil o poder da mídia assuma, potencialmente, proporções ainda maiores do que em outros siste-mas políticos [...]”8

Este quadro é melhor delineado nas re-centes pesquisas realizadas pelo Fórum Na-cional pela Democratização da Comunicação que nos aponta um panorama desalentador. Atualmente, menos de 10 empresas contro-lam 70% dos meios de comunicação no Bra-sil, deflagrando, assim, uma estrutura oli-gopolista. Os conglomerados que lideram as maiores redes de TVs privadas (Globo, Band, SBT, Record) controlam, direta e indireta-mente, os principais veículos de comunicação no país. Este controle não se dá totalmente de forma explícita ou ilegal, uma vez que prá-ticas como afiliação de emissoras e controle acionário em outros meios de comunicação não contrariam as disposições jurídicas exis-tentes.9

Ademais há que se tratar também de ou-tros grupos de influência nacional como, por exemplo, o grupo Abril com atuação em mas-sa na imprensa escrita, sendo também pro-prietário da MTV.

Nesse sentido, nos deparamos com um quadro onde as Organizações Globo detêm 340 veículos, o SBT com 195 veículos, a Band com 166 veículos e Record com 142 veículos. Nos estados, as principais forças de mídia regional são geralmente ligadas a uma das

grandes redes de TV nacionais. Na maioria dos casos - seja no segmento jornal, rádio ou TV - quem detém a liderança na audiência é o grupo de comunicação afiliado à Rede Globo.

Quanto mais pobre é a região, maior é o nível de concentração da mídia, ou seja, me-nor é o número de grupos que detêm veículos como rádio e TV. Como apontado por Vilson Vieira Jr10, no ano de 2007, as regiões Sul e Sudeste abrigavam o maior número de emis-soras e retransmissoras de TV (cerca de 4 mil, de um total de 10.514 no País), 1,6 mil rádios comerciais e educativas (de 4.392 no total), 900 emissoras comunitárias (de 2.513 em todo o País) e mais da metade das operadoras de TVs a cabo (55% das 298 em todo o país).

Enfim, com base nestes dados, podemos auferir que o cenário brasileiro, no que tange a produção de informação com disposição em todo o território nacional, se encontra defini-do em uma estrutura de oligopólio. Existindo, assim, conglomerados com forte característi-ca de propriedade cruzada além do estabe-lecimento de influências diretas e indiretas, oriundas de afiliações desses grupos com re-des de atuação regional. Ao observarmos o conteúdo “informativo” produzido por esses grupos, percebe-se uma grande homogenei-dade entre seus posicionamentos.

Esses meios de comunicação não são ca-pazes de refletir a multiplicidade e diversida-de do povo brasileiro. Pelo contrário, o prin-cípio da liberdade de expressão está sendo violado por essa concentração, uma vez que os portentosos canais da mídia brasileira não dão voz aos múltiplos grupos de expressão cultural que compõem a sociedade. O cami-nho para o progresso é, sem sombra de dúvi-das, a regulamentação do setor. A quebra dos oligopólios indica que o que se quer não é que a mídia fale menos, pelo contrário, se anseia que mais vozes e opiniões ganhem espaço de forma democrática.

A crise que atravessamos é mais que po-lítica ou econômica, é essencialmente moral. O tecido social parece descosturar-se ante aos discursos de ódio, preconceito e inverda-des que se criam. Somos jogados na súbita impressão de estarmos em plena “Terra em Transe”10, pois, paulatinamente, os grandes meios de comunicação retiram do povo o que há de mais puro no homem, a capacidade de pensar, criticar, enfim, autoanalisar-se.

O que dita as notícias é a fome da audi-ência, a voracidade do lucro e o amor ao con-trole. Rasga-se a Lei, enfatiza-se a atuação do judiciário messiânico, lança-se todo um país no caos. Tudo isso para se reafirmar o poder do grupo Globo e dos demais donos da mídia. Tudo isso para se reafirmar o quarto poder fora da Constituição.

“Regulamentação da Mídia Já!”, dora-vante este deverá ser mais um de nossos gri-

tos em face da crise brasileira.

REFERÊNCIAS:

1BARRETO, Lima. Recordações do Es-crivão Isaías Caminha - Editora: Ática, Coleção: Bom Livro, 6ª Ed. 1998.2Televisão no Brasil. Disponível em: ht-tps://pt.wikipedia.org, acesso em 26 de março de 2016. Ver também: “Além do Cidadão Kane”, documentário televisi-vo britânico de Simon Hartog exibido em 1993 pelo Channel 4, emissora pú-blica do Reino Unido. Disponível em: https://www.youtube.com, acesso em 26 de março de 2016.3BAHIA, Alexandre, BACHA E SILVA, Diogo, CATTONI DE OLIVEIRA, Mar-celo Andrade. O jurisprudencialismo processual penal no Supremo Tribunal Federal e o esvaziamento das garantias constitucionais. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/, acesso em 26 de março de 2016.4Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAnda-mento.asp? incidente=4951535, acesso em 24 de Março de 2016.5Notícia veiculada pelo portal G1 em 23 de março de 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/03/manifes-tantes-penduram-faixa-em-frente-ca-sa-de-teori-zavascki-no-rs.html, acesso em 26 de março de 2016.6Notícia veiculada pelo portal Pragma-tismo Jurídico em 24 de março de 2016. Disponível: http://www.pragmatismo-politico.com.br/2016/03/arcebispo-de-sao-paulo-e-covardemente-agredi-do-por-mulher-apos-celebrar-missa.html/, acesso em 26 de março de 2016.7SOUZA SANTOS, Boaventura de. Bra-sil: a democracia à beira do caos e os pe-rigos da desordem jurídica. Disponível em: http://www.sul21.com.br/, acesso em 26 de março de 2016.8DE LIMA, Venício A. - Mídia: Crise Política e poder no Brasil – São Pau-lo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006, p. 60 / 61.9 10Pesquisas disponíveis em: http://www.donosdamidia.com.br/, acesso em 01 de setembro de 2013. Ver tam-bém: O Monopólio da Comunicação, texto de lavra de Vilson Vieira Jr. Dis-ponível em: http://www.valedoivinhe-magora.com.br/, acesso em 09 de no-vembro de 2007.11 Filme brasileiro de 1967, do gênero drama, roteirizado e dirigido por Glau-ber Rocha.

LIBERDADE CERCEADA

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Emanuela Ribeiro Halfeld e João Pedro Sturm

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“Como uma moça tão bonita como você usa uma blusa dessa mulher feia que é a Frida Kahlo?”

“Tirar o eurocentrismo da educação pra colocar um ‘afro sei lá o quê’ é um absurdo.”

“Vou brigar muito com você porque não su-porto feminazi.”

“Se algum aluno pixar no fundo dessa sala “Túlio reaça”, eu posso ir na sala do CAAP e escrever “alunos reaça”?”

Hermes Vilchez Guerrero

José Luiz Borges Horta

José Luiz Borges Horta, o garoto ‘voz maldita’ da vez

Túlio Vianna

VOZES MALDITAS

PANELAÇO

Barulho para todos os lados, panelas, gar-fos, facas, gritos e estardalhaço. Uma mu-lher grita palavras desesperadas à direita de minha janela e recebe sua resposta poucos momentos depois de um homem, bem mais nervoso, gritando a minha esquerda. Chega a ser bonito o modo como seus gritos entram em uma espécie de sintonia, cria-se um laço entre esses dois gladiadores de vozes. Um grita de um lado e a outra responde do outro. A cada vez que se escutam, a motivação cres-ce, os palavrões vão sendo copiados, assim como o ritmo das pancadas nas coitadas das panelas. Forma-se, naquele breve instante de manifestação, um laço forte e puro, os dois se tornam tão unidos que parecem irmãos, amantes, mãe e filho. O mais belo é que per-manecem no anonimato. Não se conhecem. Apenas gritam, fazem barulho, proferem palavras de ódio e, ainda no anonimato, se amam. No dia seguinte seus olhares se cru-zam no ponto de ônibus e o amor, tão forte no dia anterior, nem sabe que existiu.

LITERATURA

Memórias de um Vulgo Pensador

Túlio

Cam

pos

Ana Menezes

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nacional. A consequência a ser observada desse fenômeno, e que podemos facilmente identificar no cenário político brasileiro, é a primazia do mercado sobre a sociedade e da estabilidade financeira global sobre a política nacional e, assim como aconteceu no passa-do, danos graves à democracia.

A capacidade demonstrada pelo capital financeiro de apontar uma “solução” para a crise que provoca graves e duradouros sa-crifícios na sociedade civil não pode ser des-vinculada de seu poder absoluto de definir a pauta, a agenda e o contexto do debate pú-blico. O cientista social Alex Carey, líder nos estudos no campo de propaganda corpora-tiva, argumenta que: “O século XX tem sido caracterizado por três desenvolvimentos de grande importância política: o crescimento da democracia, o crescimento do poder cor-porativo, e o crescimento da propaganda cor-porativa como um meio de proteger o poder corporativo contra a democracia.”. O mono-pólio da informação e a estigmatização da crítica permite que os interesses particulares do capital financeiro sejam tomados como interesses gerais da sociedade. A grande mí-dia, na defesa dos interesses do capital, tenta manter uma máscara de oposição ao poder, de subversão, posando como grande adversá-ria das instituições poderosas e corruptas; no caso brasileiro, o PT. Tudo que não se encaixa na agenda de interesses da frente neoliberal é descartado e condenado. Sem a possibilida-de de contraditório, o loop infinito da propa-ganda antipetista (e antiesquerda como um todo) torna-se uma lavagem cerebral.

Até agora, já foram apontados dois dos motores da atual crise política - a frente neoli-beral ortodoxa que busca restaurar sua glória liberal dos anos 1990 e a grande mídia a ela aliada. Não entrarei a fundo nos dois outros motores da crise: um Congresso corrupto que planeja um processo de impeachment que tem como ilícito penal as pedaladas ficais da presidenta Dilma - prática que, se considera-da como motivo de impeachment, não deixa-rá meia dúzia de governadores brasileiros em seus cargos- e o complexo judicial-jornalísti-co liderado pelo juiz federal de primeira ins-tância Sérgio Moro. O motivo de decidir não me delongar nesses dois pontos é simples: ao destinar esse artigo ao jornal da Faculdade de Direito da UFMG, não tenho dúvidas de que o consenso entre os leitores deste arti-go é pela preservação do Estado de Direito, como definido na Constituição de 1988, que vincula a todos: juízes de todas as instâncias, membros do Ministério Público, membros da Polícia Federal e de todos os órgãos públicos e cidadãos.

Desse modo, para exprimir preocupações acerca do atropelamento da ordem jurídica por membros dos poderes Legislativo e Judi-

ciário, socorrer-me-ei de pronunciamento do ministro Marco Aurélio Mello, feito em 20 de março de 2016:

“A atuação do judiciário brasileiro é vinculada ao direito positivo, que é o direito aprovado pela casa legislativa ou pelas casas legislativas. Não cabe atuar à margem da lei. À margem da lei não há salvação. Se for assim, vinga que critério: não o critério normativo, da norma à qual estamos submetidos pelo princípio da legalidade. Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa alguma senão em virtude de lei. Se o que vale é o critério subjetivo do julgador, isso gera uma insegurança muito grande.”

Conforme apontado pelo ministro Ri-cardo Lewandowski, durante a abertura de sessão extraordinária do Supremo Tribunal Federal, no dia 22 de março de 2016, o mi-nistro Marco Aurélio não está sozinho. Cabe citar exemplificativamente pronunciamento do Ministro Luís Roberto Barroso, de 13 de setembro de 2013:

“Não estou almejando ser manchete favorável. Sou um juiz constitucional, me pauto pelo que acho certo ou cor-reto. O que vai sair no jornal no dia seguinte, não me preocupa. Eu cum-pro meu dever. Se a decisão for con-tra a opinião pública, é porque este é o papel de uma corte constitucional. [...] Eu não estou aqui subordinado à multidão, estou subordinado à consti-tuição.”.

A criação de um complexo judicial-jorna-lístico é um desserviço à pacificação de con-flitos na sociedade, inclusive os jurídicos, na medida em que deslegitima as ações do Judi-ciário ao torná-lo agente político com agenda institucional diversa da defesa da Constitui-ção e das leis. A pílula amarga da legalidade deve ser engolida, de modo a proteger as ins-tituições democráticas brasileiras. Confor-me questionamento realizado pelo Ministro Marco Aurélio, se não vale o critério norma-tivo, a qual critério estará o Judiciário sub-metido? O critério do clamor popular, ma-nipulado pelos conglomerados de mídia em defesa dos interesses do capital privado? O critério do julgador, que possui agenda e in-teresses próprios? Novamente, isso gera uma grande instabilidade.

Segundo teóricos, a instabilidade ou a de-sestabilização das instituições democráticas é a maior característica de uma crise democrá-tica. Nesse momento de desestabilização, os atores políticos entram em jogo. Uma explo-ração precisa da atuação desses atores e de seus interesses é particularmente importan-te para o mapeamento das movimentações

ocultas por trás da aparente satisfação po-pular com a democracia, de modo a sermos capazes de defendê-la das ações de grupos de interesse privados. Hoje, o capital financeiro e o complexo judicial-jornalístico seguem o script histórico de priorização do mercado sobre a sociedade e da estabilidade financei-ra global sobre a democracia nacional. Como no passado ocorreu com Vargas, Quadros e Goulart. Se Dilma Rousseff tiver de se retirar do governo, os interesses neoliberais terão vencido mais uma vez. E, mais uma vez, terá sido submetido o povo brasileiro a uma “so-lução” proposta pelo mercado internacional: um golpe de Estado.

Referências1. BOITO JR., A.. A natureza da crise po-

lítica. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, p. 4-5, 10 mar. 2016.

2. BOITO JR., A. e BERRINGER, T.. Bra-sil: classes sociais, neodesenvolvimentismo e política externa nos governos Lula e Dilma. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 21, p. 31-38, 2013.

3. CAMPOS, L.. A crise completa: a eco-nomia política do não. São Paulo, Boitempo Editorial, 2001. 345 p.

4. CHESNAIS, F.. A finança mundializa-da: raízes sociais e políticas, configurações consequências. Tradução de Rosa Maria Marques e Paulo Nakatani. São Paulo, Boi-tempo, 2005. 255 p.

5. CHOMSKY, N.. World orders old and new. Nova Iorque, Columbia University Press, 1996. 311 p.

6. MERKEL, W.. Is there a crisis of demo-cracy. Democratic Theory, Nova Iorque, v.1, n.2, p.11-25, 2014.

7. PIMENTEL, J.V.S.. (Org.). Brasil, os BRICS e a agenda internacional. Brasília, FUNAG, 2012. 344 p.

8. SAMPAIO JR., P.S.A.. A ditadura do grande capital. Jornal dos Economistas, v.1, n.360, p.10-11, 2016.

9. SAXENA, S.. A coup is in the air: The plot to unsettle Rousseff, Lula and Brazil. The Wire, Nova Deli, 25 de março de 2016. Dispo-nível em <http://thewire.in/2016/03/25/a-coup-is-in-the-air-the-plot-to-unsettle-rousseff-lula-and-brazil-25893/>. Acesso em 27 de março de 2016.

10.WEISSHEIMER, M.. “Moro simples-mente deixou de lado a lei. Isso está escanca-rado”, diz ministro do STF sobre vazamentos. Sul 21, Porto Alegre, 20 de março de 2016. Disponível em <http://www.sul21.com.br/jornal/moro-simplesmente-deixou-de-lado-a-lei-isso-esta-escancarado/>. Acesso em 27 de março de 2016.

ARTIGO

Tarefa

“Morder o fruto amargo e não cuspir

mas avisar aos outros quanto é amar-go,

cumprir o trato injusto e não falhar

mas avisar aos outros quanto é injus-to,

sofrer o esquema falso e não ceder

mas avisar aos outros quanto é falso;

dizer também que são coisas mutá-veis...

E quando em muitos a noção pulsar

— do amargo e injusto e falso por mu-dar —

então confiar à gente exausta o plano

de um mundo novo e muito mais hu-mano.”

Geir Campos

À medida que o conhecimento superficial, acrítico e crédulo, transmitido pelos grandes conglomerados de mídia e legitimado pela atuação inconstitucional de membros do ju-diciário, torna-se embasamento ideológico para a condução de um golpe de estado con-tra as instituições democráticas brasileiras, faz-se necessário buscar outros instrumentos de apropriação da realidade histórico-social. Caracterizar e expor as movimentações dos agentes políticos que influenciam o quadro político, econômico e social deste momento histórico não só nos dá subsídio para a dis-puta ideológica que polariza a sociedade bra-sileira, como permite que façamos ajustes na tática de resistência às forças que objetivam minar os ganhos políticos e socioeconômicos conquistados durante o governo do PT.

Traçando-se um panorama de políticas econômicas a partir do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva até o momento atual, é possível identificar duas grandes frentes ideológicas e partidárias em conflito - a frente neodesenvolvimentista,

base ampla e heterogênea de sustentação da política de crescimento econômico e de transferência de renda encabeçada pelos go-vernos petistas; e a frente neoliberal ortodo-xa, alinhada aos interesses de uma fração do empresariado brasileiro e, principalmente, à agenda do capital privado internacional, lide-rada, no Brasil, pelo PSDB. A busca neode-senvolvimentista da conciliação entre o estí-mulo ao investimento produtivo e ao capital financeiro, acompanhada da distribuição de renda que aconteceu durante os primeiros mandatos petistas, contribuiu para o resgate e ampliação do papel do Estado na organiza-ção da economia e na promoção de políticas sociais. Esta perspectiva contrapõe o progra-ma neodesenvolvimentista aos dogmas neoli-beralistas não intervencionistas e de abertura da economia ao capital e interesses privados.

A noção de que uma integração mais acen-tuada das economias em desenvolvimento na economia mundial, por meio de uma injeção de capitais privados, favoreceria a recupe-ração do atraso e o crescimento dos países periféricos é um dos pilares do pensamento neoliberal ortodoxo. A suposta ligação posi-tiva entre capitais estrangeiros e crescimento econômico apoiou-se, até o fim dos anos 90, na experiência dos “Tigres Asiáticos” - uma dezena de países do Sudeste Asiático que al-cançaram grandes sucessos, especialmente em matéria de industrialização e de aquisição de tecnologias, após o ingresso de capitais estrangeiros. O retorno do crescimento em alguns países emergentes da América Latina na década de 1990, depois da injeção maciça de capitais, reforçou a ideia de uma relação positiva entre a participação crescente de um país no processo de globalização financeira e a aceleração de seu desenvolvimento econô-mico. Entretanto, é necessário apontar que, contrariamente ao que sustentam teses orto-doxas, o ingresso de capitais estrangeiros in-troduz novos fatores de instabilidade ao cres-cimento econômico dos países emergentes.

O Brasil pode servir de exemplo, como protagonista e vítima, do processo de vulne-rabilização de uma economia periférica em

face ao capital internacional. A abertura da economia ao capital internacional, combina-da com a valorização do real e taxas de juros elevadas, desestimulou o investimento exter-no nos setores sujeitos à concorrência exter-na e favoreceu o ingresso de recursos desti-nados à privatização de empresas públicas e à aquisição de empresas privadas de ser-viços. A desnacionalização da economia não só agravou os requerimentos de importação para a produção e para o investimento, como também aumentou a remessa de lucros das empresas de serviços públicos, realimentan-do, por assim dizer, o desequilíbrio externo estrutural. Em um cenário internacional de aumento nos preços das commodities, com taxas de crescimento do PIB inimagináveis nos anos 90, a ofensiva neoliberal ortodoxa foi apaziguada, como demonstra o professor Armando Boito Jr. em seu excelente artigo “A Natureza da Crise Política Brasileira”, publi-cado no Le Monde Diplomatique - Brasil, em sua edição mais recente. A relativa calmaria política entre os neoliberais ortodoxos e os neodesenvolvimentistas só chegou ao seu fim com a estagnação econômica dos anos 2011 e 2012 - que viu um crescimento da economia brasileira de quase 7,5% em 2010 despen-car para uma taxa próxima a zero. A derru-bada da taxa SELIC levou à diminuição dos rendimentos dos investimentos financeiros a quase zero - situação que, contextualizada com a entrada massiva de capital financeiro internacional mencionada acima, nos dá uma perspectiva renovada dos reais atores políti-cos por trás da presente crise política brasi-leira, assim como de seus reais interesses.

A emergência das economias de países periféricos, sob a liderança de governos que não se coadunam à perspectiva neoliberal or-todoxa, introduziu elementos complicadores aos cenários construídos nos 1990, na medi-da em que colocou em tela a hegemonia de uma ordem neoliberal, cujo principal eixo é a liberação dos fluxos financeiros e a escassa regulamentação financeira nos países desen-volvidos, acompanhada da inerente fragili-dade estrutural do capital financeiro inter-

A ANATOMIA DE UMA CRISE:considerações sobre a crise

política brasileiraMaria Clara Ferreira Pereira

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Realidade global e contexto político, a crise da democracia representativa dita o tom das re-lações políticas em parte majoritária do globo. Sendo assim, saltam aos olhos exemplos dessas insurgências sociais e/ou sistêmicas, que de-monstram à articulação de agentes que visam a quebra do paradigma político, ou ao menos se demonstrar fora deste. Notável pontuar a quan-tidade expressiva de pessoas que tomam as ruas contra o governo da Presidenta Dilma Rousseff, com o reaparecimento de partidos de extrema-direita na Europa ou ainda, de modo menos co-lossal, nas primárias eleitorais dos Estados Uni-dos.

Momento único das relações democráticas, fundamentalmente na democracia representa-tiva, as eleições são termômetros interessantes, trazendo definições muitas vezes inesperadas. As motivações que levam o eleitor a escolher são as mais diversas, cabendo análises retroati-vas sobre políticas já implementadas, ou bases eleitorais lastreadas em promessas; em uma perspectiva de políticas públicas que são vistas com bons olhos. Neste universo, quem se vende melhor está um passo a frente dos concorrentes no pleito ao cargo eletivo.

Entretanto uma relação vem na tangente do momento eleitoral: o financiamento de campa-nhas. Se estas são etapas importantes, traba-lhando como mecanismo de definição de um projeto político, hoje o Financiamento de Cam-panhas é um dos principais catalizadores de candidatos. MANIN, cientista político estudio-so da democracia representativa e seus institu-tos, ensina que “O fato é que para existirem e se apresentarem aos eleitores, os partidos políticos precisam arrecadar fundos”1. Nota-se, então, que a questão do capital não é mais ponto auxiliar a questão da disputa política, tomando o centro da lógica, delimitando por vezes maior possibilida-de de êxito de um candidato sobre o outro.

Um novo confronto aqui se constata, nes-te caldeirão de microcosmos que compõe o mundo político na atualidade. A relação entre representante e representado é ten-sa, cabendo às formas e sistemas de gover-no trabalharem esta dinâmica, afastando ou aproximando os pólos, sendo disposto a fase eleitoral do jogo político as definições, como dito anteriormente. A questão é: neste jogo de expectativas do eleitorado e de proposi-

ções dos que pleiteiam os cargos, num mo-mento de hiato de representação ou credibi-lidade das instituições, como se posicionar fora do establishment?

O CASO NORTE-AMERICANOTalvez não exista exemplo mais evidente

da atual crise de representatividade global do que as eleições americanas. Uma mudança de paradigma no cenário eleitoral se mostra evidente, com quase, senão todos, os espe-cialistas políticos americanos chocados com o quadro atual. Dois candidatos se destacam, Bernard “Bernie” Sanders, senador indepen-dente de Vermont, pré-candidato pelo parti-do democrata, e Donald J. Trump, bilionário magnata, conhecido por suas opiniões con-troversas e por fazer um marketing do seu nome.

Esses dois candidatos estão concorren-do nas chamadas prévias da eleição, prática tradicionalmente americana. Na organização partidária e democrática local, qualquer cida-dão registrado como membro de cada partido pode escolher seu candidato que irá concor-rer na corrida pra qualquer cargo, inclusive para presidente. Essas prévias ocorrem antes das convenções dos partidos, que ocorrem no meio do ano para consolidar os votos obtidos nestas e para nomear o candidato do partido democrata ou do partido republicano.

A estratégia mais comum nessas prévias é de conseguir o voto da base, conhecido como “grass-roots” nos EUA, sendo que os candi-datos republicanos possuem um tom bem mais conservador e os candidatos democra-tas possuem um tom bem mais progressista em relação à eleição geral, em que ambos os partidos tendem a gravitar de volta ao cen-tro, num intuito de obter um maior voto dos independentes. Esse paradigma de esquer-da-centro-direita ganhou uma polarização maior nos últimos anos, sendo marcante nes-sa última eleição.

Assim aparecem essas duas figuras que se utilizam dessa polarização de modo a propul-sionarem suas campanhas, de maneiras dis-tintas. Donald Trump e Bernie Sanders não poderiam ser candidatos mais diferentes. O primeiro, bilionário que se gaba de seu su-cesso no mundo dos negócios, e o segundo é tido como um dos senadores com menos pa-

trimônio em todo o Senado e orgulhoso por não se enriquecer na vida pública. Um possui opiniões controversas, consideradas racistas, sexistas, ofensivas e divisionistas, o outro se baseia num discurso de união e de coopera-ção para enfrentar problemas institucionais.

Porém essas figuras se assemelham em um ponto essencial, um fator que pode vir a decidir toda a corrida presidencial. Ambos se distanciam do financiamento privado de suas campanhas. Donald Trump não hesi-ta ao chamar seus concorrentes na primária republicana de “comprados” e “marionetes de seus doadores”, se gabando em várias cir-cunstâncias de ser um desses que comprou seus oponentes em eleições passadas. Segun-do ele, toda sua campanha é financiada por ele próprio, sendo ele assim, livre de qual-quer força que o iria controlar como presi-dente. Bernie Sanders por sua vez não aceita qualquer doação dos chamados Super PACs, grandes instituições que servem como um fu-nil para o financiamento de campanhas. Ele financiou sua campanha apenas com doações individuais, quebrando o recorde anterior de Barack Obama em sua campanha presiden-cial de 20082.

Essas circunstâncias concretizam esses dois candidatos como aqueles contra o es-tabelecimento (“anti-establishment”). Num clima político tão desfavorável para aqueles que já fazem parte do sistema, ambos sur-preendem nas pesquisas e nos resultados já obtidos ao longo das primárias. É visível uma preocupação daqueles, que hoje detém vasta influência no poder político, de desestabilizar essas duas candidaturas34.

Sanders reafirma seu comprometimento com uma reforma política, que retire a influ-ência dos grandes doadores, reformulando o sistema de financiamento privado. Para ele, esse é o problema mais essencial, que conso-lida a desigualdade e impede que o governo realize programas que possam equilibrar tal disparidade. Trump, por sua vez, possui uma retórica menos sofisticada e não entra em de-talhes sobre tal questão. Porém, a crise des-se sistema se mostra evidente, nos exigindo uma maior reflexão sobre métodos alternati-vos de se efetivar a democracia.

Mídias especializadas têm se atentado

DEMOCRACIA, CRISE E ELEIÇÕES: TRUMP E SANDERS.

para a questão, elaborando raciocínios inte-ressantes de serem apresentados. O jornalís-tico FiveThirtyEight traz quatro perfis; qua-tro modos5 de estruturar o Financiamento Eleitoral usados neste pleito. Estes seriam: a) Muito dinheiro, majoritariamente de grandes doadores, b) Pouco dinheiro, mas a maioria por pequenos doadores (onde se en-contraria Bernie Sanders), c) Pouco dinheiro, majoritariamente de grandes doadores e d) Sem muita arrecadação de doadores (onde foi alocado Donald Trump). O resultado en-contrado é representado pelo gráfico6:

Uma representação gráfica pode dizer quase qualquer coisa, principalmente num momento de constatável neblina sobre o pa-radigma político local, visto que esse é um movimento inédito na Democracia moder-na estadunidense. Porém, caminhando com algum nível de segurança, algumas proposi-ções são possíveis.

A primeira delas cabe sobre a relação “re-presentante-representado”. Se, como dito no início deste texto, as eleições são um ter-mômetro, este pode apresentar resultados surpreendentes. O sufrágio é, dentre várias coisas, um amontoado de sensações e vonta-des que não necesariamente conseguem ser acompanhadas e diagnosticadas pela classe política, gerando efeitos como esses resulta-dos das prévias partidárias.

A segunda é em relação ao poder econô-mico e ao republicanismo. Para tal, vale citar a doutrina de Michael Waltzer, em seu clássi-co “Spheeres of Justice”. Numa análise feita por Michael Sandel, outro grande pensador e professor da Teoria da Justiça, em 1984 para o New York Times é trazido:

“THERE are some things money can’t buy and other things it tries to buy but shouldn’t - elections, for example, or in an earlier day, salvation. But the sale of elections, like the sale of indulgen-ces, usually brings a demand for re-form.”7

A experiência do republicanismo propõe,

por excelência e em seu cerne o distancia-mento entre a coisa pública e o privado; a real delimitação (mesmo que no campo do dever ser) de uma linha que separe o público e o privado. E quando estes se misturam? Esta é benéfica?

Mesmo num país onde estas relações são mais próximas, a título de exemplo com o lobby regulamentado, e possível se constatar que a sociedade em geral se volta contra essa relação, baseando sua análise em que essa dinâmica não é harmônica, e o interesse do privado está sobrepujando o interesse da so-ciedade.

Ainda é cedo para inferir com certeza que estes agentes são um sintoma de um que-rer de cisão da influência do poder privado na estruturação das políticas públicas, mas é notório ressaltar que ambos, mesmo com posições e propostas dicotômicas, coadunam em seus discursos o mesmo tom no que cabe ao Financiamento Eleitoral: de que não são comprometidos com ninguém, lastreando essa possibilidade de liberdade de ações en-quanto governantes em seu modelo de capta-ção de recursos eleitorais.

Ambos os candidatos, conscientes ou não, representam uma insatisfação com o esta-blishment. Como trabalha Jairo Nicolau, ao tratar da Reforma Política no Brasil, “Co-mecemos por um truísmo: a premissa que orienta qualquer reforma é que algo precisa ser mudado, pois não está funcionando bem. Por isso, toda boa reforma sempre deveria começar com um bom diagnóstico.” E ambos diagnosticaram bem, mas será que serão ca-pazes de reformar?

Algumas descobertas só cabe ao tempo re-velar, mas ficamos por fim com o pensamento de BAKUNIN8, dizendo que “É verdade que, em dia de eleição, mesmo a burguesia mais orgulhosa, se tiver ambição política, deve curvar-se diante de sua Majestade, a Sobera-nia Popular”.

1MANIN, Bernard; PRZEWORSKI, Adam; STOKES, Susan C., p 113.

2http://www.theatlantic.com/politics/archive/2016/03/bernie-sanders-fundrai-sing/471648/

3http://www.cnbc.com/2016/02/29/gold-man-sachs-puts-worker-linked-to-donald-trump-on-leave.html

4h t t p : / / t h e h i l l . c o m / p o l i c y / f i n a n -ce/268038-goldman-sachs-chief-sanderss-cri-ticism-is-dangerous).

5De acordo com o site, a metodologia aplica-da foi: “The chart includes only contributions from individuals; not self-funding contribu-tions, or those from PACs, or transfers from other campaigns. It does not take into accou-nt refunds to donors. Since each candidate has been running for a different amount of time, we’re adjusting the amounts raised based on the number of days since they started fundrai-sing. (We’re using the first day they recorded a contribution as the start.)”

6http://fivethirtyeight.com/datalab/four-ways-to-fund-a-presidential-campaign/

7Michael J. Sandel sobre Michael Walzer em “Spheres of Justice”; New York Times

8Bakunin, Mikhail. A ilusão do Sufrágio Uni-versal, p.3, Domínio Público.

ARTIGO

Arthur Gandra de Morais e João Patrick Ariel de Cota e Alves

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FREI BETTO

VOZ ACADÊMICA: No seu livro “A Mosca Azul’’, o senhor faz uma diferenciação entre poder e governo bem interessante, na qual o poder muitas vezes não está no governo, po-dendo estar em outras instituições. O senhor considera que o PT, nesses 13 anos de gover-no, abriu mão do poder pela governabilida-de? Isso não é algo paradoxal e que acabou comprometendo a execução dos projetos so-ciais e políticos dos governos Lula e Dilma?Frei Betto: Como a crise demonstra, nesses 13 anos, o PT esteve no governo, mas o poder continuou em mãos do sistema financeiro, do agronegócio, das transnacionais. E o PT, que fez o melhor governo de nossa história republicana, com a inclusão social de 45 mi-lhões de brasileiros, cometeu o erro de fazer coalização com essa elite dominante, quando deveria ter valorizado os movimentos sociais, que são a sua raiz e a razão de ser.Além de em “A Mosca Azul”, descrevo isso em “Calendário do poder”, ambos editados pela Rocco.VOZ: O distanciamento do PT dos movi-mentos sociais também pode ser definido como grande causa da crise política? A falta de compromisso com o projeto social inicial, representada pelos ajustes fiscais, por exem-plo, ajudou a gerar crise de representativida-de?FB: Sim, o PT se afastou dos movimentos sociais e não realizou, em 13 anos, nenhuma reforma estrutural, nem a agrária, nem a tri-butária, nem a política. E cometeu o equívo-co de priorizar o acesso da população a bens pessoais (linha branca, celular, TV, carro etc) e não aos bens sociais (educação, saúde, sa-neamento, moradia, transporte coletivo etc). Criou-se, assim, uma nação de consumistas, e não de cidadãos e cidadãs. E como não po-litizou a nação ao longo desses anos, daí o ódio. Ódio por não poder ir mais para Miami, encher a sacola no shopping, viajar de avião, pagar escola particular, etc.VOZ: O que seria esse “populismo cosméti-co” que o senhor atribui como o erro dos go-vernos petistas?FB: É o que falei acima: crédito consignado e facilitado, desoneração da linha branca e

Por Letícia Delavy

Escritor e religioso, o autor do premiado “Batismo de Sangue” conversa com o Voz sobre crise política, impeachment e sobre ser de esquerda

ENTREVISTA

da indústria automobilística, etc., sem criar bases de sustentabilidade para o desenvolvi-mento brasileiro. Até hoje, somos exporta-dores de matérias-primas ou produtos pri-mários, agora elegantemente chamados de commodities. É um absurdo uma nação de 204 milhões de habitantes não contar com um possante mercado internoVOZ: O senhor vê o processo de impeach-ment como legítimo, principalmente anali-sando seu modo de condução?FB: Esse processo de impeachment é golpe branco. Há que respeitar a voz das urnas. Dilma foi legal e democraticamente eleita. Se não estamos satisfeitos, e eu não estou, por-que o ajuste fiscal só penaliza os mais pobres, então façamos oposição, e não insubordina-ção constitucional, ou seja, golpe.VOZ: Qual é a sua opinião sobre a Operação Lava Jato?FB: Útil, necessária e urgente. Pena que o juiz Sérgio Moro a partidariza, centrando fogo mais no PT e facilitando vazamentos seletivos quando se trata de figuras do PT. Ainda bem que o STF deu-lhe um puxão de orelhas.VOZ: Qual é a sua opinião sobre as mani-festações contra a Dilma e as pró-governo? E qual está sendo o papel das grandes mídias nessas manifestações?FB: As manifestações são democráticas e comprovam a maturidade de nosso proces-so democrático. Governo é que nem feijão, só funciona na panela de pressão... A grande mídia cumpre o seu papel: ser porta-voz das classes dominantes. No século XIX, o velho Marx já dizia que o modo de pensar de uma sociedade tende a ser o da classe que domina essa sociedade. Pois é ela que detém os meios de comunicação. Paulo Freire repetiu com palavras distintas: a cabeça do oprimido ten-de a ser hospedaria de opressor.VOZ: Qual a sua visão, como alguém que

participou da luta pela democracia, desse ce-nário no qual há manifestações saudosistas do Regime militar e pedidos de volta à Dita-dura?FB: Só quer a volta da ditadura quem não a conheceu ou aqueles que dela podem tirar proveito. Felizmente, os militares ficaram tão desgastados em 21 anos de atrocidades e fra-cassos econômicos que, agora, estão com as barbas de molho...VOZ; Como amigo de Lula e de Fidel, quais seriam os grandes trunfos de cada um? O que um poderia aprender com o outro?FB: Os dois têm em comum serem carismáti-cos, governarem pensando nos mais pobres, adotarem postura crítica frente à ingerência dos EUA na América Latina e manterem uma política externa soberana e independente. Porém, Fidel fez uma revolução e Lula, em-bora tenha feito o Brasil avançar devido a conquistas sociais importantes, não ousou promover reformar estruturais.VOZ: O que o senhor está achando da rea-proximação dos Estados Unidos com Cuba? Essa maior proximidade entre os dois países pode colocar em xeque o sistema político-e-conômico-social cubano?FB: Essa reaproximação é importante para Cuba e espero que, o quanto antes, seja coro-ada com o fim do bloqueio criminoso que os EUA impõem à ilha revolucionária e a devo-lução da base naval de Guantánamo. Os EUA representam um importante mercado para a economia cubana. É evidente que a reapro-ximação traz riscos, pois quando terminar o bloqueio, haverá o choque entre o tsunami consumista dos estadunidenses e a austeri-dade cubana.Porém, não vejo perigo de re-trocesso da Revolução, cuja história descrevo em detalhes em meu livro “Paraíso Perdido - Viagens do Mundo Socialista” (Rocco).VOZ: E sobre Dilma, quais são as grandes conquistas e erros de seu governo, na sua vi-

são?FB: O primeiro mandato dela foi excelen-te. Porém, cometeu o erro de prometer na campanha de 2014 o que não fez a partir de 2015. Seu maior erro é o ajuste fiscal centra-do no sacrifício dos mais pobres, sem ônus aos mais ricos, que deveriam contribuir com tributação progressiva (quem ganha mais, pagar mais), tributação sobre heranças e so-bre renda aplicada no exterior, multas sobre propriedades rurais ociosas, etc.VOZ: Como o senhor enxerga a atuação da oposição atualmente?FB: Raivosa e sem projeto de Brasil. E, so-bretudo, carente de líderes confiáveis. A maioria de nossos políticos, por culpa nossa, que neles votamos, tem mais prontuário que currículo... E enquanto não houver reforma política progressista, isso não mudará muito.VOZ: Sobre a reforma política, qual o seu po-sicionamento?FB: Urgente, mas não com esse Congresso presidido pela dupla Cunha-Renan...

VOZ: O senhor já disse que Jesus é de es-querda. Qual o significado de ser de esquerda nos dias de hoje?FB: Fico com a definição de Norberto Bob-bio: “são de direita todos que aceitam a desi-gualdade social como tão natural como o dia e a noite. E são de esquerda os que reagem indignados frente à desigualdade social”.No Brasil, a esquerda quase desapareceu. Não faz trabalho de base, não politiza as clas-ses populares, não tem projeto alternativo ao capitalismo. E o pior: parte dela se deixou co-optar pelo neoliberalismo e pela corrupção.Contudo, diante desse panorama, enfatizo este adágio: guardemos o pessimismo para dias melhores!

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2120ARTIGO

É POSSÍVEL UMA CRISE DE REPRESENTATIVIDADE NA DEMOCRACIA BURGUESA?

João Paulo Mansur

O momento político brasileiro exige da esquerda uma revisão crítica de seus posi-cionamentos para que ela consiga explorar as potencialidades abertas na realidade. Vi-vencia-se uma daquelas ocasiões históricas nas quais os fundamentos reais da democra-cia burguesa estão desvelados da fraseologia hipócrita segundo a qual a cada ser humano dotado de capacidade eleitoral para voto cabe a mesma fração de decisão nos destinos do Estado e do Direito. O Estado não é do povo como defende o apelo democrático. Arranjos político-econômicos são condições históricas desde a fundação do Estado burguês que con-tradiz o poder de nomeação que a fraseologia democrática propõe. O capital tem para si o jugo do Estado e o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff orquestrado pela burguesia industrial brasileira explicita isso. Essa é uma constatação de toda esquer-da, até mesmo do Partido dos Trabalhadores, - se assim ainda se pode chamá-lo: de esquer-da! -, que se apropria dela para amedrontar seus signatários com factoide anacrônico de golpe militar.

A realidade nua e crua, dissimulada ou-trora nos períodos de estabilidade democrá-tica, compunha apenas os argumentos da esquerda. Agora, porém, em instabilidade da democracia burguesa, ela se realiza na objetividade dos arranjo político-econômi-cos que conduzem à ruptura das regras do jogo (embora não haja ruptura com o regi-me democrático, como será demonstrado) da democracia burguesa. Do feixe da classe burguesa brasileira, o governo de Dilma Rou-sseff conseguiu compor, razoavelmente, com o agronegócio e com a burguesia financeira na tentativa de superar as perdas das taxas de lucros advindas da crise econômica. Logo no início do segundo mandato, o nome de Kátia Abreu para o ministério da agricultura apaziguou os ânimos da burguesia agroin-dustrial. Parte da conciliação adveio do am-plo financiamento ao agronegócio, que, no Plano Agrícola e Pecuário de 2015/2016, ob-teve acréscimo de 20%, totalizando R$ 187,7 bilhões para financiamento do agronegócio.

Desse total, apenas 17% destinam-se a mé-dios produtores.1Ademais, e aqui recuperar a história é essencial, o latifúndio nada tem de rancor contra o Partido dos Trabalhadores. Pelo contrário, este, desde 2003, descumpriu todas as suas promessas de reforma da estru-tura fundiária brasileira, sendo sob os dois governos de Lula, o período histórico em que o INCRA menos promoveu a reforma agrária de latifúndios improdutivos e menos assen-tou sem terras. O partido dos trabalhadores tão somente financiou a aristocracia dos mo-vimentos sociais organizados, a começar pelo MST, em detrimento aos interesses das ba-ses.

Com a burguesia financeira, Dilma Rous-seff se entendeu mantendo a independência do banco central, que elevou a taxa de juros Selic a mais de 14% anuais. Tão somente com juros da dívida pública, gastaram-se R$ 367,5 bi em 2015 em comparação com R$ 243,3 bi de 2014.2 Na verdade, Dilma Rousseff man-teve a política iniciada por Lula desde a no-meação de Henrique Meirelles para o Banco Central. O apoio de Roberto Setubal a Aécio Neves nas eleições presidenciais não pode ser vista como ação de extremos. Tanto o é que, em agosto de 2015, Setubal defende a per-manência de Dilma, mas, nas entrelinhas, a condiciona à aprovação da agenda Brasil, que reúne ataques aos direitos trabalhistas que já estavam em andamento na época.3

Não obstante, a composição do governo Dilma Rousseff com a burguesia industrial não ficou tão redonda assim. O Estado foi um bom parceiro, suportando o ônus da crise econômica nos primeiros anos. Reduziu im-postos da indústria, estimulou o consumo e injetou diretamente dinheiro na economia através de obras do PAC, a fim de satisfazer os interesses privados da burguesia indus-trial. A crise, de caráter privado,torna-se uma crise administrativa e financeira do Estado superendividado. Nos anos seguintes, os estí-mulos diminuem e, por conseguinte, a lucra-tividade da indústria. Ao mesmo tempo em que corta gastos estatais em saúde, educação, moradia, etc. para retirar as contas do ver-melho, o governo tenta a solução para o pro-blema da lucratividade industrial em outro sentido que não o do financiamento estatal da economia4 : o do ataque aos direitos tra-balhistas. Sob esse caráter, sobrevém o “Pro-grama de Proteção ao Emprego”, o (PPE). A burguesia industrial, organizada em torno da CNI, FIESP, FIRJAN e outras federações es-taduais das indústrias, pressiona o governo para novos ataques aos direitos trabalhistas sob as pautas da terceirização, redução no ín-dice de reajuste do salário mínimo e reforma previdenciária. O partido dos trabalhadores vacila, seja por resquícios do compromisso com a classe trabalhadora, hipótese não mui-

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to crível, seja por medo de perder a alguma sustentação advinda da mesma que ainda lhe resta. Desde então, passa a sambar em corda bamba.

No “estado de natureza parlamentar”, os interesses com que cada parlamentar dialoga conduzem as políticas na produção do direi-to. A título de exemplo, Eduardo Cunha é o principal administrador dos interesses pri-vados dos planos de saúde contra o interesse público por saúde. PSDB de São Paulo, histo-ricamente, é o bastião da indústria paulista, que não se seduziu com o petismo para além de um caso de amor extraconjugal. Os caudi-lhos Renan Calheiros, José Sarney e a própria Kátia Abreu são grandes referendadores dos interesses do agronegócio. Há ainda a banca-da da bala, defensores de assassinatos esta-tais com balas da indústria bélica brasileira, além de prepostos da indústria de bebidas, das mineradoras, das empreiteiras – base de sustentação incluindo dos petistas -, das in-dústrias automotivas, e outra infinidade de lobbies burgueses no parlamento. Nessa luta bárbara por interesses, a burguesia não é um grupo homogêneo em defesa de um único ob-jetivo. Há um complexo de arranjos políticos contraditórios, em que facções burguesas se digladiam visando à sobreposição econômica do mais forte perante o mais fraco. Nada de incoerente com o interesse individual bur-guês pela monopolização e pela concentra-ção dos meios de produção. Por isso, embora possa agir em unidade de ação, a classe bur-guesa é em essência desarmônica. O conflito de interesse existente dentro da burguesia industrial brasileira, que contava com parce-la ainda crédula no financiamento estatal da economia e em maior arrocho trabalhista sob o governo petista, sustentou Dilma Rousseff até a formação atual da unidade entre as in-dústrias. Com exceção à FIESP5 , que, desde o início do segundo mandato de Dilma Rousse-ff, já se manifestava pelo impeachment, CNI6 e FIRJAN7 aderem ao movimento na virada do ano.

Não há espaço para compromisso de cava-lheiros na política. Pactos não são duradou-ros. A indústria, ávida por lucros, abandona os novos parceiros petistas, com quem teve bons relacionamentos desde a “Carta aos brasileiros” de Lula e a sua política chauvi-nista de monopólios nacionais. Com a hesita-ção do Partido dos Trabalhadores, a disputa por quem implantaria o arrocho trabalhista cai nos colos da oposição parlamentar imoral e sedenta por poder, que estimulou o impea-chment desde a frustrada campanha eleitoral de 2014. Ademais, partidos de centro e ex-ba-se do PMDB põem-se no leilão da barbárie na tentativa da melhor configuração política para conseguirem maior e melhor pedaço na carniça. O avanço da indústria é decisivo para

modificar a análise inicial de 2015, na qual tudo indicava que a oposição parlamentar apenas “faria sangrar” o governo petista para conseguir êxito nas próximas eleições fede-rais. Com a mudança, parlamentares sequio-sos e a burguesia industrial passam a definir orientação pelo impeachment, embora com várias mediações provenientes dos conflitos individuais e das contradições nos arranjos intraburguesia.

Movimentos sociais de direita, como Mo-vimento Brasil Livre e Estudantes pela Li-berdade, surgem de forma oportunista para tentar canalizar a insatisfação das classes mé-dias que, em 2013, foram às ruas em demons-tração de insatisfação com o preço pago pela crise econômica. Em questão de tempo, ficou clara a incapacidade das classes médias faze-rem frente ao processo político-econômico, visto que realizaram as piores manifestações conservadoras, com focos fascistas, desde a “Marcha da família com Deus pela liberda-de”. Aqueles movimentos sociais de direta, a oposição de direta e as mídias oficiais, porém, não possuem compromisso desinteressado por uma democracia popular. Pelo contrário, utilizam a corrupção como pretexto para re-organizar os interesses privados corruptos na condução do Estado. A corrupção, inclusive na sua forma legalizada que é produto do re-conhecimento oficial dos interesses burgue-ses, é consequência endêmica da democracia burguesa e do modo de produção capitalista, mas, pelo discurso, passa a ser vista como causa das crises econômica e política. Inver-te-se sujeito e predicado em uma hipostasia absurda. Confundem acessório e essência ao difundir mitos de que é possível moralizar e harmonizar algo que, na verdade, é funda-mentalmente vigarista e desfacelador. Com isso, o factoide da corrupção pode reenco-brir os interesses privados que sustentam a democracia burguesa e promover a ideologia democrática segundo a qual o voto de cada cidadão determina os destinos do Estado.

Mas a realidade está à vista, evidente na forma como a burguesia conduz a política, seja em períodos de estabilidade, seja em épocas em que ela mesma coloca em insta-bilidade suas regras democráticas – instabi-lidade que é totalmente diferente de crise do regime democrático burguês. Dentro de um complexo de possibilidades, as escolhas po-líticas que definirão os rumos do Estado se dão entre as condições sociais e econômicas dadas pela realidade e não pela autonomia da escolha democrática das urnas. A instabilida-de atual da democracia burguesa brasileira, que acima foi exposta em análise conjuntu-ral, demonstra como a democracia burguesa tem por fundamento interesses da proprieda-de privada sobre os meios de produção. Tan-to os momentos de estabilidade do governo

petista, como os de instabilidade, estão inti-mamente ligados à sua capacidade de aderir à sustentação advinda de facções da burguesia, com todas as mediações político-parlamenta-res inerentes à realidade. Qual seja: onde está a veracidade da fraseologia segundo a qual a democracia burguesa permite a todos os vo-tantes igualdade de participação nos destinos do Estado?

Assim, é hora de assentar os termos. Não há crise democrática na instabilidade por que passa atualmente a política brasileira. Have-ria se fosse verdade a proposição fundamen-tal de que o destino do Estado está, pela de-mocracia burguesa, nas mãos do povo e que, na atualidade, existe um desvio em relação ao que, essencialmente, a democracia burguesa é e deve-ser. Porém, como evidenciado, seja em época de estabilidade ou de instabilidade, a fraseologia democrática é falsa. O capital, e não a população, detém para si o controle do Estado. A avidez por poder político e os interesses de frações burguesas mandatárias são os motores dos parlamentares, em vez da determinação popular do voto.

Ao mesmo tempo, é preciso distinguir o que está em jogo com a ruptura provocada pelo impeachment. O Partido dos Trabalha-dores relembra fantasmas do golpe militar de 1964 com terrorismo psicológico, mas não há ameaças de mudança do regime democrático, com usuparção militar do poder e restrição às liberdades individuais. Tampouco é provável que o paspalhão do Bolsonaro ganhe tama-nha autonomia que relembre a figura de Na-poleão III, quando a burguesia francesa per-deu o controle da democracia parlamentar. O que se tem em pauta é uma “crise de gover-no” e não uma “crise de regime”. Em última instância, disputa-se quem será o gerencia-dor estatal dos interesses burgueses dentro do regime democrático, quem quer e é capaz de promover os ajustes fiscais e os arrochos trabalhistas. Embora a democracia burguesa seja pouco democrática, caso estivesse amea-çada, seria o caso de lutar com todas as forças por sua manutenção.

O desmascaramento dos fundamentos privados da democracia burguesa exige da esquerda um posicionamento crítico que vá fundo aos pressupostos da democracia bur-guesa para superá-los. Eis constatação dúpli-ce importante: a burguesia institui as regras do jogo, mas também sabe jogar fora delas. (“jogar fora” no sentido atual não significa romper com o regime democrático-burguês, como dito). Defender a legalidade é uma meia-crítica, pois apenas questiona a segun-da parte da constatação, a ruptura das regras do jogo. Fica ilesa a outra parte, mais funda-mental, segundo a qual as regras não são pos-tas democraticamente, pela autonomia popu-lar. Por isso, a esquerda coerente não pode

ceder à pressão de defender apenas meia ver-dade que é a legalidade. Isso significaria rea-firmar os fundamentos reais da democracia burguesa, encobri-los com a fraseologia de-mocrática em vez de superá-los rumo a uma verdadeira democracia popular e sem classes sociais. É jogar fora anos de acúmulo, lutas e discussões.

Certamente, o direito possui alguma po-tencialidade a favor dos trabalhadores. Caso contrário, não haveria razão de ser, por exemplo, para as lutas sindicais por direitos sociais. A estabilidade às expectativas que os direitos trabalhistas proporcionam à popula-ção faz parte hoje de um conjunto de condi-ções que permitem lutas por novos avanços. Nesse sentido, pensadores do direito com al-gum viés de esquerda equacionaram domina-ção de classe e potencial normativo do direito, a exemplo de Neumann e Bourdieu. O Estado de Direito, excepcionalmente, pode servir de instrumento contra a dominação burguesa. Por isso, deve-se a ele algum apresso.

O processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em andamento é uma ruptu-ra das regras do Estado de Direito, uma vez que as hipóteses para a configuração de cri-me de responsabilidade não são provadas. Para instrumentalizar a ruptura das regras sem o aval silogístico da norma jurídica, a re-vista dos Civitas desde o final do ano passado promove uma desonesta hermenêutica jurí-dica confundindo deliberadamente sistema de governo presidencialista com parlamenta-rista. A exemplo de Ives Gandra Martins, a Veja propõe a tese de que o impeachment é um processo deforma e função política, não precisando da função jurídica de preencher hipóteses normativas para a consequente sanção. Uma chacota de teoria da decisão ju-rídica falsificacionista: primeiro decido, de-pois busco a norma ou a doutrina, indo até à

teoria e à filosofia se preciso for. Contra essa ruptura unilateral e interesseira da regra do jogo, professores desta Faculdade de Direito e Ciências do Estado se comportaram com hombridade ímpar ao promover um mani-festo contra o impeachment. Ficará para a história.

De fato, a esquerda não pode concordar com a queda reacionária do regime democrá-tico burguês - que não está em pauta - tam-pouco com o impeachment interesseiro da presidente Dilma Rousseff, que não deixa de ser uma ruptura das regras. O congresso bra-sileiro não tem legitimidade para julgar im-peachment por dois motivos. São todos sujos pela corrupção que se alastra pelo enrique-cimento pessoal ilícito e pelo financiamento de projetos de permanência no poder. Fora todos! Mas também porque a democracia burguesa é um engodo, eterna crise de repre-sentatividade, na qual os parlamentares são prepostos de interesses da propriedade pri-vada dos meios de produção, e não do povo. Afinal, não é possível que estejamos viven-ciando uma crise da democracia quando o predicado “crise” é imanente à democracia burguesa. É preciso ir aos fundamentos da democracia burguesa e superá-los, revolucio-ná-los. É necessário questionar as condições sócio-econômicas que inviabilizam uma ver-dadeira democracia popular e sem classes. Isso não é possível de se fazer com a defesa de meia verdade, que é a mera legalidade. A classe trabalhadora, que sofre com o ajuste fiscal e com os ataques aos direitos trabalhis-tas, ainda não foi às ruas, mas espera-se que vá. E quando isso ocorrer, não se pode espe-rar da esquerda coerente que ela sustente os interesses privados da burguesia, recobrindo-os novamente sob o véu da fraseologia de-mocrático-burguesa.

1http://www.agricultura.gov.br/politica-a-gricola/noticias/2015/06/governo- lanca-plano- agricola-e-pecuario-20152016 Acesso em: 27 de março de 2016

2(Disponível em: http://g1.globo.com/econo-mia/noticia/2016/01/divida-publica- sobe-248- em-2015-para-r-279- trilhoes-maior- da-serie.html, acesso em: 27 de março de 2016)

3(Disponível em http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/presidente-do- itau-unibanco- de-fende-permanencia-de- dilma, acesso em: 27 de março de 2016)

4No tocante à industria automobilística, a ne-cessidade de manutenção dos lucros fez cogitar a utilização do DPVAT, um seguro social, para in-centivar a indústria.A reportagem abaixo, porém, não explicita quais são os verdadeiros planos que o “incentivo sem subsídio” http://exame.abril.com.br/economia/noticias/governo-quer- dar-estimulo- a-industria- mas-sem- subsidio. Aces-so em: 27 de março de 2016

5Paulo Skaf, presidente da federação das in-dústrias de São Paulo, adere ao impeachment des-de 2015 e afirma que 91% dos donos e represen-tantes das empresas de São Paulo são a favor do impeachment de Dilma. (Disponível em: http://oglobo.globo.com/brasil/fiesp-ciesp- apoiarao-impeachment- da-presidente-dilma-18293920, acesso em: 27 de março de 2016)

6CNI afirma que precisa de um basta nesse espetáculo deprimente. (Disponível em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/18/politi-ca/1458258396_570381.html, acesso em: 27 de março de 2016)

7Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira, presiden-te do Sistema FIRJAN, em 17 de março de 2016, utiliza as massas canarinhas de manobra para que o congresso referente suas vontades de impeach-ment.(Disponível em: http://www.firjan.com.br/noticias/posicionamento-firjan-1.htm?&amp;I-dEditoriaPrincipal=4028818B46EEB3CD0146F-D70E994340B, acesso em: 27 de março de 2016)

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DESOBEDIÊNCIA CIVIL E O REFE-RENCIAL QUE PERDEMOS¹

You don’t know what it’s like

You don’t have a clue

If you did you’d find yourself

Doing the same thing too

Breaking the law (…)

Halford, Downing & Tipton

Desobediência Civil, publicado pela pri-meira vez com este nome em 1866, quatro anos depois da morte de Henry David Thore-au, imortalizou-se como um clássico nas lu-tas pelos direitos civis em países anglófonos no século XX. É conhecido, por exemplo, por ter influenciado personalidades como Martin Luther King Jr. e Mahatma Ghandi.

De viés claramente libertário e individua-lista, parte de premissas liberais que questio-nam valores modernos de representativida-de. Em outras palavras, coloca em oposição a coletividade ao indivíduo – este, a medida úl-tima do certo e do justo; aquela, conjunto de indivíduos regido por um sistema que perde de vista os sujeitos que o compõe. O Estado é, aqui, uma máquina posta em movimento por mecanismos próprios e constrange os indivíduos por meio de leis, muitas vezes in-

justas. Não é de se surpreender que Thoreau se afligisse com a questão: o ensaio foi escri-to durante o período escravista nos Estados Unidos, ainda antes da eclosão da guerra civil que tomou conta do país e pôs fim àquele re-gime de trabalho. Reconhecendo a escravidão como o grande mal da época, o autor busca formas de oposição ao sistema responsável por ela. Suas respostas recaem sobre a con-tradição latente que verifica no trânsito, sem-pre tortuoso, entre a vontade do indivíduo e as formas de atuação das instituições por ele formadas. Seu questionamento é legítimo, do ponto de vista de uma justiça metafísica: “leis injustas existem; devemos então obedecê-las, tentar consertá-las e obedecê-las até que te-nhamos sucesso, ou devemos transgredi-las de pronto?”

Ainda que reconheça, minimamente, a importância do Estado como forma de or-ganização social, Thoreau é peremptório ao afirmar que o “mal” é parte do seu mecanis-mo de funcionamento, uma vez que o senso de justiça do indivíduo é diluído na coletivi-dade e, pior, o Estado obedece aos anseios e ambições de uma minoria dirigente. A solu-ção proposta? Quebre as leis, na medida em que elas propõem a injustiça. “Deixe que sua vida seja um contrapeso para parar a máqui-na. O que tenho de fazer é garantir, de qual-quer maneira, que não me rendo ao mal que condeno”.

O grande problema enfrentado pelo autor, aqui, diz respeito à efetividade dessa revolu-ção de um homem só, o que acaba se trans-formando na grande lacuna do ensaio. Não parece factível que um indivíduo, agindo por princípio, mas solitário, seja capaz de movi-mentar forças suficientes para a implosão de todo um sistema injusto. Thoreau, de fato, não propõe uma saída para as consequências impostas aos sujeitos “rebeldes”. Pelo contrá-rio, apela para a boa ação (em termos kantia-nos), a ação por princípio, em detrimento das paixões e necessidades mundanas que por-ventura podem guiar o indivíduo, ainda que as reconheça. Dito de outra forma, ele com-preende a dificuldade do indivíduo de sujei-tar-se às sanções que virão do Estado, mesmo que isso signifique o confisco dos seus bens materiais ou o cerceamento de liberdades in-dividuais. Ainda assim, mantém seu ponto de vista: “sob um governo que aprisiona qual-

quer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem justo é também a prisão”.

O que se evidencia é, ao fim e ao cabo, o valor essencial da pura e simples resistência. Ainda que a perspectiva de Thoreau pareça ingênua ao desconsiderar formas estrutu-rais de organização e império de um Estado (ainda que não ignore seu aparelhamento), o reconhecimento de injustiças é o ponto de partida para qualquer movimento de rup-tura. Mais: partindo de um senso de justiça coeso, que opera sobre premissas que não se isolam de um conjunto de valores socialmen-te construído a partir da relação orgânica en-tre os indivíduos, o potencial revolucionário da desobediência civil não pode ser ignora-do. É importante apontar que não falamos aqui do sujeito que dirige acima dos limites de velocidade simplesmente porque não con-corda com as normas que os determinam. Fa-z-se necessário o cultivo de uma consciência que, por mais que formada na e orientada à individualidade, tem conformação também coletiva. É saber que o modelo de represen-tatividade, por exemplo, está gasto, e muito do que vem dele é corrupto já em sua gênese; ou que a forma de organização do Estado já perdeu de vista. O problema não solucionado por Thoreau seria o “segundo passo”, sobre o qual tantos outros já se debruçaram e ainda debruçam.

Talvez, se nos detivermos sobre a noção de fluidez e organicidade das relações que es-tabelecemos entre nós mesmos, tão presente nas entrelinhas deste ensaio, poderemos vis-lumbrar alguns caminhos. Certo é que nossas formas de organização – e representativida-de - já não parecem nos servir. Se pensarmos, com Thoreau, que o progresso da monarquia absoluta à democracia é um progresso em direção aos direitos e liberdades individuais, resta também a pergunta: “seria a democra-cia, como a conhecemos, a última melhoria possível no Estado?”.

Aos teimosos e resistentes sonhadores, vale a leitura.

¹THOREAU, Henry David. Civil Disobedience. In: ______. Walden and other writings. New York: Bantam, 2004. Todas as citações diretas feitas nesta resenha são retiradas desta edição, em tradução livre.

André Bueno

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