Wagner Schwartz: “Falar do Que Eu Vejo. Falar...
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Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018
ISSN 2316-8102
Wagner Schwartz: “Falar do Que Eu Vejo. Falar do
Que o Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado”1
Tales Frey
Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,
durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
O mais engraçado é o seguinte: eu não tenho tanto prazer em brincar com os Bichos; o meu prazer é de ver os outros brincarem com eles.2
Lygia Clark afirmou tal frase em 1960, correspondendo justamente ao
ano em que a sua série Bichos foi pela primeira vez exposta com os seguintes
títulos: Invertebrado, Ponta, Desfolhado, Articulado, Articulado Duplo,
Metamorfose I, Prisma, Metamorfose II, Vegetal, Constelação, Contrário I,
1 Citação extraída do texto Piranha (2011), de Wagner Schwartz. 2 CLARK, Lygia. “Do Ritual”. In: FUNDACIÓ ANTONI TÀPIES DE BARCELONE [et al.]. Lygia Clark: Catálogo. Curadores: Manuel J. Borba-Villel [et al.]. Paris: Reúnion des Musées Nationaux, 1998, p. 123.
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Cidade, Contrário II, Vazado I, Vazado II e Sobre o Redondo. Na época, talvez ela
não tenha previsto que alguém pudesse “brincar” com os seus Bichos como
Wagner Schwartz escolheu fazer, criando uma intertextualidade, onde não só
“brinca” com um dos seus Bichos, mas “torna-se” um (ou vários) deles durante
o tempo estipulado para a sua ação acontecer.
Como uma homenagem ao trabalho de Lygia Clark, o prazer da
brincadeira – sugerido pela própria artista em diversas de suas obras – está
completamente presente na performance de Schwartz, que coloca pessoas em
contato direto, mencionando (ainda que não intencionalmente) a trajetória de
Clark, através da qual a bidimensionalidade da pintura foi expandida à
tridimensionalidade cinética – algo que vemos nos Bichos e não apenas – até ela
chegar, primeiramente, à fase sensorial intermediada pelo objeto – em que o
mesmo permaneceu por algum tempo indispensável para possibilitar que corpos
experimentassem sensações táteis – até que, posteriormente, Lygia permitisse
a incorporação dos próprios objetos, oferecendo ao corpo “o objeto de sua
própria sensação”3. E Wagner cita indiretamente isso tudo na sua performance.
Doze anos depois de Lygia Clark criar os Bichos e dizer que tem mais
prazer em ver as outras pessoas brincarem com eles, nasceu, em 1972, Wagner
Schwartz, um profissional das artes do corpo que, em 2005, escolheu fazer da
sua própria massa corpórea uma obra manipulável como as muitas de Clark,
com foco específico na sua tão renomada série Bichos. La Bête [O Bicho], título
em francês dado por Schwartz, não vem como um mero estrangeirismo pelo fato
de o artista viver em Paris, além de São Paulo; ele nos direciona para a relação
da artista com o contexto da França também, país onde Lygia Clark viveu entre
1950 e 1952 e, depois, entre 1970 e 1975, estudando com Fernand Léger, Árpád
Szenes e Isaac Dobrinsky na sua primeira vivência no território francês e
lecionando artes na Faculté d’Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, na sua
segunda permanência na capital do mundo francófono.
3 Ibidem, p. 247
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3
Wagner Schwartz, La Bête. Performance realizada na Galeria Olido, em São Paulo, Brasil,
durante o Festival Contemporâneo de Dança. Novembro de 2015. Frames do registro em vídeo da performance feito por Osmar Zampieri
Os Bichos de Lygia Clark têm possibilidades múltiplas de formas e
movimentos (que parecem ilimitados) e são estruturas constituídas por placas
metálicas em alumínio com dobradiças que, para a própria artista, trazem a
ideia de uma espinha dorsal, algo que possivelmente motivou Wagner a usar
uma pequena réplica de um dos Bichos de Clark para moldar formas diversas
diante de sua audiência e, em seguida, convocar o público a fazer o mesmo com
o seu corpo, como se fosse ele também um bicho que, embora seja de carne e
osso, expõe-se desumanizado, pois apresenta-se – ainda que metaforicamente
– como uma peça escultórica manejável, exatamente como as peças da série de
Clark, as quais adquirem formas diversas apenas se houver participação ativa
dos(as) espectadores(as).
Evidentemente um corpo (distinto de um objeto de Clark) carrega em si a
sua subjetividade e isso é imprescindível; não é possível vermos um humano
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sem deduzirmos a sua interioridade, e talvez esse seja o ponto que gerou tantos
posicionamentos encoleirados a partir da apresentação da performance de
Schwartz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, durante a 35ª Mostra
Panorama de Arte Brasileira, em 2017.
Embora praticamente todas as pessoas que criticaram negativamente o
trabalho só tenham acessado pequenos trechos do mesmo através da internet,
ou seja, onde o corpo é apenas uma criatura eletrônica vista de maneira
bidimensional, ao testemunharem, a partir de suas telas (celulares,
computadores etc.), a ação do artista “desumanizado” como uma escultura
interativa, tomados pelo ódio, discursavam em recusa a essa não-humanidade
do corpo exposto para ser manuseado como tal e, assim, evidenciavam muitas
vezes opiniões completamente desumanas para, contraditoriamente,
defenderem humanos vistos como criaturas indefesas e vítimas de alguma
barbaridade.
O nome do artista Wagner Schwartz tornou-se midiático e passou a ser
conhecido para além do circuito das artes por conta dessa recente apresentação
de La Bête e de toda a polêmica criada no meio desse obscurantismo notório
que o Brasil vem atravessando. O fato de estar nu e ter esse mesmo corpo
tocado por uma criança no MAM/SP e por três crianças na apresentação feita em
agosto/2017 no Goethe-Institut durante o festival IC Encontro de Artes (ainda
que fosse nos seus pés e mãos e da maneira mais lúdica possível, com
consentimento de adultos responsáveis por elas), a ocorrência foi o estopim
para que uma massa exaltada se manifestasse on-line e distorcesse a ação,
reinterpretando-a a partir de pontos de vista pessoais. Foram, então, viralizadas
as convicções mais radicais, com exacerbado sentimento de orgulho e
presunção, que consideraram tal episódio como um atentado “à moral e aos
bons costumes”, ignorando que um corpo nu não necessariamente é um corpo
sexualizado e que a veste não é um manto sagrado que blinda um corpo tido
meramente como um objeto de desejo (ou desejante) do prazer carnal. Um corpo
nu pode ser simplesmente um corpo nu e não categoricamente um corpo
erotizado.
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La Bête ultrapassa as análises simplórias em sua mais absoluta
singeleza, onde um corpo, sem adornos ou indumentos, apenas acompanhado
da pequena réplica de um dos Bichos, funciona como âmago da obra, revelando
muito mais o(a) participante que o próprio performer sujeitado à manipulação,
pois além das ingênuas e/ou afáveis participações, o corpo de Wagner,
apresentado de forma passiva, pode acabar por experimentar mediações sádicas
(agressivas de forma física e/ou psicológica), e as reações públicas pautadas na
sua apresentação sob intermédio de pequenos fragmentos de vídeos são
também reflexos dessa ideia, porque revelam mais quem examina e analisa do
que quem é avaliado. Qualquer forma de intervenção erigida na ação (ao vivo ou
não) nos faz refletir sobre quem está no poder e sobre como cada participante
faz uso dessa condição. Mas quem de fato está no poder quando o que se sente
em posse do domínio é justamente o verdadeiro alvo de análise? As relações são
mútuas e aniquilam as posições bem definidas. Nesse sentido, todos estão
igualmente ocupando o lugar da ponderação e o do objeto de análise, havendo
um nível alargado do desfazimento das barreiras entre obra e audiência (seja ela
presencial ou não), e todo o ambiente é acionado, pois todo o ambiente passa a
ser a obra ou eco da mesma.
Talvez como uma referência ao Bicho de Bolso (1966) de Lygia Clark, mas
sobretudo como uma autorreferência ao La Bête, Wagner elaborou o trabalho
em vídeo intitulado Bicho (2005), através do qual vemos as suas mãos
manipularem um pequeno boneco de pano similar a um vodu, correspondendo a
uma versão reduzida de si. Esse vídeo – em que vemos a meditativa ação
acontecer em tempo real – pertence à instalação Placebo (2005), que além
do Bicho, conta com outros vídeos: Filtro, Chá de Freud, Carnaval e Uberlândia,
sendo todos realizados no mesmo ano.
A instalação direciona o nosso olhar para aquilo que Rosalind Krauss
denomina “condição pós-mídia”, em que as especificidades dos dispositivos
encontram-se contaminadas, não sendo mais possível avaliarmos os segmentos
correspondentes a cada uma das mídias de forma purista ao considerarmos os
contextos de cada uma delas de maneira autônoma, pois “elas vão agora se
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misturar livremente” 4 . Trata-se de pensarmos a conjuntura derivada da
condição agregadora da mídia proposta, desde o suporte para os vídeos, da
câmera que os filmou, do projetor que lhes atribui o movimento, incluindo a
posição do público apanhada entre a fonte da luz atrás dela e a imagem
projetada diante de seus olhos5.
Wagner Schwartz, frames do vídeo Bicho, 2005
Com indubitável ironia, na descrição da sua instalação Placebo, Schwartz
usa uma frase que possivelmente escutou de alguém que assistiu ao seu
trabalho: “se soubesse que viríamos aqui para ver TV, eu teria ficado em casa”6.
Tal pensamento denota a não compreensão da coparticipação de diferentes
linguagens artísticas em uma mesma expressão, onde não deve haver
hierarquias, e a performance ou a dança ou qualquer outra forma de expressão
que, por convenção aconteceria ao vivo, pode sim miscigenar-se com o vídeo e
4 Ibidem. 5 KRAUSS, Rosalind. A Voyage on the North Sea: Art in the Age of the Post-medium Condition. Londres: Thames & Hudson, 1999, p. 12. Tradução livre a partir do inglês de Tales Frey. 6 Ibidem, p. 24.
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apresentar-se sob intermédios, convergindo-se em arranjos distintos também
passíveis de questionamentos sobre suas novas configurações, seja como
videodança ou como videoperformance. Esse último gênero quiçá seja a melhor
definição do que Wagner expõe, já que “na medida em que não existe a
interatividade com o público, com a audiência, ou com o outro, a interatividade
do corpo do artista é produzida no enfrentamento com a própria câmera de
vídeo”7, o que poderia conformar-se na videoperformance, mesmo em casos
como o do vídeo Uberlândia, o qual trata-se de um registro de uma performance
realizada na cidade mineira que dá título à criação.
Wagner Schwartz, frames do vídeo Cleópatra, 2007
O recurso do vídeo como meio da comunicação artística foi alvo de
especulação em outros trabalhos do artista, como vemos em Cleópatra (2007),
obra em que uma performer convidada, Ligia Manuela Lewis, dubla a canção
“The First Time Ever I Saw Your Face” (1969), de Roberta Flack, durante mais de
cinco minutos sem piscar seus olhos. Logo nos primeiros segundos do vídeo, ela
levanta as pálpebras antes cerradas para nos encarar, olhando fixamente para
7 SCHWARTZ, Wagner. Sinopse de Placebo. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/placebo>. Acessado em 22 de dezembro de 2017.
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nós observadores(as) que assistimos à sua imagem virtualizada, mediada pela
tela do ecrã ou da projeção. Somos fatalmente seduzidos para entrarmos no
jogo de também mantermos os nossos olhos abertos todo o tempo para
tentarmos flagrar algum momento de deslize em que ela pudesse rapidamente
fechar os seus olhos, mas isso não acontece e ela os mantém tranquilamente
abertos do começo ao fim da sua atuação. Segundo a descrição do trabalho,
“Cleópatra é a versão humana de um avatar. Nesse vídeo, ela é programada para
simular emoções virtuais”8, o que confirma o aspecto robótico – e nem por isso
não-humano – da imagem que nos atrai.
Wagner Schwartz, Piranha. Performance realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,
durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
Na sua obra Piranha (2009/2012), olhando quase que constantemente
para o alto e sacudindo o seu corpo por um tempo dilatado, sob um único foco
de luz sem que haja um filtro de cor evidente, em pé sobre o palco, Wagner inicia
uma movimentação vibrátil com os seus pés quase inabaláveis no mesmo lugar
do início ao fim do espetáculo, sofrendo pequenas oscilações quando há algum
8 MELLO, Christine. Extremidades do Vídeo. São Paulo: Editora Senac de São Paulo, 2008, p. 144.
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desequilíbrio gerado pelos seus espasmos, mesclando a agitação corporal
voluntária com a involuntária.
A imagem ultrapassa a trivial noção de dança, que pressupõe uma
sucessão de movimentos coreografados, e poderia roçar até mesmo com a
escultura cinética em sua componente visual, desde os mobiles dançantes de
Alexander Calder, em suas movimentações em torno de um mesmo eixo, até a
irrepetibilidade de Ascension (2005), de Anish Kapoor. Mas é principalmente o
corpo, com as suas micropolíticas, que direciona o espetáculo de Wagner à
expressão artística da performance. É o corpo como suporte do argumento, mas
também veículo. E, se quisermos categorizar a qual gênero artístico a obra
pertence (o que não tem nenhuma necessidade), a performance talvez seja o
mais apropriado no sentido em que é uma expressão que rejeita rótulos e o
caráter híbrido toa recursivo, podendo então uma dança (sem uma coreografia
convencional), combinada com a literatura e com o vídeo, não ser nem dança
nem teatro nem vídeo e, talvez, nem mesmo performance, sendo simplesmente
algo que desmantela categorias fixas.
Esse trabalho evoca o solipsismo filosófico e, provavelmente, está
pautado em experiências pessoais do próprio artista que não estão
completamente explícitas, mas podem ser deduzidas a partir de signos expostos
de forma poética e não como provas circunstanciais, sendo todas interpretadas
de maneiras múltiplas e tangenciadas aos dilemas humanos como a morte, a
crença (ou não) na transcendência da alma e, também, o amor e as frustrações
decorrentes de tal sentimento.
Apreendemos, a partir das sensações partilhadas, dessemelhantes
conclusões sobre o que nos é mostrado. Apesar de não experienciarmos o
mesmo estado físico e mental e um possível transe que Wagner testa em si ao
sacudir seu corpo até o seu limite, permanecemos entorpecidos, quase
hipnotizados, vendo um ser que se agita ao som de ruídos que retomam
estrondos de aparatos tecnológicos inconstantes desde quando o artista passa a
ser visto no palco até o fim da obra. Intuímos, no vai e vem da sua fisicalidade,
uma relação sexual ardente ou somente um espectro que contextualiza as
relações “líquido-modernas” da era digital, inseridas “numa cultura consumista
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como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer
passageiro, a satisfação instantânea”9. Talvez, possamos ainda perceber uma
ascendência espiritual ou apenas uma ansiedade exagerada que toma conta de
um indivíduo, como simplesmente podemos, também, imaginar um peixe fora
d’água tanto no sentido literal como conotativo da expressão.
Antes de o corpo de Wagner ser revelado já no palco, há uma narrativa
poética (uma espécie de videopoema) que surge em forma de legenda, sendo a
argumentação por vezes cética, por vezes melancólica além de descrente, por
vezes também sem nenhuma confiança no amor. Nenhuma? “Estamos tão
tristes quanto todos.” 10 Não há nenhum texto falado, nenhuma voz
pronunciada; tudo que acessamos desse texto é por meio da própria palavra
escrita. As palavras são postas como imagens. Antes de vermos o corpo do
artista a vibrar incessantemente, permanecemos no escuro, onde a palavra
vinda da luz da projeção nos retira, por vezes, do ambiente sombrio, mas a
dureza de cada expressão, ainda que sob a camuflagem da poesia, revela-nos o
breu. E Wagner nos relembra em seu texto que “a palavra não é inteligível”, nós
a compreendemos quando “ela se encontra com um objeto”11 . O clima é tão
niilista quanto o que vemos no filme O Cavalo de Turim (2012), de Béla Tarr,
onde a insistência na repetição reforça o confinamento solitário dos indivíduos e
dá imagem ao que entendemos pelo “eterno retorno” nietzschiano. Com o
apagar do único feixe de luz, com o qual intuímos o fim, também percebemos a
escuridão inicial já experienciada, ou seja, um imaginável recomeço.
Transobjeto, espetáculo de 2004, que foi remontado dez anos depois, em
2014, tem início com a entrada abrupta de Schwartz pela esquerda alta do palco
até parar na esquerda baixa, onde há três arcos amarelos semelhantes a
bambolês. Ele se posiciona exatamente dentro de um deles, vestido com um
traje feito de esteira de praia. Podemos conjeturar que não há nenhum
indumento além da palha a ocultar o seu corpo. Com movimentos sutis de sua
9 BAUMAM, Zigmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragil idade dos Laços Humanos. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 21. 10 SCHWARTZ, Wagner. Piranha. Ver o texto em: <https://www.wagnerschwartz.com/piranha-portugues>. Acessado em 22 de dezembro de 2017. 11 Ibidem.
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cabeça, ele olha cada pessoa da plateia até que, repentinamente, levanta o seu
braço esquerdo a segurar uma pedra, o que, como uma agulha de diamante que
toca o vinil, funciona como o apertar da tecla play e dá início à música “If You
Hold a Stone” (1971), de Caetano Veloso, composta durante o seu exílio na
Inglaterra. Wagner permanece parado com seu braço esquerdo suspenso a
segurar a tal pedra até que o primeiro refrão da música se encerra. Ele, então, se
posiciona no interior de um segundo arco, onde executa a ação de pegar um
bobe de cabelo com o auxílio de um par de hashi – aqueles pauzinhos usados
como talheres em países do extremo oriente – e faz disso um binóculo, com o
qual olha para a mão que segura a pedra e pronuncia: “objeto relacional de Lygia
Clark”. Posicionado no terceiro arco amarelo, a ação da pedra é refeita e o traje,
ao ser por ele suspenso, revela um tecido vermelho almofadado com a legenda
“Incorporo a Revolta”, fazendo alusão aos parangolés de Hélio Oiticica, bem
como o Seja Marginal, Seja Herói (1968), em que Oiticica propunha transgressão
aos costumes e valores conservadores e burgueses.
Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú
Cultural, em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi
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Entre as movimentações subsequentes e as demonstrações das variadas
relações entre o seu corpo e os demais objetos que estão sobre o palco, sob o
som de um metrônomo que indica um andamento musical regular, no caso um
andamento de samba, Wagner dá sentidos múltiplos a um tecido vermelho, que
funciona como uma gigantesca fita para amarrar o seu corpo apresentado em
formas contorcidas e, posteriormente, como um delicado vestido de gala. De
forma agressiva, estraçalha, em sequência e com as suas próprias mãos,
algumas frutas (manga, maracujá, melancia, abacaxi e laranja) para diluir o
sumo de cada uma delas em um vinho branco francês ali disposto para
composição de drinks tropicais. Wagner os bebe suavemente em suas
respectivas taças ao som de “London, London” (1971), de Caetano Veloso,
concluindo essa sequência de bebidas com uma água de coco. O desfecho do
espetáculo se dá debaixo de um guarda-sol aberto, onde o performer fuma
glamourosamente um cigarro ao som de “Tropicália” (1968).
Wagner Schwartz, Transobjeto. Espetáculo realizado no programa Rumos Dança Itaú Cultural,
em São Paulo, Brasil. Março de 2004. Fotografia de Gil Grossi
Trans é um elemento linguístico que exprime muitos significados, dentre
eles: “além de”, “para além de”, “em troca de”, “ao través”, “para trás”,
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“através” etc. E Wagner especula as inúmeras possibilidades que a partícula
“trans” pode gerar em combinação com diferentes objetos, sugerindo a
transformação, a transexualidade, a transgressão, a transmídia, a
transdisciplinaridade, o transbordamento, a transposição, o transpassar e etc.,
ao fazer uso de referências tão claras e tão inteligentemente combinadas entre
si.
Embora haja humor em um trabalho que retoma um movimento de
ruptura como foi o Tropicalismo, o contexto tenebroso de repressão vinculado ao
Golpe Militar de 1964 da história do Brasil está inevitavelmente atrelado ao
enredo e, nesse sentido, Transobjeto, de Schwartz, consolida-se como uma obra
completamente atual, pois assistimos hoje a um enorme retrocesso no cenário
político brasileiro que acaba por nos direcionar a essa época em que a metáfora
era estratégia quase obrigatória para as(os) artistas driblarem a censura.
Infelizmente, ainda que tratando-se de supostos “casos isolados”, esse
retrocesso está sendo repetido e com bastante amplitude. Basta atentarmo-nos
aos exemplos todos ocorridos em 2017, como o cancelamento da
exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no
Santander Cultural em Porto Alegre; a injusta prisão temporária de Maikon
Kempinski em Brasília, ao apresentar a sua performance DNA do Dan, na praça
do Museu da República em Brasília; a apreensão do quadro de Alessandra Cunha
no MARCO – Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul; a
interrupção, por policiais militares, da peça teatral Blitz – O Império que Nunca
Dorme, do grupo Trupe Olho da Rua em Santos-SP; a presença de menores de
dezoito anos vetada na exposição “Histórias da Sexualidade” no MASP, em São
Paulo (algo que felizmente foi revisto); a proibição do espetáculo O Evangelho
Segundo Jesus, Rainha do Céu – da encenadora Natália Mallo, com a atriz
Renata Carvalho – de ser apresentado no SESC de Jundiaí (mas que obteve,
depois, uma decisão favorável pelo Tribunal de Justiça de São Paulo); e o próprio
caso de Wagner Schwartz ao apresentar La Bête no Museu de Arte Moderna em
São Paulo. Certamente, esses são os casos que ganharam algum holofote
midiático, mas outras censuras aconteceram e, talvez, não viraram manchete.
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Mal Secreto, obra iniciada em 2015, embora tenha sido já apresentada
em algumas circunstâncias, é um projeto em construção e que tem a memória
como abordagem poética. Sobre uma cadeira, com um álbum fotográfico nas
mãos, ao virar cada uma das páginas, Wagner Schwartz divide as suas
sensações e notas acerca de cada imagem. Vemos cada uma delas projetadas ao
fundo do palco por trás dele enquanto acompanhamos a sua descrição. Mais
uma vez, o tempo, o corpo e a sua relação com o mundo são alvos de análise na
sua criação.
Wagner Schwartz, Mal Secreto. Leitura realizada na cidade de Campinas, São Paulo, Brasil,
durante a Ocupação Wagner Schwartz, na Bienal Sesc de Dança. Setembro de 2015. Fotografia de Caroline Moraes
TALES FREY: Ao observar a sua poética visual através da sua trajetória,
tenho imensa curiosidade de saber como funciona o seu processo criativo.
Alguns e algumas artistas partem do que eu gosto de nomear como “raciocínio
visual”, ou seja, reflexões sobre vários conceitos (históricos, filosóficos etc.) que
acontecem através de uma compreensão súbita (insight) em forma de imagem e
que não deve ser confundida com uma “inspiração intuitiva”. Outros(as) artistas
colocam conceitos em prática até que o resultado estético emerja como
consequência disso. Claro que existem muitos procedimentos e todas as
metodologias são válidas e, muitas vezes, são completamente pessoais e
intransferíveis. Como funciona a sua metodologia? Caso não tenha um processo
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específico de criação, queria que explicitasse um caso (ou mais de um) que
julgue o processo coerente com o resultado alcançado.
WAGNER SCHWARTZ: É interessante o conceito que você criou e
nomeou como “raciocínio visual”. Poderia dizer que é a partir dele que encontro
os primeiros traços de minhas performances, vídeos e textos; no entanto,
gostaria de chamar esse procedimento de conexão. Mas uma conexão acontece
através de uma metodologia ou de uma relação entre os objetos e eu? Quando
você fala que um projeto criativo pode vir a ser pessoal e intransferível, acredito
que esta seja a chance de se aproximar do trabalho de alguns artistas. Daqui
onde estou, imagino que uma metodologia se pareça com algo como acordar às
sete e meia da manhã, ler as notícias do dia, responder e-mails, fazer exercícios,
ir para o atelier/estúdio e estudar alguns conceitos para ver o que deles
extrairíamos, (pausa), durante toda a vida. A palavra “metodologia” me assusta
porque ela tem esse sentido para mim. Eu vivo fazendo, os objetos também.
Não consigo reduzir a consciência estética de minhas performances, vídeos e
textos a um “processo criativo”. Eu tento acordar cedo. No verão é possível. No
inverno, se houver necessidade. Escrever, por exemplo, é uma necessidade.
Emily Dickinson, minha poetisa favorita, escreveu:
This is my letter to the World That never wrote to Me— The simple News that Nature told— With tender Majesty Her Message is committed To Hands I cannot see— For love of Her—Sweet—countrymen— Judge tenderly—of Me12
Em um momento específico, alguma coisa torna-se urgente para ser
coreografada, visualizada, escrita. Aguardo que essa urgência desapareça. 12 “Esta é minha carta para o mundo / Que nunca escreveu para mim / Simples novas que a Natureza / Contou com terna nobreza // Sua mensagem, eu a confio / A mãos que nunca vou ver / Por causa dela — gente minha — / Julgai-me com bem querer”. Tradução a partir do inglês de Aíla de Oliveira Gomes em Emily Dickinson - Uma Centena de Poemas. São Paulo: Editora T. A. Queiroz, 1985.
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Quando ela não está mais à vista, começo a elaborar o que deixou para trás. As
imagens do pensamento tomam forma, conectando-se a outros eventos, a
novos objetos – já não mais àqueles de onde surgiram. A raiva está latente,
agora ela pode ser escrita, performada, estruturada. O tempo libera. O tempo
libera o “eu”. Conexões vão sendo feitas, até que a forma do pensamento
apareça na dança, na performance, no vídeo, na escrita. A edição vem mais
tarde. Não existe um gesto neutro em que tudo pode ser incorporado. Não há
uma câmera obediente que permite que tudo possa ser fotografado. Não há
uma folha branca em que tudo pode ser escrito. A criação é feita em conjunto
com os objetos. As coisas já estão em movimento, vistas, escritas. Basta dar
tempo para que umas se conectem às outras. E sempre no corpo, esta casa
aberta para leituras onde ilimitados temas de importância estão disponíveis, ora
sendo criados, revisitados; evoluem. É verdade que os objetos que ganham vida
a partir das conexões têm uma relação muito forte com a escrita: a oração, o
corte, a musicalidade. E, talvez, a musicalidade seja a prática mais atuante – ela
me aproxima das coisas do mundo, encobrindo uma certa timidez. Nesses
encontros, Caetano Veloso me apresentou Lygia Clark. Cocteau Twins me
apresentou Miriam Cahn. Erik Satie me apresentou Henri Michaux. Cartola me
apresentou Hélio Oiticica. Morton Feldman me apresentou Paul Pagk. The
Velvet Underground me apresentou Andy Warhol. Gil Scott-Heron me
apresentou Malick Sidibé. Arvo Pärt me apresentou Anselm Kiefer. Philip Glass
me apresentou Louise Bourgeois. Tom Zé me apresentou Flávio de Carvalho.
Wendy Carlos me apresentou Pierre Huyghe. Brian Eno me apresentou Philippe
Parreno. Terry Riley me apresentou Néle Azevedo. Os Mutantes me
apresentaram Lenora de Barros. Laurie Anderson me apresentou Laurie
Anderson.
Talvez a introdução de Mal Secreto – uma peça, performance e/ou ensaio
fotográfico, ainda em construção – possa fazer ressoar a sua pergunta.
Nolwenn convida Stéphane e eu para fazermos uma viagem com seu filho, Saul, e seu companheiro, Julien. Ela está interessada na compra de uma casa, no meio de uma floresta, e nos pede alguns conselhos. Nos encontramos pela manhã do
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dia seguinte. Dentro do carro, escutamos Nolwenn falar sobre seus projetos enquanto o rádio, sintonizado em uma estação de música contemporânea, preenche os espaços vazios entre um pensamento e outro. Pouco a pouco, nos desconectamos da paisagem caótica e dissonante do centro de Paris. Chegamos. Registro aquilo que não vejo todos os dias. Falamos sobre a beleza e os perigos do exílio voluntário. Segundo Nolwenn, essa casa pode sempre ser útil nos feriados. Ao fim da visita, pegamos a estrada. O rádio é quem fala. À noite, em minha casa, descarrego as imagens. Elas se revelam habitadas pelos caprichos de um tempo em suspensão. Entre os objetos e as pessoas capturadas, um movimento contemplativo começa a se esboçar. Durmo tarde e, às cinco horas da manhã, abro os olhos e o computador. As aparições me perturbam: elas desejam encontrar o seu lugar no mesmo mundo do qual faço parte. Esse processo persiste durante todos os dias de uma semana. Os nomes nas imagens tornam-se dispensáveis. A casa e a floresta já não existem no passado. Mal Secreto acontece assim, do nada.
TALES FREY: Julgo o seu trabalho “brando” no que entendemos por
oposto ao que muitos avaliam como “polêmico” e o considero como possível de
ser partilhado para diferentes públicos e idades sem nenhum problema. Vejo um
exagero na forma como muitas pessoas assimilaram a participação de crianças
na sua obra La Bête e, inclusive, noto muitas reações que denotam uma forma
de agir pautada na mais pura má-fé quando tentam afirmar que a peça pode ser
nociva para menores de idade. Como você pondera a sua intenção artística e a
recepção da mesma por parte do público no contexto do Brasil e em outros
contextos onde mostrou seu trabalho?
WAGNER SCHWARTZ: Em cada uma de minhas criações, o efeito da
migração, da figura do estrangeiro, do corpo como matéria, da tradução é
palpável. Meu trabalho é direcionado àqueles que frequentam galerias, museus,
teatros e pode, também, encontrar um diálogo com os curiosos, como muitas
vezes já aconteceu. Nunca fui afrontado pelo público presente em qualquer uma
de minhas performances, peças ou instalações. A máxima reação foi o abandono
de algumas pessoas em uma apresentação ou outra, antes que essas
chegassem ao fim – fato que é absolutamente compreensível.
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É preciso ressaltar, no entanto, que as pessoas que você cita em sua
pergunta, aquelas que atacaram La Bête, não são as mesmas que conhecem a
performance, seu contexto ou a mim. Deste modo, prefiro não problematizar a
atitude de cada uma nesse momento, assim como não entendi quando, de um
dia para o outro, elas se tornaram especialistas em história da arte.
As pessoas que se aproximam de meus trabalhos geralmente estão
interessadas sobre o que em cada um deles é complexificado. A minha intenção
artística é criar contextos para que as questões que perseguem ou expandem a
condição humana sejam observadas, discutidas. E, dentro ou fora do Brasil, a
recepção tende sempre a ser motivadora.
PARA CITAR ESTE TEXTO
FREY, Tales. “Wagner Schwartz: ‘Falar do Que Eu Vejo. Falar do Que o
Outro Me Fala. Falar do Que Pode Ser Falado’”. eRevista Performatus,
Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.
Revisão ortográfica de Marcio Honorio de Godoy
Edição de Da Mata
© 2018 eRevista Performatus e o autor