William E. Hordern - Teologia Contemporânea

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Teologia ContemporneaWilliamE.Hordern AnteriormentepublicadosobottuloTeologiaProtestante aoAlcancedeTodos EditoraHagnos DigitalizadoporEclesiano 20/11/2011

ContedoReconhecimento ..................................................................................................................................... 3 PrefcioEdioRevista......................................................................................................................... 4 Introduo ............................................................................................................................................... 5 OCrescimentodaOrtodoxia ................................................................................................................... 9 AmeaaContraaOrtodoxia .................................................................................................................. 23 FundamentalismoouCristianismoConservador:ADefesadaOrtodoxia ............................................ 34 Liberalismo:ReconstituiodaOrtodoxia ............................................................................................ 45 NeoOrtodoxia:ARedescobertadaOrtodoxia ..................................................................................... 66 SrenKierkegaard ............................................................................................................................. 67 EmilBrunner...................................................................................................................................... 70 KarlBarth............................................................................................................................................... 76 NeoOrtodoxiaAmericana:ReinholdNiebuhr ...................................................................................... 86 AFronteiraEntreoLiberalismoeaNeoOrtodoxia:PaulTillich........................................................... 96 RudolfBultmann:ConservadorRadical............................................................................................... 107 DietrichBonhoeffereoCristianismoSecular ..................................................................................... 117 TendnciasTeolgicasAtuais.............................................................................................................. 128 Concluso ............................................................................................................................................ 141

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ReconhecimentoEm um livro desta natureza, impossvel que se consiga expressar conveniente reconhecimento a propsito de todas as fontes utilizadas. Pelo prprio fato de que meu propsito s o de tentar uma interpretao da teologia visando aos crentes em geral, e no aos leitores preocupados com os aspectos tcnicos da matria, parece-me que um grande nmero de notas de rodap seria desinteressante. A seco intitulada Sugestes para Leituras Complementares no , propriamente, uma bibliografia completa concernente s fontes que pude utilizar. E apenas uma compilao de obras que, em meu entender, podem interessar ao crente estudioso. Sinto-me devedor, entretanto, para com bom nmero de autores, cujos nomes dariam lista muito grande para constar aqui. Uma palavra de gratido especial tenho de dirigir a William Hubben, editor de Friends Intelligencer. Em princpios de 1953, ele me solicitou que escrevesse uma srie de artigos a respeito dos telogos modernos. O esforo que fiz para atender solicitao veio a ser fator importante, que resultou em minha deciso de escrever um livro relacionado com o assunto, de modo que muitas pginas deste livro apareceram nos vrios artigos da srie. Durante o outono de 1953, tive a oportunidade de proferir estudos nos quais fiz uso de boa poro do material em estudo, por ocasio de um Frum de Adultos realizado em conexo com reunies promovidas pelos Amigos de Swarthmore. A maneira interessada e perspicaz como os participantes ali se comportaram me proporcionou valiosa ajuda, principalmente por fazer-me atento queles pontos a respeito dos quais eu no alcanara ainda muita clareza ou no tinha conseguido expor com a devida preciso. Sinto que de meu dever estender minha gratido ao Board of Managers da Universidade de Swarthmore, pela licena que me concedera e que possibilitou a publicao deste livro. Por ltimo, mas nem por isso de menor importncia, tenho de externar minha gratido aos alunos. Por cinco anos que me tm sido dado que lecione na referida Universidade em Swarthmore, cheguei a compreender suficientemente como fazer exposio de problemas teolgicos de modo a atender s expectativas de um pblico constitudo de crentes profundamente interessados, portadores de senso crtico. W. E. H.

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PrefcioEdioRevistaQuando apareceu a primeira edio deste livro em 1955, eu estava sentindo que era grande a necessidade de que surgisse uma obra que servisse de introduo, para que os crentes interessados tomassem conhecimento das discusses teolgicas contemporneas. A receptividade manifestada para com o livro deixou claro que no eram poucos os crentes que participavam daquele meu sentimento. Ficou evidente que os crentes em geral esto dispostos a se informar sobre os debates teolgicos. Muito contrariamente ao que se pensa entre os leigos, a teologia no um assunto esttico de modo nenhum. Os telogos se sentem forados a fazer contnuos relacionamentos da f crist com o mundo em mudana no qual vivemos. Como resultado, tornou-se evidente, durante certo tempo, que aquela edio original de A Layman's Guide To Protestant Theology j estava defasada. Ao procurar, entretanto, empreender a necessria reviso da obra, tive a real impresso das dificuldades que tinha de enfrentar. Como que algum poder fazer justia a todos os vrios desenvolvimentos verificados no campo da teologia desde o aparecimento deste livro? Ao lanar aquela primeira edio no me faltava a compreenso exata de que eu estava exposto a muita crtica, pelo fato de no ter tomado em considerao alguns dos pensadores entre os telogos. A verdade, porm, que num livro deste porte no possvel tratar de todas as correntes teolgicas importantes. Mesmo que esta edio revista seja mais volumosa do que a original, ela , no obstante, criticvel, pois multiplicaram-se as tendncias teolgicas em nossos dias. Em virtude disso, o leitor j logo avisado que este livro no , de modo nenhum, uma introduo completa teologia contempornea. Caso a obra venha a atender a suas finalidades, no sentido de proporcionar incentivo aos crentes interessados neste gnero de literatura, ento eles podero prosseguir lendo em outras fontes, e, assim, preenchero as lacunas deixadas pela leitura desta obra. W. E. H.

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IntroduoO presente livro surge para corresponder convico que tenho de que h uma necessidade real no sentido de que os crentes em geral, no seio do Protestantismo, sejam levados a pensarem de modo mais criativo a propsito de assuntos ligados teologia. Entretanto, cabe a pergunta: Onde que o crente deve comear nesse esforo de reflexo? Caso lhe ocorra pegar um livro qualquer de teologia, certamente ele se sentir perdido em face dos termos cuja significao no lhe familiar. A teologia se lhe torna, assim, to inacessvel quanto o , por exemplo, algum dos tratados sobre a relatividade escritos por Einstein. Como outras cincias, tambm a teologia tem cunhado uma terminologia tcnica, seu prprio jargo. O que o presente livro visa a fazer introduzir o crente estudioso nesse campo do pensamento humano, mediante o emprego de termos que lhe sejam familiares. Temos de fazer uso de alguns termos tcnicos, sem dvida, mas, ao faz-lo, vamos tentar defini-los. Em primeiro lugar, ser melhor dizer por que se deve admitir que a teologia uma coisa necessria. No essa uma noo que parea intuitiva, nem mesmo aos crentes mais curiosos. J. P. Williams referiu-se a certo ministro evanglico, que teria dito o seguinte: Gosto muito de flores, mas odeio a botnica; da mesma forma, gosto muito de religio, mas odeio a teologia. Trata-se de uma atitude bem generalizada que, no raro, tem suas bases em argumentos plausveis. Porque, a verdade que a teologia pode parecer algo inspido e, at mesmo, destitudo de cristianismo. No obstante, a resposta para o problema de uma teologia empobrecida deve ser, propriamente, teologia melhor, e no a rejeio da teologia. Podemos perceber o quanto isso verdade se fizermos a fazer uma anlise do que a teologia realmente . Teologia palavra que procede do grego: Theos, que significa, Deus, e logos, que significa tratado ou pensamento lgico. Dai se depreende que Teologia tratado ou desenvolvimento bem ordenado do pensamento que se possa obter a respeito de Deus. A palavra Deus no pode ser definida de forma exaustiva, mas normalmente empregada para representar o que quer que se creia como sendo o fato ltimo, a Fonte da qual tudo o mais teria provindo, o Valor supremo ou a origem de todos os valores da existncia. Deus vem a ser o ente admitido como sendo digno de constituir-se no alvo e no propsito da vida. A luz de tais consideraes, torna-se evidente que ningum poder passar sua existncia sem a adoo de alguma forma de teologia. Com freqncia, algum diz assim: Por que preocupar-se com assuntos de teologia? Os telogos passam o tempo inutilmente discutindo questes sem qualquer importncia... Passemos a um exame dessa maneira de pensar. Por que ser que os problemas citados so considerados sem importncia? claro que quem faz semelhante objeo tem em mente algum conceito do que se deva admitir como sendo de mais alto valor, em comparao com o que ele se acha na condio de asseverar que os argumentos dos telogos lhe parecem destitudos de importncia. Isso quer dizer que tal pessoa encontra-se em determinada posio teolgica, tem uma opinio com referncia natureza de Deus, conceitos, portanto, que o levam a proclamar como sem importncia os argumentos enunciados pelos telogos. De modo que, mesmo um ataque assim, endereado contra a teologia, no passa de uma investida de natureza teolgica. Freqentemente ouvimos pessoas dizendo que no o que algum cr e, sim, o que faz que tem importncia. Trata-se de meia verdade, que, como acontece com as verdades apresentadas pela metade, chega a ser perigosa. E meia verdade porque, do ponto de vista cristo, o pensamento teolgico no nenhum fim em si mesmo. O cristianismo doutrina que se prope a ser vivida. Visa a resultar em aes. De forma que, se permanecer sempre como pensamento, torna-se algo at mesmo destitudo de verdadeiro cristianismo e, portanto, ftil.

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Entretanto, acentue-se que se trata de meia verdade, pois, o que quer que o homem faa, tal comportamento estar em ntima correlao com o que pensa e com o que cr ser o sendo valor ltimo da existncia. Sempre que o chamado homem prtico se encontra diante de situaes que lhe foram a decidir quanto melhor maneira de proceder, sente ser portador de alguma idia implcita quanto ao que constitui um alvo a ser alcanado em tal circunstncia, ou que valores se lhe impem como devendo ser assegurados mediante o encontro das solues cabveis. Alm disso, ele no poder deixar de revelar algum conceito quanto aos meios mais recomendveis pelos quais os valores sero alcanados. Tudo isso no passa de teologia, implcita ou explicitamente. O refro, No o que algum pensa, mas, sim, o que faz que tem importncia, parecia razovel quando a grande maioria dos indivduos no mbito de nossa cultura se encontrava sob uma escala de valores advinda do cristianismo. Atualmente, porm, vivemos num mundo no qual, precisamente, tal escala de valores se encontra, a cada momento, ameaada e posta em dvida. Os ideais de moralidade que pareciam evidentes aos antepassados tornaram-se problemticos nos ltimos dias. Tanto o Comunismo como o Nazismo reconhecem que no fcil distinguir entre o que o homem pensa e o que faz. Como conseqncia, adotam uma tremenda propaganda, com o objetivo de mudar o contedo do pensamento dos indivduos. Esto persuadidos de que, uma vez que consigam mudar os pensamentos relacionados com a natureza ltima das coisas e quanto aos valores, no haver nenhuma dvida de que terminaro por mudar as aes dos homens. A Teologia Crist no nada mais nem menos do que uma tentativa de mudar o pensamento dos homens de modo que passem a agir como cristos de verdade. Pelo fato de que vivemos num tempo em que a significao ltima da existncia submetida a dvidas, j no nos possvel ficar margem das discusses. H poucos anos atrs, os homens admitiam que podiam ignorar tais questes ltimas, prosseguindo em seus afazeres animados pela inteno de contribuir para a melhora desejada do mundo. A educao, a cincia e a tecnologia teriam condies de encontrar sada para todos os grandes problemas da humanidade. Todavia, como Dr. N. M. Pusey, presidente da Universidade de Harvard, observou em seu famoso discurso proferido perante a Faculdade Teolgica daquela Instituio, no possvel que algum se alheie dos problemas relacionados com a natureza ltima das coisas, pretendendo que se trate de algo inexistente. Caso algum insista em ignorar os problemas, verificar que aparecero sob formas pervertidas e distorcidas, para exporem a sua insuficincia de raciocnio. A nfase dada pelo Dr. Pusey muito bem ilustrada pelas vrias formas de totalitarismo que surgem quando os homens no podem enxergar mais nenhuma outra realidade ltima alm do Estado ou da Classe Econmica a que pertencem. O esforo de pensar a respeito de Deus conduz-nos imediatamente ao trato de um grande numero de problemas correlatos no mbito do que se designa por Teologia. Primeiramente, verifica-se a existncia do problemas relacionado com a posio do homem diante de Deus, que a Fonte ltima de tudo quanto existe, nisso incluindo-se uma idia sensata do que o homem admita como sendo o bem. Assim, vemo-nos forados a estudar o conceito de Revelao, isto , como ser que o homem pode inteirar-se de como Deus , propriamente? Ser que Deus pode ser descoberto pelos mtodos adotados para as descobertas de ordem cientfica? Ou ser melhor admitir que Deus mesmo tenha de proporcionar-nos uma revelao de sua natureza? Caso se admita a ltima hiptese, como seria e onde se daria essa revelao? Tais perguntas conduzem-nos necessidade de formularmos um conceito do que seja pecado. O pecado ocorre quando o homem se encontra em desarmonia com a Fonte de seu ser e quando trai seus valores supremos. E interessante observar que, mesmo quando se trata de um sistema ateu ostensivo, como se verifica no Comunismo, no se pode fugir ao problema do pecado. Por exemplo, sabe-se que aqueles que traem os valores tidos como supremos pelos partidrios do Comunismo, na verdade, no so chamados pecadores, mas passam a ser

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apelidados de trotskistas, criaturas de Wall Street, belicistas, capitalistas imperialistas, e assim por diante. As preocupaes com o pecado nos levam a questes relacionadas com a salvao. Salvao experincia que ocorre quando uma pessoa, de alguma forma, consegue vencer a distncia em que se encontra da Fonte de seu ser e quando retoma a lealdade para com os valores supremos. Como que o homem pode alcanar a salvao? Como lhe ser possvel triunfar sobre o pecado? Por que ser que o homem peca? Qual a razo por que o homem no consegue se conformar aos valores supremos? Ser que ele cai naturalmente em situao pecaminosa? Pode o homem vencer o pecado e permanecer coerentemente fiel aos padres que ele aceita como mais elevados por esforo pessoal ou ser que indispensvel algum socorro de fora? At mesmo aquele que diz que no o que se cr, mas, sim, o que se faz que relevante no poder deixar de encontrar uma resposta, implcita ou explcita, para as perguntas assim formuladas, antes que se lhe torne possvel agir em qualquer situao da vida. Outras perguntas subjazem s que foram feitas. Por exemplo, como que o homem pode organizar-se mais convenientemente para a realizao coletiva do bem? Isto , que devemos entender por Igreja? Para onde ser que as coisas nos esto conduzindo neste mundo? Qual ser nosso destino final? Em que havemos de depositar nossa esperana? Ser que a presente vida, a histria do homem sobre o planeta, a soma total das oportunidades que nos so concedidas para o conhecimento do Ente Supremo, ou ser o caso de admitir- se uma existncia e um reino alm dos limites do presente no qual se consumaro os valores atualmente idealizados? Tais so as perguntas concernentes ao que os telogos denominam Escatologia. Assim considerando-se, verifica-se a impossibilidade de fugir dos problemas de natureza teolgica. Simplesmente, no dispomos de uma alternativa entre teologia e inexistncia de teologia. A alternativa diante da qual nos encontramos a seguinte: ou temos uma teologia bem sistematizada, isto , uma teologia que tenha passado pelo crivo de uma crtica rigorosa, ou, ento, temos uma teologia que no passe de conglomerado de conceitos, idias preconcebidas e sentimentos tomados sem qualquer preocupao crtica. Uma das fraquezas do Protestantismo nos dias atuais reside no fato de que limitado o nmero de crentes informados sobre o contedo do que cr e das razes por que cr. Trata-se de erro que os comunistas, por exemplo, geralmente no cometem. O Partido Comunista se empenha tremendamente na formao dos que se tornam filiados. Nenhuma religio admitida parcialmente poder subsistir diante da disciplina agressiva do Comunismo. Entretanto, nunca devemos supor que a teologia seja necessria s por causa da ameaa do Comunismo. A ameaa representada Comunismo tosomente ilustra um fato bsico a respeito da vida. Os acontecimentos peculiares ao sculo vinte contribuem para um renascimento da teologia protestante. Os homens encontram-se mais uma vez empenhados em encontrar solues que satisfaam aos problemas ltimos da existncia e esto fazendo tentativas de fixar o sentido das solues oferecidas pelo cristianismo. Espero que este ajude o leitor a se informar do que se passa nos domnios da teologia. Este livro no oferece uma imagem completa de tudo quanto se discute nas esferas teolgicas; no passa de simples introduo. Ele poder levar o leitor a interessar-se em fazer mais prolongadas leituras e, quem sabe, incentiv-lo a refletir com mais exatido. Pode ser que o leitor no aceite nenhum dos pontos de vista teolgicos que sero delineados; entretanto, o livro ter alcanado o fim a que se prope caso ajude o leitor a formular seu prprio modo de encarar os problemas teolgicos em face do panorama geral do pensamento moderno. H muitas maneiras de conduzir o crente ao estudo da teologia moderna. Uma das maneiras mais acessveis consistiria na discusso de certos tpicos, como o pecado, Deus, salvao, dando-se um resumo das vrias interpretaes existentes. Creio, porm, que um mtodo assim poder confundir mais do que esclarecer. A teologia tem de contar com um ponto de convergncia das vrias doutrinas. Ela tende formulao de sistemas de pensamento nos quais as respostas encontradas para qualquer pergunta lancem luz sobre uma pergunta a seguir. Preferi,

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portanto, fazer apreciao da teologia moderna mediante o exame de vrias escolas. Dessa forma, sinto-me em condies de ilustrar a maneira como cada um dos sistemas propostos se faz um todo orgnico. Ao mesmo tempo em que, eu creio, esse o mtodo mais desejvel, no se pode negar que ele tem certas deficincias, e devemos ressalt-las. Em primeiro lugar, como j algum disse: todos os rtulos so pejorativos. H sempre alguma injustia em considerar algum como partidrio de uma escola de pensamento. No raro, isso resulta em atribuir-lhe concepes que o prprio indivduo, na verdade, rejeita. Usualmente, h alguma originalidade ou individualidade inconfundvel em cada pessoa que pensa, e tal o que se perde de vista quando ele encaixado em uma determinada escola. Temos procurado destacar as diferenas individuais tanto quanto nos tenha sido possvel faz-lo. Entretanto, o leitor concordar em que esse um ponto fraco do mtodo adotado que ns no podemos vencer de todo. Num livro que pretende ser to-somente uma introduo, esse preo que se tem de pagar inevitavelmente. Uma segunda dificuldade consiste no fato de sermos continuamente tentados a exagerar as diferenas dos vrios pontos de vista existentes, de modo que nem sempre pontos de contato podem ser evidenciados. Procuramos fazer com que a posio defendida por certa escola fique bem destacada de posio defendida por uma outra. Alm disso, o relacionamento de todos os pontos comuns levaria a uma repetitividade bem desagradvel. Insista-se, portanto, nisso, que o leitor no deve perder de vista essa limitao do mtodo. Uma terceira dificuldade reside em que, caso nos limitemos a estudar a teologia em termos das escolas contemporneas, chegaremos concluso de que h certos pensadores de renome que so referidos muito de passagem e outros que at so ignorados. O problema de saber qual o telogo que deve ser tomado como representante da escola a que esteja filiado , na verdade, assunto que depende do julgamento de cada um. No posso ter certeza de que todos concordem com os critrios que adoto. Posto que nosso propsito introduzir o leitor ao estudo dos desenvolvimentos modernos da teologia, temos de comear pela histria. Os problemas que se nos apresentam atualmente no surgiram de repente, no decorrer do sculo. Eles foram gerados no passado e no podem ser entendidos seno mediante os vestgios que deixaram em sua histria. No dispomos de espao para o tratamento adequado da histria do pensamento ocidental, mas dedicamos dois captulos a um esboo de alguns dos elementos mais insinuantes das bases histricas dos vrios sistemas.

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OCrescimentodaOrtodoxia quase impossvel empregar o termo ortodoxia sem provocar emoes. H pessoas que ficam horrorizadas s em pensar na probabilidade de no estar na exata linha ortodoxa. Para estes, a ortodoxia, quer se trate de poltica, de religio ou de boas maneiras, constitui-se na principal necessidade da existncia. Para outras pessoas, a ortodoxia algo como o mais deplorvel estado a que o ser humano pode ver-se reduzido. Equivaleria a ser considerado trivial, destitudo de originalidade, ou pessoa, propriamente, simplria. De modo geral, os Estados Unidos se orgulham de no seguir os cnones da ortodoxia, de modo que, pode dizer-se que os americanos tm procurado agir como se estivessem produzindo a nova ortodoxia de no se ser ortodoxo. Espero ser capaz de deixar de lado todo contedo emocional que a palavra insinua em tudo quanto vou dizer. Por cristianismo ortodoxo eu quero significar alguma coisa exclusivamente descritiva. O cristianismo ortodoxo aquele que alcanou obter a aprovao da imensa maioria dos cristos e que expresso pela maioria das proclamaes oficiais ou por confisses de f formuladas por grupos de cristos. Chegando-se a esse ponto, algum poderia levantar a objeo de que seria melhor falar de ortodoxias, em vez de continuar falando de ortodoxia. No fato que cada uma das mltiplas divises da cristandade defende sua prpria ortodoxia? Cada uma das divises, de fato, assim tem feito, mas tem subsistido certo ncleo de doutrinas crists que conseguiram a adeso coerente da maioria dos cristos, a despeito das notrias diferenas. Estamos interessados, portanto, nesse acervo de crenas sobre as quais existe certa harmonia. Nos nossos esforos de chegar ortodoxia devemos comear pelo exame do prprio Novo Testamento. Os primeiros crentes no contavam com a existncia de nenhuma ortodoxia no sentido de uma razovel formulao sistemtica do pensamento. A erudio crtica moderna da Bblia tem sugerido que haja muitas teologias dentro do Novo Testamento, mas no lhe tem escapado tambm que, ao lado das muitas variaes na teologia, o fato era que existia uma f comum. As vrias teologias no passam de tentativas feitas por homens srios no sentido de pensar e exprimir a outro a f comum. Muito dessa f algo implcito mais do que explcito. Vinte sculos no foram suficientes ainda para conseguir-se a elaborao de todas as implicaes contidas na f bsica do Novo Testamento. A f contida no Novo Testamento encontra-se fundamentalmente alicerada na admisso de que, na vida, na morte e na ressurreio do homem Jesus, Deus entrou na vida humana de modo decisivo. Exatamente por isso chegaram at ns quatro relatos da vida de Jesus. Foi essa a razo pela qual os cristos foram capazes de enfrentar as ameaas relacionadas com as masmorras, o fogo e a espada, para difundirem por toda parte a Boa Nova que, como se sabe, o que quer dizer a palavra Evangelho. E mera distoro da histria supor que o cristianismo tivesse comeado por causa do entusiasmo que alguns poucos homens teriam experimentado ao ouvirem a respeito da brilhante tica ensinada por Jesus. Pelo contrrio, os primitivos cristos puseram-se a proclamar ao mundo convices relacionadas com algum a quem Deus tinha declarado ser Senhor. E impossvel exagerar a importncia da ressurreio para os crentes primitivos. Paulo diznos: Se Cristo no ressuscitou, v a vossa f (1 Co 15.17). Estudando essa passagem, o leitor verifica de imediato que o Apstolo no estava se esforando intelectualmente para persuadir os condiscpulos de que Cristo teria ressuscitado de entre os mortos; em vez disso, o Apstolo fazia uma simples referncia a um ponto de f, a respeito do qual seria impensvel a existncia de qualquer diferena entre ele e os seus leitores, de modo que lhe era possvel prosseguir em seu raciocnio visando ao estabelecimento de prova suficiente para o ensino de outro ponto de f. A

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ressurreio de Jesus constitua-se em convico tal que no se podia admitir que algum se recusasse a aceit-la e continuasse a considerar-se como pessoa crist. A ressurreio de Jesus era a rocha da f confessada por aqueles crentes. Nos dias atuais, no raro que ressurreio signifique para os cristos nada mais do que mera prova de existncia depois da presente vida. Significava isso tambm para os primeiros cristos, mas significava muito mais... Primariamente, a Ressurreio de Jesus era a prova mxima de que Jesus era o Cristo ou Messias de Deus. Por sculos, os judeus tinham vivido nutridos pela promessa de que Deus haveria de enviar-lhes o Messias, seu instrumento Eleito, que haveria de salvar seu povo e estabelecer uma sociedade marcada pela justia. De modo muito compreensvel, uma vez que os judeus tinham vivido por sculos sob o domnio de conquistadores estrangeiros, ocorreu-lhes que o Messias deveria ser um poderoso chefe militar, capaz de arregimentar as legies celestiais para obter a vitria sobre os cruis opressores. Finalmente, quando Jesus apareceu, seus seguidores ousaram afirmar que ele era o longamente esperado Messias. Entretanto, ele no procurou agir em correspondncia com as expectativas de muitos. Ele no arregimentou nenhum exrcito; ele se recusou a ser feito rei. Por ltimo, ele foi aprisionado, cuspido e escoltado, como se fosse um criminoso comum, para ser executado. Morreu esplendidamente, mas os discpulos acalentavam o desejo de algo diferente de qualquer morte esplndida. Um Messias que morto, vencido e derrotado pela Roma Imperial dificilmente seria algum que se pudesse afirmar ser capaz de salvar o homem. Os discpulos puseram-se em fuga no, na verdade, porque no tivessem coragem, mas, sim, pelo fato de parecer-lhes insensato arriscar a vida defendendo uma causa perdida. Admitiram terem-se enganado de modo trgico e o mais adequado era s persuadirem-se cada vez mais disso. No obstante, nas profundezas mesmas do desespero a que estavam prostrados, viram-se subitamente diante de um desenvolvimento inesperado. Jesus no estava morto. Ele estava vivo; Ele tinha ressuscitado. O que a ressurreio significava, portanto, era que Jesus se mostrava definitivamente como sendo o Messias ou o Instrumento do prprio Deus. Deus tinha estado operando atravs dele, como os discpulos tinham crido anteriormente. Roma imperial, com seu poder cruel, j no deveria ser tida como a fora mais invencvel neste mundo. Roma tinha desencadeado uma sucesso de acontecimentos que terminariam por sobrepuj-la, o que ocorreu exatamente no instante quando, atravs de seus soldados, tinha crucificado o humilde carpinteiro da Galilia. Os poderes do mal - e sabe-se que os cristos primitivos criam que nelas se incluam os demnios tanto quanto os homens maus - tinham alcanado o ponto extremo de sua manifestao. Mas, exatamente no momento de sua aparente vitria, eis que Deus se evidencia como muitssimo mais poderoso do que tais poderes. Jesus no tinha conseguido realizar o que os contemporneos esperavam que ele realizasse. Entretanto, na medida em que os dias iam passando, seus seguidores entenderam que ele tinha conseguido realizar algo bem melhor. Jesus no lhes tinha dado independncia com relao ao Imprio de Roma, mas lhes tinha possibilitado quebrar os grilhes que os mantinham sujeitos ao pecado e morte, grilhes pelos quais se sentiam acorrentados ao medo. Ele lhes tinha revelado com muita certeza que o poder do bem admiravelmente maior do que o poder responsvel pela existncia do mal. Mediante a ressurreio de Jesus, Deus tinha demonstrado a superioridade do esprito de Jesus sobre o esprito do mal. Portanto, os cristos passaram a esperar a volta ou a segunda vinda de Cristo, quando o mal haveria de ser completamente desfeito. As foras do mal j tinham sido derrotadas por ocasio da batalha crucial; nenhuma dvida se poderia admitir quanto a quem seria o ltimo vencedor. Acontecia, porm, que as foras do mal se encontravam ainda em campo e continuavam capazes de acarretar muito desconforto. A batalha decisiva tinha obtido a vitria, mas a vitria final ainda pertencia ao porvir. Os discpulos saram pelo mundo pago levando a mensagem de que Deus tinha falado, Deus tinha agido, Deus tinha revelado sua natureza ao homem. O homem no precisaria mais se esforar para subir as encostas da traioeira montanha que promete o conhecimento de Deus;

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Deus mesmo tinha descido das alturas, para permitir que os homens o contemplassem. Deus, assim asseveravam, estava em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo (2 Co 5.19). No obstante a simplicidade daquela f, o fato era que se tratava de f cheia de implicaes. Por exemplo, ela implicava em afirmar-se que Deus era como Jesus era; o esprito de Jesus revelava qual era a natureza de Deus. Num mundo onde muitas vozes se erguiam, alegando conhecerem tudo a respeito de Deus, os cristos se atreveram a crer que Deus mesmo tinha procurado desfazer as nuvens que ocultavam a sua face aos homens. A nica palavra encontrada para descrever a vida e o ensino de Jesus foi amor. Sendo Deus como Jesus, ento Deus amor (1 Jo 4.8). Com o passar do tempo, o primitivo termo Messias ou Cristo, conforme a traduo grega, no parecia mais adequado para exprimir todo o contedo da f. Isso comeou a acontecer particularmente quando tiveram de percorrer outras regies da Grcia e da Roma imperial, onde ningum tinha ouvido nada a respeito do Messias esperado pelos judeus. Foi assim que os discpulos tiveram de passar a designar Jesus de Senhor, Salvador e Filho unignito. Todos esses eram termos pelos quais os cristos tentavam exprimir a f que tinham no sentido de que Deus, em Jesus, tinha feito uma revelao de si mesmo aos homens de maneira absolutamente nica. Finalmente, eles chegaram a dizer como o duvidoso Tom: Meu Senhor e meu Deus! Jesus no tinha apenas sido enviado por Deus. Ele era o prprio Deus, isto , Deus em operao na vida humana. Paulo, proeminente intrprete do cristianismo durante o perodo quando o Novo Testamento estava sendo escrito, foi quem deu orientao ao cristianismo em sua fase inicial de combates - nas lutas travadas contra o legalismo. Todas as religies, tambm as crists, tendem a tornar-se legalistas. Isto , tendem a ensinar que o homem ter de obedecer a certas normas e regulamentaes para que possa alcanar o favor divino. Tanto Jesus como Paulo lutaram contra o legalismo. Jesus afirmou que, quando algum tivesse feito tudo quanto lhe fosse possvel, ainda assim teria de considerar-se um servo intil (Lc 17.10). Isso queria dizer que tal pessoa no deveria pensar que tivesse feito jus a qualquer pagamento por parte de Deus. Semelhantemente, foi ainda Jesus quem ressaltou que Deus faz com que a chuva caia sobre justos e injustos (Mt 5.45). Deus no abre nenhum guarda- chuva sobre as cabeas dos bons, de modo que possam contar com alguma proteo especial contra estilhaos ou setas provenientes de situaes surpreendentes. A dificuldade que os cristos tm mostrado de aceitar um princpio to bsico que marca os ensinos de Jesus algo muito estranho. Parece coisa natural, ainda a um bom nmero de crentes, pensar que a manuteno de uma vida superiormente virtuosa ter de receber alguma recompensa excelente, se no aqui mesmo, com toda certeza no alm. Jesus, entretanto, na Parbola dos Trabalhadores da Vinha (Mt 20.1-16), condena totalmente essa maneira de pensar. O obreiro que comeou sua fadiga desde o amanhecer e suportou todo o calor do meio-dia, nem por isso receber maior retribuio no fim da jornada do que a retribuio a ser recebida pelos que obra se dedicaram to-somente durante uma hora. Os primitivos cristos, sob a orientao de Paulo, puderam entender que o legalismo, isto , a preocupao em receber uma recompensa da parte de Deus em troca de certas observncias coisa basicamente errada. errado por que comercializa a religiosidade. Passa-se a ser bom na expectativa da retribuio. E errado, porque conduzir os indivduos muito facilmente ao orgulho e hipocrisia, como se pode entender das atitudes prprias aos fariseus. Pelo fato de que os fariseus podiam cumprir a lei um pouco melhor que os demais, sentiam- se superiores. Alm do mais, o legalismo estimula os crentes no sentido da hipocrisia de pensarem que esto fazendo melhor do que na verdade estejam. Por outro lado, as pessoas que tinham experincia semelhante de Paulo percebiam-se muito bem como o legalismo levava ao desespero. Ao verificarem como ficavam abaixo dos padres sublimes de bondade que lhes eram propostos, mostravam a tendncia de cair em desespero com relao a si mesmos, salvao e recompensa to almejada.

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Em lugar do legalismo, Jesus e Paulo preferiram realar os mritos da salvao por graa, mediante a f. A doutrina se encontra implcita em Jesus e explcita em Paulo. Suas razes esto na afirmao de Jesus de que Deus Pai. Todos os filhos que possam receber o amor paternal tm condies de perceber o significado da salvao pela graa. O filho no precisa conquistar o favor dos pais; sente-se amado, simplesmente por ter vindo ao mundo. Antes mesmo de um filho poder compreender o que seja amor, o fato que se sente envolvido por uma atmosfera de demonstraes de amor. O verdadeiro pai no procura dar mais presentes aos bons filhos do que o faz aos menos reconhecidos. A autntica vida domstica no se alicera em bases comerciais, dando mais amor em troca de mais virtudes; ela alicera-se na graa, que o amor imerecido. O filho deve sentir-se motivado no por desejos de receber maiores favores dos pais, mas, sim, pela gratido pelos favores que j tenha recebido. Quando ocorre que um filho pertencente a uma casa paterna desse tipo se desvie, quando se verifica o desapontamento nas esperanas longamente acalentadas, ele no ser merecedor dos favores do lar. A parbola a propsito do Filho Prdigo bela exposio da salvao pela graa. Depois de o filho ter concorrido para a infelicidade do lar e de ter manchado o prprio bom nome e o da famlia por viver dissolutamente com as meretrizes, viu-se finalmente ganhando seu sustento de modo vergonhoso, no meio dos porcos. Enquanto se esforava para conseguir algumas bolotas ocorreu-lhe um plano pelo qual parecia possvel obter novamente os favores paternos. Chegou a articular consigo mesmo um pequeno discurso, mediante o qual seria possvel oferecer-se como servo ao pai. Entretanto, o pai no lhe deu tempo para que proferisse o discurso. Estando o filho ainda bem distante, eis que o pai corre ao seu encontro e o aceita como filho, no como servo. Devemos ter o cuidado de no interpretar a parbola de modo demasiado sentimental. No se trata de relegar o passado ao passado. O verdadeiro pai no deixa de repreender o filho que se trans via. Robert Louis Stevenson, em seu livro The Master of Ballantrae, narra a histria de certo pai que simplesmente fechava os olhos aos erros cometidos pelo filho. O citado autor diz como aquele pai agia de tal maneira que o perdo - para empregar-se mal o nobre vocbulo como que flua dele como as lgrimas lhe fluam por efeito da senilidade. Mas o autntico perdo paterno no tem nenhuma semelhana com as lgrimas fceis da senilidade; assemelha-se muito mais experincia da Cruz do Glgota; o perdo fere; despedaa a alma. No coisa fcil abraar o pescoo recentemente contaminado por falsas carcias de uma meretriz; no coisa fcil esquecer as palavras indelicadas e at de zombaria proferidas por vizinhos; todavia, a despeito de todo o custo, o pai perdoa. E um tal relacionamento familiar que Jesus e Paulo procuram usar como ilustrao da graa de Deus. O amor de Deus no algo que o homem tenha de comprar e merea. Quando ainda ramos pecadores diz Paulo, Cristo morreu por ns (Rm 5.8). Quer dizer, antes que o homem se tivesse feito suficientemente bom, Deus agiu para salv-lo. Mediante a pessoa de Jesus, Deus oferece ao homem a promessa de que, caso o homem to-somente se volte para o Pai Celestial, ser recebido. Essa atitude de perdo no uma experincia insignificante para Deus. Mesmo que Paulo no tenha delineado nenhuma doutrina clara com respeito significao da Cruz, o Apstolo no revela dvidas de que ela representa exatamente o preo que Deus teve de pagar para que pudesse reconquistar o homem do domnio do pecado. Esse perdo de Deus poderia, ento, ser alcanado por qualquer ser humano, desde que o aceitasse pela f. A f no significa, no entender de Paulo, crer em algo, embora se saiba que o crer est envolvido na experincia da f. Mas a f , primeiramente, o ato da auto-rendio. O filho prdigo, por exemplo, revelou ter f no momento em que se levantou para voltar casa paterna. A f , para Paulo, portanto, a entrega sem reservas pela qual o indivduo levado a agir de certa forma. A f para com Deus, ento, no significaria uma simples admisso da existncia de Deus nem qualquer crena quanto pessoa de Jesus. Significaria, sim, o entregar-se de todo corao, para comportar-se como filho de Deus, de modo a obter a exata maneira de pensar que houve em Cristo Jesus (Fp 2.5).

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Estaria em erro, porm, quem supusesse que a graa seria to-somente uma predisposio Divina no sentido de perdoar queles que fossem a ele com f. A graa inclua tambm o necessrio poder espiritual que dado ao indivduo para que se torne capacitado a realizar o que antes lhe era impossvel. Jesus assegurou aos discpulos que a f capaz de remover montanhas e Paulo afirma que, atravs da f foi possvel encontrar foras para a realizao das virtudes que antes ele bem conhecia, mas no tinha condies de cumpri-las. Paulo nos ensina que podemos viver em Cristo uma vida diferente, caracterizada por novo nimo e imenso poder. A graa de Deus liberta o homem do medo e do prprio sentimento de culpa. O homem, sob a influncia da graa, entende que aceito por Deus, mesmo como se encontra. Passa a nutrir-se da convico de que nem a vida nem a morte, nem principados nem potestades podero separ-lo do amor de Deus que est em Cristo Jesus (Rm 8.38-39). Alm disso, liberta-o da servido aos hbitos, indolncia e s fraquezas, que tanto lhe fazem presa do pecado. Atravs de toda a histria do cristianismo, os convertidos tm afirmado que em Cristo eles receberam duas formas de liberdade: liberdade do medo e do poder do pecado. As linhas acima retratam o ncleo da f crist sobre que se baseia a ortodoxia. A ortodoxia se desenvolveu levando em conta a maneira de viver produzida pelas bsicas convices da f. A teologia crist no um sistema filosfico que tivesse provindo de longa reflexo por determinados indivduos privilegiados por condies de quietude e de estudos. Pelo contrrio, a teologia surgiu no entrechoque de muitas lutas, atravs da atuao de homens que jamais desertaram a linha de fogo sustentada pela Igreja. Todas as peas que passaram a constituir a plataforma da ortodoxia ali foram postas, tendo-se em vista alguma heresia que ameaava transtornar os conceitos sobre a natureza do cristianismo e destruir a f que lhe era substancial. Enfrentando os argumentos da heresia, os cristos cada vez mais se sentiam forados a pensar mais demoradamente nas implicaes dos enunciados da f. Pelo fato de que as doutrinas do cristianismo surgiram das experincias da vida e no de discusses mantidas em ambiente acadmico, elas nem sempre podero ser entendidas por homens que, falando- se figuradamente, ficam como traas nas bibliotecas lendo a respeito das doutrinas. As doutrinas podem ser devidamente entendidas, sim, por pessoas que de fato participam das exigncias da vida crist, que se predispem a enfrentar, como o fizeram os formuladores da ortodoxia, os perigos prprios linha de fogo onde a vida crist exige coerncia. Como acontece com o termo ortodoxia, tambm heresia termo bastante carregado emocionalmente. Quero dizer com isso a falsa interpretao que existe quanto posio ortodoxa. A primeira heresia de vulto, o Gnosticismo, surgiu nos sculos segundo e terceiro. Foi um movimento que se constituiu em sria ameaa dentro do cristianismo, na ocasio quando os imperadores romanos o estavam ameaando externamente. Das duas ameaas, os gnsticos eram os inimigos mais perigosos. Roma imperial no podia matar o cristianismo de maneira nenhuma; mas o Gnosticismo, caso tivesse conseguido impor-se, o teria pervertido. Os gnsticos eram filsofos que insistiam em produzir uma mistura de todas as religies existentes no mundo, aproveitando-se do que cada uma pudesse oferecer de melhor. No passou muito tempo at que um bom nmero deles conseguisse penetrar na comunidade dos crentes. Comearam por estabelecer conexes entre algumas de suas idias e as do cristianismo, mas, ao faz-lo, tinham de introduzir mudanas no cristianismo, de modo que este se enquadrasse no esquema das idias que traziam consigo. Uma das convices bsicas dos gnsticos consistia no que conhecemos pelo nome de dualismo. Isto , eles criam que o mundo se divide, em ltima anlise, entre dois poderes: o do mal e o do bem. Concordando com a filosofia grega de modo geral, eles identificavam o mal com a matria. Por causa disso, rejeitavam o Deus do Velho Testamento, pois ele tinha criado o mundo material. O criador deste mundo tem de ser, necessariamente, mau, era o que insistiam em afirmar. Tambm, pelo fato de os gnsticos identificarem o mal com o mundo material, procuravam, em conseqncia, obter a salvao fugindo do mundo. Todas as coisas materiais

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seriam ms e, assim, um empecilho salvao da alma. Criam que a alma s poderia se salvar atravs de renncias de natureza asctica com relao a tudo que se prendesse carne e, alm disso, atravs do conhecimento. De fato, sabe-se que o termo Gnstico vem do grego gnosis, que significa conhecimento. Eles se interessavam de modo muito particular pelas formas msticas do conhecimento. O conhecimento seria algo a ser mantido sob segredo, devendo tornar-se acessvel apenas a um crculo limitado de pessoas iniciadas em mistrios, tornadas capazes e dignas de conhecer a verdade. Os gnsticos valorizavam um bom nmero de noes prprias ao cristianismo. Por exemplo, sentiam-se bem com a idia de que Cristo foi enviado por Deus a este mundo. Ensinavam que o bom Deus tinha enviado um de seus subalternos, Cristo, a este mundo, com o propsito de libertar as almas dos homens da priso da matria, qual teriam sido aprisionados pelo Deus mau do Velho Testamento. Cristo, entretanto, no aceitaria em que sua pureza fosse manchada pela matria. A rigor, no seria possvel que ele se tornasse homem. No seria admissvel que Cristo nascesse de mulher, uma vez que, mesmo a mulher sendo virgem, Cristo no poderia evitar a de contaminao. Igualmente inimaginvel para eles era admitir que Cristo tivesse comido e bebido, ficado exausto e sofrido at a morte. As vrias correntes gnsticas faziam uso de diferentes argumentos na tentativa de resolver o incmodo dilema. Um dos grupos insistia em que o Cristo Divino tinha adotado o humano Jesus por algum tempo e, atravs dele tinha agido e falado, mas sara de Jesus antes da crucificao. Outro dos grupos preferia admitir que Jesus no tinha corpo real, absolutamente; tratava-se de alucinao capaz de passar como fato verdadeiro. Fosse qual fosse a escola a que o gnstico pertencesse, concordaria, no obstante, em admitir que Jesus no seria, em hiptese alguma, ser humano real. Era uma heresia, portanto, que no negava que Jesus fosse divino; negava, sim, que Jesus fosse humano. Os gnsticos tornaram-se bem difceis de ser combatidos, pelo fato de que, em sua maioria, eles tinham um comportamento muito puro. Uma vez que, ento, o ascetismo contava com grande nmero de admiradores, a renncia aos desejos da carne, em que tanto eles insistiam, fazia com que tivessem considervel receptividade. Nos argumentos que empregavam com freqncia, eles insistiam em apresentar-se como detentores de algumas informaes sigilosas com as quais os seus adversrios no contavam. Jesus tinha confiado tais verdades ao crculo limitadssimo de gnsticos contemporneos, escondendo-as dos judeus materialistas que fundaram a Igreja. Quando suas alegaes no convenciam, os gnsticos passavam a falar de uma revelao especial que teriam recebido do cu e capaz de corroborar os pontos de vista que proclamavam. No obstante, o cristianismo tinha de promover a expulso das influncias gnsticas de seu meio. Se o gnosticismo tivesse triunfado, a mensagem do cristianismo destinada a todos os homens teria sido substituda por outra, destinada a um crculo de privilegiados. O Cristo dos crentes teria deixado de ser uma figura humana e teria se tornado, como um dos muitos deuses das religies de mistrios - simples entidade vaga e lendria. Os cristos teriam sido forados a abandonar a preciosa herana de que eram portadores, vinda do judasmo, passando a comportar-se como comunidade de ascetas fugindo do mundo. O cristianismo se uniu para o grande esforo de expulsar aquela heresia e, assim fazendo, teve a oportunidade de consolidar a posio ortodoxa que lhe convinha. O Credo Apostlico, que , ainda, repetido em muitas igrejas, surgiu durante aquele tempo e pode ser melhor compreendido como expresso da polmica contra o gnosticismo. Em primeiro lugar, o Credo faz afirmao quanto a Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do cu e da terra. Isto , o Credo repudia a idia de que o mundo criado seja mau ou tenha origem em qualquer deus mau. O mundo material bom e digno de ser usado e usufrudo pelo homem. O Credo Apostlico, em seguida, passa a afirmar o que se cria de Jesus Cristo, seu Filho unignito, nosso Senhor, que foi concebido mediante o Esprito Santo, nascido da Virgem Maria, sofreu sob Pncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado. Muitos hoje em dia param perplexos diante da frase: nascido da Virgem Maria. No conseguem aceitar o nascimento virginal. Entretanto, por ironia, aos primitivos gnsticos, o problema no se encontrava associado

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a virgem; associava-se a nascido. O homem atual tem a impresso de estar diante de coisa estranha, ao ouvir: nascido da Virgem Maria. O gnstico experimentava a mesma sensao, ao ouvir; nascido da Virgem Maria. Efetivamente, a frase, juntamente com as outras relacionadas com sofrimento, morte e sepultamento, foi o mtodo prprio pelo qual a Igreja conseguiu deixar patente sua f na completa humanidade de Jesus. Como quer que fosse que o cristianismo ortodoxo preferisse dizer o que cria concernente divindade de Jesus, o fato notrio sempre foi a manuteno da convico quanto humanidade de Jesus. luz da mesma considerao, deve ser compreendida a outra frase do Credo, que causa dificuldade a muitos pensadores atuais, isto , a ressurreio do corpo. Pergunta-se, vo ser: Ser que temos de admitir que os tomos do corpo vo ser reconstitudos e revivificados outra vez? Na verdade, a quem quer que tenha lido o captulo 15 da Primeira Epstola aos Corntios jamais ocorrer supor que esta a maneira de crer conforme a doutrina. Sabe-se que a doutrina reflete o mtodo pelo qual os judeus criam e afirmavam ser o homem um todo; o homem no dividido, como os gnsticos e certos filsofos gregos afirmavam, em alma boa e corpo mau. A doutrina gnstica da imortalidade da alma supunha a crena e implicava em que a alma seria necessariamente imortal e to-somente precisava ficar livre da priso do corpo. A doutrina implicava ainda mais ao afirmar que o corpo seria, na melhor hiptese, um fardo para a alma e, na pior hiptese, seria um obstculo salvao da alma. O cristianismo negava tudo isso, insistindo no valor prprio do corpo, e, assim, ressaltando a importncia da presente existncia. Outro problema de maior relevncia que atraiu muito a ateno dos cristos dizia respeito Trindade - a relao entre o Pai, o Filho e o Esprito Santo. Tambm as discusses em torno desse assunto foram suscitadas pela existncia de heresias. Os cristos jamais ocuparam seu tempo pensando sobre a Trindade, considerando-a matria de debate filosfico. Agostinho refletiu bem sobre o que aconteceu, declarando que os pronunciamentos feitos com relao ao assunto no visavam necessidade de dizer algo, mas to-somente atendia necessidade de romper o silncio. Na verdade, tinham surgido certas idias que tornaram impossvel a manuteno do silncio em torno da matria. Depois de refletir muito, cheguei concluso da impossibilidade de tornar clara a doutrina ao leitor, dentro do pouco espao disponvel. As mais poderosas mentes entre os cristos discutiram o assunto atravs de sculos antes que se chegasse mais satisfatria concluso, sendo que os debates pressupunham pleno conhecimento das correntes filosficas vigentes, de modo que a doutrina jamais poderia ser explanada concisamente. Tenho de limitarme a fazer poucas observaes que podero ajudar-nos no propsito que nos anima. O problema da Trindade foi debatido no Concilio de Nicia, realizado em 325, do qual nos veio o Credo de Nicia, encontrvel em hinrios e livros de oraes de algumas denominaes modernas. Muitas pessoas tero ouvido a zombaria que se faz a propsito do Concilio de Nicia, no sentido de que ali se teria travado uma batalha que por pouco teria dividido a cristandade, mas que aquela batalha teria girado apenas em torno de um iota, a menor letra do alfabeto grego. Foi bem verdade que as duas faces em Nicia mantiveram-se em luta a respeito de qual de duas palavras deveria constar na formulao do Credo e tambm verdade que a nica diferena quanto enunciao e grafia das duas palavras consistia na presena ou ausncia da referida letra grega. Enquanto uma das faces insistia na adoo da palavra homoousios, para estabelecer que Cristo da mesma substncia de Deus, a outra faco empenhava-se com igual ardor pela adoo da palavra, homoiousios, para afirmar que Cristo seria de substncia semelhante de Deus. Entretanto, s a ignorncia poderia concluir disso que o problema no teria maior relevncia. Lembro-me de certa histria que apareceu numa revista h poucos anos. A histria procura explicar o porqu de o telgrafo e outros sistemas de comunicao atravs de cabos submarinos escreverem os nomes pertinentes pontuao, em vez de adotar os respectivos sinais. Certa mulher, que fazia excurso pela Europa, passou um telegrama ao marido nos seguintes termos: Encontrei maravilhosa pulseira. Preo trezentos e oitenta mil cruzeiros. Posso

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compr-la? Com toda urgncia, o esposo lhe respondeu: No, preo muito alto. Ocorreu que o telegrafista, ao transmitir a mensagem, deixou colocar o sinal da vrgula. A senhora em questo recebeu a mensagem e entendeu que o esposo estava lhe dizendo que o preo no era muito alto. Em conseqncia, comprou a pulseira. O esposo moveu processo contra a companhia e a justia lhe deu ganho de causa. Desde ento, os que se tm utilizado do cdigo Morse escrevem as palavras pertinentes pontuao. A anedota serve para lembrar que a importncia de qualquer mensagem no poderia ser avaliada pelo tamanho da pontuao nem pelo nmero das letras empregadas. Embora fosse s um iota que dividisse as faces em Nicia, o fato era que o problema em debate girava em torno de concepes da f crist tremendamente diferentes. O problema da Trindade surge da convico crist de que Deus esteve agindo em e atravs de Jesus Cristo. No decorrer do quarto sculo, rio propagou a teoria de que Cristo era um deus menor criado pelo nico Deus. O tal deus menor teria vindo terra na pessoa do homem Jesus, que, entretanto, no seria realmente homem, mas, sim, um ser divino imune s limitaes normais da humanidade. Caso o partido liderado por rio tivesse obtido a vitria pela insero do iota no Credo, ento o ponto de vista que defendiam teria prevalecido como cristianismo ortodoxo. Significaria dizer que o cristianismo teria se degenerado, descendo condio de mero politesmo. Ele passaria a admitir dois deuses e um Jesus que, no final de contas, no seria nem deus nem homem. Teria significado que Deus se mostraria como absolutamente transcendente, de modo a no poder ser alcanado pelo homem. O resultado teria sido tornar o cristianismo em mais uma religio de mistrio to familiar no paganismo. O Credo de Nicia afirma que Deus e Cristo so da mesma substncia. Essa era a maneira prpria de expressar-se, em termos da filosofia contempornea, a verdade de que h um s Deus. Deus encontra-se em atividade na criao e sustentao do universo (como Pai); estava em Cristo (como Filho) e atua nos coraes crentes (como Esprito Santo). O Credo de Nicia rejeitou todas as presses tendentes admisso de trs deuses que fossem unidos de alguma forma. Houve cristos que chegaram a pensar em termos de trs deuses, mas, ao pensarem assim, sabiam muito bem o quanto se distanciavam das veredas da ortodoxia. As crticas levantadas por maometanos, judeus e unitarianos no sentido de afirmarem que o cristianismo ortodoxo dispe de trs deuses e, portanto, teria abandonado o monotesmo do Velho Testamento atitude oriunda de uma maneira incorreta de entender. Um dos fatores de complexidade que a doutrina trinitria se refere a trs pessoas, mas um s Deus. A palavra pessoa no tinha para os primitivos pensadores a mesma significao que tem hoje. Para ns, pessoa sempre refere-se a Pedro, Joo ou Henrique. Entretanto, o termo latino, persona, significava originalmente uma mscara que era usada por qualquer ator em ambiente teatral. De acordo com o pensamento trinitariano, tal mscara no seria utilizada pela Divindade para esconder, mas, sim, para revelar aos homens seu verdadeiro carter. Est claro que, ao pensar-se na Trindade, no se deve afirmar a existncia de trs pessoas no sentido em que a palavra nos familiar. A interpretao de Agostinho foi a que se tornou ortodoxa, se no universalmente aceita, para o Ocidente. Ele acreditava que, uma vez que o homem foi criado imagem de Deus, foi criado imagem da Trindade. Portanto, ele fazia uso de analogias derivadas da constituio mental do homem para dar explicaes sobre Trindade. A Trindade seria como a inteligncia, a memria e a vontade na mente humana. Em resumo, de acordo com a interpretao de Agostinho, no temos de pensar na existncia de trs pessoas quando consideramos a Divindade; podemos pensar numa s pessoa. E claro que Agostinho procurou deixar evidente que apenas fazia uso de uma analogia; ele foi um pensador profundo demais para afirmar que entendia ser Deus semelhante a um homem glorificado, assentado l no cu. Todavia, caso seja nosso desejo falar de Deus, temos de utilizar analogias, e uma analogia para explicao da Trindade no seria mesmo em termos de trs homens, mas, sim, de um s homem. A doutrina da Trindade foi importante, no s por ter salvo o cristianismo de um possvel retorno ao paganismo, mas tambm por proporcionar aos crentes a necessria segurana de que foi Deus mesmo quem esteve presente em Jesus Cristo, tendo sido responsvel pelo que o

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Salvador fez sobre a terra. A salvao do homem no fica na dependncia de alguma fragilidade concernente a qualquer conquista humana, nem depende do que alguma entidade inferior a Deus tivesse efetuado. O homem tem condies de triunfar sobre o medo e a dvida pelo fato de que o prprio Deus foi quem agiu em seu favor, tendo-se revelado como Deus cheio de amor e de misericrdia. A controvrsia trinitariana foi seguida pela que se tornou conhecida pelo nome de controvrsia cristolgica. Essa controvrsia aconteceu por ocasio do Concilio de Calcednia, em 451, e resultou na elaborao do Credo de Calcednia. Num sentido, pode-se dizer que a controvrsia trinitariana se travou em torno da natureza de Deus no cu. Como que Deus , admitindo-se que Jesus divino? A doutrina cristolgica, por outro lado, procurou fixar-se em entender como Jesus seria, durante sua permanncia na terra, uma vez que se afirme sua divindade. O Concilio de Nicia tinha estabelecido a existncia de um s Deus e que Jesus seria plenamente divino, ato do nico Deus. No demorou muito para que as pessoas comeassem a ficar perplexas sobre a questo de como Jesus podia ser divino e humano. Como seria possvel afirmar que o eterno, imutvel e perfeito Deus podia assumir as limitaes de um ser humano? Muitos entendiam que isso era simplesmente impossvel. Certo grupo de pensadores, conhecidos como apolinarianos, admitia que Jesus, com efeito, tinha um corpo humano (no poderiam deixar de admiti-lo, a menos que cassem no velho erro gnstico), mas negavam que ele tivesse uma verdadeira personalidade humana. A segunda Pessoa da Trindade teria ocupado o lugar da personalidade humana no corpo de Jesus. Apesar da concesso de que Jesus dispunha de corpo, isto no o fazia mais humano do que os gnsticos seriam capazes de admitir. Continuaria a impossibilidade de crer com a Bblia que ele foi tentado em todas as coisas como ns somos tentados (Hb 4.15). A oposio surgida contra os apolinarianos insistia em afirmar a existncia de duas naturezas em Jesus, estando nele o prprio esprito humano, e o esprito de Deus. Os dois teriam acabado por fundir-se, pelo fato de que o Jesus humano se deu a si mesmo de modo completo ao Jesus divino, resultando disso uma unidade moral. Esse ltimo ponto de vista, conhecido como Nestorianismo, admitia a existncia de liberdade moral em Jesus de modo a tornar vivel a possibilidade de ele ser tentado. Entretanto, parecia conceber Jesus como tendo personalidade dupla ou dividida. A deciso adotada em Calcednia demasiado complexa para que possa ser analisada no espao disponvel aqui e as autoridades ainda no esto de acordo quanto s implicaes que ela tem. Todavia, este fato pode ser levado em considerao: a f ortodoxa ficou estabelecida como sendo aquela que afirma ser Jesus verdadeiramente divino, obra de Deus, e tambm que ele verdadeira e completamente humano. O Concilio de Calcednia repudiou qualquer teoria que negasse quer a divindade, quer a humanidade de Jesus. No pode haver dvida de que esta era a mesma f acalentada pelos mais primitivos cristos e, como tal, Calcednia foi fiel para com a preciosa herana. No obstante, tambm claro que o problema de como se pode entender que Jesus fosse tanto humano como divino continua sem nenhuma soluo. Verificaremos que o problema volta controvrsia na teologia moderna. E muito fcil ficar criticando os debates acontecidos em Nicia e em Calcednia. Houve ali muitos exemplos de ressentimentos mesquinhos, de choques de nacionalidades, de manobras polticas e de ambies de poder. Apesar de tudo, porm, quando se contempla os acontecimentos sob a perspectiva da Histria, no se pode deixar de admitir que alguma orientao divina se fazia evidente. A despeito das fraquezas humanas, to evidentes ento, o fato foi que a Igreja demonstrou muita firmeza contra as foras que seriam capazes de destituir o cristianismo do monotesmo e do Jesus histrico e que a rebaixariam condio de qualquer crendice pag. Ser bom manter essa considerao em mente quando ficamos impacientes vista de outras tantas fraquezas humanas, que so por demais evidentes nas discusses do atual Concilio Mundial de Igrejas, sempre que faz algum esforo para reformular algumas das implicaes da f em face das necessidades dos dias atuais. fcil chamar a ateno para as

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fraquezas citadas, mas os historiadores no futuro tero melhores condies de perceber a mo de Deus operando nas atividades do Concilio. O mais notvel pensador com que a ortodoxia contou no Ocidente foi Agostinho. A Igreja Catlica o canonizou, mas sabe- se que a Reforma Protestante se apoiou mais coerentemente sobre Agostinho do que o fez com relao a qualquer outro pensador de antes da Reforma. J fizemos referncias contribuio feita por ele para a fixao da doutrina da Trindade. Agostinho tem de ser alinhado entre os mais raros gnios, que aparecem s uma vez no decorrer de cada milnio. O pensamento moderno lhe deve mais do que o revela o reconhecimento a ele dirigido. O Bispo de Hipona fez com que a reflexo humana se tornasse capaz de se voltar para dentro da prpria mente, para que se auto-analisasse e, como foi dito por certo escritor recente, quase que a nica coisa que Agostinho teria de aprender da psicologia moderna seria o jargo adotado. Infelizmente, podemos citar s um dos aspectos da contribuio admirvel do excepcional pensador. Foi ele quem mais claramente despertou o pensamento ordotoxo para a concepo do pecado original. Antes de Agostinho, o pensamento cristo tinha dado expresso sua f, afirmando que Jesus, considerado como a Revelao de Deus, era tambm a revelao do que o homem foi destinado a ser desde a criao. Sendo assim, algo parece estar errado. O homem, com suas muitas expresses de viso curta, seu nimo vingativo, seus incessantes crimes, tanto de comisso como de omisso, encontra-se muitssimo aqum de revelar o mesmo esprito que houve em Jesus. Em face disso, a ortodoxia tinha declarado que na verdade o homem decara. Ado, o primeiro homem, tinha feito uso da liberdade que Deus lhe dera para fazer uma escolha contrria vontade expressa de Deus e, em conseqncia, comprometera todo o gnero humano. Cristo foi enviado ao mundo para restaurar o homem de modo que lhe seja possvel retomar sua posio original. A doutrina de Agostinho, como se verifica em outros enunciados da ordodoxia, foi elaborada tendo-se em vista uma heresia. A heresia que tinha de ser combatida era de responsabilidade do monge ingls Pelgio. Pelgio insistia em afirmar que todo homem se encontra absolutamente livre para escolher o bem ou o mal em qualquer momento de sua vida. Insistia em que a queda de Ado no tinha afetado a mais ningum alm dele mesmo. Contra tais afirmaes, Agostinho opunha a negao de que o homem seja livre no sentido de poder fazer o bem ou o mal. Trabalhando com a intuio de princpios que nos fazem lembrar os enunciados da moderna psicologia do subconsciente, Agostinho ressaltava que os impulsos que caracterizam a raa humana em suas manifestaes pecaminosas so mais fortes do que a doutrina Pelagiana admite. No se pode acreditar que o indivduo, no incio, seja como uma folha em branco; ele tem consigo elementos que vm do meio social e outros hereditrios. Pelo fato de que a herana pecaminosa, verifica-se que o homem pecador, isto , o homem tem propenses para o pecado; ele tem uma tendncia to forte para a pecaminosidade que, a no ser mediante o socorro da graa Divina, ele no pode se livrar do mal. Em vez de ser livre, o homem, de fato, encontra-se preso a uma conduta pecaminosa, e poder tornar-se livre s na medida em que Deus lhe proporcione a graa suficiente para que rompa as correntes que o prendem. Agostinho situou a fonte do pecado original, isto , a fraqueza ou incapacidade de fazer o bem, no sentimento do orgulho humano. Em uma renovada aluso narrativa Bblica concernente a Ado, Agostinho ressaltou que Ado tinha sido livre. Ele tinha a sua disposio tudo quanto desejasse enquanto vivia no Jardim do den. Entretanto, Ado desejou algo mais: ele quis ficar independente de Deus. Ressentiu de estar em situao de dependncia com relao ao Criador; ele desejou tomar o lugar de Deus. Assim, iludido pela serpente que lhe tinha passado a idia de que ele podia tornar-se como Deus, ele comeu do fruto da rvore. Isto , a recusa do homem de aceitar a posio de criatura que lhe foi determinada, de modo a acomodar-se ao fim para que foi formado, leva-o descabida presuno de querer ser igual ao Criador. Recusando-se a dar a Deus o lugar prprio em sua vida, o homem descobre que o resultado disso o prevalecimento da concupiscncia ou ambio desmedida com relao s coisas que h no

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mundo. Em outras palavras, uma vez que Deus deixa de ser o prprio centro da vida, o homem degrada-se a ponto de cometer todas as demais formas de pecado: torna-se avarento, lascivo, capaz de roubar o prximo, assassinar e comportar-se egoisticamente. A palavra concupiscncia, entretanto, implica tambm a questo do sexo. A princpio, no caso particular de Agostinho, as deturpaes do sexo se constituam em apenas uma categoria entre os muitos desejos mundanos que tanto arrunam o ser humano; todavia, houve sempre uma tendncia, tanto em Agostinho como em seus seguidores, no sentido de darem muita nfase ao pecado proveniente do sexo, mais do que o faziam com relao a outras formas do pecado. O pecado de Ado foi transmitido aos descendentes. Sendo que a procriao acontece atravs do sexo, entende-se que haja uma causa dupla para a propagao pecaminosa. A origem sexual de cada ser humano pecaminosa e a tendncia para o pecado tambm transmitida como fraqueza congnita. Caso desejemos entender os telogos modernos que procuram reconsiderar a doutrina, temos de levar em conta que em Agostinho aparecem de fato dois elementos distintos. Primeiro, houve uma anlise psicolgica do homem. De acordo com essa anlise, o orgulho, que vem a ser uma das fraquezas bsicas no homem, explica a existncia do imenso abismo que separa o que o homem foi destinado a ser e o que ele . Disso se despreende que a fonte dos males que atingem o homem de natureza espiritual. Entretanto, na explicao que oferece a propsito de como tal situao teria comeado e de como se teria transmitido, depara-se com a doutrina de Agostinho concernente pessoa de Ado e herana associada aos traos que transmitiu aos descendentes. Quase pode-se ter a impresso de que a natureza espiritual do pecado transformada em defeito biolgico. No fcil conciliar a anlise espiritual do pecado com a noo de uma transmisso biolgica. Certamente, possvel, como consideraremos mais adiante, aceitar a anlise espiritual feita por Agostinho, rejeitando-se, no obstante, a teoria da herana defendida por ele. A teoria agostiniana o levou doutrina da predestinao. Esta nunca se tornou uma doutrina aceita por todos os cristos, mas vamos encontr-la outra vez na ortodoxia Calvinista. Concluindo-se que o homem no pode salvar a si mesmo, que a graa de Deus que tem de salv-lo, ento como devemos entender que Deus se decida quanto a quem ele ter de socorrer? No deveramos entender, pensava Agostinho, que Deus fique condicionado previso de que algum venha a merecer a graa, pois esta livre, isto , imerecida. Quem l as Confisses de Agostinho, autobiografia de sua vida espiritual, sempre percebe como o autor repete as expresses de sua admirao pelo fato de ter sido salvo por Deus. Agostinho confessa-se absolutamente persuadido de que nada fizera por merecer a salvao. Ele no pensava que vinha de si mesmo a virtude de no mais andar nos caminhos do erro e do pecado, nos quais encontrava tanto prazer no passado. Deus tinha agido sobre o autor de maneira como jamais poderia ter sido prevista. Deus o tinha escolhido e destinado para a salvao. Na poca da Reforma, a maioria de seus lderes deixou de pr em dvida qualquer das doutrinas consideradas ortodoxas vistas at aqui. Lutero, por exemplo, retomou a doutrina de salvao pela graa, ressaltando-a de modo como no o fora desde os dias de Paulo. Sua atitude o colocou em conflito aberto com a doutrina catlica concernente natureza da Igreja e da autoridade de sua hierarquia. Recusando-se a submeter-se s pretenses de supremacia do Papa, Lutero entendia que a autoridade ltima residia na Bblia, interpretada pelo Esprito Santo operando dentro do corao crente. Em lugar da hierarquia catlica, ele passou a ensinar a doutrina do sacerdcio de todos os que crem. Isto , nenhum crente precisaria de sacerdote para servir-lhe de intermedirio diante de Deus, com exceo de Cristo, que o Mediador perfeito e sacerdote perfeito que intercede em favor de todos. Calvino concordou com Lutero e produziu a primeira Teologia Sistemtica protestante. O centro da teologia, para Calvino, Deus, e o principal objetivo do estudo da teologia a glorificao de Deus. Toda f que admita qualquer capacidade natural no homem ser, no entender de Calvino, algo semelhante a apoiar-se em algo sem firmeza. Onde quer, porm, que o homem se revele incapaz, Deus se apresenta como tendo todo o poder. Pode-se confiar em

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Deus, pois ele capaz de fazer tudo que o homem no pode. Assim, percebe-se como Calvino se fez seguidor da doutrina da predestinao ensinada por Agostinho. A doutrina da predestinao das mais difceis de ser entendida pelo homem atual. Todavia, ironicamente, verifica- se que o homem atual se mostra propenso a aceitar teorias deterministas que negam a liberdade e a dignidade do ser humano. As doutrinas modernas do tipo determinista so menos plausveis do que a enunciada por Calvino, pois elas no reconhecem a existncia de um Deus misericordioso capaz de mudar o curso necessrio e determinado do universo. A predestinao se revelou importante para os calvinistas como doutrina bsica para a experincia da segurana espiritual. O catlico romano, por exemplo, podia encontrar tranqilidade quanto sua salvao por entender que se encontrava dentro da verdadeira Igreja. Os protestantes preferiram dar um passo decisivo na rejeio dessa tranqilidade, expondo-se a perder a salvao, a fim de que pudessem seguir as leis da prpria conscincia. A doutrina da predestinao, portanto, a resposta calvinista presuno catlica. A salvao da alma, dizia Calvino, no depende de ela ser filiada ou no a uma instituio. Salvao experincia que diz respeito ao homem e Deus. Temos de confiar que Deus vai salvar os que elegeu. As diferenas que dividem os homens nada significam diante de Deus. H uma outra pea importante, na plataforma da ortodoxia, que deve ser referida. a doutrina da expiao. Todas as religies tm sentido necessidade de tratar de alguma idia de expiao. Uma vez que se admita que Deus faz exigncias que os homens no podem satisfazer, torna-se inevitvel o problema de saber-se como ser possvel obter reconciliao com a Divindade, da mesma forma que, se algum percebe que ofendeu a um amigo ou outra pessoa qualquer, sabe que ser conveniente a adoo de um meio de expiao a fim de que a comunho desfeita seja restabelecida. Contrastando com tudo que se conhece de outras religies, o cristianismo tem sustentado um s ponto de vista a esse respeito. Enquanto se verifica que a maioria das religies cr que o homem tem de fazer algo para aplacar a Deus, o cristianismo ensina que foi o prprio Deus quem efetuou a expiao. Outras religies oferecem sacrifcios visando a que Deus desvie sua face irada e perdoe ao homem. O cristianismo, porm, ensina que Deus efetuou o sacrifcio em e mediante Jesus, de modo que sua iniciativa resultou no estabelecimento da comunho entre a Divindade e o homem. Entretanto, surge o problema: Que foi mesmo que Deus fez? Paulo foi claro em salientar que a morte de Jesus um fato de importncia central, mas no acrescentou maiores explicaes. A Igreja nunca fez convocao de um Concilio para definir a matria como o fez a propsito da Trindade e da natureza de Cristo. No se tem adotado uma formulao doutrinria neste sentido desde o comeo da histria do cristianismo e, em conseqncia, no se pode falar de posio ortodoxa a respeito. A chamada doutrina clssica da expiao foi ensinada por mais de mil anos. Segundo se dizia, Satans tinha conquistado a alma do homem pelo fato do pecado em que este tinha cado. Mas Deus teria feito uma proposta de troca a Satans: entregaria a Satans a alma de Jesus, embora ela no lhe pertencesse, em troca de Satans liberar as almas daqueles que aceitassem o Salvador. Satans teria concordado, pensando que Jesus no passava de um homem bom. Ao receb-lo, porm, viu que era impossvel ret-lo, pois Jesus era Filho de Deus. Por isso Satans no teria ficado com as almas dos crentes nem com Cristo. A doutrina assim apresentada soa muito grosseira e implica em que Deus se mostre capaz de agir com astcia face ao Diabo. Ela contm, no obstante, duas importantes verdades. Expressa, por exemplo, que, mediante a morte e ressurreio de Jesus, Deus sobrepujou as foras do mal. O bem, portanto, mostra-se mais poderoso do que o mal. Por outro lado, a doutrina assinala o fato de que o mal tende a exagerarse e, finalmente, destruir-se a si mesmo. D-se bastante corda a um homem e ele acaba se enforcando. Isso , de fato, uma realidade. Caso Hitler, por exemplo, se contentasse com um pouco menos de poder, certamente teria conseguido manter-se por mais tempo no governo da Alemanha. O mal no poder jamais satisfazer-se e, apresentando crescentes expresses de ganncia, acabar se destruindo. Mas, apesar de to notveis intuies da verdade, a doutrina no

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podia esconder toda a grosseria que continha e, no decorrer do sculo, surgiram outras onze doutrinas da expiao. A primeira surgiu com Anselmo. Ele alegava que o homem devia irrestrita obedincia a Deus, governador do universo, mas deixou de prestar-lhe obedincia e caiu em situao de devedor. O homem desonrara a Deus. A Justia requeria ou que o homem pagasse a dvida ou que fosse punido. Qualquer uma das duas medidas resultaria na manuteno do prestgio Divino como governador moral do ser humano. Entretanto, no do agrado de Deus punir eternamente o homem, pois o propsito que teve ao cri-lo foi no sentido de manter-se em comunho com sua criatura racional. O homem no poderia oferecer satisfao pelo dbito contrado para com a Divindade, uma vez que nada poderia acrescentar perfeita obedincia que, naturalmente, lhe requerida. Caso Deus consentisse em apenas remover o pecado humano de sua presena, daria espao para que se levantassem dvidas quanto natureza da honra e do prestgio de seu governo. Chega-se, ento, ao tremendo dilema: O homem era devedor mas s Deus poderia saldar a sua dvida. Foi assim que Deus teve de enviar Jesus, que tanto Deus como homem. Pelo fato de ser Deus, lhe foi possvel pagar a dvida; pelo fato de ser tambm homem, foi possvel pag-la em favor do homem. Entretanto, nem mesmo Jesus poderia saldar um tal compromisso por viver em total virtude, uma vez que, por ser humano, j tinha a obrigao de viver assim. Todavia, sabe-se que Jesus no tinha de morrer, pois viveu sem pecado. Em conseqncia, ao oferecer-se para morrer, ele pagou a dvida do homem. Vindicou-se a honra ultrajada, de modo que Deus poderia ministrar o perdo a todos os que se aproximassem dele mediante Cristo Jesus. Essa teoria no chegava a expressar de maneira completa o que a Igreja cria a respeito da expiao e jamais foi aceita oficialmente. Sua maneira de expor deixava a impresso de que Deus teria agido como senhor feudal que demonstrava receios de que os servos escapassem do seu domnio, caso fosse demasiado complacente com eles. No obstante, a teoria assinalava a convico da Igreja de que o perdo no coisa to simples nem fcil. Perdoar algo que acarreta sofrimento Divindade. Abelardo foi responsvel pela apresentao de outra das teorias surgidas. Ele insistia em dizer que no h absolutamente nada, da parte de Deus, capaz de impossibilitar a ministrao do perdo. Entretanto, o perdo experincia bilateral. Ningum poder perdoar a algum que no deseje ser perdoado. O perdo significa restaurao de relaes rompidas; ora, ningum poder conseguir que a comunho seja retomada, caso o outro se mantenha refratrio a isso. Ai estava, entendia Abelardo, o problema Divino. Deus desejava perdoar ao homem, mas o homem, por sua vez, o que queria era continuar em sua conduta em busca de prazeres e no procurava arrepender-se nem suplicar o perdo. Assim sendo, Deus se ps a agir; ele enviou-nos o Filho para que sofresse e morresse pelo homem na mais clara demonstrao de seu amor. Ao perceber essa sublime realidade, o homem levado a envergonhar-se de si mesmo e arrepende-se, finalmente, de modo que Deus se torna capaz de perdo-lo. A doutrina de Abelardo tambm dizia algo que o cristianismo ortodoxo queria expressar. De fato, na morte de Cristo, contemplamos o amor de Deus de modo tal que somos conduzidos ao arrependimento. No obstante, a doutrina de Abelardo fez com que ele fosse acusado de heresia. O argumento ortodoxo contra ela se faz nos seguintes termos: Caso algum se lance na gua e me salve de afogamento, seu gesto me revela, sem dvida, muito amor. Mas, se, por outro lado, estivermos andando juntos s margens de um rio e ocorrer- lhe dizer inesperadamente: Olha aqui quanto eu te amo!, lanando-se em seguida correnteza, ento poderei ser levado a entender que meu amigo perdeu o bom senso. Em outras palavras, a morte de Cristo s poder ser vista como revelao do amor de Deus para com o homem se for entendida como sacrifcio absolutamente necessrio. A morte de Cristo fica sem sentido, caso se admita que o homem poderia salvar-se sem que ela tivesse ocorrido. O cristianismo ortodoxo, embora nunca ficasse plenamente satisfeito com a teoria exposta por Anselmo, de modo geral tem adotado uma forma bem parecida coma sua. Cristo, o

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que se cr, tornou-se nosso substituto; ele morreu para satisfazer o dbito que tnhamos para com Deus ou ele sofreu a punio que devamos sofrer em vista de nosso pecado. A ortodoxia protestante tem se inclinado para uma concepo da doutrina em termos de formalidades jurdicas. O homem cometeu um crime pelo qual deveria ser punido, mas Jesus consentiu em beber o clice de amargor em lugar do homem. Assim interpretada, a doutrina produz os mesmos efeitos buscados na teoria de Abelardo; h uma preocupao no sentido de conseguir que o homem se arrependa, mas isso acontece por causa da convico de que o sacrifcio era necessrio e no seria nenhum simples gesto de bravura. Este o esboo geral da posio ortodoxa em teologia, sobre cujas doutrinas os cristos das mais diversas denominaes podem concordar razoavelmente. Trata-se, portanto, desse acervo de pensamentos, com algumas implicaes decorrentes deles, que teremos em mente sempre que nos referirmos ao cristianismo ortodoxo.

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AmeaaContraaOrtodoxiaAo longo do captulo anterior tivemos a oportunidade de expor os fatos relacionados com o aparecimento da ortodoxia. Mesmo no decurso da exposio feita, ficou evidente que nem todos os cristos foram sempre ortodoxos, pois a ortodoxia vai se definindo em funo das heresias. Neste captulo vamos nos concentrar no estudo dos no ortodoxos. Caso fosse nosso propsito fazer um relato completo da histria dos movimentos no ortodoxos, teramos de comear com os cristos primitivos, como o fizemos no caso do captulo anterior. Entretanto, nosso objetivo outro; desejamos apenas oferecer uma interpretao do campo moderno da teologia e, por isso, vamos nos limitar ao tratamento do que parece proveitoso para esse objetivo. E, uma vez que nos preocupamos particularmente com o pensamento protestante, vamos restringir-nos ao estudo de perodos posteriores Reforma. Ao penetrar na fase moderna dos acontecimentos mundiais, o crente se encontra com uma dupla ameaa ortodoxia. Uma das ameaas vinha de fora do ambiente da Igreja, agindo atravs das correntes da filosofia secular. A outra ameaa vinha de dentro mesmo da Igreja, onde se verificava insatisfao de grande nmero de cristos com relao aos enunciados da ortodoxia. H correlao entre as duas formas de ameaa, mas h tambm diferenas importantes. Vamos tomar em considerao primeiro o pensamento secular e, em seguida, vamos passar considerao dos desenvolvimentos nas esferas prprio do cristianismo. Uma vez que os acontecimentos seculares so mais conhecidos do que os religiosos, vamos considerar de modo mais completo apenas estes ltimos. Na poca em que se difundia a Reforma, outra poderosa corrente de idias estava se propagando, contando j duzentos anos de existncia - a Renascena. A Renascena comeou contemplando o passado e descobrindo a cultura antiga da Grcia e de Roma, na qual se verificara a atuao de um esprito de vida bem diferente do esprito dominante ao longo da fase medieval na Europa. Alguns dos pensadores responsveis pela Renascena eram indiferentes para com a religio; outros at mostraram-se favorveis para com ela e, finalmente, uns poucos, como Melanchthon e Zunglio, foram ativos no movimento da Reforma. Entretanto, havia certa tendncia em bom nmero de pensadores renascentistas no sentido de abandonarem a ortodoxia. Erasmo, por exemplo, esforou-se para manter-se como filho leal da Igreja Catlica Romana, mas suas obras foram condenadas pelas autoridades eclesisticas. A Renascena se caracterizava pela f na capacidade humana e por um grande interesse pelo mundo. Em comparao com a preocupao medieval para com a vida depois da morte, razovel dizer-se que, nesse sentido, a Renascena permaneceu pouco interessada. Uma vez que insistia em crer na suficincia da razo, a Renascena no percebia nenhuma necessidade de uma revelao proveniente de Deus. No considerava coisa importante nem a teologia nem os aspectos sacramentais da Igreja. A religio, no entender dos pensadores da Renascena, seria s o fundamento da tica. A Renascena tinha muito interesse na possibilidade de restaurao do pensamento do mundo antigo e deu incio a uma verdadeira cincia, visando a restaurao das palavras originais dos manuscritos. Com o passar do tempo, esse interesse levou certas pessoas a uma reconsiderao do contedo dos manuscritos da Bblia, e esse precisamente foi um dos motivos para que Erasmo atrasse a ira da Igreja Romana. Lutero, porm, ao traduzir a Bblia, procurou fazer o melhor uso dos resultados alcanados pela erudio existente na Renascena. O sculo dezoito, sculo do racionalismo e do iluminismo, trouxe consigo o mais forte golpe contra a ortodoxia. Os racionalistas eram pessoas que depositavam a mais vivida confiana nas possibilidades da razo. Levantaram-se, pois, contra todas as autoridades institudas

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margem da razo e reivindicaram para a prpria razo a necessria autonomia para que lhe fosse possvel o exame de todos os problemas sem nenhuma interferncia. Os racionalistas no eram, de forma alguma, irreligiosos. John Locke, por exemplo, afirmava que no se deveria ter nenhuma tolerncia para com ateus, uma vez que estes eram uma ameaa estrutura da civilizao ocidental, sobre cujos princpios se aliceravam a tolerncia e outros ideais. Entretanto, no sendo um movimento de oposio religio, o Racionalismo se insurgia, de fato, contra a ortodoxia. Desejava-se uma religio, como Kant ressaltou, dentro dos limites da razo. Entre os ataques desfechados pelo Racionalismo contra a ortodoxia encontra-se a argumentao de Hume a propsito da improbabilidade dos milagres. Hume no chegou a negar a possibilidade da ocorrncia de milagres; a prpria filosofia que produziu evidenciaria a contradio de uma tal negao. Todavia, ele insistia em alegar que a admisso de ocorrncia de milagre ficaria sempre em plano inferior adoo de qualquer outra maneira de explicar a ocorrncia do mesmo fenmeno. Apesar de que a argumentao de Hume tendesse a transformar-se num crculo vicioso, o fato que ele foi muito apreciado como tendo demonstrado o absurdo da idia de milagre. Tornou- se, em conseqncia, quase impossvel ortodoxia apresentar qualquer prova definitiva quanto verdade da f mediante o expediente de chamar a ateno para as narrativas miraculosas da Bblia. Emanuel Kant investiu contra as chamadas provas da existncia de Deus. Elas no eram elementos de importncia central para a ortodoxia, pois a Igreja no revelara maior preocupao em provar a existncia de Deus at chegar ao sculo treze, quando Toms de Aquino exps suas famosas cinco provas. No obstante, abalou profundamente a ortodoxia a constatao de que a razo no tinha condies de estabelecer, de maneira a superar todas as dvidas, a existncia de Deus. O prprio Kant alegou que, embora a razo pura no pudesse certificar-se da existncia de Deus, as exigncias prticas da conduta moral o exigiam. O Deus de Kant, porm, dificilmente coincidiria com as concepes da ortodoxia. Para Kant, h apenas trs postulados religiosos imprescindveis para a manuteno da conduta moral: Deus, a liberdade do homem e a imortalidade. Mesmo que Kant, em suas ltimas obras, tivesse voltado a uma concepo concernente ao mal em sua forma radical, os racionalistas, em geral, mantiveram-se opostos a qualquer doutrina relacionada com o pecado original. Revelaram-se absolutamente crentes na bondade da razo humana e na suficincia do homem para encontrar solues para todos os problemas. Ao mesmo tempo em que o racionalismo estava investindo contra a religio ortodoxa, a cincia natural estava surgindo. Muita coisa despropositada se tem escrito a respeito de conflito entre a religio e a cincia. De modo geral, a cincia apresentada como um cavaleiro vestindo armadura refulgente, perseguindo coerentemente os lampejos da verdade, enquanto que a religio aparece como um drago estpido, que tudo faz para devorar a verdade. Essa maneira de retratar os fatos, devida em grande parte monumental obra de Andrew Dickson White, intitulada A History of the Warfare of Science with Theology in Christendom (Histria das Lutas entre a Cincia e a Teologia na Cristandade), verdadeira s em parte. Em todos os conflitos em favor da cincia se tm encontrado muitos piedosos e ortodoxos. Por outro lado, sabe- se que sempre houve cientistas que se opuseram aos novos avanos cientficos. Para que se faa o necessrio equilbrio, deve-se escrever um outro livro, cujo ttulo poderia ser: Histria das Lutas Travadas entre Cincia e Cincia. Na verdade, o que tem acontecido que todo o complexo de sentimentos de uma certa poca se levanta em protesto contra as novas concepes do mundo que paream minar a representao mental do universo aceita naquele momento. A religio, quando atua como fora organizada na sociedade, no raro, tem se tornado um centro em torno do qual giram os protestos de natureza no cientfica. Como conseqncia, a religio, particularmente em sua forma ortodoxa, expe-se ao descrdito. Assim, fica parecendo que a cincia sempre tenha estado certa e que a religio sempre tenha estado errada. Surgiu, ento, a estranha idia de que a cincia teria condies de encontrar soluo para todos os problemas humanos, e que seriam to-

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somente a inrcia e a ignorncia, particularmente provenientes das igrejas, que estariam entravando a marcha vitoriosa da cincia, considerada como a real salvadora. Particularmente, duas doutrinas cientficas pareciam perturbar muito a religio ortodoxa, isto , as de Coprnico e de Darwin. O mundo medieval retratou mentalmente um universo no qual a terra ocuparia o centro, sendo o homem a forma de vida por excelncia. Coprnico conseguiu libertar a viso para a contemplao de um universo to vasto que a terra passou a ser considerada como um gro de areia perdido no espao. Entendeu-se que era ridcula a afirmao que a terra e o homem seriam em alguma coisa de importncia diante de Deus, caso Deus existisse. A teoria da evoluo defendida por Darwin desfez as barreiras existentes entre o ser humano e o mundo animal. Apareceu o homem como sendo simplesmente um animal mais altamente desenvolvido. Em lugar da afirmao de um amor inteligente do Criador, atribuindo a cada animal sua forma e compleio peculiar, Darwin aventou a hiptese da vigncia de uma luta encarniada pela existncia, estendendo-se a todas as formas de vida, com a vitria assegurada ao mais bem equipado. Embora a princpio a doutrina evolucionista parecesse dar margem a pensar que o homem estaria preso a uma interminvel luta pela sobrevivncia, com o passar do tempo ela veio a oferecer base para uma esperana mais elevada quanto ao progresso, como tinha sido o sonho dos movimentos racionalistas. Herbert Spencer foi um dos elementos particularmente responsveis pela mudana. O ser humano, que se tinha desenvolvido desde a ameba at alcanar o presente estado de progresso, estaria destinado, por invarivel lei natural, a continuar progredindo, para chegar, afinal, perfeio. A maneira ortodoxa de representar o homem como tendo cado no pecado passou a ser considerada uma concepo ridcula. O homem no tinha cado coisa nenhuma. O que lhe aconteceu efetivamente foi que, tendo comeado como simples animal irracional, ao longo de tempo muito curto, tendo-se em vista a idade do universo, ele alcanou alturas inimaginadas. A frente do homem se estende um futuro infinito cheio de promessas. Essas idias tornaram-se patrimnio comum de intelectuais e de pessoas comuns. O avano contnuo das invenes fez com que o homem de cultura mdia passasse a olhar complacentemente para os mais velhos, mantendo-se na expectativa de coisas ainda mais extraordinrias que haviam de surgir. Como Harry Emerson Fosdick disse, as pessoas, de modo geral, no revelavam nenhum interesse em morrer e passar a usufruir o cu; elas tinham, sim, o desejo de viver uma centena de anos para que pudessem ver as novas maravilhas que o gnio inventivo do homem haveria de criar. Na medida em que os homens passaram a olhar para mais longe, cheios de esperana, cresceu, porm, a insatisfao com as imperfeies do sistema social vigente. Karl Marx se tornou um notvel porta-voz das esperanas relativas a uma sociedade terrena melhor. Em sua maneira de entend-la, a religio seria uma das barreiras levantadas contra a conquista de uma vida melhor na terra. A religio nutre o ser humano com esperanas a respeito do cu, de modo a impedi-lo de revoltar-se contra os que o oprimem na presente existncia. M