Zappala, John H. B. TGI_Monografia
-
Upload
john-herbert-badi-zappala -
Category
Documents
-
view
1.232 -
download
50
Transcript of Zappala, John H. B. TGI_Monografia
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
JOHN HERBERT BADI ZAPPALA
A agroecologia e o saber tradicional camponês:
teoria e prática para a conservação da diversidade cultural e natural a
caminho do envolvimento sustentável numa nova realidade
São Paulo
2011
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
JOHN HERBERT BADI ZAPPALA
A agroecologia e o saber tradicional camponês:
teoria e prática para a conservação da diversidade cultural e natural a
caminho do envolvimento sustentável numa nova realidade
Trabalho de Graduação Individual II apresentado ao
Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de bacharel em Geografia.
Orientação: Profª. Drª. Larissa Mies Bombardi
São Paulo
2011
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou
eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Para ser grande sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Fernando Pessoa
Agradecimentos_________________________________________________
Em primeiro lugar, quero agradecer a ―luz‖ que ilumina nossos caminhos
de acordo com os passos que queremos dar; e a vida, por ser tão rica de
momentos que nos transformam a cada dia.
Agradeço a meus pais, João e Claudete, meu irmão, Adalto, e toda
minha família por proporcionar meu crescimento com liberdade sobre minhas
escolhas e pelo amor transmitido com tanto carinho. Em memória, lembro
aqueles que já partiram daqui e deixaram muitas saudades, em especial
minhas avós Felipa e Odete, meu avô Salvador, minha tia Teresa e meu tio
Marcos, despertando em mim uma grande vontade de viver plenamente.
A minha companheira Angélica, pelo amor que cultivamos em nossa
relação de forma tão intensa, e a sua presença em minha vida e em toda minha
trajetória acadêmica, apoiando, dialogando e acreditando nos meus ideais para
construção de uma nova realidade. A sua família, agora também minha, sou
muito grato por toda confiança e carinho desde que nos conhecemos.
Aos amigos e companheiros que passaram por minha vida de maneira
tão cativante, com os quais compartilhei momentos tão especiais e
inesquecíveis.
A professora Larissa, pela orientação fundamental e paciência no longo
processo de elaboração deste trabalho. Pelo estímulo e respeito as minhas
idéias, com sugestões para que a pesquisa apresentasse uma postura mais
crítica perante a proposta. Pelas aulas, trabalhos de campo e pesquisa no
assentamento de reforma agrária durante a graduação, que me fizeram ter
grande admiração por suas idéias e tê-la como referência enquanto professora
e pesquisadora.
As professoras Sueli e Valéria, por terem contribuído imensamente no
desejo de elaborar este trabalho pelas discussões em aulas e trabalhos de
campo que realizamos nas disciplinas que ministraram. Também, por compor a
banca de avaliação desta pesquisa e contribuir com a discussão aqui proposta,
o que sem dúvida enriquecerá este importante momento de minha história.
A todos os demais professores da Geografia e da Educação por
despertar e orientar meu senso crítico pulsante. Agradeço também aos
funcionários e alunos companheiros que estiveram presentes nessa
caminhada, contribuindo com diálogos e reflexões onde todos puderam
construir uma parte de sua formação.
Ao querido coletivo EPARREH, por ter feito parte de minha vida durante
a graduação, pois nele obtive novas perspectivas de mundo que abriram
muitas portas na minha mente. Inegavelmente foi um divisor de águas no meu
rumo, possibilitando descobertas incríveis nos estudos e nas práticas que
realizamos naqueles felizes momentos. Muito do que construí e conquistei de
lá para cá devo a esse contato especial, pois ―todos somos um‖!
A todos que fizeram e fazem parte da equipe do projeto Colhendo
Sustentabilidade. Pela paciência, ensinamentos, conquistas, desafios,
discussões e grandes diálogos que me proporcionaram uma formação
profissional e pessoal singular. Que belo trabalho realizamos! Indiscutivelmente
deixamos contribuições para a construção de um mundo diferente.
A todas as famílias que fizeram parte desse projeto e permitiram uma
troca de saberes sobremaneira enriquecedora em nossos felizes encontros
cotidianos. Com essa gente simples e cativante o trabalho na terra foi único, e
as tenho em meu coração. Garanto que elas fizeram despertar ainda mais o
camponês existente em minha alma.
A todos que por ventura venham a utilizar este trabalho e de alguma
maneira multipliquem essa discussão.
Por fim, agradeço por viver e ser parte da natureza.
Dedico este trabalho a todos os agricultores que com sua arte tradicional
de tratar a terra, alimentam a vida no planeta e proporcionam ensinamentos
que podem contribuir para nos levar a novos rumos em sociedade.
Lista de Figuras_________________________________________________
Figura 01: Comparação entre sistemas de monocultura e sistemas com
diversidade.........................................................................................................21
Figura 02: Localização aproximada do território das populações tradicionais
não-indígenas no Brasil.....................................................................................53
Figura 03: Localização do município de Embu das Artes e suas bacias
hidrográficas......................................................................................................94
Figura 04: População migrante residente no município segundo seu local de
origem................................................................................................................99
Figura 05: Mapa de localização e área da APA Embu-Verde..........................100
Figura 06: Uso do solo na área da bacia hidrográfica do Rio Cotia
compreendida pelo município..........................................................................101
Figura 07: Localização do terreno disponibilizado para o sistema produtivo. A
área do polígono vermelho corresponde a inicialmente cedida, e a área em
amarelo a realmente utilizada..........................................................................115
Figuras 08 e 09: Algumas hortaliças e frutas cultivadas no
agroecossistema..............................................................................................129
Figura 10: Comparação entre a sucessão natural, agricultura convencional e
agricultura agroflorestal num ecossistema......................................................135
Figuras 11 e 12: Agricultores realizando as colheitas e levando os
produtos...........................................................................................................137
Figuras 13 e 14: Algumas hortaliças e plantas anuais colhidas no
agroecossistema..............................................................................................138
Lista de Fotografias______________________________________________
Foto 01: Vista panorâmica do núcleo urbano do bairro de Itatuba..................104
Foto 02: Sra. Josefa na residência onde viveu na comunidade de Itatuba.
Cultivava alimentos consorciados para seu consumo, a partir de seu saber
tradicional camponês originário na Bahia........................................................114
Foto 03: Propriedade do Sr. José Matias, onde realizava um cultivo de
hortaliças para comercialização direta no bairro de Itatuba e região. Seu
manejo é misto, com agricultura orgânica e convencional..............................114
Foto 04: Sr. Nelson, um dos moradores mais antigos da comunidade de Itatuba
vindo do interior paulista. Possui um Sistema Agroflorestal intuitivo consorciado
com diversos cultivos e criação animal............................................................114
Foto 05: Sr. Cassiano, morador da Fazenda Atalaia veio de Minas Gerais ainda
jovem. Possui um pequeno quintal Agroflorestal que cultiva com muito orgulho
e carinho a partir de seus conhecimentos tradicionais....................................114
Foto 06: Sr. Braulino, baiano morador da comunidade chamada Fazenda
Atalaia. Na residência onde vive, cultiva lavouras, hortaliças, plantas medicinais
e um pomar, além de criar galinhas.................................................................114
Foto 07: Sra. Henelida, moradora do bairro Capuava. Aplica o manejo
tradicional no cultivo de hortaliças, temperos e chás para auto-consumo, venda
e doação a parentes e vizinhos da comunidade..............................................114
Foto 08: Sra. Luiza Ferrazo, descendente de europeus que migrou do Rio
Grande do Sul para viver com sua família na comunidade do Jd. Mimás, onde
cultiva plantas medicinais, flores e ornamentais..............................................115
Foto 09: Sra. Zezé, agricultora com um conhecimento tradicional camponês
muito rico. Em sua residência na Fazenda Atalaia, cultivava uma grande
diversidade de culturas consorciadas em lavouras........................................ 115
Foto 10: Propriedade do Sr. Hirai e Sra. Miko, integrantes da colônia japonesa
e vivem no Vale do Sol. São pequenos agricultores convencionais com foco na
cultura de pêssego, hortaliças e orquídeas..................................................... 115
Foto 11: Pedro, jovem que trabalha com artesanato em sua residência no Jd.
Mimás. Em seu quintal ele mantém uma grande diversidade de cultivos para
alimentação e recuperação ambiental.............................................................115
Fotos 12 e 13: Produção de composto orgânico.............................................122
Fotos 14 e 15: Manejo e plantio de adubação verde.......................................123
Foto 16: Início da implantação do sistema produtivo de Itatuba......................125
Foto 17: Elaboração dos canteiros iniciais para o cultivo de hortaliças...........125
Foto 18: Primeiros cultivos consorciados de plantas anuais...........................128
Foto 19: Plantios iniciais de hortaliças associadas nos canteiros...................128
Foto 20: Diversidade de hortaliças na área onde antes havia adubação
verde................................................................................................................130
Foto 21: Canteiro circular com alfaces diversas e plantas aromáticas no
centro...............................................................................................................130
Foto 22: Elaboração de canteiro instantâneo com palha.................................131
Foto 23: Plantio de ervas medicinais no canteiro espiral estruturado com
entulho.............................................................................................................131
Foto 24: Área do SAF preparada antes de sua implantação no terreno.........133
Foto 25: Área do SAF após um ano e meio de crescimento das espécies
plantadas.........................................................................................................133
Foto 26: Mutirão para implantação de lavoura.................................................136
Foto 27: Mutirão para implantação da agrofloresta.........................................136
Foto 28: Banca semanal em frente ao parque municipal................................143
Foto 29: Comercialização na Feira Agrossustentável......................................143
Fotos 16 e 30: Imagens de dois momentos do agroecossistema de Itatuba no
mesmo ângulo de visão: no início em dezembro de 2008 e após três anos de
atividades em novembro de 2011....................................................................144
Lista de Tabelas_________________________________________________
Tabela 01: Efeitos negativos da agricultura moderna no ambiente...................19
Tabela 02: Comparação entre as tecnologias da Revolução Verde e da
Agroecologia......................................................................................................26
Tabela 03: Elementos técnicos básicos de uma estratégia com enfoque
agroecológico.....................................................................................................33
Tabela 04: Diferenças estruturais e funcionais entre ecossistemas naturais e
agroecossistemas..............................................................................................35
Tabela 05: Determinantes do agroecossistema que influem na agricultura de
cada região........................................................................................................36
Tabela 06: Uso de práticas tradicionais adaptadas as características ambientais
locais..................................................................................................................50
Tabela 07: Comparação de metodologias para implantação de áreas
protegidas..........................................................................................................85
Tabela 08: Variedade de espécies cultivadas em rotação atualmente no sistema
produtivo..........................................................................................................127
Tabela 09: Mudas plantadas e sua disposição no Sistema Agroflorestal........132
Sumário________________________________________________________
1. Introdução__________________________________________________09
2. A agroecologia______________________________________________15
2.1. A agroecologia e uma nova relação socioambiental............................................................15
2.2. Enfoque agroecológico em sistemas produtivos sustentáveis.............................................31
2.3. Diversidade biológica e cultural na agroecologia.................................................................42
2.4. A agroecologia e o conhecimento tradicional camponês.....................................................46
3. O saber tradicional camponês__________________________________49
3.1. Agricultura e comunidades tradicionais camponesas...........................................................49
3.2. O camponês e a terra...........................................................................................................57
3.3. Migração cultural camponesa...............................................................................................62
4. Diálogo de saberes à conservação cultural e natural_______________67
4.1. Premissas a um paradigma de conservação.......................................................................67
4.2. O contra-senso da conservação em áreas especialmente protegidas................................72
4.3. Uma estratégia à conservação das riquezas naturais e culturais........................................83
4.4. Caminhos para um ―envolvimento sustentável‖...................................................................86
5. Agroecologia e saber tradicional na prática______________________93
5.1. Contexto local e socioambiental de referência.....................................................................93
5.2. A esfera originária da prática..............................................................................................106
5.3. A experiência prática com enfoque agroecológico.............................................................116
5.4. Troca de experiências e saberes........................................................................................144
6. Considerações Finais________________________________________150
Referências Bibliográficas______________________________________156
Anexos______________________________________________________165
Anexo 01. Croqui do Sistema Agroflorestal de Itatuba..............................................................165
9
1. Introdução____________________________________________________
Os caminhos que me levaram à Geografia foram sinuosos e com
algumas bifurcações... No entanto, antes mesmo de estar, e para ser parte do
meio acadêmico fui sendo guiado por um objetivo: entender criticamente a
realidade do descaso ambiental em nossa sociedade e fazer algo para
transformá-la. Ao adentrar na graduação, busquei maneiras de relacionar este
tema às diversas disciplinas oferecidas pelo curso, e assim construir um
conhecimento com o qual pudesse abarcar formas de contribuir para uma
mudança na desoladora realidade socioambiental que construímos, no tempo e
no espaço, por meio de nossa forma de organização em sociedade.
Ao longo do curso fui criando afinidades com algumas áreas do
conhecimento geográfico, nas quais minha compreensão sobre a relação das
pessoas com a natureza foi trabalhada de forma mais incisiva, em particular, na
biogeografia e na geografia agrária. Não que as demais disciplinas não tragam
esse tema, já que em geral a Geografia se propõe a essa discussão, ou que
elas tenham deixado de contribuir ao meu propósito; pelo contrário, sem elas
teria uma formação parcial sobre a questão ao qual me dediquei, e sou muito
grato aos professores por isto. Mas foi através dessas duas disciplinas
mencionadas que fui mais a fundo nessa temática e encontrei uma
particularidade ligada de maneira direta aos problemas socioambientais da
atualidade: a agricultura.
Em ambas, de formas distintas e complementares, a agricultura
praticada especificamente por populações tradicionais e camponesas veio-me
a luz, fornecendo uma gama de fatores, em âmbito social, cultural, econômico,
político e ambiental que estão relacionados ao trabalho da terra e, por
conseguinte, com toda sociedade, os quais mediaram e transformaram a
compreensão que tinha de mundo e de natureza. No que tange o olhar para as
relações humanas e delas com o meio natural, também obtive uma significativa
contribuição através de estudos e práticas realizadas na faculdade, porém de
forma não-curricular, com um grupo de alunos1 que se juntou para pensar,
1 Este grupo de alunos denominado EPARREH (Estudos e Práticas em Agroecologia e o Reencantamento
Humano) será abordado com mais detalhes no sub-capítulo 5.2.
10
discutir, militar e agir perante as problemáticas socioambientais que se referem
à agricultura, por meio, sobretudo, da agroecologia. Ao longo de minha
trajetória acadêmica, militante e profissional, com uma parte do aporte teórico-
conceitual adquirido e pela prática profissional que ele me possibilitou exercer,
deu-se a construção do presente trabalho.
Nele se pretende discutir e analisar como a agroecologia, enquanto
teoria e prática, associada ao saber e manejo agrícola das populações
tradicionais camponesas, por meio de sua cultura, podem vir a contribuir para
uma transformação socioambiental através da construção de uma agricultura
sustentável que promova a conservação das riquezas naturais e culturais ao
mesmo passo que possibilite a reprodução da vida de maneira mais solidária
entre as pessoas e equilibrada com os ecossistemas, dando passos em
direção a uma outra forma de organização em sociedade, atualmente orientada
pelo modelo de modernização sob os ditames do modo capitalista de produção,
que é baseado na exploração exacerbada do meio ambiente e na sujeição das
pessoas à sua lógica reprodutiva de exclusão social.
Procuraremos entender também se e como o conhecimento construído
na agroecologia e na agricultura tradicional podem colaborar com uma
mudança na mentalidade das pessoas em nossa sociedade e na sua forma de
reprodução, e então possibilitar a elaboração de um saber alternativo ao
pensamento moderno dominante onde rege a dicotomia homem-natureza, para
assim construir outra relação entre as pessoas e delas perante a natureza que
culmine, de maneira conjunta, em diferentes formas de conservação das
riquezas naturais e de produção na agricultura.
Partimos da hipótese de que as riquezas naturais de um determinado
lugar possam ser utilizadas de maneira mais equilibrada pela agricultura, com a
contribuição do conhecimento científico agroecológico e do tradicional
camponês em consonância com as necessidades fundamentais à reprodução
da vida, cuja razão seja a transformação da sociedade e a conservação da
natureza. Contudo, não iremos pressupor aqui, uma vida pautada pelo
determinismo dos lugares, ou exaltar com ―romantismo‖ exacerbado o modo de
vida das populações tradicionais camponesas; nem negar a importância dos
11
avanços das técnicas que a ciência conduz, sobretudo no que tange a
agricultura e a criação de áreas para proteção das riquezas naturais; e
tampouco pregar a agroecologia como solução de todos os problemas
socioambientais existentes. Mas sim, nesse sentido, em concordância com
Shiva (2003, p. 162), temos como pressuposto que as tecnologias sociais são o
elo entre as riquezas naturais e as necessidades humanas, e os sistemas de
saber e cultura podem fornecer um quadro referencial para a percepção e
utilização dessas riquezas.
Como base de discussão ao tema do presente trabalho, lançaremos
mão a uma bibliografia específica e a uma experiência prática relacionada à
análise teórica aqui construída. Para tanto, foram elaborados quatro capítulos
para o encadeamento da análise proposta nesta pesquisa, de forma que se
possa estabelecer co-relações ao entendimento dos pressupostos acima
descritos. Nos capítulos serão abordados os conceitos de agroecologia, de
sistemas agrícolas sustentáveis, de camponês e sua cultura tradicional, de
conservação da diversidade natural e cultural, de sustentabilidade, e desses
conceitos em relação a um capítulo sobre uma experiência prática.
Iniciaremos com um capítulo referente à agroecologia, onde será feita
uma abordagem sobre seus conceitos e princípios aplicados em sistemas
produtivos agrícolas sustentáveis. Será analisado como a agroecologia
contribui para uma nova relação socioambiental por meio da agricultura sob
seu enfoque. Nesse capítulo também serão abordadas a questão da
diversidade biológica e cultural em agroecossistemas, como a agroecologia se
relaciona com o conhecimento tradicional camponês, e os benefícios que a
agroecologia traz para uma transição do modelo convencional moderno de
produção agrícola para outra forma de produzir alimentos.
No capítulo seguinte, faz-se uma discussão acerca do saber tradicional
camponês referente ao manejo da terra e ao modo de organização das
relações culturais que eles possuem. Se procura compreender o conceito de
camponês sob o capitalismo e o quão significante é a sua ordem moral para
uma transformação das relações sociais e de produção na agricultura.
Traremos também idéias referentes à migração das populações tradicionais
12
camponesas com sua intrínseca cultura, e o que isso representa para elas e
para o lugar onde habitam e se reproduzem.
Para tratar da conservação cultural e natural na sociedade atual, tem-se
um capítulo onde essa questão será abordada problematizando-se as formas
de pensamento existentes que culminaram na idéia de criar áreas
especialmente protegidas para a conservação da natureza. Assim, traçamos
algumas premissas que levaram a implantação desses espaços, sobretudo
com relação à dicotomia homem-natureza, e o quanto eles podem ser
prejudiciais ao ecossistema e às populações que vivem nessas áreas.
Daremos enfoque sobre o histórico da criação de áreas protegidas e sua
relação com as populações humanas, sobretudo àquelas consideradas como
tradicionais camponesas e que vivem nesses espaços criados pelas
civilizações industriais ocidentais. Apresentaremos uma estratégia que concilie
a conservação e práticas agrícolas sustentáveis nesses locais e/ou noutros,
sem necessariamente que se tornem ou se criem áreas restritivas que
suprimam as relações culturais e produtivas existentes nas comunidades
populacionais em geral. Ao final do capítulo, buscam-se saberes que possam
levar a uma organização social que difira da atual e haja um modo sustentável
de vida com maior envolvimento das pessoas entre elas e entre o meio que
habitam.
No capítulo final, traremos para análise uma experiência prática em
agroecologia que ocorre no município de Embu das Artes, em uma comunidade
localizada no bairro de Itatuba, por meio de um projeto de agricultura urbana e
periurbana. Faremos uma contextualização socioambiental do lugar e do
projeto que originou tal prática. Trata-se do processo de implantação de um
sistema produtivo agroecológico onde boa parte dos agricultores são de origem
camponesa e carregam consigo a cultura tradicional. Além disso, as atividades
decorrentes dessa experiência prática se dão no interior de uma unidade de
conservação localizada numa região de fragmentos florestais e produtora de
águas que abastecem uma bacia hidrográfica. Portanto, por meio dessa
experiência procuraremos trazer o aporte teórico elaborado nos demais
capítulos com o intuito de ilustrar como é possível que conceitos e teorias
13
sejam aplicados na prática.
A metodologia utilizada especificamente neste último capítulo é baseada
em uma análise qualitativa interpretativa de observação participante ocorrida no
decorrer dos trabalhos da experiência prática. De acordo com Teis e Teis (2006,
p. 01-02), uma pesquisa com essa abordagem procura gerar dados
aproximando-se da perspectiva que os envolvidos possuem dos fatos por meio
de uma visão holística dos fenômenos, ou seja, que considere todos os
componentes de uma situação em suas interações e influências recíprocas.
―Para conseguir captar esse sentido, as ações do próprio pesquisador precisam
ser analisadas da mesma forma como as ações das pessoas observadas‖
(TEIS; TEIS, 2006, p. 01). Com isso, o processo de análise:
[...] busca a interpretação em lugar da mensuração, busca examinar o
mundo como é experienciado, compreendendo o comportamento
humano a partir do que cada pessoa ou pequeno grupo de pessoas
pensam ser a realidade, valoriza a indução e assume que fatos e
valores estão intimamente relacionados, tornando-se inaceitável uma
postura neutra do pesquisador (ANDRÉ, 1995, apud TEIS; TEIS,
2006, p. 02).
Nessa concepção de pesquisa, a necessidade do exercício da intuição e
da imaginação pelo pesquisador é enfatizada, como sendo um tipo de trabalho
―artesanal‖, visto não apenas como condição ao aprofundamento da análise,
mas, sobretudo, para a ―liberdade do intelectual‖ (MARTINS, 2004, p. 289, grifo
nosso). A linguagem escrita da pesquisa qualitativa possui aspecto informal,
num estilo narrativo que transmite claramente o caso estudado (OLIVEIRA,
[2009?] p. 05). ―Se há uma característica que constitui a marca dos métodos
qualitativos ela é a flexibilidade, principalmente quanto às técnicas de coleta de
dados, incorporando aquelas mais adequadas à observação que está sendo
feita‖ (MARTINS, 2004. p. 292). Portanto, o componente subjetivo é um
aspecto relevante na pesquisa qualitativa, pois ele pode influenciar na
formulação de questões e hipóteses da análise (TEIS; TEIS, 2006, p. 03)
De acordo com Brandão (1984), no que tange a observação participante
14
somente uma apreensão pessoal e demorada do todo possibilita a explicação
científica do que está em análise. Para esse autor, no decorrer do trabalho as
relações entre sujeito e objeto ocasionam pouco a pouco modificações na
maneira de pensar, fazer e usar pesquisas que culminaram na produção do
saber popular, essência da pesquisa participante, onde ocorre à passagem de
pesquisas sobre para pesquisas com, que conseqüentemente implicam na
construção de uma ―auto-pesquisa‖ (BRANDÃO, 1984, p. 237, grifo nosso). Na
técnica de observação participante o pesquisador adentra no mundo dos
sujeitos observados e tenta compreender o comportamento real dos envolvidos
em situações cotidianas de construção da realidade em que estão (OLIVEIRA,
[2009?] p. 8). Dessa forma, a observação participante configura-se como uma
estratégia de campo que associa de forma concomitante a participação ativa do
pesquisador com os sujeitos, o olhar intensivo ao meio ambiente, diálogos
abertos informais e análise documental (Idem, ibid.).
Entretanto, a análise qualitativa interpretativa de observação participante
da experiência prática a ser discutida não se iniciou especificamente para o
presente trabalho. Ela é decorrente do fato do presente autor ser parte da
equipe técnica que conduziu a implantação dessa prática por meio do projeto
de agricultura urbana e periurbana junto aos agricultores envolvidos, como será
discutido no capítulo cinco. Sendo assim, a observação não se configura
exatamente como um trabalho de campo direcionada a esta pesquisa, mas
como houve um acompanhamento muito próximo de toda atividade, com coleta
de dados, conversas informais e registros fotográficos, e o pesquisador pode
se inserir de fato no cotidiano dos envolvidos, tal metodologia tornou-se cabível
para embasar a elaboração desse capítulo.
15
2. A agroecologia________________________________________________
2.1. A agroecologia e uma nova relação socioambiental
Através de uma visão integrada sobre a totalidade que compõe o meio
ambiente de cada lugar, a aplicação de conceitos e princípios ecológicos ao
manejo de sistemas de produção de alimentos, associado ao resgate e
valorização sócio-cultural do saber local tradicional camponês2, define-se a
essência da agroecologia. Desse modo, ela pode nos orientar a uma vida com
mais equilíbrio e harmonia em relação às riquezas naturais e sócio-culturais
que compõem o planeta.
O uso contemporâneo do termo agroecologia data dos anos 1970, mas
seu saber e prática são tão antigos quanto às origens da agricultura (ALTIERI,
1999, p. 15)3. A agroecologia possui como princípio fundamental o
entendimento dos seres humanos como parte da natureza, distinguindo-se
assim do pensamento dominante ocidental moderno onde homem e natureza
são dissociados4. Essa forma integrada de pensar as relações num meio
unívoco permite a aquisição de novos valores socioambientais, onde a
natureza não é vista como uma fonte de recursos disponíveis que possam ser
utilizados indiscriminadamente pelas pessoas. Ela também preza pelo resgate
e valorização de saberes tradicionais camponeses, uma das bases para
composição do conhecimento agroecológico, sobretudo por terem eles um
entendimento de pertencimento e co-relação com o meio natural nas práticas
que possibilitam a sua reprodução sócio-cultural (Idem, ibid.).
Na medida em que os pesquisadores estudam as agriculturas
tradicionais, que são relíquias modificadas de formas de cultivo mais antigas,
faz-se mais notório que muitos sistemas agrícolas desenvolvidos em âmbito
local incorporam rotineiramente mecanismos ancestrais para acomodar os
cultivos às variações do meio natural e sócio-cultural. Esses sistemas agrícolas
são uma interação complexa entre processos sociais externos e internos, e
2 Ver capítulo 3, no que se refere ao saber tradicional camponês.
3 Ver também Gliessman, 2005, p. 55.
4 Ver capítulo 4, no que se refere ao pensamento ocidental moderno e dissociação homem-natureza.
16
entre processos biológicos e ambientais. Estes podem ser entendidos
espacialmente no âmbito do terreno agrícola, mas também incluem uma
dimensão temporal. A agroecologia leva em conta tanto o sistema agrícola
como a organização em sociedades, no tempo e no espaço, em que estão
inseridos os agricultores. Ela coloca uma ênfase relativamente baixa nas
investigações realizadas nos centros de pesquisa e enfatiza fortemente os
experimentos de campo, permitindo assim uma maior participação dos
agricultores no processo de construção do conhecimento agroecológico
(ALTIERI, 1999).
Dessa maneira, a agroecologia se configura como algo muito além de
uma forma de produção agrícola. Ela ajuda a fortalecer a vida nas
comunidades onde está inserida, pois reforça a importância da participação
popular, dos princípios de cooperação entre os agricultores, do trabalho
associativo na produção e escoamento dos produtos, e dos movimentos sociais
(INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 17). Estes
quesitos fortalecem cada vez mais a agroecologia como uma forma de
(re)pensar o modo de vida atual e, por meio da associação do saber popular
tradicional e o agroecológico, transformar a realidade pela participação
daqueles que proporcionaram, com suas mãos e mentes, a gênese da
agroecologia.
Mais do que afirmar, de forma inequívoca, a validade dos princípios
agroecológicos e de sua aplicação em todos os contextos e em todos os
lugares, o que se procura é problematizar a leitura e investigação dos
processos de mudança socioambiental na agricultura que refletem na
sociedade como um todo, pois um outro mundo é possível e necessário.
(SAUER; BALESTRO, 2009, p. 178).
Outra grande riqueza da agroecologia é referente à sua composição
multidisciplinar. A teoria de seu conhecimento5 se constrói a partir do saber e
5 Epistemologia é a parte da Filosofia que estuda os limites da faculdade humana de conhecimento e os
critérios que condicionam a validade dos nossos conhecimentos. É o conhecimento sobre o
conhecimento. Segundo Noorgard, as bases epistemológicas da Agroecologia mostram que,
historicamente, a evolução da cultura humana pode ser explicada com referência ao meio ambiente, ao
mesmo tempo em que a evolução do meio ambiente pode ser explicada com referência à cultura
humana (NOORGARD, 1989, apud CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 14).
17
experiências já acumuladas em diversas ciências, o que proporciona um olhar
amplo ao meio, com ações e reflexões que permitem abranger um todo sem
perder elementos que constituem suas partes. A agroecologia se constitui como
uma ciência de amplo alcance conceitual e prático, na medida em que ela não
se restringe apenas ao conhecimento de uma técnica agrícola, mas sim,
procura construir um saber que proporcione uma nova relação com o universo
do conhecimento, em que se construa outra realidade socioambiental,
subvertendo à hoje dominante. Portanto:
A agroecologia é um enfoque científico e estratégico, [...] no
redesenho e no manejo de agroecossistemas que queremos que
sejam mais sustentáveis através do tempo [e do espaço]. Se trata de
uma orientação cujas pretensões e contribuições vão mais além de
aspectos meramente tecnológicos ou agronômicos da produção
agropecuária, incorporando dimensões mais amplas e complexas que
incluem tanto variáveis econômicas, sociais e ecológicas, como
variáveis culturais, políticas e éticas. Assim entendida, a agroecologia
corresponde ao campo de conhecimentos que proporciona as bases
cientificas para apoiar o processo de transição do modelo de
agricultura convencional [dominante] para estilos de agriculturas de
base ecológica ou sustentáveis6, assim como do modelo
convencional de desenvolvimento a processos de [...]envolvimento
rural sustentável (CAPORAL; COSTABEBER, 2002, apud INSTITUTO
GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 15).
Como forma de investigações quantitativas e qualitativas, métodos sobre
análise agroecológica estão sendo desenvolvidos, como por exemplo, uma
investigação comparativa, geralmente envolvendo um sistema de monocultura
com um sistema agroecológico de maior complexidade. Para estabelecer uma
dinâmica simplificada e reduzir assim o número de variáveis ecológicas do
ambiente, desenvolveram-se versões artificiais de ecossistemas naturais, no
6 As agriculturas de base ecológica ou sustentáveis são os diferentes estilos de agricultura ecológica que
se desenvolveram ao redor do mundo, a exemplo das agriculturas regenerativa, orgânica, biodinâmica,
biológica, natural e ecológica, cada um contendo particularidades conceituais, culturais e
metodológicas, provenientes dos grupos sociais que foram responsáveis pela construção de cada estilo
(CANUTO, 1998, apud INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO/ PROGERA, 2009, p. 15). Ver
sub-capítulo 2.2.
18
qual essas variáveis podem ser controladas mais de perto e com isso realizar
uma comparação experimental com um sistema agroecológico. Há ainda,
sistemas agrícolas normativos construídos como modelos teóricos específicos
para facilitar a compreensão comparativa entre sistemas agroecológicos e um
ecossistema natural complexo ou um sistema agrícola tradicional (ALTIERI,
1999, p. 19).
A agroecologia se adapta bem as técnicas que requerem práticas
agrícolas mais sensíveis ao meio ambiente ao mesmo passo que concilia
envolvimento ambiental e participativo nas comunidades onde é aplicada. A
diversidade de preocupações e corpos de pensamento que influenciam a
construção da agroecologia são realmente amplos. É por esta razão que
vemos muitas equipes multidisciplinares trabalhando nestes assuntos no
campo e na cidade. Embora seja uma disciplina nova, a agroecologia
indubitavelmente alargou a discussão agrícola no mundo (ALTIERI, 1999, p.
30).
O sistema atual de produção global de alimentos está se encaminhando
a um processo de autodestruição porque as técnicas aplicadas que o
conduziram até aqui proporcionaram uma degradação excessiva e crescente
dos recursos naturais, como com a erosão do solo, o desperdício e uso
exagerado da água, e a perda da diversidade genética, dos quais a agricultura
depende para sua produção (GLIESSMAN, 2005, p. 33). Atualmente em países
da América do Sul, o solo é perdido por erosão a taxas anuais que variam de
cinco a dez toneladas por hectare. A água utilizada pela agricultura hoje,
representa aproximadamente dois terços de todo seu uso pela população
mundial, onde grande parte é desperdiçada pela evaporação e drenagem
superficial devido a não absorção dela pelas plantas. Nas últimas décadas a
variedade genética das plantas cultivadas caiu, pois muitas foram extintas pela
crescente uniformização das culturas (Idem, ibid., p. 41-47). A tabela 01
apresenta um apanhado de efeitos negativos causados no ambiente pela
agricultura moderna dominante.
19
Tabela 01: Efeitos negativos da agricultura moderna no ambiente
Recurso natural Dano ambiental ocasionado e/ou
intensificado Ações negativas relacionadas ao
dano
Solo
- Erosão hídrica e eólica - Degradação química e excesso de sais - Degradação biológica e física
- Eliminação da vegetação - Revolvimento excessivo e profundo - Não reposição de matéria orgânica - Uso de queimadas - Irrigação com água salobra - Aplicação de agrotóxicos e fertilizantes químicos industrializados
Atmosfera
- Mudança do clima - Redução da camada de ozônio - Chuva ácida - Poluição do ar
- Combustão de motores de máquinas agrícolas - Aplicação de agrotóxicos e fertilizantes químicos industrializados - Uso de queimadas
Água - Contaminação das águas continentais e oceânicas
- Aplicação de agrotóxicos e fertilizantes químicos industrializados - Uso intensivo de estrume da criação animal
Genético - Perda da diversidade genética e sementes nativas
- Semeadura de variedades híbridas, adventícias e geneticamente modificadas - Criação animal com base genética reduzida e inadaptadas
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Sauer e Balestro (2009. p. 29)
Esse modelo de agricultura criou uma altíssima dependência de
recursos não renováveis utilizados, sobretudo, na produção de insumos
químicos industrializados que são aplicados em seus cultivos. Ele também
forjou um sistema que cada vez mais retira a responsabilidade de cultivar
alimentos das mãos dos agricultores camponeses que são os guardiões das
terras agricultáveis em todo planeta (Idem, ibid., p. 33). Soma-se a isso, o fato
de que muitos desses comprovados impactos negativos causados ainda não
aparecem como um problema na opinião pública com a intensidade necessária,
retardando o debate e uma possível tomada de consciência da sociedade para
uma transformação permanente da preocupante realidade socioambiental, no
sentido de apoiar a construção de processos participativos de agriculturas de
base ecológica e de organização social adequadas à noção de sustentabilidade
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 19).
A agricultura moderna dominante dá indícios cada vez maiores sobre
sua insustentável forma de ser, porque degrada grande parte das condições
que a tornam possível, e em um curto espaço de tempo não será capaz de
produzir e fornecer alimentos à população mundial. Por exemplo, a partir da
década de 1980 a superfície mundial cultivada por grãos decresceu de 732
milhões de hectares para 670 milhões em vinte anos, e com o progressivo
20
aumento da população global nesse período, a produção passou de 0,23ha a
0,11ha por habitante (SAUER; BALESTRO, 2009, p.32-33). No cerne dessa
agricultura utilizam-se técnicas como a implantação de monoculturas, o cultivo
intensivo do solo, irrigação em larga escala, aplicação de fertilizantes sintéticos,
controle de pragas e doenças com uso de agrotóxicos e a manipulação
genética de plantas cultivadas (GLIESSMAN, 2005, p. 34). Consequentemente
são essas as técnicas da agricultura moderna que mais geram problemas
socioambientais e, contraditoriamente, são a causa de seu breve colapso.
Todo esse conjunto de técnicas se faz necessário principalmente pelo
sistema de produção em monoculturas. Essa prática consiste em plantar
apenas uma cultura agrícola numa área muito extensa, permitindo o uso de
maquinaria pesada desde o preparo do solo até a colheita. A monocultura se
configura como uma abordagem industrial moderna na agricultura, onde se
reduz gastos com mão de obra e investe-se em tecnologia para maximizar a
produtividade (SAUER; BALESTRO, 2009, p.08). Ela traz consigo uma
necessidade imensa de insumos externos ao sistema agrícola para a produção
e seu uso extensivo torna o sistema cada vez mais dependente, já que os
insumos internos vão se esgotando rapidamente devido ao uso intensivo que
sofreram (SHIVA, 2003). Não há como ser sustentável com uma lógica de
degradação e dependência externa ao agroecossistema, pois os recursos são
finitos e os insumos que advêm de fora geram grande vulnerabilidade a
qualquer sistema.
Diferentemente, a agroecologia preza pelos cultivos com grande
diversidade de espécies, em áreas menores adequadas à produção familiar
camponesa, que como vimos é a responsável por grande parte do cultivo de
alimentos no mundo. Há uma otimização dos recursos naturais internos e
mínima dependência dos externos. Ela valoriza o trabalhador camponês, tanto
com suas práticas como com seus conhecimentos, e usa a tecnologia de forma
ponderada, sem substituir a riqueza do trabalho tradicional com a terra. Na
figura 01, podemos observar as disparidades entre o sistema de monoculturas
não-sustentável e o sistema agroecológico sustentável baseado nas
diversidades que compõem o meio.
21
Figura 01: Comparação entre sistemas de monocultura e sistemas com diversidade
Fonte: Monoculturas da Mente (SHIVA, 2003, p. 98)
O modo de produzir em monoculturas é uma herança da chamada
―Revolução Verde‖ ocorrida a partir do final da Segunda Guerra Mundial,
lançando seus ―tentáculos‖ até os dias atuais (ALTIERI, 1999, p.28). A
estratégia da Revolução Verde se desenvolveu com o discurso de resolver os
problemas de pobreza e fome por meios tecnológicos avançados que
aumentariam a produção de alimentos no mundo todo de forma rápida e em
grande escala. Apoiados neste discurso, ―grandes corporações transnacionais
sediadas nos EUA [Estados Unidos da América] e Europa ligadas a produção
agrícola e de produtos alimentícios irão começar a desenvolver e a padronizar
um modelo de produção a ser adotado em todo mundo‖ (PINHEIRO, 2004, p.
05). Assim:
22
A substituição da agricultura tradicional por uma agricultura
modernizada representava a abertura de importantes canais para a
expansão dos negócios das grandes corporações econômicas, tanto
no fornecimento das máquinas e insumos modernos como na
comercialização mundial e nas indústrias de transformação dos
produtos agropecuários, sem esquecer o financiamento aos países
que aderissem ao processo de modernização (BRUM, 1988, p. 45,
apud PINHEIRO, 2004, p. 06).
Com isso, por trás da ―máscara‖ elaborada pela dita proposta de sanar a
fome, o que se fazia era elaborar bases para um modelo tecnológico
hegemônico detido por essas empresas em favorecimento da econômica dos
chamados países desenvolvidos. ―Este conjunto de novas tecnologias passou a
ser implementado simultaneamente em diversas regiões do mundo com
tamanho grau de padronização que acabou sendo denominado como ―pacote
tecnológico‖‖ (PINHEIRO, 2004, p. 06, grifo do autor). De acordo com Porto
Gonçalves:
A própria denominação revolução verde para o conjunto de
transformações nas ―relações de poder por meio da tecnolgia‖ indica
o caráter político e ideológico que ali estava implicado. A revolução
verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e político
das lutas contra a fome e a miséria, sobretudo após a Revolução
Chinesa, Camponesa e Comunista, de 1949[...]
. Afinal, a grande
marcha de camponeses lutando contra a fome brandindo bandeiras
vermelhas deixara fortes marcas no imaginário. A revolução verde
tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um caráter
estritamente técnico[...]
. O verde dessa revolução reflete o medo do
perigo vermelho, com se dizia à época. Há com essa expressão
―revolução verde‖ uma ―técnica‖ própria da política[...]
, aqui por meio
da retórica (PORTO GONÇALVES, p. 212, in: OLIVEIRA; MARQUES,
2004, grifo do autor).
Porto Gonçalves (2004) coloca ainda que o meio rural passou a sofrer
mudanças significativas nas esferas ecológica, social, cultural e política, na
medida em que esses pacotes de tecnologia passam a ser adotados no
23
processo produtivo, aumentado assim, o poder das indústrias que os detém,
assim como os processos de normatização para sua implantação (In:
OLIVEIRA; MARQUES, 2004, p. 212). A partir da modernização da agricultura
propiciada pela Revolução Verde, o capital financeiro industrial começa a ser
investido em tecnologias que cada vez mais procuravam adaptar todo o
sistema de produção agro-alimentício de forma que fosse viabilizando-se o
controle sobre todas as etapas da produção, do plantio até o produto final
(PINHEIRO, 2004, p. 08). Vagarosamente e de forma constante, ―a idéia de
que a fome e a miséria são problemas sociais, políticos e culturais vai sendo
deslocada para o campo técnico-científico, como se este estivesse à margem
das relações sociais e de poder [...]‖ (PORTO GONÇALVES; in: OLIVEIRA;
MARQUES, 2004, p. 213)
No Brasil, essas mudanças ocorreram a partir do final da década de
1960 e intensificadas no início dos anos 1970 através de incentivos
governamentais com uso de recursos públicos destinados ao crédito
subsidiado, associado à assistência técnica, extensão rural, ensino e pesquisa
nessa área. Assim, o desenvolvimento agropecuário no país sofreu
transformações em sua base tecnológica com um pacote de técnicas e lógicas
produtivas, baseadas na química, mecânica e genética, destinadas à produção
de monoculturas em grandes extensões de terra, fato que excluía a grande
maioria dos pequenos produtores (SAUER; BALESTRO, 2009, p. 08-09). Desta
forma, o governo brasileiro passou a desempenhar um papel determinante na
adoção deste modelo tecnológico, ―[...] fazendo com que os interesses que
inicialmente eram das grandes corporações transnacionais fossem
gradativamente assumidos como interesse nacional‖ (PINHEIRO, 2004, p. 07).
A Revolução Verde realmente teve êxito no aumento da produção, mas
suas consequências sociais e ambientais levaram ao questionamento sobre
sua real funcionalidade (ALTIERI, 1999, p. 28). Grande parte da população
rural ficou marginalizada nesse processo e seus benefícios atingiram apenas
aqueles que já eram ricos em seus recursos financeiros, acentuando ainda
mais a estratificação social dos camponeses. Aprofundou também os
problemas de acesso a terra e reduziu as estratégias tradicionais de
24
subsistência disponíveis nas famílias camponesas, aumentando sua
dependência aos pacotes tecnológicos desenvolvidos por esse paradigma.
Houve ainda uma redução da base genética na agricultura com a implantação
das monoculturas em larga escala, o que aumentou os riscos de perda dos
cultivos, pois eles se tornaram mais vulneráveis a enfermidades e as variações
climáticas (Idem, ibid.). Os aumentos na produtividade e produção não foram
suficientes para erradicar a fome no mundo, que ao contrário, se agravou junto
ao aumento da desigualdade social nesse período. Com frequência, a
produção é essencialmente voltada para exportação, sobretudo de grãos
utilizados pela indústria e que não são destinados para alimentação. Segundo
Sauer e Balestro (2009, p. 10), outras conseqüências associadas à adoção
desse modelo de produção agrícola no campo foram ―o êxodo rural, a
ampliação da concentração fundiária e profundos impactos sobre o meio
ambiente [...]‖. Ainda de acordo com os autores:
[...] Em relação ao êxodo rural, o campo brasileiro abrigava mais ou
menos de 70% da população nas décadas de 1950 e 1960 chegando,
na década de 1990, a ter menos de 30% do total da população.
Ainda, a concentração fundiária ampliou antigos e gerou novos
conflitos no campo, agravando as disputas por terra em algumas
regiões [do país] [...]. [...] Os resultados ambientais são, entre outros
danos, a erosão e contaminação do solo, o desperdício e a
contaminação dos recursos hídricos, a destruição das florestas e o
empobrecimento da biodiversidade [...] (SAUER; BALESTRO, 2009,
p. 10-11).
A modernização da agricultura acentuou a desigualdade, pois seus
benefícios não são distribuídos uniformemente, e seus resultados reais são
devastação ambiental severa e dano social altamente grave. (GLIESSMAN,
2005, p. 50). Nesse contexto alarmante, se não conservarmos a superfície
cultivável e mudarmos os padrões de consumo e uso dela para benefícios
mútuos, podemos dizer que a fome nos ronda num futuro muito próximo.
Atualmente, é reconhecido que as tecnologias da Revolução Verde podem ser
aplicadas apenas em áreas limitadas, adequadas à sua lógica reprodutiva. A
25
utilização de seus pacotes tecnológicos requer recursos que a maioria dos
camponeses não dispõe. A produção de alimentos se tornou cada vez mais
dependente do desenvolvimento de tecnologias, como as aplicadas na
fabricação de fertilizantes e outros insumos químicos que estão condicionados
ao emprego de técnicas que somente as grandes corporações possuem,
criando uma dependência cada vez maior dos agricultores em relação a elas
(GONÇALVES, 2010, p. 46). De acordo com Pinheiro (2004, p. 10):
Estas críticas, porém, não impediram que fosse adotado como
modelo para agricultura nacional este sistema de produção
atualmente denominado de forma genérica como ―convencional‖ [...].
Embora este padrão tecnológico que se inicia a partir da Revolução
Verde seja o mais utilizado em todo o mundo, desde sua implantação
questiona-se os seus custos sociais e mais recentemente seus limites
produtivos e as severas conseqüências ambientais do uso excessivo
de substâncias químicas na produção agrícola (grifo do autor).
Contudo, surgiram dificuldades na aplicação dos pacotes tecnológicos
que se pretendia fazer de forma generalizada entre os produtores. Varias foram
as explicações de analistas de desenvolvimento rural para a dificuldade de
transferência dessas tecnologias modernas, incluindo a idéia de que os
camponeses eram muito ignorantes para utilizá-las, ou as dificuldades de
acesso ao crédito limitavam a adoção de tais técnicas. Na perspectiva desses
analistas, no primeiro caso a falha estava no camponês, e no segundo, a culpa
incidia em problemas de infra-estrutura, mas nunca se criticavam as
tecnologias em si. Na realidade, a verdadeira prova da qualidade desses
pacotes é a decisão do camponês em adotá-los ou não (RHOADES; BOOTH,
1982, apud ALTIERI, 1999, p. 30). Na prática, isto significa obter informações
dos camponeses e compreender a percepção que eles possuem sobre essa
proposta, pois este sistema de produção convencional, embora tenha sido
oficialmente adotado como o modelo a ser desenvolvido e utilizado no Brasil,
não conseguiu se tornar unânime entre todos os envolvidos com a produção
agrícola (PINHEIRO, 2004, p. 10). Neste caso, a agroecologia é uma valiosa
ferramenta analítica com um enfoque normativo para a investigação junto aos
26
camponeses (ALTIERI, 1999, p.30). Na tabela 02 temos uma comparação
sintética entre algumas tecnologias utilizadas pela Revolução Verde e pela
Agroecologia que auxiliam na investigação sobre suas características
principais.
Tabela 02: Comparação entre as tecnologias da Revolução Verde e da Agroecologia
Características Revolução Verde Agroecologia
Cultivos abrangidos Principalmente trigo, milho, arroz, soja
Todos os cultivos
Área afetada Sobretudo áreas planas e irrigáveis Todas as áreas, inclusive as marginais
Sistema de cultivo dominante Monocultivos geneticamente uniformes
Policultivos geneticamente heterogêneos
Insumos predominantes Agroquímicos, maquinário pesado, alta dependência de insumos externos e combustível fóssil
Fixação de nitrogênio por plantas, controle biológico de seres vivos adventícios, corretivos orgânicos, grande dependência dos recursos locais renováveis
Impactos e riscos à saúde
Médios a altos (poluição química, erosão, salinização, resistência a agrotóxicos, etc.). Riscos à saúde na aplicação dos agrotóxicos e nos seus resíduos no alimento
Nenhum
Cultivos suprimidos Na maioria, variedades tradicionais e nativas
Nenhum
Custos das pesquisas Relativamente altos Relativamente baixos
Necessidades Financeiras Altas. Todos os insumos devem ser adquiridos no mercado
Baixas. A maioria dos insumos está disponível no local
Retorno financeiro Alto. Resultados rápidos. Alta produtividade da mão-de-obra
Médio. Precisa de um determinado período para obter resultados mais significativos. Baixa a média produtividade da mão-de-obra
Desenvolvimento tecnológico Setor público-privado e empresas privadas
Na maioria, setor público; grande envolvimento de ONGs
Capacitações necessárias à pesquisa
Cultivo convencional e outras disciplinas de ciências agrícolas
Ecologia e especializações multidisciplinares
Participação
Baixa (na maioria, métodos de cima para baixo). Utilizados para determinar os obstáculos à adoção das tecnologias
Alta. Socialmente ativadora, induz ao envolvimento da comunidade
Integração cultural Muito baixa Alta. Uso extensivo de conhecimento tradicional e formas locais de organização
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (2008. p. 43).
A investigação da Revolução Verde foi muito importante para a evolução
do pensamento agroecológico, pois os estudos sobre o impacto deste
paradigma tecnológico foram um instrumento de avaliação sobre os prejuízos
socioambientais que predominaram sobre o pensamento agrícola e de des-
envolvimento7 nesse período. Assim, se fortaleceu a necessidade de um novo
7 O processo que vem se dando é a quebra do envolvimento, o des-envolvimento, o que significa que a
autonomia ficou cada vez mais relativa, cada vez menor a capacidade/possibilidade de determinar o
seu próprio destino. Nesse sentido des-envolver é, também, des-locar, ou seja, tirar dos locais, dos do
local, o poder (GONÇALVES, [19--?], p. 10). Ver também sub-capítulo 4.4.
27
enfoque na produção de alimentos baseado na diversidade em detrimento das
monoculturas, o que legitimou ainda mais o conhecimento tradicional
camponês e o agroecológico como alternativas para a construção de novos
valores socioambientais. O que se requer na produção agrícola é uma nova
abordagem da agricultura que promova um modo de vida diferente do atual e
atinja todas as esferas da sociedade. De acordo com Gliessman (2005, p. 54),
A agroecologia proporciona o conhecimento e a metodologia
necessários para desenvolver uma agricultura que é ambientalmente
consistente, altamente produtiva e economicamente viável. Ela abre a
porta para o desenvolvimento de novos paradigmas da agricultura,
em parte porque corta pela raiz a distinção entre a produção de
conhecimento e sua aplicação. Valoriza o conhecimento local
empírico dos agricultores, a socialização desse conhecimento e sua
aplicação ao objetivo comum da sustentabilidade.
No enfoque agroecológico o potencial local de uma população é um
elemento essencial para uma transição na agricultura. Ele auxilia na
compreensão de fatores socioculturais e agroecossistêmicos8 estratégicos para
seguir através de estágios crescentes de sustentabilidade, conforme colocam
Caporal, Costabeber e Paulus (2006). Ainda segundo esses autores (2006, p.
02):
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a Agroecologia se constitui
num paradigma capaz de contribuir para o enfrentamento da crise
socioambiental da nossa época. Uma crise que, para alguns autores,
é, no fundo, a própria crise do processo civilizatório. Diante dessa
crise, os problemas ambientais assumiram um status que ultrapassa
o estágio da contestação contra a extinção de espécies ou a favor da
proteção ambiental, para transformar-se ―numa crítica radical do tipo
de civilização que construímos. Ele é altamente energívoro e
devorador de todos os ecossistemas [...]. Na atitude de estar por
sobre as coisas e por sobre tudo, parece residir o mecanismo
fundamental de nossa atual crise civilizacional‖ (BOFF, 1995), razão
8 Ver sub-capítulo 2.2, no que se refere à agroecossistema.
28
pela qual necessitamos de novas bases epistemológicas, novas
perguntas e novos conhecimentos, como nos proporciona a
Agroecologia, para o enfrentamento e superação desta crise.
Por tudo isso a agroecologia apresenta-se, como vimos, muito além de
simplesmente tratar sobre o manejo agrícola ecologicamente responsável dos
recursos naturais. Ela se constitui em um campo do conhecimento que, através
de uma ação coletiva de caráter participativo, com um enfoque e abordagem
sistêmica9, pretende contribuir para que as sociedades possam redirecionar o
curso alterado das relações socioambientais, nas suas múltiplas inter-relações
e mútua influência (CAPORAL; COSTABEBER; PAULUS, 2006, p. 03).
Através da perspectiva agroecológica coloca-se em destaque que os
sistemas agrícolas devem ser considerados como sistemas integrais. Enfatiza-
se também que os sistemas tradicionais de agricultura não são estáticos, pois
estão evoluindo por séculos. Essa perspectiva põe as pessoas e a sua forma
de pensar dentro do processo. Uma de suas características mais importantes é
a que outorga legitimidade ao conhecimento cultural e experimental dos
agricultores. Suas formas de raciocínio podem não traduzir-se como formas de
raciocínio científico, mas o entendido por eles provou ser apto para seu sistema
e pode ser usado para compreendê-lo. Com uma perspectiva agroecológica
pode-se superar o vago doutrinamento transmitido pela ciência cartesiana10.
Pode-se atingir assim, um verdadeiro respeito pela sabedoria dos agricultores
tradicionais, combinando seus conhecimentos a novas formas de
conhecimento e trabalhar juntos de forma eficaz (ALTIERI, 1999, p. 35).
Na agroecologia o conceito de transição agroecológica é entendido
como um processo gradual e multilateral de mudança que ocorre através do
tempo e no espaço, uma passagem transformadora num processo contínuo e
crescente não linear e sem um final determinado, como um ciclo onde se
9 Ver capítulo 4, no que se refere ao pensamento sistêmico.
10 A ciência cartesiana teve seu ápice com o método do pensamento analítico desenvolvido por René
Descartes entre os séculos XVI e XVII. Consiste em quebrar fenômenos complexos em pedaços a fim
de compreender o comportamento do todo a partir das propriedades das suas partes. Possui como
características principais o caráter pragmático do conhecimento e o homem como centro do mundo,
em oposição ao objeto e à natureza (CAPRA, 1996, p. 34; GONÇALVES, 2005, p. 33). Ver também
capítulo 4.
29
ingressa conhecimentos e práticas pertinentes em todo momento. Na
agricultura a transição tem como meta a passagem do modelo convencional
dominante a estilos que incorporem princípios e tecnologias de base ecológica.
Por se tratar também de um processo social, a transição agroecológica não
implica apenas numa busca por uma racionalização econômica e produtiva,
mais ainda, implica em uma mudança nas atitudes e valores dos atores sociais
em relação ao manejo e conservação das riquezas naturais e culturais em
esferas distintas de atuação (CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 12).
A transição, ou ruptura agroecológica implica na passagem de um
processo de reprodução da vida em grande medida insustentável a longo prazo
(ou de médio a curto prazo, já que estamos vivendo numa situação limite hoje)
para um processo que não carregue as tendências destrutivas contemporâneas
que ainda permanecem insistentemente (MESZÁROS, 2007, apud SAUER;
BALESTRO, 2009, p. 8). As experiências e iniciativas que se somam para
realizar essa ruptura não podem ser entendidas como um meio de formar
massa crítica ao enfrentamento de uma realidade indesejável. Elas devem
buscar uma forma de construção coletiva horizontal nas esferas basais dos
grupos sociais para construir um novo pensamento que contribua para atingir
uma vida equilibrada com os recursos existentes, tanto naturais quanto
tecnológicos. A título de síntese, encontramos em Guterres (2006) alguns
pontos metodológicos à transição agroecológica:
Realizar um planejamento das ações, com base nos grupos e nas comunidades, tendo
o território presente, buscando a articulação das dimensões econômica, política,
tecnológica, social, cultural e ambiental.
Discutir conceitos da agroecologia e dos agroecossistemas utilizando-se de uma
linguagem baseada em princípios pedagógicos de emancipação.
Gerar relações de co-responsabilidade entre as famílias envolvidas, suas organizações
e seus mediadores. As ações planejadas de forma participativa devem proporcionar
situações de reflexão e tomadas de decisão progressivas por parte de cada família e
pelo conjunto das comunidades envolvidas, e depois executadas com um constante
monitoramento, avaliação e re-planejamento. Logo, a obtenção dos resultados
esperados estará subordinada ao efetivo comprometimento de todos, buscando
alcançar os objetivos individuais e coletivos que venham a ser estabelecidos.
30
Considerar a complexidade e o dinamismo dos sistemas de produção, assim como os
limites ambientais em que se desenvolvem, de modo a contribuir para o
redimensionamento, redesenho e uso adequado dos meios de produção disponíveis e
ao alcance de todos.
Estabelecer uma articulação dos movimentos sociais com parcerias estratégicas, sejam
instituições de comunicação técnica e de ensino e pesquisa, buscando a formação de
redes, fóruns regionais, territoriais e outras formas de integração, em que a
participação das famílias envolvidas na definição de linhas de pesquisa, avaliação,
validação e recomendação de tecnologia apropriadas esteja no centro.
Considerar as especificidades relativas a etnias, gênero, geração e diferentes
condições socioeconômicas e culturais das populações envolvidas, em todos os
programas, projetos de comunicação técnica, pesquisa e atividades de formação.
Estimular a democratização dos processos de tomada de decisão, com participação de
todos os membros das famílias na gestão da unidade produtiva e nas estratégias de
envolvimento das comunidades.
Incentivar a participação de jovens e mulheres, considerando-se as especificidades
socioculturais, de forma central em todo processo de transição e um dos elementos
essenciais da metodologia.
Fortalecer iniciativas educacionais apropriadas para as populações envolvidas,
construídas a partir da realidade das famílias locais.
Ser o mais participativo possível e utilizar a vivência do dia-a-dia de cada pessoa,
estabelecendo estreita relação entre teoria e prática, propiciando a construção coletiva
de saberes, o intercâmbio de conhecimentos de experiências exitosas, com o qual os
agricultores e os técnicos mediadores possam aprender uns com os outros
(GUTERRES, 2006, p. 25) 11
.
Um grande desafio da agroecologia como uma abordagem que busca
um diálogo de saberes é desenvolver um referencial teórico e prático capaz de
suprir a heterogeneidade do conhecimento e das ações humanas como coloca
Sauer e Balestro (2009, p. 186), de forma que se atinja uma nova relação
socioambiental compatível com as necessidades de cada lugar. Uma produção
sustentável somente pode acontecer no contexto onde haja uma organização
social que proteja a integridade dos recursos naturais e estimule a interação
harmônica entre populações humanas, o agroecossistema e o ambiente. A
agroecologia contribui com o fornecimento de metodologias eficientes para que
11
Tópicos adaptados pelo autor a partir dos tópicos presentes em Guterres (2006, p. 25).
31
a participação da comunidade venha a se tornar a força geradora dos objetivos
e atividades dos processos de transição e ruptura ao modelo convencional de
produção. Com isso, o objetivo é que os camponeses se tornem os arquitetos e
atores de sua própria realidade novamente (CHAMBERS, 1983 apud ALTIERI,
2008, p. 26).
2.2. Enfoque agroecológico em sistemas produtivos sustentáveis
No coração da agroecologia reside a idéia de que um campo de cultivo
configura-se como um ecossistema dentro do qual os processos ecológicos
que ocorrem em outros ambientes também ocorrem nesse sistema de
produção agrícola. No que tange a sistemas produtivos, a agroecologia se
centra nas relações ecológicas dentro da agricultura, com o propósito de
iluminar e compreender a forma, a dinâmica e as funções desta relação. Por
meio do conhecimento desses processos e relações os sistemas
agroecológicos podem ser melhor administrados, com menores impactos
negativos ao meio ambiente e a sociedade, ser mais sustentáveis e
consequentemente com menor uso de insumos externos ao sistema produtivo.
Como resultado, tem-se considerado as terras cultivadas com o enfoque
agroecológico como um tipo especial de ecossistema, um agroecossistema,
passando-se a formalizar as análises do conjunto de processos e interações
que intervêm em um sistema de cultivos desse (ALTIERI, 1999, p. 18).
De acordo com Gliessman (2005) o agroecossistema proporciona uma
estrutura com a qual se pode analisar os sistemas de produção de alimentos
como um todo, incluindo seus conjuntos complexos de insumos e produção e
as interconexões entre as partes que os compõem. Vale ressaltar que, como os
ecossistemas, os agroecossistemas possuem limites espaciais pré-
determinados, sendo geralmente unidades produtivas individuais ou coletivas.
Um ecossistema possui como definição básica estrutural a característica de ser
um sistema funcional de relações complementares entre estruturas bióticas
(organismos vivos) e abióticas (seu ambiente) que mantêm um equilíbrio
dinâmico no espaço e no tempo. Existem níveis com propriedades estruturais
32
específicas nos ecossistemas que podem ser aplicados diretamente a
agroecossistemas, organizados em uma hierarquia interativa entre as partes
que o compõem, iniciando pelo nível do organismo individual, passando pela
população de indivíduos de mesma espécie, pela comunidade de populações
de espécies diferentes, até atingir o nível de ecossistema. A função dos
ecossistemas é referente aos processos dinâmicos que ocorrem em seu
interior, referente ao movimento de matéria e energia e suas inter-relações com
os organismos no sistema. Esses processos funcionais são importantes em
agroecossistemas, pois podem determinar o fracasso ou o sucesso de um
cultivo ou de alguma prática de manejo (GLIESSMAN, 2005, p. 62-67).
Apesar de dinâmicos, os ecossistemas são estáveis em sua estrutura e
função por sua capacidade de auto-regulação, devido a sua complexidade e à
diversidade das espécies que o compõem. Contudo, eles não se desenvolvem
em direção a estabilidade, permanecendo dinâmicos e flexíveis, resilientes
perante as forças perturbadoras naturais. A combinação entre essa estabilidade
geral e a transformação dinâmica produz um equilíbrio dinâmico no
ecossistema, conceito consideravelmente importante em um agroecossistema.
A estabilidade refere-se ao uso sustentável dos recursos disponíveis, e a
transformação, ao manejo contínuo do sistema para auxiliá-lo ao ponto de se
auto-regular, produzindo seu equilíbrio (GLIESSMAN, 2005, p. 74).
Os agroecossistemas possuem vários graus de resiliência e
estabilidade, mas eles não estão estritamente determinados por fatores de
origem biótica ou ambiental. Fatores sociais também podem interferir em
sistemas agrícolas tanto quanto fenômenos naturais ou enfermidades nos
cultivos. Por outro lado, uma teia de conexões se espalha a partir de cada
agroecossistema para dentro da sociedade humana e de ecossistemas
naturais. A magnitude das diferenças de função ecológica entre um
ecossistema natural e um agroecossistema depende em grande medida da
intensidade e frequência das perturbações naturais e humanas que se fazem
sentir no ambiente. O resultado da interação entre características ambientais e
fatores culturais gera particularidades ao agroecossistema. Por esta razão, é
necessário uma perspectiva mais ampla para explicar um sistema de produção
33
com enfoque agroecológico. Apesar das semelhanças e de sua aplicabilidade
um sistema ecológico difere em vários aspectos fundamentais de um sistema
agrícola. Isso ocorre porque os agroecossistemas são permeados por relações
em sociedade de culturas distintas e se situam num gradiente de ecossistemas
que sofreram algum impacto humano (ALTIERI, 1999, p. 19; GLIESSMAN,
2005, p. 78).
As perturbações naturais e antrópicas, como, respectivamente, do clima
e das práticas agrícolas, podem ser superadas por agroecossistemas
vigorosos, que sejam adaptáveis e diversificados o suficiente para se
recuperarem do impacto sofrido. Contudo, ocasionalmente, os agricultores
procuram empregar métodos alternativos para controlar problemas específicos
nos cultivos ou deficiências do solo em sistemas agrícolas ainda frágeis. A
agroecologia engloba orientações de como fazer isso sem provocar danos
desnecessários ou irreparáveis, procurando restaurar a resiliência e a força do
agroecossistema. A causa do problema deve ser entendida como um
desequilíbrio, e então o objetivo do tratamento agroecológico é restabelecê-lo
da forma mais natural possível (ALTIERI, 2008, p. 24). Encontramos na tabela
03 um conjunto básico de princípios e diretrizes tecnológicas que orientam uma
estratégia com enfoque agroecológico para superação de perturbações
específicas e que atinjam o restabelecimento do equilíbrio no agroecossistema.
Tabela 03: Elementos técnicos básicos de uma estratégia com enfoque agroecológico
I. Conservação e Regeneração dos Recursos Naturais
a. Solo: controle da erosão, manutenção da fertilidade e saúde das plantas
b. Água: captação/coleta, conservação no local, manejo e irrigação adequada
c. Material Genético: espécies nativas de plantas e animais, material genético adaptado
d. Fauna e flora: controladores naturais, polinizadores, vegetação de múltiplo uso
II. Manejo dos Recursos Produtivos
a. Diversificação:
- temporal: rotações, sequências
- espacial: policultivos, agroflorestas, sistemas mistos de plantio/criação de animais
- genética: multilinhas
- regional: zoneamento
b. Reciclagem dos nutrientes e matéria orgânica:
34
- biomassa de plantas (adubo verde, resíduos das colheitas, fixação de nitrogênio)
- biomassa animal (esterco, urina)
- reutilização de nutrientes e recursos internos e externos à propriedade
c. Regulação biótica (proteção de cultivos e saúde animal):
- controle biológico natural (aumento dos agentes de controle natural)
- controle biológico artificial (importação e aumento dos agentes de controle natural, caldas
naturais botânicas, produtos veterinários alternativos)
III. Implementação de Elementos Técnicos
a. Definição de técnicas de regeneração, conservação e manejo de recursos adequados às
necessidades locais e ao contexto agroecológico e socioeconômico.
b. O nível de implementação pode ser o da microrregião, bacia hidrográfica, unidade produtiva
ou sistema de cultivo.
c. A implementação é orientada por uma concepção holística (integrada) e, portanto, não
sobrevaloriza elementos isolados.
d. A estratégia deve estar de acordo com o conhecimento camponês, incorporando elementos
do manejo tradicional dos recursos.
Fonte: Tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (2008, p. 25).
Vejamos algumas diferenças nos aspectos ecológicos que configuram
um ecossistema natural e um agroecossistema segundo Gliessman (2005, p.
75). No que tange o fluxo de energia, os agroecossistemas apresentam
alterações acentuadas devido à aplicação de insumos externos deixando de
ser auto-sustentáveis como os ecossistemas naturais. Eles também se tornam
mais abertos, pois parte considerável da energia interna é dirigida para fora
com o escoamento da produção e o manejo intensivo, ao invés de ser
armazenada na biomassa que poderia ser acumulada dentro do sistema. Esta
redução de biomassa diminui a reciclagem de nutrientes no agroecossistema,
pois a colheita e o espaçamento dos cultivos frequentemente expõe o solo,
criando perdas temporárias de nutrientes no sistema por erosão e lixiviação.
Com a relativa simplificação do ambiente, raramente populações de plantas
cultivadas são auto-reprodutoras ou auto-reguladoras. A introdução de
sementes ou agentes reguladores depende de subsídios de energia, o que
determina o tamanho das populações. Os agroecossistemas possuem menores
graus de estabilidade em relação aos ecossistemas naturais, devido à redução
na diversidade funcional e estrutural ocasionada pelo manejo agrícola. Existem
35
perturbações recorrentes no equilíbrio estabelecido, que só poderá ser mantido
se a interferência externa também for mantida (Idem, ibid.). Na tabela 04 temos
uma síntese complementar do explanado acima.
Tabela 04: Diferenças estruturais e funcionais entre ecossistemas naturais e agroecossistemas
Ecossistemas naturais Agroecossistemas
Produtividade líquida Menor Maior
Interações populacionais Complexas Simples
Diversidade de espécies Maior Menor
Diversidade genética Maior Menor
Ciclos de nutrientes Fechados Abertos
Estabilidade Maior Menor
Controle humano Independente Dependente
Permanência temporal Longa Curta
Modificação espacial Lenta Rápida
Heterogeneidade do habitat Complexa Moderada
Fonte: Tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Gliessman (2005, p. 76).
Essas comparações levam em conta ecossistemas naturais com um
baixo grau de intervenção e/ou perturbação. Em áreas degradadas pela ação
humana ou que sofreram drásticas perturbações naturais e posteriormente
tiveram a implantação de agroecossistemas, essas diferenças apresentadas na
tabela 04 podem se inverter significativamente. Ainda, reforçamos que para
todas essas diferenças relativas, tendo em vista que ambos existem num
contínuo, deve-se considerar a localização do ecossistema natural a fim de
entender sua relação com o agroecossistema ali implantado, e o quanto ele é
favorecido e enriquecido, no tempo e no espaço, pelo manejo tradicional
camponês e o agroecológico.
Também devemos colocar, como assinala Gliessman (2005, p. 76), que
poucos ecossistemas são verdadeiramente naturais, no sentido de serem
completamente independentes da influência humana12, e por outro lado, os
agroecossistemas podem variar intensamente em sua necessidade pela
interferência humana. As propriedades dos ecossistemas naturais podem ser
12
Ver sub-capítulo 4.1, a respeito da presença humana e seus impactos nos ambientes naturais do planeta.
36
aplicadas para o desenho dos agroecossistemas se aproximar o quanto for
possível do nível de sustentabilidade necessária para co-existir e se co-
relacionar de forma mais harmoniosa com o meio, levando em conta os
aspectos do manejo cultural de cada região em que está inserido. Para Altieri
(1999) cada região possui uma configuração única de agroecossistema, que
são o resultado das variações locais no clima, no solo, nas relações
econômicas, na estrutura social e na história. Esses fatores são alguns dos
determinantes que influenciam na agricultura de cada lugar, como mostra a
tabela 05.
Tabela 05: Determinantes do agroecossistema que influem na agricultura de cada região.
DETERMINANTES INFLUÊNCIAS
Físicos
- Radiação - Temperatura - Chuva, fornecimento de água - Relevo - Solo
Condições da área - Declividade - Disponibilidade de terra - Fertilidade do solo
Biológicos
- Controladores naturais - Comunidades de plantas espontâneas - Enfermidades de plantas e animais - Biota do solo - Entorno com vegetação natural - Eficiência de fotossíntese
Modelos de cultivos - Rotação de cultivos
Locais
- Densidade da população - Organização local - Economia (preços, mercados, verba e disponibilidade de crédito) - Acompanhamento técnico - Ferramentas de cultivo - Grau de comercialização - Disponibilidade de mão-de-obra
Culturais
- Conhecimento tradicional - Crenças - Etnias - Questão de gênero - Feitos históricos
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (1999, p. 49)
De acordo com Caporal e Costabeber (2004), em diversos lugares do
mundo passaram a surgir agriculturas chamadas de alternativas, como a
agricultura orgânica, biológica, natural, ecológica, biodinâmica, permacultura,
37
entre outras, cada uma delas seguindo determinados conceitos, princípios,
tecnologias, normas e regras, segundo as respectivas correntes de
pensamento a que estão ligadas. A partir dos princípios ensinados pela
agroecologia, passaram a existir novos caminhos para a construção de
agriculturas alternativas de base ecológica ou sustentáveis.
Contudo, é preciso ter clareza de que as agriculturas de base ecológica
ou sustentáveis, geralmente, na teoria e na prática, são o resultado da
aplicação de técnicas e métodos diferenciados dos pacotes tecnológicos da
agricultura moderna convencional, normalmente estabelecidos de acordo e em
função de regulamentos e regras que orientam a produção e impõem limites ao
uso de certos tipos de insumos e a liberdade para o uso de outros. Assim,
estas correntes da agricultura alternativa não necessariamente precisam estar
seguindo as premissas básicas e os ensinamentos fundamentais da
agroecologia. Na realidade, uma agricultura que trata apenas de substituir
insumos químicos industrializados por insumos alternativos naturais não
necessariamente será uma agricultura de base ecológica sustentável com
enfoque agroecológico (CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 10).
A simples substituição de insumos químicos industrializados por insumos
orgânicos mal manejados pode não ser a solução para uma transformação da
realidade, podendo até causar outro tipo de contaminação ambiental e manter
o dano social. O uso inadequado dos produtos orgânicos, seja por excesso
e/ou por aplicação fora de época e do contexto ecossistêmico, provocará um
impacto negativo ou limitará o funcionamento dos ciclos naturais e
socioculturais. Por exemplo,
[...] a aplicação de doses importantes de adubo nitrogenado inibe a
função nitrificadora das bactérias do solo, assim como a disposição
da água e nutrientes [em excesso] condiciona o desenvolvimento do
sistema radicular das plantas. Em suma, se impõe a necessidade de
estudar não apenas o balanço do que entra e do que sai no sistema
agrário, mas também o que ocorre ou poderia ocorrer dentro e fora do
mesmo, alterando a relação planta, solo, ambiente (RIECHMANN,
2000, apud CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 10).
38
A agricultura sustentável, sob o enfoque agroecológico, é aquela que
com uma compreensão holística dos agroecossistemas seja capaz de entender
aos critérios de baixa dependência de insumos comerciais, use os recursos
renováveis localmente acessíveis, utilize-se dos impactos benéficos ou
benignos do meio ambiente local, aceite e/ou tolere as condições locais, antes
que haja uma dependência da intensa alteração ou tentativa de controle sobre
o ambiente, tenha uma manutenção em longo prazo da capacidade produtiva,
preserve a diversidade biológica e cultural, utilize o conhecimento e a cultura
da população local, e produza mercadorias para o consumo interno e externo
num circuito alternativo de economia13 (GLIESSMAN, 1990, apud CAPORAL;
COSTABEBER, 2004, p. 15). Assim, quando se fala sobre uma agricultura
sustentável com enfoque agroecológico, quer-se inferir a presença de estilos
de agricultura de base ecológica que atendam a requisitos socioculturais de
solidariedade, equidade e harmonia entre as gerações atuais e futuras em
equilíbrio dinâmico com os ecossistemas locais.
Os conceitos básicos de um sistema agrícola auto-suficiente, de baixos
insumos, diversificado e eficaz, devem sintetizar-se em sistemas alternativos
práticos que se ajustem as necessidades específicas das comunidades
agrícolas em distintas regiões. Uma importante estratégia da agricultura
sustentável é a de regular a diversidade agrícola no tempo e no espaço
(ALTIERI, 1999, p. 91).
A corrente de pensamento agroecológico defende a construção de
agriculturas de base ecológica que sejam justificadas por seus méritos
intrínsecos, ao incorporar sempre a idéia da participação social e conservação
ambiental, em que haja a busca e a construção de uma lógica alternativa a
economia de mercado para o escoamento da produção comercial. Ao contrário,
outras correntes alternativas geralmente propõem uma agricultura que se
orienta exclusivamente pela lógica do mercado que almeja lucro sem garantir
sua sustentabilidade, assemelhando-se nesse aspecto ao modelo convencional
13
A Economia Solidária se apresenta como uma alternativa à economia de mercado. Consiste em inserir a
solidariedade na economia, de forma que ela seja organizada igualitariamente pelos que se associam
para produzir, comerciar, consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais ao
invés do contrato entre desiguais (SINGER, 2002, p. 09).
39
de produção, como colocam Caporal e Costabeber (2004, p. 18). Ou seja, há
uma reforma na prática de produção sem que necessariamente haja uma
transformação da realidade convencional moderna de reprodução social,
produzindo então uma ―agricultura alternativa conservadora‖.
Ao mesmo passo que a corrente agroecológica sustenta a necessidade
de que sejam elaborados processos de envolvimento comunitário e de
agriculturas sustentáveis, outras correntes ditas alternativas estão orientadas,
sobretudo, pela expectativa de gerar lucros individuais em curto prazo,
minimizando parte dos compromissos éticos e socioambientais. Com isso,
[...] podemos até supor que venha a existir [se é que já não exista]
uma monocultura orgânica de larga escala, baseada em mão-de-obra
assalariada, mal remunerada e “movida a chicote”. Essa ―monocultura
ecológica” poderá até atender aos anseios e caprichos de
consumidores informados sobre as benesses de consumir produtos
agrícolas ―limpos‖, ―orgânicos‖, isentos de resíduos contaminantes.
No entanto, o grau de informação ou de esclarecimento de dito
consumidor talvez não lhe permita identificar ou ter conhecimentos
das condições sociais em que o denominado produto orgânico foi ou
vem sendo produzido; talvez, nem mesmo lhe interesse saber. Neste
caso, no limite teórico e sob a consideração ética acima mencionada,
nenhum produto será verdadeiramente ecológico se a sua produção
estiver sendo realizada às custas da exploração da mão-de-obra. Ou,
ainda, quando o não uso de certos insumos (para atender
convenções de mercado) estiver sendo ―compensado‖ por novas
formas de esgotamento do solo, de degradação dos recursos naturais
ou de subordinação dos agricultores aos setores agroindustriais. [...]
Inclusive, teoricamente, uma agricultura nesses moldes
mundialmente não guardaria espaço para um diferencial de preços
pela característica ecológica ou orgânica de seus produtos
(CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p. 18, grifo do autor).
No que tange um processo de transição com enfoque agroecológico nas
práticas de agriculturas sustentáveis, é preciso levar em conta a complexidade
tecnológica, metodológica e organizacional de acordo com os objetivos e metas
estabelecidos, assim como do grau necessário para se atingir a
40
sustentabilidade do agroecossistema. Esta conversão passa pelo incremento
da eficiência das práticas ecológicas agrícolas para reduzir a utilização e o
consumo de insumos externos caros, escassos e danosos ao meio ambiente.
Dentro da estrutura do enfoque agroecológico participativo definem-se
objetivos econômicos, sociais e ambientais mediante aos anseios da
comunidade local, e põem-se em prática tecnologias de baixos insumos e
custos para melhorar a renda, a equidade social e a preservação ambiental.
Além da construção e a difusão de tecnologias agroecológicas, a motivação de
uma agricultura sustentável requer mudanças nas agendas de investigação, de
políticas agrárias e dos sistemas econômicos, incluindo mercados e preços
justos, como também de incentivos governamentais (ALTIERI, 1999, p. 312). A
pesquisa direcionada ao desenvolvimento do sistema agrícola convencional
vem dando ênfase neste ponto, resultando em práticas e tecnologias que
ajudam a reduzir os impactos negativos da agricultura dominante. Porém, a
questão centra-se na substituição de insumos e práticas da agricultura
convencional pelas alternativas a essa, com impactos mais positivos do ponto
de vista ecológico. Assim, a estrutura básica do agroecossistema ainda seria
pouco alterada, o que pode ocasionar problemas similares aos que ocorrem
nos sistemas convencionais de cultivo. O nível mais complexo da transição
tange o redesenho dos agroecossistemas para que eles apresentem realmente
um conjunto de processos ecológicos e produtivos, e eliminem os problemas
que não foram ainda resolvidos na conversão acima descrita, aproximando-se
assim, dos estilos desejados de agriculturas sustentáveis com enfoque
agroecológico (GLIESSMAN, 2000, apud CAPORAL; COSTABEBER, 2004, p.
14).
Para por ênfase na sustentabilidade ecológica em longo prazo e na
produtividade agrícola em curto prazo o agroecossistema deve:
Reduzir o uso de energia e recursos externos ao agroecossistema;
Empregar métodos de produção que restabeleçam os mecanismos de equilíbrio que
conduzam à estabilidade da comunidade no sistema;
Otimizar as taxas de intercâmbio, a reciclagem de matéria e nutrientes, utilizar ao
máximo a capacidade multiuso do sistema e assegurar um fluxo eficiente de energia;
41
Fomentar a produção local de itens alimentícios, adaptados ao estabelecimento
socioeconômico e natural;
Reduzir os custos e aumentar a eficiência e a viabilidade econômica dos agricultores,
fomentando assim um agroecossistema potencialmente equilibrado e diverso (ALTIERI,
1999)14
.
Grande parte das definições de sustentabilidade em sistemas produtivos
agroecológicos inclui pelo menos os critérios de manter a capacidade produtiva
do agroecossistema, preservar a diversidade da flora e a fauna, e promover a
capacidade do agroecossistema para auto manter-se. Uma característica
complexa da sustentabilidade é referente à capacidade do agroecossistema em
manter um rendimento que não decline ao longo do tempo, dentro de uma
gama de condições. A maioria dos conceitos de sustentabilidade requer o
rendimento contínuo e a prevenção da degradação ambiental. Estas duas
demandas com frequência apresentam-se como se fossem mutuamente
incompatíveis. A produção agrícola depende da utilização dos recursos
enquanto a proteção ambiental requer algum grau aceitável de conservação. O
problema é que existe um período de transição antes que se consiga a
sustentabilidade, e desse modo, a rentabilidade no investimento em técnicas
agroecológicas pode não ocorrer imediatamente. Um desafio para a avaliação
da qualidade dos agroecossistemas é o de assegurar um monitoramento que
equilibre a produtividade à integridade ecológica do sistema, tanto com base
em dados quantitativos como qualitativos. Historicamente, a avaliação dos
sistemas agrícolas centrou-se na quantificação da produção de alimentos, e no
estado, condição e tendências do solo, da água e dos recursos relacionados,
deixando de lado os indicadores qualitativos que co-existem nos
agroecossistemas (ALTIERI, 1999, p. 65). Nesse sentido, a agroecologia tem
avançado e demonstra esforços para que a avaliação do estado dos
componentes ou processos biológicos e culturais essenciais nos
agroecossistemas não seja deficiente e inadequada à realidade de cada lugar.
14
Tópicos adaptados pelo autor a partir dos tópicos presentes em Altieri (1999).
42
2.3. Diversidade biológica e cultural na agroecologia
Dentre os princípios da agroecologia, de acordo com Altieri (2008, p. 24),
a conservação, manutenção e ampliação da biodiversidade associada a
valores socioculturais são quesitos primordiais e essenciais para produzir a
auto-regulação e a sustentabilidade em agroecossistemas. Também é de suma
importância na reflexão proposta pelo presente trabalho, sobretudo no que
tange o capítulo quatro, onde faremos um breve registro sobre a conservação
da diversidade social, cultural e ambiental do planeta. Segundo o autor, quando
a biodiversidade é restituída aos agroecossistemas, sob o enfoque
agroecológico no manejo agrícola, numerosas e complexas interações passam
a se restabelecer entre o solo, as plantas, os animais e os agricultores. O
aproveitamento dessas interações e sinergismos complementares pode
resultar em efeitos socioambientais benéficos e eficientes, pois:
Criam uma cobertura vegetal contínua para a proteção do solo;
Fecham os ciclos de nutrientes e garantir o uso eficaz dos recursos locais;
Contribuem para a conservação da fertilidade do solo e dos recursos hídricos através
da cobertura morta e da proteção contra o vento;
Contribuem para a recuperação de nascentes e recarga do lençol freático através da
retenção da água no solo;
Intensificam o controle biológico sobre danos aos cultivos fornecendo um habitat para
os seres de controle natural;
Contribuem para a manutenção e regulação do micro-clima local;
Contribuem para aumentar a captura de carbono atmosférico no ecossistema;
Aumentam a capacidade de múltiplo uso do solo;
Asseguram uma constante produção de alimentos e variedade na dieta alimentar;
Proporcionam o aumento e diversificação de produtos para comercialização, ampliando
a renda dos agricultores;
Asseguram uma produção sustentável das culturas sem o uso de insumos químicos
industrializados que degradam o ambiente e prejudicam a saúde dos agricultores;
Mantém o uso dos recursos naturais através da legitimidade do saber tradicional
camponês sobre o manejo sustentável (ALTIERI, 2008, p. 25)15
.
15
Tópicos adaptados pelo autor a partir dos tópicos presentes em Altieri (2008).
43
Portanto, uma estratégia central na agricultura sustentável é a de
restaurar a diversidade na paisagem agrícola. A diversidade pode aumentar
com o tempo, por exemplo, mediante o uso de rotação de cultivos ou cultivos
sequenciais diversificados; e no espaço, através do uso de cultivos de
cobertura, cultivos intercalados, sistemas agroflorestais e sistemas mistos de
produção agrícola e criação de animais. A diversificação da vegetação não
apenas resulta numa regulação e restauração de seres de controle natural,
como também permite melhorar a ciclagem de nutrientes, uma maior
conservação do solo, da energia e uma menor dependência de insumos
externos. Ela pode também tomar lugar fora da propriedade agrícola, por
exemplo, nos limítrofes dos cultivos da propriedade utilizando-se de plantios
corta-vento, cordões de contorno e cercas vivas, o que pode melhorar e
restaurar o habitat para a fauna silvestre, atrair agentes polinizadores
fornecendo-lhes alimento, contribuir ao aumento da diversidade da flora
utilizando-se de espécies nativas e adventícias adaptadas, proporcionar fontes
de madeira, matéria orgânica, e melhorar o micro-clima local (ALTIERI, 1999).
Com a crescente pressão sobre os habitat naturais tem havido muita
preocupação sobre a biodiversidade. Frequentemente se propõe políticas para
implantação de áreas especialmente protegidas com o objetivo de conservar a
biodiversidade de forma restritiva em locais onde ela ainda se mantém16. As
atividades antrópicas podem perturbar ou manter alta a biodiversidade,
dependendo da forma de interação e compreensão da população com relação
a natureza, em particular, por meio da agricultura. Muitos ecossistemas
naturais com níveis distintos de perturbação que cobriam grandes áreas têm
sido fragmentados ou devastados, colocando em frequente ameaça as
espécies que ali se encontram.
O enfoque agroecológico é especialmente útil para a administração
dessas áreas que, aliás, necessitam de um novo olhar sobre a questão da
conservação, sobretudo onde haja uma mescla entre o uso agrícola da terra e
a conservação da biodiversidade em áreas protegidas, a fim de satisfazer as
necessidades reprodutivas da população ali residente ao mesmo passo que
16
Ver sub-capítulo 4.2, a respeito da criação de áreas especialmente protegidas para a conservação.
44
conserva os recursos naturais. As formas de uso restrito até agora adotadas
para conservação absoluta da biodiversidade não devem ser utilizadas para
administrar os ecossistemas, tampouco para os agroecossistemas. Utilizando a
terra em gradientes, fazendo cultivos em forma de mosaicos e campos
agrícolas diversificados, promovem-se estratégias mais sensíveis para
satisfazer as necessidades concomitantes de produção alimentícia e
conservação da biodiversidade (ALTIERI, 1999).
Para Shiva (2003, p. 85), a diversidade é característica da natureza e a
base da estabilidade ecológica. Ecossistemas diversificados, assim como
agroecossistemas diversificados, promovem o surgimento e manutenção de
formas de vida e culturas diversificadas. A co-relação de culturas, formas de
vida e habitat podem conservar a diversidade biológica em âmbito local,
regional e mundial, dependendo do nível de apropriação e da esfera atingida
por este enfoque na conservação. De acordo com a autora ―a diversidade
cultural e a diversidade biológica andam de mãos dadas‖.
Assim, vale ressaltar que restaurar a saúde ecológica do ambiente não é
o único objetivo da agroecologia. A sustentabilidade só é possível com a
conservação conjunta da diversidade biológica e cultural que nutre as
agriculturas locais. O estudo do sistema de conhecimento de um grupo étnico
local e nativo tem revelado que o conhecimento dessas populações sobre o
ambiente, a vegetação, os animais e solos pode ser bastante detalhado17. O
conhecimento camponês sobre os ecossistemas geralmente resulta em
estratégias produtivas multidimensionais de uso da terra, que criam, dentro de
certos limites ecológicos e técnicos, a auto-suficiência alimentar das
comunidades em determinadas regiões (TOLEDO et. al., 1985, apud ALTIERI,
2008, p. 26).
Em uma terra ocupada em grande parte por uma paisagem transformada
pela cultura do manejo agrícola, esforços para conservar a biodiversidade
remanescente não podem mais restringir o olhar apenas às áreas de terra
dispersas que ainda mantém minimamente os ecossistemas naturais em sua
forma original. As terras manejadas sob o enfoque agroecológico nos
17
Ver capítulo 3 e 4, no que se refere ao conhecimento tradicional camponês e a conservação dos recursos
naturais.
45
agroecossistemas possuem um enorme potencial, ainda pouco explorado,
capaz de sustentar uma diversidade de espécies nativas e adventícias
adaptadas, e com isso contribuir para a conservação da biodiversidade do
planeta (GLIESSMAN, 2005, p. 555).
Recentemente foi criado o conceito de agrobiodiversidade como forma
de refletir sobre as dinâmicas e complexas relações entre as sociedades
humanas, as práticas de cultivos e os ambientes em que convivem,
repercutindo em diversas esferas, em particular, no que toca a conservação
dos ecossistemas. A agrobiodiversidade inclui a diversidade de espécies, a
diversidade genética e a diversidade de ecossistemas agrícolas ou
agroecossistemas, englobando todos os elementos que interagem na produção
agrícola. Portanto, o conceito não trata apenas de definir a diversidade
biológica existente em agroecossistemas, mas também se refere às formas
pelas quais os agricultores usam a diversidade natural do ambiente no manejo
dos recursos locais para a produção agrícola (SANTILLI, 2009, p. 91).
A agrobiodiversidade é essencialmente um produto da intervenção
humana sobre os ecossistemas naturais com a formação de agroecossistemas
pela interação dos agricultores com o ambiente natural. Os processos culturais,
os conhecimentos tradicionais, práticas e inovações agrícolas, desenvolvidos e
compartilhados pelos agricultores, são um componente fundamental da
agrobiodiversidade (SANTILLI, 2009, p. 94). Nesse ponto, as características
que compõem a agrobiodiversidade são muito próximas dos agroecossistemas
que estão sob o enfoque agroecológico. Não se pode tratar de ambos
dissociados dos contextos ambientais, processos e práticas culturais e
socioeconômicas que os determinam e os condicionam. Assim, o conceito de
agrobiodiversidade corrobora com o enfoque agroecológico no que tange a
conservação da diversidade biológica e sócio-cultural em sistemas produtivos
sustentáveis, e ainda pode fornecer uma nova estratégia para a criação de
reservas naturais18 onde haja uma forma justa e eficiente para conciliar
conservação e atividades agrícolas agroecológicas.
Portanto, as exigências para desenvolver uma agricultura sustentável
18
Ver sub-capítulo 4.3, no que se refere à criação de reservas da agrobiodiversidade para a conservação
dos recursos naturais e sócio-culturais.
46
não são apenas biológicas ou técnicas, também são sociais, econômicas e
políticas que ilustram as necessidades para criação de uma vida mais
sustentável. Sem isso, torna-se inconcebível estimular as mudanças ecológicas
do setor agrícola sem apoiar as mudanças similares em todas as demais áreas
inter-relacionadas da sociedade. No cerne da agroecologia faz-se, sobretudo, a
exigência de uma agricultura sustentável com um ser humano consciente, cuja
atitude na natureza seja de co-existência e não de exploração, e esse impulso
nas mentalidades proporcione as transformações necessárias em todas as
esferas possíveis da sociedade (ALTIERI, 1999, p. 315).
2.4. A agroecologia e o conhecimento tradicional camponês
O estudo de sistemas agrícolas tradicionais proporcionou grande parte
da matéria prima para a construção de hipóteses e sistemas de produção
alternativos para a agroecologia. A cada vez é mais amplo o estudo da
agricultura a partir do saber local tradicional camponês realizado por equipes
multidisciplinares para documentar essas práticas, desenvolvendo-se
categorias de classificação para analisar os processos biológicos e para avaliar
feições das forças sociais que influem nessa agricultura, fundamentais na
construção do pensamento agroecológico (ALTIERI, 1999, p. 27).
De forma análoga ao exposto por Caporal e Costabeber (2004, p. 12),
para não haver equívocos de interpretação sobre a expressão ―a partir do
saber local tradicional camponês‖ utilizada no parágrafo acima, como algo que
vai em direção ao atraso, faz-se necessário colocar que, na realidade, segundo
os autores:
[...] o ―partir‖ quer significar um ponto de início de um processo
dialógico entre profissionais com diferentes saberes, destinado à
construção de novos conhecimentos. Neste processo o conhecimento
técnico também é fundamental, até porque o salto de qualidade que
propõe a Agroecologia e a complexidade da transição a estilos de
agriculturas sustentáveis não permitem abrir mão do conhecimento
técnico-científico, desde que este seja compatível com os princípios e
metodologias que podem levar a uma agricultura de base ecológica.
47
Assim, a agroecologia não propõe uma volta ao passado que negue os
avanços científicos e tecnológicos, mas sim para resgatar um conhecimento
que, apesar de estar ainda presente pelas mãos dos agricultores, corre o risco
de desaparecer, pois, como vimos, com o advento da Revolução Verde, os
avanços mencionados deturparam a forma eficiente e elaborada desse saber
em lidar com os processos ecológicos na agricultura, deslegitimando-os e
impondo-lhes, direta ou indiretamente, novas formas de trabalhar a terra que
não necessariamente condizem com as necessidades e preferências da
população camponesa. Trazer o conhecimento tradicional para uma nova
realidade sociocultural com o intuito de poder contribuir com ele de forma
participativa, trazendo a ciência como aliada e disponibilizá-lo aos agricultores
e à sociedade como um todo, é um dos propósitos da agroecologia.
De acordo com Altieri (2008, p. 26), para a agroecologia vários aspectos
do manejo em agroecossistemas tradicionais são particularmente relevantes,
como o conhecimento do ambiente físico local e de práticas agrícolas
consonantes ao meio, os sistemas de taxonomia19 popular e o emprego de
tecnologias de baixo uso de insumos a partir dos recursos localmente
existentes. Para ele, a agricultura tradicional apresenta, em seus mais
diferentes aspectos de conhecimento e produção, uma exemplar ―[...]
capacidade de tolerar riscos, eficiência produtiva de misturas simbióticas de
cultivos, reciclagem de nutrientes, utilização dos recursos materiais e genéticos
locais, e habilidade em explorar toda uma gama de microambientes‖. Continua,
afirmando que:
É possível obter, através do estudo da agricultura tradicional,
informações importantes que podem ser utilizadas no
desenvolvimento de estratégias agrícolas apropriadas, adequadas às
necessidades [locais], preferências, e base de recursos de grupos
específicos de agricultores e agroecossistemas regionais (Altieri,
1983). Entretanto, tal transferência [ou melhor, troca] de
conhecimentos deve ocorrer rapidamente, ou essa riqueza de
práticas se perderá para sempre.
19
Taxonomia: teoria e prática da descrição, nomenclatura e classificação dos organismos e solos (SÃO
PAULO, 1997, p. 228).
48
Os agricultores tradicionais possuem a capacidade de se adaptar tanto à
adversidade como à oportunidade, e assim os processos de aprendizagem e
experimentação são constantemente renovados (SANTILLI, 2009, p. 95). Para
isso, é importante que o camponês não só tenha consciência da prática
tradicional, como também compreenda o papel do saber ancestral usado na
dinâmica da produção. Não para que o agricultor fique estritamente atrelado a
esse saber para sua reprodução, mas para que ele possa ser ator em todo
processo de construção do conhecimento e das práticas utilizadas em sistemas
de produção sustentáveis com enfoque agroecológico (SAUER; BALESTRO,
2009, p. 249).
A agroecologia e o conhecimento tradicional camponês, que será
discutido no próximo ítem, integrados na elaboração de um agroecossistema,
possibilitam uma nova abordagem sobre a agricultura, com o resgate sobre as
potencialidades locais, uso e manejo sustentáveis dos recursos existentes, e a
valorização sociocultural de uma determinada população. A autonomia dos
agricultores tradicionais foi sendo suprimida na medida em que os pacotes
tecnológicos propostos pela agricultura convencional dominante foram tomando
lugar sobre a forma de concepção e produção do trabalho tradicional
camponês. O enfoque agroecológico permite ao agricultor um resgate
consciente do saber tradicional e uma alternativa a essa forma de agricultura,
utilizando-se de metodologias participativas e técnicas sustentáveis que
valorizam os conhecimentos adquiridos pelos camponeses em sua experiência
de vida (GONÇALVES, 2010, p. 59).
49
3. O saber tradicional camponês____________________________________
3.1. Agricultura e comunidades tradicionais camponesas
Cerca de 60% da agricultura praticada em todo mundo utiliza métodos
tradicionais e de subsistência na implantação de sistemas produtivos, e
fornecem aproximadamente 20% da oferta de alimentos no mundo. Este tipo
de agricultura se enriquece em meio a ciclos temporais e espaciais de
transformação cultural dos povos e biológica dos ecossistemas, adaptando-se
as condições locais. Assim, os agricultores tradicionais proporcionaram
sistemas complexos de cultivo elaborados ao longo de séculos, que
satisfizeram suas necessidades reprodutivas sem depender da mecanização e
uso de insumos químicos industrializados, desenvolvendo uma agricultura com
produtividade sustentável (ALTIERI, 1999, p. 103; 2008, p. 29).
A agricultura tradicional proporcionou o desenvolvimento de práticas que
otimizam a produtividade em longo prazo ao invés de aumentá-la ao máximo
em um curto período. Em geral, os insumos utilizados por esse sistema se
originam em âmbito regional e o trabalho é realizado com energia proveniente
de fontes locais (ALTIERI, 1999, p. 104). Com isso, os agricultores tradicionais
aprenderam a reconhecer, valorizar e utilizar os recursos existentes no meio
circunscrito em sua realidade, sem que isso seja determinante para sua
reprodução, mas essencial à sustentabilidade do seu modo de vida. Além dos
recursos locais, eles enriquecem o meio com a implantação de sistemas
agrícolas que possuem alta diversificação:
Os agroecossistemas tropicais [tradicionais], compostos de parcelas
produtivas e em pousio, hortas domésticas complexas e lotes
agroflorestais, geralmente contêm mais de 100 espécies por campo
de cultivo proporcionando materiais de construção, lenha,
ferramentas, medicamentos, alimentos para o gado e para o consumo
humano. [...] Pequenas áreas ao redor das casas dos agricultores
geralmente abrigam 80 a 125 espécies de plantas úteis, muitas delas
para alimentação e uso medicinal (ALTIERI, 2008, p. 30).
50
Soma-se a isso, o fato de que os agricultores tradicionais não só
enriquecem a biodiversidade nas áreas cultivadas como também a conservam
onde não há cultivos. Muitos desses camponeses mantêm áreas naturais no
interior ou adjacências de sua propriedade, com o intuito de manejá-las e se
suprir de produtos úteis à sua vida e reprodução sociocultural (ALTIERI, 2008,
p. 30). Como podemos perceber, eles valorizam a totalidade do sistema
produtivo agrícola e não apenas os rendimentos pontuais de um solo cultivado
intensivamente como no sistema de produção moderno. Entretanto, conforme
vimos anteriormente no texto, hoje se corre o risco de perder essa riqueza para
sempre na medida em que os avanços tecnológicos vão se impondo e
suprimindo as práticas e conhecimentos tradicionais.
O espaço e os recursos são otimizados nesse tipo de produção, com o
intuito de utilizar melhor os insumos ambientais, reciclando os nutrientes que
enriquecem o solo e as plantas, conservando a água disponível, entre outros
fatores como mostra a tabela 06.
Tabela 06: Uso de práticas tradicionais adaptadas as características ambientais locais
CARACTERÍSTICA AMBIENTAL
OBJETIVO PRÁTICA TRADICIONAL UTILIZADA
Espaço limitado Utilizar ao máximo os
recursos ambientais
Cultivo intercalado; agroflorestamento; cultivo em estratos
múltiplos; hortas domésticas; zona de cultivos segundo a
altitude; subdivisão do terreno; rotação de culturas.
Terrenos inclinados Controle da erosão e
conservação dos recursos
hídricos
Construção de terraços; cultivo em curvas de nível; plantio
de contorno; barreiras vivas ou artificiais; aplicação de
cobertura morta; curvas de nivelação; cobertura forrageira;
cultivos contínuos e de pousio; muralhas de pedra.
Fertilidade baixa de
solos marginais
Sustentar a fertilidade
existente do solo e reciclar
os nutrientes do solo
Pousios naturais ou melhorados; matéria orgânica de
cultivos; rotação de culturas e plantios consorciados com
leguminosas; aplicação de húmus, esterco e composto
orgânico; adubação verde; pastagem de animais em campos
de pousio; utilização de resíduos domésticos; restos de
capina; solos de formigueiros como fonte de fertilizantes; uso
de depósitos aluviais; uso de sedimentos e matéria orgânica
aquáticas; plantio de leguminosas em aléias; uso de folhas,
ramos e outros resíduos secos; utilização de cinzas da
vegetação; revolvimento superficial do solo; uso de forragens
naturais ou plantadas.
Inundação ou excesso
de água
Integrar a agricultura com
a oferta de água
Agricultura de campos elevados como canteiros flutuantes,
terraços, campos com drenos, waru-warus, diques etc., e/ou
uso de culturas adequadas para áreas alagadas.
51
Excesso de água Dirigir e/ou drenar água
disponível
Controle do excesso de água mediante canais e pequenas
represas; campos submersos cavados até o nível de água
subterrânea; irrigação por micro-aspersão ou gotejamento;
irrigação de canais alimentada por lençol freático poços,
lagoas; cisternas e reservatórios.
Precipitação instável ou
insuficiente
Utilizar a umidade da
melhor forma possível
Uso de espécies e variedades de cultivo resistentes a seca;
aplicação de cobertura morta; uso de indicadores
meteorológicos; plantio misto no final da estação chuvosa;
cultivos com ciclos curtos de crescimento.
Temperatura ou
radiação solar extremas
Melhorar o micro-clima Redução ou intensificação do sombreamento; redução do
espaçamento das plantas; cultivos resistentes a sombra;
aumento da densidade das plantas; aplicação de cobertura
morta; manejo do vento com cercas vivas e linhas de árvores
como cordão de contorno; capina e aração superficiais;
cultivos intercalados; silvicultura; cultivos em aléias.
Incidência alta de
controladores naturais e
enfermidades
Proteger os cultivos,
reduzir ao mínimo as
probabilidades de
doenças
Reforço do plantio para permitir riscos; permissão do dano
por algumas enfermidades para seleção de espécies
resistentes; observação permanente dos cultivos; uso de
vertebrados para catação; uso de variedades resistentes;
cultivos consorciados; favorecimento do aumento da
população de controladores naturais; coleta manual; uso de
caldas naturais; plantio em épocas de baixo potencial de
problemas; uso de plantas aromáticas repelentes; pousio.
Fonte: Tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Altieri (1999, p. 106).
Todas essas práticas e conhecimentos da agricultura tradicional, dentre
muitas outras, fornecem uma gama de princípios que contradizem e subvertem
os que são impostos como o único caminho possível pelo modelo dominante
de produção nas sociedades atuais, onde, por exemplo, a produção agrícola é
desenvolvida a qualquer custo, desrespeitando os limites ambientais e
humanos, visando o consumo exacerbado e sem precedentes dos recursos
naturais, impondo a sua lógica reprodutiva de degradação em diversas esferas
da vida e a todos que estiverem suscetíveis a ela, transformando a natureza
em mera mercadoria. A multiplicação do saber elaborado a partir da agricultura
tradicional deve ocorrer o quanto antes, como forma de respeitar e conservar a
diversidade social, cultural e natural mantida por esses povos ao longo de
várias gerações, e que ainda podem contribuir com a construção de um
conhecimento que permita uma transformação efetiva nas sociedades
modernas, no caminho de atingirmos uma vida mais sustentável.
52
Sociedades tradicionais podem ser definidas como ―[...] grupos humanos
diferenciados sob o ponto de vista cultural, que reproduzem historicamente seu
modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação
social e relações próprias com a natureza‖ (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 27).
No Brasil, as populações e culturas tradicionais não-indígenas, de forma geral
são consideradas camponesas, fruto de intensa miscigenação ocorrida no
processo de formação do país entre povos nativos sul americanos, africanos e
europeus (DIEGUES, 2004, p. 14).
As comunidades tradicionais camponesas têm na figura do camponês
um ―artista‖20 que trabalha a terra e promove assim sua reprodução e seu
envolvimento com o mundo natural, gerando um saber com características
próprias. Consequentemente ele contribui para a sua formação social e cultural
nas sociedades em todo planeta ao mesmo passo que pode estimular o
aumento da diversidade biológica local e regional, proporcionando sua
conservação quando utiliza, para tanto, os princípios de uma agricultura
ecológica ancestral.
A cultura tradicional camponesa desenvolveu-se pelo território brasileiro
constituindo-se em várias formações socioculturais, conforme o modo de
relação com as características ambientais, locais e regionais. Contudo, a
agricultura camponesa no Brasil passa por um processo crescente de perda de
saberes tradicionais em função do avanço hegemônico do capital no campo
através do controle de grandes corporações multinacionais (GUTERRES, 2006,
p. 131).
20
Emprega-se aqui o termo com o sentido expresso pelo Médio Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa
(1980, p. 177) no que se refere à palavra Arte: S. f. 1. Capacidade que tem o homem de pôr em prática
uma idéia, valendo-se da faculdade de dominar a matéria. 2. A utilização de tal capacidade com vista a
um resultado, que se pode alcançar por meios diferentes. 3. Atividade que supõe a criação de
sensações ou de estados de espírito, em geral de caráter estético, mas carregados de vivência íntima e
profunda, podendo suscitar em outrem o desejo de os prolongar ou renovar. 4. A capacidade criadora
do artista de expressar ou transmitir tais sensações ou sentimentos. [...] 9. Capacidade natural ou
adquirida de pôr em prática os meios necessários para obter um resultado. [...] (grifo nosso).
53
Figura 02: Localização aproximada do território das populações tradicionais não-indígenas no
Brasil
Nota: As áreas mapeadas não representam a ocorrência exata das populações tradicionais não-indígenas, mas
porções de território historicamente ocupadas por elas (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 39, nota dos autores).
Fonte: Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil (2001, p. 39).
Como vemos no mapa, as populações tradicionais se distribuem pelo
território brasileiro nas mais distintas formações sócio-culturais, cada qual com
sua forma particular de se envolver com a natureza, produzir o seu
conhecimento e se reproduzir pelo trabalho. Em sua grande maioria elas são
formadas por camponeses, sobretudo por suas características de trabalhar a
terra, estar sujeita aos ciclos da natureza, ter a unidade familiar como forma de
organização social e serem sujeitos de seu trabalho. Em particular:
[...] São populações de pequenos produtores que se constituíram no
período colonial, frequentemente nos interstícios da monocultura e de
outros ciclos econômicos. Com isolamento relativo, essas populações
desenvolveram modos de vida particulares que envolvem grande
dependência dos ciclos naturais, conhecimento profundo dos ciclos
54
biológicos e dos recursos naturais, tecnologias patrimoniais,
simbologias, mitos e até uma linguagem específica, com sotaques e
inúmeras palavras de origem indígena e negra. (DIEGUES, 2004, p.
14).
Para o presente trabalho, estamos pensando, de modo geral, em algumas
contribuições dessas distintas populações para a construção de um saber que
possibilite um envolvimento sustentável21 com a natureza. Outros fatores que
devem ser levados em consideração a essa generalização são: o fenômeno da
migração, cujo qual possibilitou a mescla de muitos desses saberes; e a
contribuição da ciência no resgate, aprimoramento e multiplicação desse
conhecimento a toda sociedade, em especial, por meio da agroecologia.
De acordo com Gonzáles (2009, apud HERCULANI, 2009, p. 13), os
valores culturais de uma região não estão apenas contidos na materialidade
histórica que a compõe, pois seus habitantes lhe conferem um caráter singular,
uma vez que a paisagem natural está indissoluvelmente ligada à paisagem
cultural e humana. As formações camponesas configuram uma ordem social e
ideológica onde, na relação entre as partes e o todo, o indivíduo é englobado
pelo todo (WOORTMANN, 1995, apud idem, ibid., p. 15).
O conhecimento tradicional é o meio de identificação cultural, pode-se
dizer que é a forma desenvolvida pela própria população para cumprir a função
social de ordenação e interação com o meio em que vivem (HERCULANI,
2009, p. 19). Essa forma de conhecimento geralmente é transmitida de forma
oral entre as diferentes gerações, podendo ser definido como o saber e o saber
fazer sobre a natureza e sobre os aspectos sobrenaturais (DIEGUES, 2000, p.
30, apud idem, ibid., p. 19). Seu conhecimento do tempo e do espaço é
profundo e já existia antes daquilo que convencionamos chamar de ciência
(MOURA, 1988, apud idem ibid.).
O resgate desses saberes tradicionais passa pela tomada de
consciência, onde haja uma identidade de classe social e uma valorização dos
recursos internos em que o cultural e o tradicional tenham um valor
imprescindível para qualquer processo de tomada de decisão para a
21
No sub-capítulo 4.4 faremos uma discussão mais aprofundada sobre o “envolvimento sustentável”.
55
transformação da realidade em que vivem os camponeses. Alguns
pressupostos teóricos e metodológicos são necessários, como o resgate e a
reconstrução de valores éticos e culturais, na relação entre si e com a natureza
(GUTERRES, 2006, p. 133). Para Diegues (2000) o conhecimento tradicional e
o científico ocidental assemelham-se ao ter constatações empíricas. Contudo, o
conhecimento científico ocidental caracteriza a diversidade da vida como um
recurso componente do mundo chamado natural, e o tradicional não vê a
diversidade da vida como um recurso natural, mas sim como um conjunto de
seres vivos que tem um valor de uso e um valor simbólico.
Por essa perspectiva, os seres vivos pertencem a um território em que
se produzem as relações sociais e simbólicas. Portanto, não existe uma
natureza em si, mas uma natureza cognitiva e simbolicamente apreendida, pois
não existe uma natureza independente dos humanos. Os recursos, os
instrumentos e os humanos existem socialmente com a cultura. É o saber que
permite usá-los e é a cultura que lhes dá significado (WOORTMANN, 1997, p.
10). Porto Gonçalves (2005, p. 23) reforça essa idéia quando coloca que cada
sociedade possui sua própria idéia sobre o que seja a natureza, e afirma que
―[...] o conceito de natureza não é natural‖, sendo criado pelos humanos e
constituindo um dos pilares de sua cultura.
Cultura e agricultura estão diretamente relacionadas, pois o termo
cultura está historicamente associado ao sentido de cultivo da terra. Como
vimos acima no texto, os bens culturais na agricultura, e em qualquer outra
forma de expressão, compreendem uma dimensão material e outra imaterial, e
não podem ser entendidos de forma dissociada. Neles estão inclusos os
conhecimentos, inovações e práticas agrícolas detidos pelos agricultores
tradicionais, e são reconhecidas, por documentação elaborada por órgãos
institucionais oficiais22 e trabalhos de pesquisa correlatos, as suas
22
Constituição brasileira (art. 216); Dossiê elaborado em 2003 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN); Inventário Nacional de Referências Culturais (INCR); Emissão de
Decretos Legislativos (n. 22/2006; n. 485/2006; n. 74/1977) e respectivos Decretos Presidenciais
(n.5.753, de 12/04/2006; n. 6.177, de 01/08/2007; n. 80.978, de 12/12/1977) para aprovação de
Convenções envolvendo o tema da Cultura (SANTILLI, 2009, p. 382-389).
56
contribuições ao desenvolvimento sustentável23 (SANTILLI, 2009, p. 382-389).
Assim, podemos entender que o patrimônio cultural contido no saber
tradicional camponês proporciona uma importante contribuição para um novo
modo de se relacionar em sociedade e com a natureza. Porém, somente esse
saber não é capaz de promover todas as transformações necessárias para um
novo modo de vida, pois seria necessário modificar diversos padrões e
conceitos que embasam a sociedade atual, não só os relacionados à
agricultura. Contudo, a forma de agir e pensar proposta por esse paradigma
pode levar a uma sociedade mais solidária e sustentável com relação a suas
riquezas humanas e naturais.
Para Guterres (2006, p. 132) há a necessidade de um ―[...] resgate de
identidades locais, tradicionais e culturais de saberes populares‖ para que
possamos construir um envolvimento sustentável no interior das comunidades,
no qual o controle do processo de decisão seja dos grupos sociais locais,
contrapondo-se ao ―[...] avanço convencional ―modernizador‖ que se impõe e
coloca em risco o futuro do meio ambiente e da população‖ mundial (Idem,
ibid., grifo do autor). Ainda segundo o autor, faz-se necessário também a ―[...]
superação e substituição de razões de competição individualista, egoísta e
predatória, construída por uma doutrina econômica absoluta do capital, por
valores de solidariedade, cooperação e ajúda mútua‖ contidas no modo de vida
camponês (ibid., p. 133). Essas razões estéticas e externas que estimulam o
fetiche da mercadoria estão levando toda sociedade a um enfrentamento com a
natureza na tentativa fugaz de moldá-la ao seu interesse, criando uma crise
ambiental e social que leva milhões de camponeses à exclusão (Idem, ibid.). O
resgate do saber local tradicional camponês e sua reconstrução aliada ao
saber científico agroecológico, possibilita conservar as diversidades de vida e
de culturas para a superação desse modelo perverso e unilateral adotado pelas
sociedades modernas.
23
O conceito de “desenvolvimento sustentável” será discutido no capítulo 4 com ênfase no significado de
des-envolvimento no que tange a construção de um novo paradigma à conservação da diversidade
social, cultural e natural do planeta.
57
3.2. O camponês e a terra
O camponês é um trabalhador rural, onde boa parte de sua produção
está voltada para o auto-sustento da família, e uma outra para o mercado do
sistema capitalista. Entretanto, suas relações de trabalho não visam
essencialmente à acumulação de capital, o que lhe confere características não
capitalistas (BOMBARDI, 2003). Contudo, o camponês não deixa de estar
inserido no modo capitalista de produção, já que sua reprodução se dá no
interior dessa realidade e parte do que produz é destinado ao mercado desse
sistema. Dessa forma, os camponeses são entendidos como uma classe social
deste modo de produção, denominada como campesinato (Idem, ibid.).
De acordo com Bombardi (2003) ―o capitalismo carrega consigo a
necessidade constante de sua reprodução, sua manutenção só se estabelece
reproduzindo também o processo de produção do capital‖. Segundo Oliveira
(1987, p. 11), o próprio capitalismo cria e recria relações não-capitalistas e
capitalistas de produção, possuindo, portanto, um processo contraditório
intrínseco a ele, e o campesinato deve ser entendido no interior dessa
contradição. Na relação capitalista dois elementos centrais se constituem: o
capital produzido e os trabalhadores destituídos dos meios de produção (Idem,
ibid.). Nesse contexto, a família camponesa não se configura como
essencialmente capitalista, pois possui maior controle sobre os meios de
produção e sobre o processo de trabalho, gozando de certa autonomia e
independência (HERCULANI, 2009, p. 12). Contudo, a produção do capital não
decorre de relações especificamente capitalistas de produção. O processo
contraditório de reprodução ampliada do capital redefine antigas relações de
produção como as camponesas, subordinando-as à sua reprodução e
engendra relações não-capitalistas igual e contraditoriamente necessárias à
sua reprodução (OLIVEIRA, 1987, p. 11-12). Para Bombardi (2003):
Neste sentido é possível compreender como o campesinato não só
perdura, mas se reproduz no interior do capitalismo. Esse processo
de reprodução do campesinato no modo capitalista de produção se
dá exatamente pela necessidade que o próprio capital tem de
58
relações que não são capitalistas para o seu desenvolvimento. Assim,
a especificidade da produção camponesa [...] é que faz com que se
constitua em parte do capitalismo e por ele não seja destruída, mas
ao contrário, reproduzida: ―o objetivo da produção capitalista é a
acumulação, ao passo que o objetivo da economia camponesa é a
sobrevivência; portanto, fica claro que, no campesinato, como a
produtividade crescente não é o objetivo maior, não há sentido em
trabalhar mais...‖ (SHANIN, T. s/d: 4-5, apud Bombardi, 2003, grifo
nosso).
O excedente da produção camponesa é comercializado ou trocado com
o objetivo de obter os bens não produzidos, realizando para tanto, o trabalho
de acordo com suas necessidades, diferentemente do objetivo capitalista em
gerar lucro e não apenas mercadorias24 (BOMBARDI, 2003). Com isso, a forma
de produzir do camponês não objetiva especificamente a acumulação de
capital, e a apropriação da natureza dá-se exclusivamente para produção,
consumo e troca, processo denominado de divisão territorial de produção.
Assim, o meio natural é utilizado pelo camponês para sua subsistência, onde
dele retira os recursos para manutenção da vida (HERCULANI, 2009, p. 12).
Segundo Bombardi (2003):
Quando o camponês, lidando com o limite de sua sobrevivência e de
sua família, vende seus produtos por um preço por vezes inferior ao
gasto que ele teve, ele está na verdade transferindo parte de sua
renda para a sociedade como um todo (Oliveira, 1981), ou seja, o
capital está extraindo o seu trabalho excedente; é o que se chama de
sujeição da renda da terra ao capital.
A terra, embora não tenha valor, tem um preço no capitalismo. A compra da
terra permite ao proprietário o direito de cobrar da sociedade a renda da terra
24
A reprodução capitalista ampliada do capital implica na produção e circulação de mercadorias que
resulta na produção de mais-valia. O produto final do processo é a mercadoria, e nela está contida a
mais-valia gerada na produção e que só se realiza na circulação desta mesma mercadoria. Esta é
convertida em dinheiro por onde se dá a apropriação do trabalho social não pago (a mais-valia). A
rotação simplificada do capital se dá pela fórmula D-M-D (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro). Todo
processo ocorre em quatro momentos distintos, mas articulados: produção imediata, distribuição,
circulação e consumo (OLIVEIRA, 1987, p. 28-30).
59
que ela pode vir a dar (OLIVEIRA, 1987, p. 76). Portanto, a terra sob o
capitalismo é renda capitalizada. A sujeição da renda da terra ao capital
subordina a produção camponesa, especula a terra e sujeita o trabalho que se
dá na terra. Com isso ocorre a sujeição do campesinato ao capital sem que o
trabalhador seja expulso da terra e sem a expropriação de seus meios de
produção. O capital transforma a renda da terra camponesa em renda
capitalizada da terra (Idem, ibid., p. 11-13). Essa sujeição não ocorre de forma
direta, com trabalho assalariado ou extração de lucro, mas sim, de maneira
indireta, de sua renda ao capital (BOMBARDI, 2003). No capitalismo o
camponês tornou-se um produtor de mercadorias com grande capacidade
produtiva, mas não um assalariado ou um trabalhador a domicílio (OLIVEIRA,
1987, p. 68). Ele faz frente ao preço do arrendamento da terra, reduz o preço
dos produtos agrícolas e aumenta a produção de alimentos sem remunerar o
produtor com lucro. Como vimos, seu limite é a sobrevivência e, portanto, parte
de sua produção é consumida e o excedente comercializado. Assim, o
camponês possui uma fórmula simples de circulação – mercadoria-dinheiro-
mercadoria (M-D-M) – que lhe permite vender para comprar (Idem, ibid., p. 68).
Entender o camponês enquanto classe social criada e recriada no modo
capitalista de produção se faz muito importante, pois nos permite compreender
sua realidade hoje, assim como as transformações ocorridas nessa classe ao
longo do tempo. Também para demonstrar que sua vida não está totalmente
dissociada do mercado capitalista, apesar de ter formas de reprodução que não
visam essencialmente à reprodução do lucro. Entretanto, é na esfera da moral
camponesa que encontramos significativas contribuições ao presente trabalho,
pois nela encontramos um universo de valores diverso do das populações que
são essencialmente conduzidas pela lógica do capital, sobretudo no meio
urbano (BOMBARDI, 2003). Além disso, para analisar sociedades camponesas
que operam com outra lógica, faz-se necessário se desvencilhar de
explicações estritamente econômicas e ir a outros âmbitos. Apesar dos
camponeses terem grande inserção no mercado capitalista, não quer dizer que
isto seja o objetivo final de vida, mas sim um meio de sobrevivência (Idem,
ibid.).
60
Na lógica e na simbólica camponesa os laços de solidariedade são
exaltados, fazendo com que a vida de um seja compartilhada com a de outro,
além de haver uma ética de equilíbrio da natureza no manejo da terra e o
princípio de reciprocidade entre as pessoas (Idem, ibid.; WOORTMANN, 2004,
p. 136; in: OLIVEIRA; MARQUES, 2004). O camponês repulsa o
individualismo, pois a vida em comunidade é um de seus valores, onde cada
sujeito toma para si as dificuldades e as conquistas do outro, tornando mútuas
as responsabilidades entre famílias (BOMBARDI, 2003). Assim, dentre as
populações camponesas:
A ordem moral está associada a uma sociedade em que os indivíduos
não são concebidos separadamente, em que fazem parte de um todo
e, este, igualmente, também não é concebido como a soma de cada
indivíduo, mas, ao contrário, pela relação que se estabelece entre
todos os membros que o formam. Nesta visão de mundo, expressa na
ordem moral, não cabe uma concepção "atomizada" de sociedade, ou
seja, todos os indivíduos de uma comunidade são co-responsáveis
uns pelos outros (BOMBARDI, 2003).
O conhecimento tradicional camponês traz consigo formas associativas
de relação entre as pessoas e o trabalho, não sujeitado, mas integrado com a
natureza e a sociedade. Ele possibilita a recriação de um tempo que se viveu
num dado espaço, conduzindo a uma vida menos fragmentada, de sentido
mais diverso e profundo, mesclando práticas sociais, culturais e econômicas,
dando sentido à existência dessa população ao mesmo passo que traz um
exemplo às sociedades modernas para um novo-velho modo de se relacionar
entre si e a natureza (SILVA, 2006, p. 100). Nesse sentido, é importante
ressaltar que a prática camponesa não se restringe a memória com uma
influência do passado, mas sim, ―trata-se de uma ordem moral, e este fato não
é resquício do passado, é presente, ainda que em um mundo ―tecnificado‖. Ou
seja, esta ordem moral só existe pois é indissociada da condição camponesa‖
(BOMBARDI, 2003, grifo nosso).
61
Dentre os valores do camponês, a terra é seu maior patrimônio, e sua
manutenção é uma condição moral para a família tradicional camponesa, pois
possui valor simbólico e lugar onde se dá a reprodução de seu modo de vida.
Para ele as fronteiras são pormenorizadas, pois tudo ao seu redor representa o
seu lugar, o que lhe confere uma relação inerente ao meio natural
(HERCULANI, 2009, p. 11-17). O processo de trabalho agrícola camponês é
um processo de organização de espaços e combinação de espécies e
variedades vegetais, formando ecossistemas construídos com base em
modelos de saber e de conhecimento da natureza. Esse saber é mais do que
um conhecimento especializado para construir roçados. Ele é parte de um
modelo mais amplo de percepção da natureza e dos seres humanos
(WOORTMANN, 1997, p. 7).
O saber camponês transforma o mundo desconhecido num
ordenamento cognitivamente apreendido que se aproxima de um modelo
holístico, reproduzível pela transmissão e pelo aprendizado, permitindo ao
trabalho material transformar o meio natural em espaço de cultivo
(WOORTMANN, 1997, p. 11). Ao trabalhar a terra, o camponês realiza o
trabalho do saber, que juntamente com a produção de alimentos, produz
categorias sociais, pois o processo de trabalho, além de ser um encadeamento
de ações técnicas, é também um encadeamento de ações simbólicas, ou seja,
um processo ritual. Além de produzir cultivos, o trabalho camponês produz
cultura (WOORTMANN, 1997, p. 15). Nos versos de Vieira (2007, p. 40)
podemos mostrar características da cultura tradicional do camponês e a
importância de seu conhecimento:
Quem planta semeia a esperança
De ver a semente germinar
No ventre da Mãe terra
No riacho ao pé da serra
Brota o sonho sobre o ar. [...]
[...] As mãos recheadas de calo
Molda este arquiteto da vida
Artista em produzir comida
62
Formado na arte de plantar
Lembro-me de ti todos os dias
És abençoado e nos traz a alegria
De ter o café, o almoço e o jantar.
Muitos te chamam de cafona
Talvez por não ter diploma
Julgam que não tem cultura
Esqueceram de tua função
Mestre em cultivar o Chão
É senhor na agricultura. [...]25
A produção camponesa tradicional familiar constitui-se como a
responsável por grande parte do cultivo de alimentos no mundo, não centrada
na extração de lucro e sim na sobrevivência e reprodução da família. Suas
estruturas simbólicas estão baseadas no trabalho familiar dando sentido à sua
vida cotidiana. Os camponeses possuem autonomia em suas unidades de
produção agrícola, onde constroem com liberdade o seu tempo e o seu espaço
através do trabalho familiar (BOMBARDI, 2004, p. 51-60).
Essa autonomia não representa, contudo, uma forma de produção
baseada no individualismo, mas sim em valores comunitários que enaltecem o
indivíduo enquanto sujeito social. Essa desigualdade individual intrínseca as
pessoas pode ser considerada como uma riqueza recíproca que completa um
todo coletivo, onde cada sujeito contribui com sua sabedoria, de forma que esta
diversidade constitui-se como base para a solidariedade, que, por exemplo,
compõe os valores camponeses e permite maior equidade entre eles (FABRINI;
MARCOS, 2010, p. 31). Dessa forma, o camponês pratica princípios de
cooperação que estão intrínsecos ao seu modo de vida e nos mostra uma
possibilidade de viver e evoluir enquanto sociedade.
3.3. Migração cultural camponesa
Como visto, a relação de integração do camponês com a natureza é
25
Sustento da Nação (VIEIRA, 2007, p. 40).
63
intrínseca ao seu conhecimento ancestral e o acompanha, como veremos, seja
onde se dá a reprodução de sua vida. Sabe-se que o fenômeno da migração
pelo território brasileiro atingiu grande parte da população camponesa,
sobretudo com destino às cidades. Esse fenômeno ocorreu, sobretudo,
promovido pela lógica capitalista no campo através da implantação em larga
escala de monoculturas que submeteram a renda da terra ao capital,
favorecendo assim o êxodo rural (GLIESSMAN, 2005, p. 48). A produção de
alimentos a partir da lógica das monoculturas é desconexa dos princípios de
manejo sustentável agrícola, ao mesmo passo que é excludente, pois retira das
populações camponesas a autonomia de pensar, levando-os muitas vezes a
migrar para uma realidade distinta, onde a manipulação pode suprimir seus
valores culturais e sociais de integração (Idem, Ibid.), como será colocado
adiante no texto. Conforme expõe Oliveira (1987, p. 11):
[...] O camponês deve ser visto como um trabalhador que, mesmo
expulso da terra, com freqüência a ela retorna, ainda que para isso
tenha que (e)migrar. Dessa forma, ele retorna à terra mesmo que
distante de sua região de origem. É por isso que boa parte da história
do campesinato sob o capitalismo é uma história de (e)migrações.
Portanto, em particular, podemos inferir que parte das populações
tradicionais camponesas também se deslocou pelo território e se fixou ora em
outros lugares do campo, ora nas cidades. Tem-se que considerar ainda, que a
migração não é somente um deslocamento pelo território, mas também uma
movimentação nas relações sociais. As pessoas do campo se deslocam e
carregam consigo um conhecimento adquirido em suas atividades cotidianas,
onde há solidariedade entre elas e integração ao meio natural. É comum que
elas tenham a propensão de permanecer com seu meio de reprodução de vida
onde estiverem, pois não se pode arrancar isso delas, mesmo após muitos
anos, pois como exposto acima, a moral camponesa compõe sua realidade.
Segundo Hermilio Eduardo Pretto (2008, apud SILVA, 2006, p. 98),
existe ainda uma mobilidade simbólica que não se perde, mas que são
flexibilizadas numa unidade dinâmica. No caso de um desejo ou mesmo
64
efetivação de uma vida estável, os valores simbólicos podem ser mantidos e
transmitidos de geração a geração. O que ocorre geralmente é um trabalho de
convencimento para que essas pessoas achem que seu modo de pensar é
atrasado e ineficiente para a vida moderna regida sob o capitalismo e o
abandonem sistematicamente (SILVA, 2006, p. 98). A produção de idéias
dentro do sistema capitalista é permeada de valores advindos do modo de
produção que ―[...] marca tanto o senso comum quanto o conhecimento
científico‖ e possibilita a ―[...] coisificação das relações sociais e da
desumanização do homem‖ (MARTINS, 1993, p. 09). A partir dessa reflexão é
possível inferir que a alienação causada pelo capitalismo subjuga quem não é
capitalista e direciona a sociedade a um conservadorismo reacionário. Partindo
desses pressupostos, Martins (1993, p. 10) coloca que ―[...] hoje o saber do
capitalismo é produzido, regulado e consumido basicamente pela pequena-
burguesia‖ para favorecer-lhes individualmente.
Nesse contexto, o migrante é forçadamente desenraizado, e sua
participação agora se apresenta como uma ―inclusão excludente‖ (SILVA, 2006,
p. 97, grifo nosso). Para uma transformação no modo de vida, não se deve
suprimir um conhecimento tão rico em qualquer sociedade, pois ele traz
informações preciosas de como podemos nos relacionar uns com os outros e
com nossos recursos naturais sem que haja necessariamente uma degradação
generalizada como a que vivenciamos na atualidade. Apesar de trazerem
consigo ao novo lugar um aporte de saberes e experiências criados em um
outro meio, eles podem ser de grande valia ao camponês em sua nova
realidade e para a sociedade local. Pode ocorrer uma troca mútua de
conhecimentos entre aqueles que acolhem, respeitam e reconhecem que isto
enriquece a (trans)formação daquele espaço e do migrante camponês que
possui como característica cultural formas associativas de se relacionar,
conforme colocado acima no texto. Portanto, os elementos de uma ―migração
cultural‖, aqueles que se referem à cultura de origem do migrante, também
migram com ele (MARTINS (1998, apud SILVA, 2006, p. 98, grifo nosso).
Realizar um resgate cultural camponês em outro contexto social, que na
maioria das vezes é uma cidade, uma realidade distinta, que insiste em destruí-
65
lo e isolá-lo, seria ―seguramente um componente de resistência‖ nesse novo
lugar, dada a integração excludente que normalmente se dá, e visa sempre a
manipulação cultural dessa população migrante, sobretudo através dos meios
de comunicação de massa (Idem, ibid., grifo do autor). Isso ocorre porque ―os
camponeses são guiados por uma lógica que se inscreve no plano moral,
[pautada por relações de solidariedade e integração, e] a tentativa [da lógica
capitalista que preza pela mercadoria] de subversão desta ordem [moral], que é
assentada no direito das pessoas, e não das coisas, é encarada [pelo
capitalismo] como a instauração do ―demônio na sociedade‖‖ (BOMBARDI,
2003, grifo nosso), ou seja, como algo deturpador da lógica de ordem
econômica capitalista. Dessa forma estaríamos diante de um ―novo
colonialismo‖, uma ―colonização das mentalidades‖ (MARTINS 1998, apud
SILVA, 2006, p. 98, grifo nosso).
Contudo, na medida em que essas populações camponesas têm a
possibilidade de interagir, principalmente no meio urbano, mas também no
rural, através de relações de trabalho ou na própria comunidade onde estão,
seu conhecimento cria um elo comum entre elas, suas representações são
partilhadas e ocorre um processo de re-significação, adaptação e resgate
cultural no processo de sua espacialização, o que pode se caracterizar como
um grande ponto de enfrentamento a manipulação capitalista (SILVA, 2006, p.
93-99). Em âmbito rural, mas em particular no urbano, o saber tradicional
seguiu junto ao camponês, e de alguma forma permeia todas as esferas de sua
vida, transformando sua realidade no novo lugar e, porque não, também do
local onde se dá agora sua reprodução. Assim, ―quando a população reage no
meio urbano com a sua própria cultura arcaica e agrária, ela está se recusando
a essa manipulação‖ (MARTINS 1998, apud SILVA, 2006, p. 98, grifo do autor).
A manutenção e o resgate das práticas tradicionais camponesas e a
extensão de seus princípios de sustentabilidade à população como um todo
podem permitir uma conservação da diversidade social, cultural e natural mais
eficiente e promover uma transformação necessária em nossa sociedade. As
pessoas de comunidades tradicionais camponesas que migram pelo território
brasileiro levam consigo um velho-novo olhar de relações equânimes em
66
sociedade e com os recursos naturais. As populações tradicionais carregam um
aporte cultural do campo com sua migração e ainda mantêm de alguma forma
seus princípios e valores camponeses de vida e cultivo nas cidades e no
próprio campo. O fenômeno da migração dessas populações favoreceu o
enriquecimento social, cultural e natural nos espaços habitados por elas. Com
uma troca de conhecimentos e valorização desse saber podemos construir
uma nova realidade pautada pela integração entre sujeitos e o com o meio.
O modo de vida tradicional se caracteriza por uma sociabilidade
territorializada, preferencialmente em escala local, informada por um
sentimento de pertencimento ao lugar. Porém, na realidade brasileira,
a territorialidade camponesa também pode se projetar sobre um
espaço mais amplo, a partir da constituição de uma rede familiar
extensa, como é comum ocorrer entre camponeses migrantes. Nesse
caso, os vínculos comunitários de origem passam a dialogar com
outras formas de sociabilidade, encontradas no local de destino, seja
ele rural ou urbano (MARQUES, 2004, p. 153, in: OLIVEIRA;
MARQUES, 2004).
A reflexão aqui apresentada se faz ainda mais necessária, pois no
capítulo cinco trataremos de uma experiência de resgate do saber tradicional
associado ao saber agroecológico que se dá com uma população de migrantes
do campo que hoje vive na cidade. Eles carregam consigo muitas experiências
do campo e do conhecimento tradicional camponês que os proporciona uma
forma de se reproduzir e se integrar através de suas práticas agrícolas
ancestrais em uma área de preservação ambiental.
67
4. Diálogo de saberes à conservação cultural e natural_________________
4.1. Premissas a um paradigma de conservação
A relação humana com a natureza teve significativas mudanças a partir
do momento em que a ciência cartesiana foi ganhando espaço como aquela
que contém a verdade única perante o mundo, e através de seus
ensinamentos, o modo de ser, de produzir e de viver em sociedade teve
profundas transformações. De acordo com Porto Gonçalves (2005, p. 33) o
caráter pragmático que o conhecimento adquire e o homem como o centro do
mundo, são aspectos essenciais que marcam a filosofia cartesiana.
Progressivamente essa ciência fundamentou-se em leis universais imutáveis
com o intuito de tentar responder à complexidade da natureza ―através de seu
arcabouço teórico pragmático e instrumentalizado‖ (MELO, 2006. p. 73). É
importante salientar, assim como assinala Melo (2006), que:
Não se trata de desmerecer o paradigma cartesiano-newtoniano, pois
o seu reconhecimento de certos problemas é legítimo; entretanto, é
importante ressaltar a sua limitação: ao separar o sujeito do objeto,
dividindo matéria e espírito e apoiando-se na unidimensionalidade
científica (como a única forma legítima de conhecimento), torna-se
insuficiente para tratar a complexidade ambiental [...] [e] para captar
as multidimensões físicas, biológicas, sociológicas, culturais,
antropológicas, históricas, econômicas e espirituais daquilo que é
humano e complexo por definição (p. 73-74).
No que tange à conservação da natureza segundo esse paradigma,
Diegues (2000, p. 14) coloca que:
Os modelos de ciência para a conservação têm sido marcados pelo
reducionismo metodológico, tanto entre as ciências naturais quanto
entre as sociais. Desde o século XVII, a investigação científica foi
marcada pelo paradigma cartesiano ou pelo positivismo/racionalismo.
Essa ciência tenta descobrir a verdadeira natureza da realidade a fim
de predizer e controlar os fenômenos naturais. Os cientistas
68
acreditam que estão separados dessa realidade e por isso são
objetivos. O reducionismo positivista tenta desagregar a realidade em
componentes para reordená-los posteriormente como generalizações
ou leis.
O contínuo questionamento das civilizações humanas frente à sua
relação com o planeta foi, de certa maneira, tornando-se equivocadamente
unilateral, na medida em que as inovações tecnológicas tornaram-se o ponto
principal às soluções dos problemas ambientais (BENSUSAN, 2006, p. 11).
Com isso, as pessoas passaram a não mais ser consideradas como parte da
natureza e suas ações passaram a ser unilaterais, baseadas nos avanços
tecnológicos, visando apenas o benefício individual segundo premissas
capitalistas modernas. ―A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem,
o que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza,
cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalismo‖ (PORTO
GONÇALVES, 2005, p. 35). Acerca da dicotomia homem-natureza, segundo
Melo (2006, p. 41):
Tal relação tornou-se nefasta para o ambiente quando a sociedade
subordinou a natureza a uma lógica mercadológica. Esse processo
de separação entre individuo e natureza, não a reconhecendo como
legítima mas como um recurso, juntamente com as possibilidades
acumuladas pela técnica e pela ciência, conduziu a um processo de
crescimento industrial desordenado, intensificando os problemas
ambientais, que atingem hoje um largo espectro, desde a dilapidação
dos ecossistemas até o aumento da criminalidade.
No paradigma capitalista de produção, a diversidade se contrapõe à
produtividade, gerando um cenário paradoxal onde se destrói a biodiversidade
necessária para a manutenção do próprio modo de produzir as novas
tecnologias, ameaçando a sustentabilidade dos ecossistemas (SHIVA, 2003, p.
160). Hoje a relação com as formas de vida em todo planeta é de exploração e
destruição, onde as pessoas reduzem o mundo natural a entornos
domesticados com monoculturas e a lugares desertos aplainados consagrados
69
em edificações. Entretanto, as intervenções humanas quase nunca realizam
suas expectativas: os campos se empobrecem, os pastos secam, suas cidades
entram em colapso, e ainda há sempre o desejo nas pessoas de ir além
(DEAN, 1996, p. 24), forjada no papel de uma ―evolução‖ que têm por traz os
interesses capitalistas de produção.
Por exemplo, o capital criou formas de subordinar a produção no campo
a seus interesses através da sujeição da renda da terra de forma indireta com a
implantação de agroquímicos na agricultura, com o discurso de ―melhorar‖ os
cultivos e aumentar a produtividade, proporcionando uma dita ―evolução‖ na
produção agrícola. Na realidade o que se vê, neste caso, são a formação de
oligopólios exercidos por empresas transnacionais do setor agroquímico, a
multiplicação de monocultivos no campo e a subordinação dos camponeses
aos ditames do modo capitalista de produção. No Brasil, por um lado
aumentou-se o lucro dessas empresas com a venda de agrotóxicos em 140%
entre 1990 e 2008, e de outro, houve 62 mil intoxicações por uso desses
produtos agrícolas entre 1999 e 2009, ou seja, o detrimento do trabalhador
camponês junto a toda sociedade em benefício do capital (BOMBARDI, 2011,
p. 01-06). Assim:
Arriscar tanto, nos nossos esforços destinados a moldar a Natureza
de acordo com a nossa satisfação e a nossa conveniência, e, ainda
assim, acabar fracassando, sem atingir o nosso objetivo, seria, na
verdade, a ironia final. Contudo, ao que parece, esta é a nossa
situação. A verdade raramente mencionada, mas existente, para ser
vista por qualquer pessoa que deseje vê-la, é a de que a Natureza
não é facilmente moldável [...] (CARSON, 1964, p. 251).
As formas de conservação da natureza devem basear-se em algo além
do auto-interesse humano com uma compreensão mais profunda sobre o
mundo natural e sobre as populações que ali estão integradas de forma
relativamente equilibrada (DEAN, 1996, p. 24). O pensamento predominante
ocidental moderno ao se relacionar de uma forma quase que imperceptível com
a hegemonia do desenvolvimento econômico capitalista que rege as ações nas
70
sociedades, se tornou parte de um processo de legitimação mais efetivo para a
homogeneização do mundo e da degradação de sua riqueza natural e cultural
(SHIVA, 2003, p. 81). Em concordância ao que coloca Porto Gonçalves (2005,
p. 28):
[...] Quando afirmamos que é o pensamento no Ocidente, queremos
deixar claro que a afirmação desse pensamento – que opõe homem e
natureza – constitui-se contra outras formas de pensar. Não devemos
ter a ingenuidade de acreditar que ele se afirmou perante outras
concepções porque era superior ou mais racional e, assim,
desbancou-as. Não, a afirmação desta oposição homem-natureza se
deu, no corpo da complexa História do Ocidente, em luta com outras
formas de pensamento e práticas sociais. Ter isso em conta é
importante não só para compreender o processo histórico passado,
mas, sobretudo, para compreender o momento presente. [...]
O imperialismo que faz parte do impulso do desenvolvimento capitalista
também faz parte do saber globalizante ocidental no qual o paradigma
desenvolvimentista está enraizado, cujo qual deriva sua argumentação lógica e
sua legitimação, subjugando todas as outras formas de saber e tornando-o
unilateral e antidemocrático (SHIVA, 2003, p. 81). De acordo com Latouche
(1994, p. 11-13):
Hoje, e amanhã mais ainda, o mundo é convocado a viver de maneira
uniforme [...]. A mundialização contemporânea das principais
dimensões da vida não é um processo ―natural‖ engendrado por uma
fusão de culturas e de histórias. Trata-se ainda de dominação, com
suas contrapartidas, sujeições, injustiças, destruição [...] (grifo do
autor).
A idéia de criar áreas especialmente protegidas para conservação da
natureza surge, associada ao paradigma cartesiano e a valores ocidentais,
num contexto de consumo e desperdício de recursos naturais em ascensão,
desenfreado, durante o século XIX (BENSUSAN, 2006, p. 13). Em algumas
regiões do mundo o estabelecimento dessas áreas veio com o discurso de
71
conservar o que ainda resta da natureza ―intocada‖ no planeta. O pensamento
sistêmico traz um olhar científico para a realidade que se contrapõe ao
pensamento cartesiano-reducionista, cerne da dissociação homem-natureza.
De acordo com a visão sistêmica, propriedades essenciais de um organismo
são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui em si, pois elas
surgem das relações e interações entre as partes. Ao contrário do pensamento
cartesiano, essas propriedades são destruídas caso o sistema seja dissecado,
física ou teoricamente, em elementos isolados, pois sua soma não constitui
mais a natureza do todo (CAPRA, 1996). Esse método científico pode contribuir
ao propósito de entender o homem como parte da natureza, mas existem
ressalvas.
Porto Gonçalves (2005, p. 60), alerta que ao tornar tudo um sistema
pode-se estar criando um novo reducionismo, onde se desconsidera a
importância das particularidades individuais que constitui o todo desse sistema,
voltando o olhar apenas para uma teoria geral holística. Segundo o autor, há
que se considerar que os ―[...] sistemas existem sob determinadas condições e
não sob qualquer condição‖ (Idem, Ibid.). Dessa forma não se percebe que os
sistemas se transformam e que possuem relações dinâmicas internas
ocasionadas pela integração de seus constituintes (Idem, ibid.). Esse raciocínio
permite ao leitor um cuidado para não inferir que no decorrer do presente
trabalho estejamos sinalizando a um ―sistemismo‖, como coloca Porto
Gonçalves (2005), mas sim para trazer um olhar onde o humano seja
constituinte da natureza e que com suas particularidades integre a dinâmica
desse todo.
A princípio a criação de áreas especialmente protegidas, como veremos
no próximo item, não levou em consideração a importância da presença
humana no interior desses locais26, que ali vivem há diversas gerações como
parte integrada do mundo natural e estimuladores da diversidade da vida, e o
saber tradicional perdeu seu espaço e sua credibilidade dentro da própria
comunidade. Também não atentaram ao fato de que é praticamente impossível
afirmar que nunca houve ou há algum grau de intervenção humana em
26
Posteriormente no texto veremos que ocorreram algumas inovações com relação a atividades humanas
em áreas especialmente protegidas em âmbito mundial e nacional.
72
qualquer parte do planeta, seja de forma direta, como com o cultivo da terra, ou
indireta, como com a poluição do ar (DEAN, 1996, p. 31).
Ao longo do tempo essas populações criaram uma integração com o
meio natural e produziram sua cultura ao se reproduzirem nesses espaços.
Grande parte delas são formadas por camponeses que ao se relacionar de
forma íntima com a natureza, construíram um conhecimento especialmente
rico, transmitido ao longo de gerações. Este saber tradicional possibilitou uma
vida pautada por uma ordem moral onde as relações são mais solidárias entre
os camponeses e sustentáveis com os recursos naturais, como trouxemos ao
longo do texto e aprofundaremos a seguir.
4.2. O contra-senso da conservação em áreas especialmente protegidas
O estabelecimento de espaços protegidos se inicia através da criação de
parques nacionais baseados no modelo criado nos Estados Unidos27, em áreas
onde ocorra uma bela paisagem cênica supostamente intocada por sociedades
humanas e exista a necessidade de proteção aos estoques de recursos
naturais (BENSUSAN, 2006, p. 12). Nessas áreas a presença humana seria
controlada e jamais haveria populações residentes dentro delas. Nesses locais,
as pessoas são tidas como uma ameaça frequente à conservação da natureza
e nunca como parte integrante (e estimulante) da biodiversidade (Idem, ibid. p.
14).
Ainda no inicio do século XX, os parques nacionais não tinham
definições mundialmente aceitas. A União Internacional para a Conservação da
Natureza (IUCN), criada em 1948, estabeleceu em 1960 a Comissão de
Parques Nacionais e Áreas Protegidas, com o intuito de promover, monitorar e
orientar o manejo dos espaços protegidos. Após dois anos, aconteceu em Bali,
Indonésia, o 3º Congresso Mundial de Parques Nacionais, onde se iniciou a
discussão sobre a conservação da natureza e sua relação com o
estabelecimento de populações locais em áreas protegidas. Nesse mesmo
27
Parque Nacional de Yellowstone, primeiro a ser criado, foi estabelecido em 1872 com o objetivo de
preservar suas belas paisagens “intocadas” para as gerações futuras (BENSUSAN, 2006, p. 13, grifo
nosso).
73
evento, passou-se a pensar também na redução do consumo mundial assim
como na melhoria de vida das pessoas em países pobres, pois apenas assim
teria sentido as estratégias de conservação. Porém, foi apenas no 5º
Congresso Mundial de Parques, realizado em Durban, África do Sul, em 2003,
que a conservação da biodiversidade foi fundamentada na relação áreas
protegidas e populações humanas, levantando-se alguns pontos como linhas
de ação (Idem, ibid., 2006, p.15).
Na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, realizada no Brasil em 1992, a Organização das Nações
Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) adotou e inseriu a
categoria ―paisagem cultural‖28 na lista de patrimônios mundiais como forma de
valorizar todas as inter-relações entre seres humanos e meio ambiente, entre o
natural e o cultural (SANTILLI, 2009, p. 390, grifo do autor). Esta categoria
aparece neste contexto como uma outra forma de criar espaços à conservação
da biodiversidade e dos recursos naturais onde haja reconhecidamente um
valor universal com capacidade de ilustrar elementos culturais de uma região.
No que tange a agricultura, em 2002 a Organização das Nações Unidas
para a Agricultura e Alimentação (FAO) iniciou um programa global para a
conservação e o manejo de sistemas agrícolas tradicionais, de rica diversidade
biológica e cultural associadas chamado de Sistemas Engenhosos do
Patrimônio Agrícola Mundial (GIAHS)29. Este programa visa identificar, definir e
apoiar as formas de conservação e manejo de tais sistemas agrícolas em
favorecimento dos agricultores, criar vínculos com o patrimônio cultural e
fornecer subsídios para a criação de áreas especialmente protegidas
destinadas a conservação da agrobiodiversidade. Ainda assim, apenas
duzentas áreas agrícolas foram estabelecidas, e somente cinco foram
selecionados como piloto para o programa em todo mundo (SANTILLI, 2009, p.
395-398). Perante a existência de uma série enorme de práticas agrícolas
tradicionais existentes em todo planeta essa iniciativa, apesar de ser bastante
28
“[...] O conceito de paisagem cultural abarca também as ideias de pertencimento, significado, valor e
singularidade do lugar” (SANTILLI, 2009, p. 390). 29
GIAHS é a sigla em inglês para Globally Important Agricultural Heritage Systems (SANTILLI, 2009,
p. 395).
74
interessante, ainda é muito incipiente para uma questão de extrema urgência.
No Brasil, a criação de espaços especialmente protegidos foi introduzida
na legislação do país através do decreto nº 23.793 de 1934 pelo antigo Código
Florestal. O Parque Nacional de Itatiaia foi o primeiro parque brasileiro criado
em 1937 seguindo o modelo Norte Americano de conservação. Com a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo sobre meio ambiente (art. 225), o
país concebeu o projeto de Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC). Após oito anos de inúmeras tramitações, o projeto foi aprovado no
Congresso em 18 de julho de 2000 (Lei nº 9.985), ainda que com alguns vetos
do presidente da República, sobretudo no que tange à definição de populações
tradicionais (BENSUSAN, 2006, p. 19).
O SNUC divide em dois grandes grupos as categorias de Unidades de
Conservação (UCs), sendo elas de proteção integral ou de uso sustentável. O
primeiro é constituído exclusivamente por terras de domínio público, devendo
as terras privadas existentes em seus limites ser desapropriadas. Essas
unidades têm por princípio manter o ecossistema livre de interferência humana,
admitindo apenas uso indireto de seus atributos naturais, ou seja, sem causar
alterações significativas em sua configuração. O segundo grupo é constituído
por terras públicas ou privadas e têm por princípio o uso dos recursos naturais
renováveis existentes na área em quantidades ou com intensidade compatível
com sua capacidade de renovação (CABRAL, SOUZA, 2002; SÃO PAULO,
2006).
Dentre as unidades de conservação de uso sustentável, a Área de
Proteção Ambiental (APA) terá maior relevância para este trabalho no que
tange ao capítulo cinco, onde faremos uma reflexão sobre práticas
agroecológicas em comunhão com o saber tradicional camponês em uma
unidade desta categoria. Como características, essas unidades em geral
possuem áreas extensas com certo grau de ocupação humana, dotadas de
atributos abióticos e bióticos, estéticos ou culturais especialmente importantes
para a qualidade de vida e/ou bem estar das populações humanas, tendo como
objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o uso do solo e
assegurar a sustentabilidade no manejo dos recursos naturais (DIEGUES;
75
VIANA, 2004, p. 160; SÃO PAULO, 2006, p.126).
Pelo SNUC não foi estabelecida nenhuma categoria de unidade de
conservação especificamente direcionada à conservação e ao manejo
sustentável da agrobiodiversidade realizada pelas populações tradicionais
camponesas. A criação de uma categoria dessa conjuntura seria uma forma de
promover nessas áreas a diversidade agrícola, garantir a segurança alimentar
e nutricional de toda população, e regularizar a situação fundiária das terras em
seus limites, beneficiando os agricultores tradicionais e seus sistemas de
cultivo. Seria importante que tal categoria de unidade de conservação fosse de
uso sustentável, com o intuito de que seja reconhecido o papel dos agricultores
no manejo da biodiversidade agrícola. Entretanto, independentemente da
criação de desse tipo de categoria é importante utilizar melhor as unidades de
conservação já existentes (SANTILLI, 2009, p. 400-407).
Baseados no conceito preservacionista da natureza, no qual se
fundamenta a criação de áreas protegidas, Terborgh e Peres (2002) colocam
sua posição com relação à presença de pessoas residentes em unidades de
conservação:
Muitas pesquisas confirmam que os seres humanos e a natureza são
incompatíveis, exceto onde os humanos praticam um estilo de vida
pré-moderno de baixo impacto, em densidades que não sejam
maiores que poucos indivíduos por quilômetro quadrado. As pessoas
causam danos aos sistemas ecológicos através de limpeza da terra,
caça, pesca, perseguição a predadores e comercialização de
recursos naturais (TERBORGH; PERES, 2002, apud TERBORGH et.
al. 2002, p. 334).
Esse modelo preservacionista defendido por esses autores muitas vezes
acaba sendo reducionista e unilateral. Ele traz o problema apenas para a
atualidade e não leva em conta que em praticamente todos os lugares da Terra
já ocorrera à presença de populações humanas (DIEGUES, 2000). Também
não considera as pessoas como parte intrínseca da natureza, muitas vezes
mantenedora e estimuladora da biodiversidade. Coloca com certo preconceito
a existência de sociedades com modo de vida não ocidentalizado, como se
76
fossem inferiores a essa cultura. Contraditoriamente, os danos causados aos
sistemas ecológicos conforme descrevem esses autores são, em grande parte,
ocasionados por suas próprias formas de vida, baseadas na cultura ocidental
de desperdício e consumo exacerbado. Temos então uma nova-velha forma de
expropriação, pois:
[...] Se antes os desbravadores do Brasil dizimaram populações e
grupos inteiros de povos da floresta em prol da exploração econômica
dos recursos naturais, hoje, em alguns casos, utiliza-se das mesmas
estratégias para o caminho inverso, sua conservação, ou melhor: sua
preservação (BACELAR; SILVA, 2008).
A conservação de uma área ecologicamente rica e diversificada só tem
sentido igualmente nas culturas ocidentalizadas. Uma sociedade tradicional
hipotética, por exemplo, sequer se colocaria tal problemática por ter essa
cultura uma outra forma de produção e de relação com a natureza
(VESENTINI, 1989). ―Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma
determinada idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de
natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens‖
(PORTO GONÇALVES, 2005, p. 23). Conforme exposto no sub-capítulo
anterior, o problema da inadequação desse modelo de conservação é apenas
uma parte da questão maior que é a visão de natureza separada das pessoas,
estabelecida pela sociedade moderna, e que está no âmago das relações por
esta desenvolvida. Nesta sociedade a preocupação com os recursos naturais
aparece com mais ênfase no limiar do segundo milênio, onde muitos processos
de degradação ambiental tomaram caráter irreversível e preocupante às futuras
e atuais gerações. Cada povo se relaciona com a natureza por sua forma de
interpretá-la, estabelecendo-se no interior dessas sociedades, tanto quanto as
relações sociais. A forma como a sociedade pensa a natureza legitima suas
ações (SILVA, 2008, p. 165).
Para Pereira e Diegues (2010, p. 46) devemos considerar que as
práticas conservacionistas não são representadas pelas populações
tradicionais da mesma forma como são difundidas nas sociedades urbanas
77
ocidentais, a fim de evitar interpretações generalizadas que ocasionem um
entendimento equivocado sobre a percepção dessas populações perante a
natureza e seus recursos. Com isso:
Pode-se ter práticas culturais conservacionistas sem uma ideologia
conservacionista. Neste caso, temos populações que, sem ter uma
ideologia explicitamente conservacionista e que, não obstante,
seguem regras culturais para o uso dos seus recursos naturais de
maneira sustentável (ALMEIDA; CUNHA, 1999, p. 1, apud PEREIRA;
DIEGUES, 2010, p. 46).
A criação de áreas naturais protegidas em territórios ocupados por
populações tradicionais é considerada por elas como uma usurpação de seus
direitos pelo uso da terra onde se realiza seu modo de vida. Este fato torna-se
ainda mais grave devido a criação desses espaços em favorecimento de
sociedades que se desenvolveram pela degradação da natureza e o uso
insustentável dos recursos naturais. As populações tradicionais que são
transferidas ou passam a ter sua vida regrada por um modelo de
desenvolvimento unilateral urbano-industrial que impulsionou a criação dessas
áreas protegidas ficam restritas às novas imposições determinadas nesses
espaços em detrimento de seu modo natural de se relacionar com o meio
(DIEGUES, 2004, p. 65). Outra questão atual é o aumento da população no
interior de unidades de conservação e o impacto causado por suas novas
formas de vida adotada do mundo ocidental urbano-industrial, em particular, no
que tange a práticas agrícolas modernas. Hoje, com a alteração da vida das
populações tradicionais camponesas, sobretudo devido a perca de seu meio de
existência com a criação de áreas protegidas, essas populações muitas vezes
se vêem sem perspectivas e são sujeitadas de forma mais incisiva pelo modo
capitalista de produção, distanciando-se cada vez mais de sua história. Ainda
assim, embora os camponeses estejam aderindo às tecnologias capitalistas na
produção agrícola e no consumo de mercadorias, ―a lógica que lhes preside a
vida não é a lógica da sociedade de mercado‖ (BOMBARDI, 2003). Assim:
―[...] O modo de vida camponês não foi substituído por um
78
determinado comportamento ―moderno‖ derivado das práticas
mercantis. A cultura camponesa não é avessa às mudanças da base
técnica. Há centenas de anos que os camponeses vêm modificando
essa base.‖ (MAZOYER; ROUDART, 2001, apud FERNANDES,
[2004?], p.17, grifo do autor).
A lógica de mercado objetiva o lucro, e sua prática distingue-se da
concepção holística de mundo que muitos camponeses tradicionais possuem. A
lógica camponesa permite ao camponês a compreensão de que no mercado ―o
negócio envolve um ganhar e o outro perder, e, neste sentido, seria
extremamente desonroso ter ganho sobre quem é igual‖ (BOMBARDI, 2003).
O problema do adensamento humano em áreas protegidas e suas novas
formas de vida, não irá se resolver com restrições excessivas de uso e
expulsões das pessoas de seus lares, como proposto por esse modelo de
conservação. Ao contrário, deve-se mostrar que essas pessoas são parte da
diversidade biológica, o quão importantes são para esses ecossistemas e
estimular a continuidade de sua cultura, deixando claro que seu estilo de vida é
tão bom – senão muito melhor – do que os pertencentes às populações
desenvolvidas estritamente pelo modo capitalista de produção (DIEGUES;
VIANA, 2004). De acordo com Melo (2006):
Um dos problemas cruciais no atual sistema de produção consiste na
subordinação do valor de uso em uma função de suporte à troca,
estendendo-se essa lógica à relação com a natureza, o que significa
em última análise subordiná-la à lógica mercantil. Para tanto, torna-se
necessário, para a dinâmica do sistema, fragmentá-la (pois somente
fragmentos da natureza podem ser trocados) e homogeneizá-la (pois
torna-se imperativo na troca a transformação da particularidade
qualitativa em uniformidade quantitativa) (BIHR, 1998, apud MELO,
2006, p. 42).
Nesse contexto, podemos questionar sobre qual a real função de
conservarmos as riquezas naturais e para quem conservar. Devemos levar em
conta qual o contexto ambiental e cultural onde estão se inserindo atividades
79
de conservação e como elas ocorrerão. Se em geral as áreas protegidas são
implantadas em favorecimento das sociedades urbano-industriais para
conservação dos recursos naturais que ela própria utiliza, e que por sua vez
têm seu desenvolvimento atrelado ao capitalismo, torna-se possível que mais
uma vez o capital esteja sujeitando a terra em seu benefício, agora não pela
renda capitalizada derivada do manejo agrícola camponês, mas pela
conservação de fragmentos do meio natural, através da capitalização dos
recursos naturais presentes nesses espaços. Portanto:
Na criação de unidades de conservação da natureza há, com certeza,
mais do que razões técnicas para proteger ou conservar a
diversidade biológica do planeta. Há, pelo menos, duas grandes
matrizes de racionalidade — uma que opera com a separação entre
natureza e cultura, com sua origem no pólo hegemônico do mundo
moderno-colonial, e outra em que o ecológico e o social estão
imbricados em busca de uma nova racionalidade ambiental (LEFF,
ESCOBAR, TOLEDO, ALTIERI, POSEY, BALÉE, DIEGUES,
GONÇALVES, apud. PORTO GONÇALVES, [2008?]).
O processo de fragmentação da natureza e sua conversão como
recurso, e consequentemente a compartimentação dos hábitats existentes,
torna-se cada dia mais comum e possui grande influência sobre a manutenção
da biodiversidade e significativas implicações no estabelecimento e manejo das
áreas protegidas, assim como sobre as populações tradicionais (BENSUSAN,
2006, p. 88). Esse problema é principalmente decorrente do desenfreado
processo de industrialização das sociedades baseado na relação de uso dos
recursos naturais de maneira insustentável. Frente ao modelo capitalista de
desenvolvimento, a demanda por matérias primas foi se elevando ao longo do
século XX e culminou no quadro de catástrofes ambientais que vivemos nos
dias de hoje. Esse processo decorre, sobretudo, do produtivismo, inerente a
lógica capitalista que visa fundamentalmente à produção pela própria produção
para gerar um valor de troca e converter o capital em capital adicional, que por
sua vez estimula o consumismo para sua reprodução contínua (MELO, 2006, p.
43). Com isso:
80
O produtivismo, juntamente com a norma social de consumo, produto
principalmente das relações capitalistas, acaba culminando também
em uma obsolescência forçada de todo o entorno, que vai desde a
substituição cada vez mais acelerada dos objetos que fazem parte de
nossa vida [...] até a artificialização da própria natureza[...]
. Portanto, a
obsolescência pode ser encarada como a emergência[...]
de uma
dinâmica social de produção que necessita para o seu
funcionamento, submeter os valores de uso à função de troca,
destruindo-os periodicamente para poder produzir indefinidamente.
Observa-se que, progressivamente, o ―desenvolvimento‖ das
ciências, ideologia, técnicas e processos, sob o Capitalismo, geram
também o (des)envolvimento da natureza e da sociedade, tornando
esses mesmos processos produtivos em processos destrutivos das
relações homem/natureza, pois a única riqueza a ser reconhecida,
segundo a lógica do sistema, é justamente essa abstração que é o
valor de troca (MELO, 2006, p. 46).
A pressão das populações humanas sobre esses fragmentos aumenta à
medida que cresce a necessidade por recursos naturais. Fragilizados pela
perca de continuidade territorial, seu potencial de sucumbir aumenta frente às
civilizações modernas de consumo e desperdício exacerbados (BENSUSAN,
2006). Assim, o desafio é encontrar formas de distribuição de hábitat na
paisagem que assegurem conexões para as espécies, comunidades e
processos ecológicos e populações tradicionais, ou seja, que garantam
conectividade e assegurem a perpetuação da diversidade biológica e cultural
de forma concomitante, desde que haja uma mudança no padrão de sociedade
(Idem, ibid.).
Na busca de uma totalidade irredutível, a concepção de ecossistema foi
definida como uma comunidade de organismos e suas interações ambientais
físicas caracterizando uma unidade ecológica que não pode ser entendida
através da separação de seus constituintes (CAPRA, 1996). Ao interferirmos
em algum nível desse ecossistema, estamos desequilibrando uma rede de
relações interdependentes. A natureza é dinâmica. Em função da presença ou
ausência de determinados fatores, a biodiversidade se transforma e a rede de
81
relações é afetada. Esse desequilíbrio ocorre em diversas escalas – no espaço
e no tempo – e torna sua compreensão dificultada. Soma-se a esse fato a
complexidade da diversidade de espécies e o pouco conhecimento que temos
sobre suas relações e implicações no meio ambiente (Idem, ibid.).
Não obstante, tem-se que considerar que os distúrbios naturais e
culturais que ocorrem no ambiente também são um importante fator para a
conservação. Essas alterações ambientais quando ocorrem de forma
moderada auxiliam na manutenção da biodiversidade, pois agem como
controladores da cooperação inter e intra-específica (BENSUSAN, 2006, p. 93-
95). Um dos principais agentes causadores de distúrbios são as pessoas. Ao
interagir com a natureza, povos tradicionais realizam o manejo das florestas de
forma equilibrada, contribuindo para o aumento espontâneo da diversidade de
espécies através do impacto que geravam com suas atividades. A criação de
áreas protegidas suprimiu esse fator controlador e subestimou sua importância
para a manutenção e conservação da biodiversidade.
Frequentemente o que é chamado de padrão natural não é senão o
resultado de padrões de uso da terra e dos recursos associados, frutos de
determinados estilos de vida ao longo do tempo. O entendimento ainda
predominante de que toda relação entre pessoas e natureza seja destrutiva é
simplificador e injusto com inúmeras culturas que desenvolveram outras formas
de relação com a natureza. A biodiversidade de uma área seria o produto da
história de interação entre o uso humano e o ambiente (SILVA, 2008, p. 164).
Por esse olhar, no caso de um ecossistema florestal natural, o manejo
realizado pelas populações tradicionais rurais proporcionou a formação do que
Furlan (2006, p. 04) denomina como ―florestas culturais‖, ou seja:
―[...] florestas informadas pela cultura de diferentes povos que
desenvolveram práticas sociais adequadas e conhecimentos sobre o
funcionamento destes ecossistemas e utilização de seus recursos
numa ampla gama de formas de manejo que garantem a
sustentabilidade [...]‖.
As populações humanas camponesas que residem nessas áreas (hoje
82
protegidas) há diversas gerações são parte do todo que compõe o ecossistema
e o mantém em equilíbrio. É preciso enfatizar que no processo de conservação
―a viabilidade do manejo florestal sustentável depende fundamentalmente das
relações que se estabelecem entre as práticas sociais e também dos múltiplos
valores contidos nos usos das florestas‖ (FURLAN, 2006, p. 04). Entretanto,
ainda não existem estudos quantitativos e qualitativos suficientes para
demonstrar o quão importante são as populações tradicionais para a
conservação das riquezas naturais através do manejo que realizam (Idem,
ibid., p. 06). Muitas vezes ―as florestas culturais, seus ecossistemas e as
alternativas de manejo sem desmatamento que segmentos culturalmente
diferenciados mantém e re-inventam perdem diante das pressões econômicas
[...]‖ capitalistas, como com a eliminação de florestas para implantação de
monoculturas voltadas ao agronegócio (Idem, ibid., p. 07), ou mesmo com a
implantação de áreas protegidas altamente restritivas e que visam benefícios
às populações urbano-industriais. Enfatizando-se a defesa do uso sustentável
das florestas por populações tradicionais, encontramos na obra de Bensusan
(2006) a seguinte argumentação:
Privando áreas do tradicional uso humano, há o risco de excluir
alguns aspectos importantes para a preservação dos processos
geradores e mantenedores da biodiversidade, como o conhecimento
humano sobre a utilização das espécies e as experiências de uso da
terra; a perturbação antrópica dos ecossistemas é muitas vezes
essencial para a geração e manutenção da biodiversidade; e o
processo histórico, muitas vezes responsável pelas características
atuais das paisagens, se perderia e consequentemente as paisagens
se descaracterizariam (WOOD, 1994, apud BENSUSAN, 2006, p. 25).
Nesse sentido, ―algumas alternativas de uso vêm sendo identificadas
como possíveis e vantajosas para a conservação [das riquezas naturais] e
proteção dos conhecimentos dessas comunidades‖, como o manejo da terra
por sistemas agroflorestais30 (FURLAN, 2006, p. 07). Reconhecido o valor do
uso e manejo das florestas alocadas em unidades de conservação por essas
30
Ver sub-capítulo 5.2, no que se refere a sistemas agroflorestais
83
populações tradicionais, assim como seu potencial de contribuição à
biodiversidade, não faz sentido privá-las de suas formas de vida, de sua ordem
moral e cultura, tornando-se um contra-senso a conservação em áreas
especialmente protegidas. Compreender, respeitar e adotar o conhecimento e
as tradições de vida desses povos como forma de mudar os valores capitalistas
perante a natureza é tarefa indispensável para auxiliar num desfecho onde haja
uma verdadeira transformação da sociedade e uma via eficiente para a
conservação cultural e natural do planeta.
4.3. Uma estratégia à conservação das riquezas naturais e culturais
A questão das áreas criadas para a conservação da natureza levantou
problemas mais amplos que culminaram na necessidade de criar novos
modelos de proteção viáveis nos países como o Brasil, que apresenta rica
diversidade de recursos naturais e grandes desigualdades sociais. Apesar de
se tratar de uma problemática global, como colocado acima no texto as
possíveis soluções para frear a degradação ambiental devem partir do
entendimento da relação que um determinado povo tem com a natureza e de
como se dá a compreensão da necessidade de conservação por essas
pessoas.
Segundo Diegues (2000) a implantação de áreas protegidas em alguns
países resultou em transferência de recursos dos mais pobres para os mais
ricos. Além desse fato, essas áreas serão sempre insuficientes para conservar
a biodiversidade do planeta, pois os processos que geram e mantêm essa
diversidade ocorrem numa escala que transcende os limites territoriais
destinados a elas (BENSUSAN, 2006, p. 130). Entretanto, hoje a criação
desses espaços ainda é importante para a conservação das riquezas naturais,
mas desde que se estabeleça um caminho do meio que concilie a conservação
ambiental com atividades sustentáveis, sobretudo as agriculturas praticadas
pelos camponeses tradicionais e as com enfoque agroecológico, mirando
sempre maneiras de transformar a sociedade que está imersa no capitalismo.
84
Santilli (2009) sugere a criação de ―reservas da agrobiodiversidade31‖
como forma de atrair mais recursos públicos para a pesquisa e para a
conservação, gerar outras fontes de renda e melhorar as condições de vida dos
agricultores tradicionais, agroecológicos e locais que produzem de maneira
sustentável e que se beneficiariam com essa idéia. Para ela, o componente da
biodiversidade cultivado por esses agricultores tem sido, como vimos,
negligenciado pelas políticas públicas de conservação e a criação de
instrumentos voltados especialmente para a sua conservação, além de
complementar os já existentes, destacaria a sua importância ao meio ambiente
e estimularia a produção de mais conhecimentos sobre os processos biológicos
e socioculturais que geram a agrobiodiversidade (SANTILLI, 2009, p. 405).
No que tange às normas destinadas a regular essas reservas da
agrobiodiversidade, elas poderiam restringir as atividades que podem impactar
negativamente a biodiversidade agrícola, como limitar o uso de agrotóxicos e
de outros poluentes químicos, proteger e resgatar os mananciais hídricos e
estabelecer normas eficientes a fim de evitar possíveis contaminações por
cultivos transgênicos. Não é necessario que essas áreas sejam
especificamente de domínio público como a maioria das áreas especialmente
protegidas, pois seria uma incoerência desapropriar as terras de agricultores
incluídas em seus limites como ocorre em unidades de proteção integral. A
criação de reservas da agrobiodiversidade deve ser feita de forma participativa,
por meio de acordos e planejamentos elaborados com os agricultores. Quando
os agricultores não possuírem o título mas a posse da terra, a criação das
reservas da agrobiodiversidade pode ser uma forma de regularizar a situação
fundiária de sua propriedade, a fim de ter acesso aos benefícios criados por
políticas públicas e órgãos financeiros, de forma que concilie conservação,
desenvolvimento local e participação social (Idem, ibid., p. 401-403).
Dentre as dificuldades em estabelecer uma reserva de uso sustentável
nessa esfera, o principal argumento contra sua criação tem sido o fato de que
os sistemas agrícolas tradicionais e locais estão espalhados em muitas áreas
por todo país e com isso seria muito difícil definir quais locais seriam
31
Ver sub-capítulo 2.2, no que se refere ao conceito de agrobiodiversidade.
85
transformados em reservas (Idem, ibid., p. 405). Ao menos poderiam ser
planejadas com metodologias participativas, estabelecidas e colocadas em
prática algumas reservas da agrobiodiversidade com caráter experimental, e
após uma esta fase piloto, elas seriam avaliadas e adequadas localmente com
novas estratégias para sua implantação e ampliação pelo país.
Contudo, a criação de reservas da agrobiodiversidade por si só não será
suficiente para minimizar os impactos de um modelo agrícola industrial e
insustentável, principalmente se tais reservas forem apenas ―ilhas‖ (como são
grande parte das áreas protegidas existentes) cercadas por atividades agro-
industriais baseadas na monocultura em latifúndios. Entretanto, essas reservas
poderão representar mais um instrumento a ser utilizado pelas políticas de
conservação (Idem, ibid., p. 406). Segundo o Art. 5º, inciso III, o SNUC tem
como diretriz assegurar a participação efetiva das populações locais na
criação, implantação e gestão das unidades de conservação. Fica garantida a
obrigação do poder público em fornecer informações adequadas e inteligíveis à
população, porém não é definida de que forma ocorrerá essa participação
(BENSUSAN, 2006). No entanto, o que se encontra predominantemente são
metodologias de implantação prontas em manuais, aplicadas de cima para
baixo por técnicos burocráticos (DIEGUES, 2000, p. 189). A tabela 07 elucida
as diferenças desse método em relação a uma metodologia realmente
participativa e democrática que valoriza o saber local em cada realidade
específica, e que deve ser uma premissa no caso da implantação de uma
reserva da agrobiodiversidade.
Tabela 07: Comparação de metodologias para implantação de áreas protegidas
Ações de implantação Metodologia não-participativa Metodologia participativa
Método Padronizado, pacote científico Diverso, local, variado
Planejamento Estratégico fechado Estratégico participativo aberto
Ponto de partida Diversidade da natureza e seus valores potenciais.
Diversidade de culturas e da natureza.
Primeiros passos Coleta de dados e planejamento Tomada de consciência e planejamento
Forma de decisão Centralizada Descentralizada
Desenho do projeto Estático por especialistas Envolve a comunidade
Recursos principais Financeiros e técnicos Comunidade e recursos locais
Pressupostos analíticos Reducionista Sistêmico
Foco do manejo Usar orçamento nos prazos Melhorias gradativas
Comunicação Vertical, de cima para baixo Horizontal, aprendizado mútuo
Avaliação Externa, intermitente Interna, contínua
Erros Enterrados Assimilados
86
Relacionamento com comunidades Controlador, policialesco, criador de dependência
Educador, mediador, povo como ator
Associado com Profissionalismo técnico Profissionalismo técnico-educador
Resultados Diversidade na conservação e uniformidade da produção. Poder aos técnicos profissionais
Diversidade como princípio de produção e conservação. Poder às populações locais
Fonte: tabela adaptada pelo autor a partir da tabela presente em Diegues (2000, p. 190).
Faz-se necessário, assim como deveria fazer na criação de qualquer
área protegida, que as reservas da agrobiodiversidade tenham sustentabilidade
política e social, atendendo a objetivos mais amplos de envolvimento local
sustentável e valorização sócio-cultural, e não apenas de conservação
ambiental, prezando sempre pelo apoio e participação dos agricultores
camponeses (SANTILLI, 2009, p. 406).
4.4. Caminhos para um ―envolvimento sustentável‖
Como exposto, valores ocidentais, formados nas sociedades capitalistas
industrializadas, foram se propagando pelo mundo e muitos povos tradicionais
os adotaram como modelo de vida. Junto com ele chegou à promessa de uma
vida ―melhor‖. As pessoas foram seduzidas por essa possibilidade, e em
detrimento ao seu ―envolvimento‖ com o meio, passaram ao ―des-envolvimento‖
de suas comunidades, seja ele ambiental, cultural, econômico ou social
(DIEGUES; VIANA, 2004, grifo nosso). De acordo com o conceito trabalhado
por Viana (2004):
[...] desenvolver significa tirar o invólucro, descobrir o que estava
encoberto; envolver significa meter-se num invólucro, comprometer-
se. Dessa forma, poderíamos dizer que desenvolver uma pessoa ou
comunidade significa retirá-la do seu invólucro ou contexto ambiental;
descomprometê-la com o seu ambiente (In: DIEGUES; VIANA, 2004,
p. 25).
Portanto, des-envolver para essas populações significou perder o
―envolvimento econômico, cultural, social e ecológico com os ecossistemas e
seus recursos naturais‖ (DIEGUES; VIANA, 2004, p. 25). Perde-se também o
saber e com ele o conhecimento dos sistemas tradicionais de manejo da terra
87
que conservam os ecossistemas naturais de forma mais efetiva do que os
sistemas agrícolas modernos tidos hoje como ―convencionais‖ (Idem, ibid., p.
25, grifo nosso). Porto Gonçalves ([19--?], p. 09) em ―As Minas e os Gerais‖
traz sua percepção sobre esse processo ocorrido com populações camponesas
da região norte de Minas Gerais:
[...] a região que tinha seu próprio envolvimento foi des-envolvida. A
sociedade local/regional que, à sua moda, com suas próprias
contradições, determinava o que ia ser feito dos seus, mesmo que
desigualmente repartidos, recursos naturais assim como de outras
riquezas, vê des-locado, ou seja, vê tirado (dos do) do local, (dos da)
da região, o poder de determinar os seus destinos.
Ocorre assim, a perda do envolvimento das comunidades tradicionais
com o meio natural, e acentua-se a pouca noção que possuem com relação à
conservação da diversidade biológica e cultural e sua importância para
manutenção destas. Por esse lado, tem-se que levar em conta que por elas
serem parte intrínseca ao ecossistema em que vivem, esse tipo de
compreensão fica um pouco confusa a essas populações, pois para elas a
conservação desta diversidade está no dia a dia. Por outro lado:
Junto com esse processo [de des-envolvimento] temos a
desqualificação cultural do homem local/regional. Seu tempo, seu
ritmo é considerado lento, numa nova versão das velhas ideologias
colonialistas de que são indolentes e preguiçosos. Seu conhecimento
é ignorância. Ou, como a própria palavra sugere, des-envolvimento
vem de fora (PORTO GONÇALVES, [19--?], p. 11).
As novas práticas de vida desenvolvidas por essas comunidades, devido
ao contato com novas tecnologias do modo de vida capitalista, fazem com que
haja a necessidade de compreenderem o valor de sua (re)integração ao meio,
de conservação da natureza e como suas ações interferem na biodiversidade,
assim como o seu conhecimento pode contribuir em uma transformação das
mentalidades que são tutoradas pela economia de mercado para uma outra
88
forma de pensar e agir em sociedade. Entretanto:
Não se compreenderá essa transição, com transformações tão
radicais na organização sócio-espacial [...], se ficarmos prisioneiros
de uma lógica econômica. Não resta a menor dúvida que uma das
marcas dessa transformação foi uma dissociação mais radical entre o
homem e natureza [...] (PORTO GONÇALVES, [19--?], p. 10).
Faz-se necessário rever o paradigma de ―desenvolvimento sustentável‖
e passar ao de ―envolvimento sustentável‖ como coloca Viana (2004), para
fortalecer o envolvimento das relações das sociedades com os ecossistemas
locais para a transformação da realidade e buscar a participação ativa das
populações tradicionais com os diferentes ecossistemas, revertendo assim o
distanciamento das pessoas entre si e em relação à natureza, proporcionando
respectivamente um modo de vida mais solidário e equilibrado em uma outra
organização de sociedade. Segundo esse autor ―primeiro as ações voltadas
para a transformação da realidade devem fortalecer o envolvimento das
relações das sociedades com os ecossistemas locais‖, e assim buscar um uso
sustentável do meio; ―segundo, os processos de tomada de decisão devem
buscar a participação ativa das populações relacionadas com os diferentes
ecossistemas [...]‖, a fim de envolver todos na questão em debate (DIEGUES;
VIANA, 2004. p. 26).
Nesse contexto, é excepcional a compreensão da natureza pelas
pessoas como sendo parte desta. O envolvimento sustentável busca a
reversão desse quadro através do fortalecimento dos ―vínculos econômicos,
sociais, espirituais, culturais e ecológicos‖ (Idem, ibid., p. 26). Como vimos, a
relação dos povos tradicionais com o meio natural é, em grande medida de
integração e por isso essas populações vivem em maior equilíbrio com a
natureza. Há o envolvimento sociocultural entre as comunidades que habitam o
meio natural e os recursos necessários para sua vida de maneira mais
sustentável. Expressa de maneira elucidativa Élisée Reclus (2010, p. 13):
O homem é a natureza adquirindo consciência de si mesma.
89
A proteção do meio natural, idealizado como selvagem e desabitada,
assentou-se sobre o princípio da dicotomia homem-natureza. Em geral, se
resiste à idéia de que a alta biodiversidade ou o bom estado de conservação de
muitas áreas está relacionado à presença de populações tradicionais e/ou de
famílias camponesas que utilizam práticas sustentáveis de produção, sendo
estas, geralmente expulsas ou marginalizadas dentro da nova territorialidade
que lhes é imposta. Uma eficaz estratégia de conservação da natureza deve ter
em conta que tão importante quanto à diversidade da vida é a diversidade
sociocultural (SILVA, 2008, p. 162-163). Entretanto, como assinala Porto
Gonçalves (2005), é comum citar outras sociedades como modelos de relação
entre homem e natureza, onde se distingue essa relação da existente nas
sociedades que são regidas pelo pensamento moderno dominante, o que pode
acarretar, segundo ele, em dois sentidos de entendimento:
[...] [Por um lado] há uma virtude nesse procedimento: ele oferece um
consolo, enquanto ―idéia‖, para o mundo em que vivemos – que
concretamente não tem consolo. Isto não deixa de ser, à sua moda,
uma crítica à sociedade que não é tal e qual os modelos citados, [no
caso, as comunidades tradicionais,] daí as utopias. Nesse sentido, as
utopias têm um lugar concreto num mundo onde não existem
concretamente, sendo por isso sonhadas e projetadas enquanto
utopias. Por outro lado, esse procedimento não deixa de ser também
uma fuga dos problemas concretos, muitas vezes derivada de uma
incompreensão das razões pelas quais em nossa sociedade e cultura
as coisas são do jeito que são (PORTO GONÇALVES, 2005, p. 23,
grifo do autor).
Portanto, as comunidades tradicionais camponesas não devem ser
consideradas como ―um ideal a ser seguido‖, nem como as únicas atoras da
conservação e base única para uma transformação social. Salientamos que ao
presente trabalho, a contribuição dessas populações para uma outra realidade,
reside, sobretudo, na compreensão de mundo que elas possuem e que é
baseada numa ordem moral onde se preza pela solidariedade e integração ao
meio. ―O que podemos dizer é que as comunidades tradicionais podem ser
90
aliadas natas nesse exercício, o que também implica em ―afastar a visão
romântica‖ pela qual as comunidades tradicionais são vistas como
conservacionistas natas‖ (DIEGUES, 2000, p. 41). Essas comunidades são
formadas por pessoas, e como todas as outras elas possuem suas qualidades
e contradições, além de terem interesses heterogêneos que muitas vezes
podem ser conflitantes entre si (Idem, ibid.).
A natureza não pode mais ser entendida de forma dissociada das
sociedades humanas, pois ao mesmo tempo em que estas estão situadas na
natureza que transformam, dependem dela para sobreviver. Nessa perspectiva,
colocar a natureza dentro de áreas para protegê-la das pessoas não parece ser
a melhor estratégia para o estabelecimento de uma relação mais equilibrada
entre a sociedade e o meio ambiente (DIEGUES, 2000). É necessário pensar
formas de uso sustentável desses espaços, sem necessariamente que eles
deixem de existir hoje, mas no momento em que uma outra sociedade se
entenda como parte da natureza e crie uma relação de pertencimento ao
mundo natural, elas serão suprimidas integralmente. Ao invés de serem
expulsas de seu lar ou reassentadas em outros locais, essas populações
tradicionais devem ser valorizadas e recompensadas pelo seu conhecimento e
manejo, que deram origem a um gradiente de paisagens que incluem florestas
como a Mata Atlântica e o alto grau de recursos naturais existentes nesses
biomas (Idem, ibid.). Assim:
Se um novo enfoque para a conservação da natureza não for
construído e implantado, podemos assistir à destruição impiedosa de
nossos ecossistemas tropicais e também da grande diversidade
cultural dos povos e comunidades que nelas habitam (DIEGUES,
2000, p. 41).
Como uma alternativa possível, o enfoque orientado pela
etnoconservação32 dado para a conservação da natureza envolve as pessoas
novamente como parte da biodiversidade e como estimuladora desta, ou seja,
o humano como parte da natureza, entendido a partir do todo e para entender
32
Lévi-Strauss foi um dos antropólogos que iniciou os estudos na área de etnociência na década de 1960
(DIEGUES, 2000, p. 28).
91
essa totalidade (Idem, ibid.). Assim, pode-se falar numa ―etnobiodiversidade‖, o
que corresponde ―a riqueza da natureza da qual participam os humanos,
nomeando-a, classificando-a, domesticando-a, mas de nenhuma maneira
nomeando-a como selvagem e intocada‖ (Idem, ibid., p. 31). Ela configura-se
como um componente intangível da biodiversidade que envolve
conhecimentos, inovações e práticas de comunidades tradicionais relevantes
para a conservação das riquezas naturais. Através dela, conclui-se que a
biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural e do cultural, mas é a
cultura como conhecimento que permite que as populações tradicionais
possam entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la e,
frequentemente, enriquecê-la (Idem, ibid.). A alta biodiversidade decorrente do
manejo tradicional realizado por populações locais pode e deve ser levado em
conta para a conservação da natureza e à manutenção de áreas protegidas
estabelecidas.
O resgate, valorização e a democratização dos saberes existentes é um
pré-requisito fundamental para a liberação humana, tendo em vista que o
sistema de saber contemporâneo exclui o humano por sua própria estrutura
(SHIVA, 2003, p. 81). Um processo desse tipo permitiria a legitimação do saber
local e diversificado, visto como um saber indispensável onde a concretude é a
realidade e a globalização e a universalização são abstrações que muitas
vezes não povoam o imaginário dos agricultores, violando o que há de concreto
e consequentemente sua realidade. Essa passagem do saber global para o
local é importante porque o torna mais autônomo e autêntico, liberando o saber
tradicional da dependência das formas pré-estabelecidas do conhecimento
dominante incapaz de promover a sustentabilidade indispensável à
sobrevivência dos seres vivos em todo planeta (Idem, ibid.). Portanto:
Os excluídos dos benefícios materiais simbólicos da ―modernização‖,
cada vez mais numerosos, podem e devem inventar soluções novas
para sobreviver como espécie e como humanidade. Esses projetos
diferentes se encontram, na prática, na improvisação e no biscate.
Eles podem gerar monstros ou ser recuperados pela máquina, mas
alentam também a esperança de que a paralisação da máquina não
92
será o fim do mundo e sim a aurora de uma nova busca da
humanidade plural (LATOUCHE, 1994, p.14, grifo do autor).
Estamos em busca de alguns pontos que possam demonstrar a
possibilidade de conservação das riquezas naturais e culturais num contexto
em que seja possível conciliar práticas agrícolas tradicionais e agroecológicas,
tendo como premissa as pessoas como uma das partes integrantes dos
ecossistemas, não isoladas, mas compondo um sistema que contenha suas
particularidades individuais consideradas de forma dinâmica, integrada e
sustentável, e que com isso possa haver caminhos alternativos para uma nova
relação em sociedade e com a natureza, distinguindo-se do atual modelo
dominante da ―máquina‖ capitalista.
93
5. Agroecologia e saber tradicional na prática________________________
5.1. Contexto local e socioambiental de referência
Como forma de exemplificar a discussão apresentada nos capítulos
anteriores, faremos uma abordagem sobre uma experiência prática, construída
a partir dos conceitos e princípios da agroecologia, em um sistema produtivo
agrícola comunitário, que agrega algumas famílias de migrantes, em sua
maioria compostas por ex-camponeses que utilizavam práticas tradicionais de
cultivo em seu lugar de origem, implantado em uma área de um bairro
periurbano33 localizado no interior de uma Área de Proteção Ambiental (APA)34,
como sendo parte constituinte das propostas elaboradas e executadas por um
projeto que fomenta, dentre outras ações, a agricultura urbana e periurbana35
no município de Embu das Artes no estado de São Paulo.
De forma a entender as características socioambientais que configuram
o contexto da experiência agroecológica a ser discutida, e co-relacionar seu
potencial aos desafios existentes localmente, faremos um breve relato sobre
alguns desses aspectos, ambientais e sociais, construídos no tempo e no
espaço, presentes no município onde a atividade é realizada, ressaltando
aqueles que consideramos mais pertinentes por sua ligação com a agricultura.
O município de Embu das Artes faz parte da Reserva da Biosfera36 do
cinturão verde da cidade de São Paulo, está inserido no bioma da Floresta
33
Apesar de haver uma imprecisão no conceito de periurbano, geralmente ele é definido como uma zona
distinta da cidade, que diferencia a paisagem das áreas de desenvolvimento urbano e dos espaços
campestres da periferia, de baixa densidade e uso múltiplo do solo. Apesar da aparência de área rural,
o periurbano é fortemente ligado funcionalmente às áreas urbanas das cidades (PONTES, 2005, p. 07,
apud GONÇALVES, 2010, p. 95). 34
Ver sub-capítulo 4.2, no que se refere à Área de Proteção Ambiental. 35
A agricultura urbana e periurbana é um conceito multidimensional que inclui a produção, a
transformação, a comercialização e a prestação de serviços, de forma segura, para gerar produtos
agrícolas (hortaliças, frutas, plantas medicinais, ornamentais, cultivados ou advindos do agro-
extrativismo, etc.) e pecuários (animais de pequeno porte) voltados ao auto-consumo ou
comercialização, (re)aproveitando-se, de forma eficiente e sustentável, os recursos e insumos locais
existentes no meio urbano (solo, água, resíduos, mão-de-obra, saberes etc.) (BRASIL, 2007, p. 06). 36
Reserva da Biosfera é uma coleção representativa dos ecossistemas característicos da região onde se
estabelece, buscando otimizar a convivência homem-natureza em projetos que se norteiam pela
conservação dos ambientes significativos, pela convivência com áreas que lhe são vizinhas, e pelo uso
sustentável de seus recursos (EMBU DAS ARTES, 2008, p. 08).
94
Atlântica, e possui 59% de seu território em área de proteção aos mananciais37
(EMBU DAS ARTES, 2008, p. 07), concentrando importantes áreas de
vegetação remanescente em toda região. A cidade está localizada no leste do
estado e a sudoeste da capital paulista (figura 03), em uma região de relevo
acidentado formada por morros e colinas, com algumas planícies fluviais que
acompanham os cursos da rede hídrica, composta pelas bacias hidrográficas38
dos rios Cotia, Embu Mirim e Pirajuçara. De acordo com a classificação de
Köppen39, o clima da região é caracterizado como temperado, chuvoso e
moderadamente quente, com temperaturas médias que variam acima de 18°C
no período mais frio e acima de 22°C no período mais quente, apresentando
alta pluviosidade no verão, com predomínio de ventos leste e sul (Idem, ibid.).
Figura 03: Localização do município de Embu das Artes e suas bacias hidrográficas.
Fonte: Figura adaptada pelo autor a partir das figuras presentes em Embu das Artes (2008, p. 50) e em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:SaoPaulo_Municip_Embu.svg (acessado em 06/11/2011).
37
Manancial é qualquer corpo d’água, superficial ou subterrâneo, utilizado como fonte para
abastecimento humano, animal ou irrigação, podendo ser, por exemplo, proveniente de um rio, lago,
nascente, poço, represa, lençol freático ou aquífero (Idem, ibid., p. 07). 38
Bacia hidrográfica é a área total de drenagem relacionada ao relevo que alimenta uma determinada rede
hídrica, constituindo um espaço geográfico de sustentação dos fluxos d’água de um sistema fluvial
hierarquizado (SÃO PAULO, 1997, p. 21). 39
A classificação climática corresponde à divisão dos tipos de climas regionais segundo um conjunto de
critérios. Köppen dá ênfase em valores térmicos e ecológicos para classificar o clima de uma região
(Idem, ibid. p. 40).
95
O uso e ocupação do solo em Embu das Artes refletem características
de seu processo histórico de formação atrelada à exploração econômica e
produção agrícola pouco rentável, ligadas ao desenvolvimento da capital
paulista. Assim como ocorreu com outras localidades do estado, o município
não participou da implantação de cultivos agrícolas como a cana-de-açúcar e o
café, culturas rentáveis que marcaram a economia paulista durante o século
XIX até meados do XX, sobretudo devido às características do relevo, clima e
solos, requeridas para esses cultivos (Embu das Artes, 2008). Não se deve
descartar também que, para a implantação e produção dessas culturas
agrícolas, o fator econômico e político de uma determinada região são tão ou
mais influentes em favor das tomadas de decisão quanto o meio natural.
No contexto atual o município apresenta um zoneamento de uso do solo
totalmente urbano, onde prevalecem fatores socioeconômicos sobre seu
desenvolvimento (Idem, ibid.). Ainda que sob pressão da expansão urbana
desenfreada, sobretudo na região leste onde há o limite com o município de
São Paulo, e desenvolvimento econômico pautado pela industrialização, no uso
do solo do município verifica-se que áreas conservadas de vegetação se
mantêm na cidade e a produção agrícola resiste timidamente. Devemos
considerar que por não haver um zoneamento rural, os agricultores
remanescentes têm dificuldades em se regularizar para ter acesso a programas
de crédito e políticas agrícolas que fomentam a agricultura no país, pois elas
exigem dos produtores documentos específicos que estão atrelados ao
zoneamento rural, como a compra direta de alimentos da agricultura familiar
pelos órgãos governamentais.
No início de sua história, o vilarejo que hoje é o município de Embu das
Artes, se caracterizou com uma atividade agrícola constituída por pequenos
produtores rurais, fabricantes de aguardente e um incipiente comércio. Uma
característica marcante no período compreendido entre o fim do século XIX e
meados do XX refere-se ao uso de carros de boi utilizados para o transporte de
mercadorias entre São Paulo e o distrito de Embu (Idem, ibid.), forma
tradicional de transporte usada por populações camponesas. Ainda hoje, há
relatos de moradores antigos que dizem ter utilizado os carros de boi como
96
transporte para ir de seu bairro à escola. Nos anos de 1930, por meio do
Instituto Prático Agrícola, integrantes da colônia japonesa ali instalada,
passaram a dar suporte aos agricultores locais, fortalecendo o cunho agrícola
da região (EMBU DAS ARTES, 2008, p. 11). Esses aspectos mostram que
Embu das Artes teve em sua gênese, como tantas outras cidades brasileiras, a
agricultura como parte fundamental de sua história, e até os dias atuais
mantém de alguma maneira sua propensão agrícola, como por meio do cultivo
de alimentos incentivado pelo projeto de agricultura urbana e periurbana.
Portanto:
[...] o potencial para o aumento desta participação é significativo, se
forem levados em consideração o passado agrícola da região e
principalmente o aproveitamento das áreas verdes e periurbanas do
município com o uso para as atividades agrícolas. Pensando ainda
que estas atividades sejam realizadas a partir dos princípios
agroecológicos, elas garantiriam um tipo de atividade adequado ao
potencial socioambiental da região (GONÇALVES, 2010, p. 99).
De acordo com dados do Atlas Socioambiental de Embu das Artes
(2008, p. 26), a agricultura no município é hoje distribuída em menos de 1% de
seu território e corresponde a cerca de 10% da soma dos valores de todos
seus bens produzidos anualmente (Produto Interno Bruto – PIB). As atividades
agropecuárias mais expressivas estão no setor hortifrutigranjeiro e floricultor,
sendo realizadas em cerca de dezenove pequenos estabelecimentos,
possuindo como maiores expoentes a criação de aves, fruticultura em lavouras
permanentes, cultivo de hortaliças, flores e plantas ornamentais (Idem, ibid.).
Contudo, todos esses dados levam em consideração apenas as
produções comerciais levantadas a partir de dados econômicos oficiais do
município. Porém, é sabido que existe uma elevada produção de alimentos
para auto-consumo da população que não estão registradas numericamente,
mas que ocorrem com alta frequência, conforme diagnosticado por visitas
domiciliares realizadas no início do projeto de agricultura urbana e periurbana.
É evidente que não se visitou todas as residências do município, mas por
97
experiências de campo, foi possível visualizar muitas formas de cultivo nos
domicílios, desde plantio em vasos até terrenos com grande diversidade de
culturas.
Este fato característico está relacionado, em grande medida, a uma
população que migrou com sua cultura de origem rural e não perdeu seus
costumes e valores adquiridos no campo, importantes para manutenção de
suas vidas constituídas, agora, em outra realidade, no meio urbano. Como
vimos, essa migração cultural, é um componente de resistência no novo lugar,
de forma que essa população possa se reproduzir de acordo com suas
necessidades sem perder suas raízes, e assim, façam frente à uma realidade
que preza pelo consumismo predatório e o individualismo competitivo, adversa
aos seus princípios de relação equilibrada com o meio e de maior equidade
entre as pessoas.
Desde seu início, a formação da população no município é
essencialmente originária de processos migratórios, sendo constituída por
pessoas advindas das mais diversas regiões do Brasil e uma pequena parte do
exterior. Também houve um processo de miscigenação entre as populações
tradicionais locais e imigrantes europeus que se integraram a população local,
o que resultou nos arredores da capital paulista o chamado ―cinturão caipira‖,
caracterizado pela produção de subsistência agrícola extrativista.
Com o crescimento da capital paulista, esses denominados cinturões
caipiras passaram cada vez mais a se organizar em torno da cidade.
Isso se deu através da agricultura de subsistência, que passou a
adquirir um caráter comercial baseado em atividades de cunho rural
(extrativismo, agricultura, agroindústria) visando o abastecimento da
crescente metrópole. Destaca-se nesse contexto a produção de
arroz, feijão, avicultura, lenha, além de algumas fábricas de velas que
abasteciam as principais igrejas da capital paulista (EMBU DAS
ARTES, 2008, p. 11).
Durante o último quarto do século XIX o ―cinturão caipira‖ começa a ser
reordenado sob o comando da capital paulista, ―[...] observando-se o
estreitamento e a diversificação dos vínculos entre as partes e forte valorização
98
da área‖ (MARQUES, 2006, p. 136, in: CARLOS; OLIVEIRA, 2006). Atividades
econômicas que visavam o mercado da capital passaram a se instalar ou a
ampliar suas ações na região, o que, no entanto, ―[...] não impediu a
permanência da agricultura caipira em muitos lugares‖ (Idem, ibid.; in: idem,
ibid.). De acordo com Oliveira (2004, p. 140, in: CARLOS; OLIVEIRA, 2004),
em meados do século passado a agricultura caipira constituiu a principal forma
de uso do solo na região sudoeste da capital paulista, onde os caipiras de São
Paulo realizavam suas atividades. Segundo esse autor, essa região
caracterizou-se como ―[...] um dos bolsões de resistência dos caipiras de São
Paulo‖, e até a atualidade ainda é ―[...] lugar por excelência da prática da
agricultura caipira‖ (Idem, ibid., p. 145, in: idem, ibid.).
Desse modo, essa formação regional e populacional contribui para a
constituição de uma herança cultural rica e diversa, sobretudo no que tange as
populações que vieram de regiões historicamente marcadas pela reprodução
de vida pautada pela agricultura, importante para a discussão da migração
cultural40 no contexto do projeto de agricultura urbana e periurbana. É preciso
salientar que apesar dessa riqueza humana, grande parte da população no
município é de baixa renda, apresentando índices de desenvolvimento humano
abaixo da média estadual. A figura 04 apresenta um gráfico da população
migrante no município, onde se percebe um contingente migratório diverso,
porém com distribuição irregular segundo seu local de origem. A partir das
regiões brasileiras, verifica-se que a população migrante residente no município
com origens na Região Sudeste possui principalmente pessoas vindas do
estado de São Paulo e Minas Gerais; na Região Nordeste, da Bahia; na Região
Sul, do Paraná; nas Regiões Norte e Centro-Oeste, do Pará e Goiás (EMBU
DAS ARTES, 2008).
40
Ver sub-capítulo 3.4, no que se refere à migração cultural.
99
Figura 04: População migrante residente no município segundo seu local de origem.
Fonte: IBGE apud Embu das Artes (2008, p. 13) adaptado pelo autor.
De volta ao contexto ligado diretamente ao meio natural do município,
um fato relevante foi a criação de uma Área de Proteção Ambiental (APA) na
porção oeste do município, região da bacia hidrográfica do Rio Cotia. Esta área
especialmente protegida foi denominada APA Embu-Verde41, sendo elaborada
com o intuito de garantir legalmente a conservação do patrimônio natural local
e usufruir de seus recursos e potenciais de maneira sustentável, já que o
município eliminou 97% de suas florestas primárias ao longo de sua história
(SOS MATA ATLÂNTICA, 2002, apud, idem, ibid., p. 81). A área da APA, que
pode ser vista na figura 05, abrange 15,7 km² do território municipal, quase que
toda área de 16,7 km² compreendida pela bacia do Baixo Cotia no município.
Esta área foi escolhida devido à relevância do local por abrigar a maior
parte da vegetação conservada com elevado grau de regeneração em
capoeiras e remanescentes da Floresta Atlântica do município. Teoricamente,
além de poder fortalecer a garantia de áreas verdes na região, os mecanismos
de uso sustentável dos recursos na APA podem contribuir também para manter
e produzir água de boa qualidade por se tratar de uma área com alta densidade
de drenagem, favorecer a regulagem do clima com a permanência da
41
Projeto de Lei Complementar nº 06/2008, que cria a Unidade de Conservação Municipal de Uso
Sustentável – Área de Proteção Ambiental – APA Embu-Verde. Regulamentada pelo Decreto
Municipal nº 108, de 11/12/2008, com a Lei Complementar 86/09 (EMBU DAS ARTES, 2008, p. 61).
100
vegetação, e manter a biodiversidade local. Com isso, ela pode auxiliar como
mecanismo atualmente existente, na ordenação do crescimento da cidade de
forma que haja um planejamento diferenciado para o uso e ocupação do solo
em seu interior, gerenciado por um conselho gestor formado por integrantes da
sociedade civil e do poder público (EMBU DAS ARTES, 2008, p. 62).
Figura 05: Mapa de localização e área da APA Embu-Verde
Fonte: Figura adaptada pelo autor a partir da figura presente em
http://www.embu.sp.gov.br/e-gov/secretaria/meio_ambiente/?ver=376 (acessado em 06/11/2011).
Hoje, o uso do solo na bacia do Rio Cotia tem a configuração
apresentada abaixo na figura 06, área que praticamente corresponde a da APA.
Pela imagem, é possível observar que as áreas urbanizadas e construídas são
ainda diminutas e há uma grande porção de vegetação conservada. Existem
muitas chácaras residenciais que não estão ligadas a atividades agropecuárias
como consta na figura. Essas atividades existem, mas em menor escala. Há
uma pressão muito grande referente à procura por terrenos nessa região
devido a uma especulação imobiliária impulsionada pela inauguração do trecho
sul do Rodoanel de São Paulo e sua relativa proximidade com essa rodovia
expressa. Os especuladores requerem essas áreas para construção de
101
condomínios residenciais destinados a classes sociais economicamente mais
favorecidas, geralmente para pessoas advindas de outras regiões que querem
ficar próximas da ―natureza‖ e assim ter melhor qualidade de vida. Além de
suprimir as áreas verdes existentes pelo adensamento urbano, essas
construções imobiliárias geralmente submetem a população local às suas
regras e formas de trabalho, tirando sua autonomia sobre a forma de se
relacionar entre elas e com o lugar.
Figura 06: Uso do solo na área da bacia hidrográfica do Rio Cotia compreendida pelo município
Fonte: Figura adaptada pelo autor a parti da figura existente em Embu das Artes (2008, p. 61).
Nota: A área circulada corresponde à região aproximada do bairro de Itatuba.
A figura 06 retrata o potencial para a conservação da vegetação, mas
também pode ser palco de práticas agrícolas sustentáveis com enfoque
agroecológico que, além de conservar a diversidade biológica e sociocultural,
fornecem meios de existência à população, compatíveis com os objetivos da
APA Embu-Verde. E mais, seria importante e benéfico vincular a APA aos
conceitos e princípios de uma reserva da agrobiodiversidade, que, como vimos
102
no capítulo dois, utiliza-se de fundamentos e metodologias semelhantes ao da
agroecologia, porém voltados para a conservação da diversidade biológica e
cultural em um dado ecossistema que está associado a um agroecossistema
de base sustentável. Pode ser um passo alternativo para transpor as barreiras
construídas pela indefinição entre os que pregam o des-envolvimento e os que
querem o preservacionismo. Nesse sentido:
A APA [Embu-Verde] é um instrumento legal que pode colaborar na
consolidação das atividades agrícolas nesta região. Neste aspecto, a
experiência estudada [...] se mostra condizente com as condições
socioambientais da região, já que trabalha com a agricultura urbana
[e periurbana] agroecológica, ou seja, com a produção de alimentos
feita em área urbana e periurbana e realizada a partir dos princípios
agroecológicos, estando em consonância com as características de
uma APA [...] (GONÇALVES, 2010, p. 107).
A APA está situada nas proximidades da Reserva Estadual do Morro
Grande42, importante reduto da vegetação e de águas que abastecem parte da
população da região metropolitana de São Paulo, localizada no vizinho
município de Cotia (EMBU DAS ARTES, p. 59). Um elo importante e efetivo
que pode haver pelo encontro dessas duas unidades de conservação é a
conseqüente e benéfica criação de um extenso corredor ecológico43 formando
um mosaico ambiental44 pela abrangência total dessas áreas, favorecendo a
manutenção dos poucos remanescentes das florestas primárias e conservando
as florestas secundárias. Por elas serem especialmente protegidas, salienta-se
a necessidade de atividades de baixo impacto ambiental, condizentes com o
uso sustentável dos recursos no ecossistema. Nos arredores, a área que
circunscreve esses espaços também requer cuidados especiais. Essa região é
42
A Reserva Estadual do Morro Grande foi instituída pela Lei Estadual nº 1.949, de 04/04/1979, como
área especialmente protegida de preservação permanente com destinação específica de preservação da
flora e fauna e proteção aos mananciais (SÃO PAULO, 2006, p. 465). 43
Corredor ecológico configura-se como qualquer ligação que permite o movimento do conjunto de
plantas, animais e microorganismos de uma determinada região, província ou área biogeográfica entre
habitats mais extensos (SÃO PAULO, 1997, p. 60). 44
Mosaico ambiental constitui um ambiente heterogêneo no espaço, composto por manchas de habitat de
diferentes tamanhos, caracterizados por diferentes espécies, estrutura de vegetação ou de substrato,
assim como, por diferentes concentrações de recursos abióticos e bióticos (Idem, ibid., p. 170)
103
denominada zona de amortecimento, onde também se fazem necessárias
práticas sustentáveis para minimizar os impactos ambientas na transição entre
a área protegida e onde ela passa a sofrer maiores transformações pelas
ações antrópicas. Portanto, em ambos os casos, na borda e no interior das
áreas, as atividades humanas devem ser coerentes tanto na perspectiva
ambiental como a sociocultural e econômica. Assim, práticas de agricultura de
base sustentável com enfoque agroecológico nesse contexto se fazem
relevantes, pois podem conciliar a conservação e manutenção do ecossistema
a meios sustentáveis e participativos de reprodução da população que geram
renda e contribuem, ao mesmo tempo, para manter a diversidade biológica e
sociocultural nesse meio complexo.
Nessa configuração sócio-espacial se encontra a região compreendida
pelo bairro de Itatuba, área circunscrita, de forma aproximada, na figura 06.
Está localizada, portanto, na zona oeste do município de Embu das Artes, na
bacia hidrográfica do Rio Cotia e no interior da APA Embu-Verde, em meio a
todo esse contexto apresentado acima. Em amarelo, no interior do círculo,
encontra-se o núcleo urbano do bairro, local onde é realizada a prática
agroecológica que será foco de análise.
Itatuba é um dos bairros mais antigos da cidade, formado, segundo
relatos de moradores locais, a partir de um ponto de parada de viajantes que
iam a São Paulo pela estrada velha que liga Cotia a Embu das Artes. Com o
passar dos anos, o lugarejo foi se urbanizando, sobretudo após a instalação de
uma mineradora para extração de granito nos anos 1960, existente no local até
hoje. O bairro está na região de fronteira entre os municípios de Cotia e
Itapecerica da Serra, áreas historicamente caracterizadas por práticas
agropecuárias ligadas a produção familiar, que acabaram também por
influenciar na formação local (OLIVEIRA, 2004, in: CARLOS; OLIVEIRA, 2004).
Atualmente, apesar do aumento no adensamento urbano, Itatuba apresenta
menores índices de ocupação em relação às demais regiões do município,
conservando áreas de vegetação e práticas agrícolas produtivas e para auto-
consumo da família.
104
Foto 01: Vista panorâmica do núcleo urbano do bairro de Itatuba
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em 02/12/2008.
No que tange a infra-estrutura urbana, Itatuba é dotado de alguns
aparelhos públicos como escola, posto de saúde e base policial. O Centro de
Controle de Zoonoses também está instalado no bairro, com seus serviços
estendidos a toda população municipal. Programas sociais implantados no
município atendem famílias de baixa renda na comunidade, mas não dão conta
de abranger todos que necessitam. Segundo relatos de moradores, os serviços
públicos oferecidos não são de má qualidade, mas carecem de amplas
melhorias. O saneamento básico é praticamente inexistente, ficando por conta
de a população dar um destinamento adequado aos seus dejetos, o que
frequentemente não ocorre, sendo estes despejados nos cursos d’água ou em
fossas precárias. No núcleo urbano e em algumas áreas próximas dele, há o
abastecimento público de água, porém muitas vezes deficiente. Onde ele não
ocorre, são feitos geralmente poços para coleta desse recurso básico e
fundamental. Contudo, com a poluição das águas superficiais e subterrâneas
ocasionadas principalmente pelo despejo inadequado de esgoto, e a
diminuição das nascentes, sobretudo devido ao desmatamento, o acesso a
água de qualidade está cada vez mais difícil. Urge a necessidade de um
saneamento básico na região ou o uso de técnicas ecológicas já existentes e
eficientes para o tratamento do esgoto, assim como ações diretas para
105
despoluição dos cursos d’água e recuperação de nascentes. Há um comércio
básico que atende a população em alguns serviços, e existe a presença de
algumas empresas que possuem como empregados parte dos moradores do
bairro, como no caso da mineradora que exerce grande influência na dinâmica
socioeconômica local.
A partir do breve histórico apresentado e sua co-relação ao contexto
atual do bairro, e em geral, do município, evidencia-se a existência de amplos
desafios a serem superados, e utilizar-se dos potenciais locais é uma forma
muitas vezes eficiente para atingir objetivos de transformação socioambiental.
Manter, resgatar e ampliar práticas tradicionais do lugar promove resultados
mais efetivos, pois como vimos no capítulo três, o conhecimento tradicional é o
meio de identificação cultural, pode-se dizer que é a forma desenvolvida pela
própria população para cumprir a função social de ordenação e interação com
o meio em que vivem (HERCULANI, 2009). Assim, práticas tradicionais que
fizeram parte da construção do lugar estão presentes de maneira mais forte no
senso dos habitantes. Portanto, o resgate desses saberes tradicionais passa
pela tomada de consciência, onde haja uma identidade local e cultural de
saberes populares para que se possa construir um envolvimento sustentável
endógeno, no qual o controle do processo de decisão seja dos grupos sociais
locais para a transformação da realidade em que vivem (GUTERRES, 2006).
Com isso, as práticas agrícolas que fizeram, e fazem parte da história de
Itatuba e Embu das Artes, é um dos potenciais que estão nos traços da cultural
local, pois os valores culturais de uma região não estão apenas contidos na
materialidade histórica que a compõe devido ao caráter singular que seus
habitantes lhe conferem, uma vez que a paisagem natural está
indissoluvelmente ligada à paisagem cultural e humana (WOORTMANN, 1995,
apud HERCULANI, p. 15), podendo assim, fazer a diferença se retomadas com
um novo enfoque, como o trazido pelo projeto de agricultura urbana e
periurbana agroecológica que veremos a seguir, com foco no sistema produtivo
de Itatuba, onde existem famílias envolvidas que trazem um passado da cultura
tradicional camponesa.
106
5.2. A esfera originária da prática
A experiência prática com enfoque agroecológico que será analisada faz
parte de um conjunto de ações propostas em agricultura urbana e periurbana
pelo Projeto ―Colhendo Sustentabilidade: práticas comunitárias de agricultura
urbana e segurança alimentar e nutricional‖. Em sua implantação, o projeto
vivenciou dois períodos distintos e complementares, ocorridos devido ao
cronograma estabelecido para sua execução, implicando em início e término, o
que acarretou em uma primeira fase de implantação da proposta elaborada
inicialmente, e uma segunda fase para aplicação dessa mesma proposta
readequada, ambas mediadas pela equipe técnica executora junto aos agentes
financiadores e parceiros que se alternaram no decorrer dos dois períodos.
Na primeira fase, o projeto foi elaborado durante o ano de 2007 a partir
de uma parceria formalizada entre o coletivo EPARREH (Estudos e Práticas em
Agroecologia e o Reencatamento Humano)45, a Prefeitura de Embu das Artes
via Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) e a Sociedade Ecológica Amigos de
Embu (SEAE)46, para concorrer, por meio de um edital de seleção de projetos,
ao financiamento público oferecido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate a Fome (MDS)47 às prefeituras das regiões metropolitanas das
grandes cidades brasileiras que tinham o interesse na implantação de sistemas
produtivos agroecológicos para a população de baixa renda, com o intuito de
combater a fome, garantir a segurança alimentar e nutricional e gerar renda às
45
O coletivo EPARREH formou-se a partir do ano de 2004 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, compreendendo um grupo composto por alunos de diversas
faculdades do campus da capital, pessoas de outras instituições e simpatizantes de outros lugares, que
realiza, entre outros, estudos e práticas voltados ao entendimento das relações humanas e destas com o
mundo, sobretudo no que tange suas implicações na agricultura e na sociedade, tendo como base,
principalmente, princípios e conceitos da agroecologia. 46
A SEAE é uma Organização Não Governamental (ONG) sem fins lucrativos que atua no município de
Embu das Artes e região desde a década de 1970, inicialmente criada com o propósito de preservação
ambiental, passou nos dias atuais a ter a missão de promover a transformação socioambiental, cultural
e econômica, por meio de processos educacionais participativos, inclusivos e de empoderamento,
fomentando a atuação em políticas públicas, e visando a conservação, recuperação e defesa do meio
ambiente (consultado no sítio http://www.seaembu.org/, acessado em 10/11/2011). 47
Edital SESAN/MDS nº 01/2007: Seleção de Proponentes para apoio a projetos de Agricultura Urbana e
Periurbana, tornado público pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
por intermédio da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), em
conformidade com a Lei nº 10.869 de 13 de maio de 2004, Decreto nº 5550 de 22 de setembro de
2005, a Lei nº 11.346 de 15 de setembro de 2006, Instrução Normativa STN/MF nº01 de 15 de janeiro
de 1997 e a Portaria MDS nº 67 de 08 de março de 2006 (BRASIL, 2007).
107
famílias envolvidas (PROJETO Colhendo Sustentabilidade [PCS], 2009).
Após sua aprovação, o projeto teve um prazo de execução de dezoito
meses, com um convênio firmado entre o MDS e a prefeitura municipal em
parceria com a SEAE. Essa fase ocorreu de setembro de 2008 a janeiro de
2010, sendo implantados três sistemas produtivos com bases agroecológicas,
abrangendo duas áreas do município, mas que beneficiaram diretamente a
população de diversos bairros, pois muitos participantes se deslocavam de sua
comunidade para poder participar do projeto. Esses sistemas foram destinados
principalmente, mas não necessariamente, a famílias em condições
socioeconômicas desfavoráveis, em situação de vulnerabilidade social,
agricultores urbanos e periurbanos, beneficiários de programas sociais e
educadores da rede pública de ensino (PCS, 2007). Dois deles se juntaram em
uma única área no bairro de Itatuba que acabaram por configurar, no contexto
regional, um local de referência à agricultura comunitária de base sustentável
com enfoque agroecológico no meio urbano e periurbano.
Entretanto, pela proposta ter sido elaborada essencialmente por um
grupo externo as comunidades beneficiadas, por mais participativa que tenha
sido a metodologia proposta, houve certa dificuldade em fazer com que as
pessoas se envolvessem e se apropriassem num primeiro momento de
implantação. A título de referência, como propõe a transição agroecológica
participativa, os processos de transformações socioambientais devem ser
endógenos, interiores a comunidade e elaboradas por ela (GUTERRES, 2006).
Contudo, não houve tempo hábil para que o processo fosse realizado dessa
forma, devido, sobretudo, ao cronograma de execução a partir da aprovação do
projeto. Outro fato é que, infelizmente, as comunidades não estão preparadas,
informadas ou organizadas o suficiente para acessar editais geralmente
complexos oferecidos para elaboração e implantação de projetos, cabendo a
ONG’s e/ou órgãos públicos tal tarefa como proponente, como aqui foi o caso.
Porém, durante o processo de implantação, houve um período de diagnóstico,
ainda que curto, para sensibilizar e mobilizar a comunidade sobre os objetivos
propostos e sua importância ao envolvimento local. Por já haverem na região,
sobretudo de Itatuba, ainda que de forma isolada, famílias produtoras e/ou com
108
um passado camponês, o projeto foi sendo assimilado vagarosamente e as
pessoas que se envolveram passaram a entender e acreditar na proposta que,
aliás, foi se adequando também a realidade do lugar. Fato esse, que se
procurou aperfeiçoar na segunda fase de implantação do projeto, mas também
com alguma dificuldade.
No que se refere ao recurso obtido para o projeto, sua maior parcela
adveio do MDS, acrescido, por sua exigência, de um valor fracionário do
montante total como contrapartida da prefeitura municipal. Como apoio, ainda
houve mais um complemento financeiro e estrutural por parte da SEAE. O
espaço físico da ONG assim como sua infra-estrutura, também foram utilizados
ao longo do projeto como base para o trabalho da equipe executora. Uma parte
desse recurso foi utilizada para compra de materiais destinados ao fomento da
agricultura e formação das famílias envolvidas, e outra para a contratação da
equipe técnica multidisciplinar48 que executou o trabalho. A equipe técnica
executora teve como base um organograma constituído por uma coordenação
geral, uma coordenação administrativo-finaceira, dois coordenadores técnico-
pedagógicos e dois assistentes técnico-pedagógicos.
Nesse ponto, é importante enfatizar para o leitor, como já foi feito na
introdução, que o autor do presente trabalho é parte integrante da equipe
técnica que elabora e executa as ações promovidas pelo projeto em ambas as
fases, em dois momentos como coordenador técnico-pedagógico de
comunidade e em um como assistente técnico. Com isso, grande parte das
atividades que serão aqui relatadas foram construídas no cotidiano de trabalho,
em campo e em gabinete, sistematizadas em documentos próprios da equipe,
sem que haja, necessariamente, um referencial teórico que justifique as
explanações no texto. Contudo, quando necessário, serão feitas associações a
conceitos e princípios teóricos utilizados para o desenvolvimento do trabalho no
projeto, a fim de complementar, justificar e fortalecer as idéias e ações aqui
colocadas. Assim, reforçando o exposto na introdução deste trabalho, a análise
48
Tanto na primeira como na segunda fase do projeto a equipe executora variou em número e formação
profissional dos técnicos. Dentre os que passaram e os que continuam em atividade, encontramos
contribuições de seus conhecimentos de formação acadêmica em Administração, Biologia, Ecologia,
Educação, Engenharia Agronômica, Ambiental e Florestal, Filosofia, Geografia e Letras.
109
utiliza-se de uma metodologia qualitativa interpretativa dos fatos, e o autor se
configura como um agente promotor e observador participante49 sobre o que
ocorre no dia-a-dia do projeto, dos envolvidos na proposta e do
agroecossistema que será analisado adiante no texto.
Todas as iniciativas dessa fase do projeto permitiram a inserção dos
temas da agroecologia e agricultura urbana e periurbana50 em diversas esferas
do município, enfatizando o caráter transversal desta temática quando
vinculada às dinâmicas do meio e articuladas com a gestão territorial e
ambiental da cidade. As ações de promoção de agricultura urbana e periurbana
de base sustentável constituem estratégias voltadas à alimentação, de forma
constante e confiável para auto-consumo familiar, estruturantes nas instâncias
de produção, beneficiamento e comercialização de produtos agro-alimentares.
Também visa resgatar a auto-estima dos cidadãos e minimizar as
desigualdades expressas na exclusão social, bem como frear a degradação
ambiental e uso insustentável dos recursos naturais nas cidades. Este tipo de
intervenção favorece a promoção da segurança alimentar e nutricional
enquanto permite a geração de trabalho e renda através do consumo e
escoamento do excedente da produção, via comercialização de produtos
alimentícios de famílias agricultoras, ao mesmo passo que procura estabelecer
um equilíbrio dinâmico com o ecossistema local (BRASIL, 2007, p. 06). Esses
fatores desencadearam um movimento pró-agricultura na cidade, onde
reconheceu-se sua importância na orientação de estratégias de planejamento
socioambiental, e se passou a apoiar a agricultura comunitária com enfoque
agroecológico no município (PCS, 2009).
Com isso, após o fim do convênio entre o MDS, a prefeitura de Embu
das Artes e a SEAE, através da proposta de elaboração e execução de um
projeto similar ao que configurou essa primeira fase, revisto e ampliado, foi
49
Ver a introdução deste trabalho no que se refere à análise qualitativa interpretativa de observação
participante. 50
Não é alvo do presente trabalho discutir a fundo o conceito de agricultura urbana e periurbana. Apesar
de estarmos avaliando uma experiência que ocorre nesse contexto, o foco se dá em um sistema
produtivo agroecológico e na sua interação com o saber popular das famílias envolvidas nesse
trabalho. Para saber mais sobre agricultura urbana e periurbana é possível consultar, por exemplo,
Mougeot (2000), Madaleno (2002), Mendonça; Monteiro (2004) Lovo (2005), Machado (2007),
Gonçalves (2010) entre outros.
110
restabelecido um novo convênio agora apenas entre a prefeitura, como agente
realizador e financiador, e a SEAE, como proponente e executora, configurando
assim uma segunda fase ao projeto. O intuito central foi dar continuidade as
ações iniciais de êxito e ampliá-las de forma adequada para outras regiões do
município, também com dezoito meses de duração, compreendidos entre os
meses de abril de 2010 e setembro de 2011. Os mecanismos de repasse de
recursos financeiros foram semelhantes aos da primeira fase, agora
envolvendo uma parcela disponibilizada pela prefeitura e outra como
contrapartida da ONG, ambas distribuídas entre aquisição de materiais e
remuneração da equipe técnica executora que manteve a mesma base de
profissionais. Recursos estes, sempre utilizados visando o favorecimento das
comunidades e famílias envolvidas no projeto.
Ao reconhecer que a agricultura com enfoque agroecológico é uma
prática que vêm se consolidando no município, a continuidade das ações que
já produzem resultados consideráveis, como a experiência do sistema
produtivo comunitário em Itatuba, associada à proposta de manutenção e
ampliação das atividades existentes, acabam por fortalecer a produção
sustentável de alimentos saudáveis em consonância com a conservação do
meio ambiente, proporcionando uma elevação da qualidade nutricional e
alimentar da população envolvida direta ou indiretamente, além de gerar
maiores possibilidades de trabalho e renda às famílias participantes e estimular
ainda mais o aspecto de transformação social e ambiental intrínseco ao projeto.
O acúmulo de conhecimentos teóricos e práticos trocados entre os
envolvidos durante a implantação da primeira fase do PCS, os materiais e
ferramentas adquiridas, as expectativas das famílias participantes e as
possibilidades de novas alternativas de trabalho, possuem um imenso valor
material e intelectual que não podem ser desperdiçados, mas sim aproveitados
para o fortalecimento da agricultura de base sustentável agroecológica em
suas múltiplas dimensões socioambientais (Idem, ibid.). As atividades
realizadas procuraram pautar-se pelo respeito aos conhecimentos locais e pela
promoção da equidade entre os participantes, através do uso de tecnologias
apropriadas e processos participativos na gestão dos sistemas produtivos,
111
contribuindo para a melhoria da qualidade de vida da população e para a
sustentabilidade da cidade.
O objetivo geral é comum em ambas as fases do projeto, onde se
pretende através da agricultura urbana de base sustentável com enfoque
agroecológico, promover a inserção socioeconômica, o combate à fome, a
segurança alimentar e nutricional, a conservação ambiental, o resgate do saber
popular e a economia solidária na cidade de Embu das Artes. O intuito central,
como apresentado, é possibilitar de forma participativa, nas comunidades do
município onde o projeto realiza-se, o processo de produção ecológica e
comunitária de alimentos destinados ao auto-consumo e comercialização do
excedente, viabilizando desta forma a concretização de uma política pública de
agricultura urbana e periurbana e segurança alimentar e nutricional que garanta
uma melhoria ambiental e na qualidade de vida da população (Idem, 2007). De
forma específica, na primeira fase o projeto teve como meta:
Realizar a sensibilização e mobilização de famílias por meio de processos multi-atorais
de diagnóstico e planejamento estratégico para a ação em agricultura urbana e
periurbana;
Promover a formação das famílias beneficiadas pelo projeto através da difusão de
técnicas de produção agroecológica no cultivo de hortaliças, lavouras, ervas
medicinais, plantas arbóreas frutíferas e perenes;
Trazer princípios de segurança alimentar e nutricional e a importância da agricultura
urbana e periurbana para sua promoção;
Estimular práticas de aproveitamento integral dos alimentos;
Utilizar princípios e práticas de economia solidária e autogestão da produção;
Promover a educação socioambiental;
Implantar três sistemas produtivos agroecológicos adaptados à realidade local (PCS,
2007)51
.
De forma complementar, as metas da segunda fase foram:
Dar continuidade e iniciar novas atividades de formação e comunicação técnico-
pedagógica aplicada aos sistemas produtivos comunitários atuais;
Ampliar atividades de formação e comunicação técnico-pedagógica com a implantação
51
Tópicos adaptados pelo autor a partir dos tópicos presentes em PCS (2007).
112
novos sistemas produtivos comunitários;
Manter e ampliar a comunicação técnica para munícipes que já praticam a agricultura e
dispõem de áreas com potencial tanto para o auto-consumo como para
comercialização;
Manter e promover novos espaços de comercialização da produção excedente como
feiras e/ou barracas em locais públicos, venda direta, entrega em domicílio,
cooperativas de consumo etc.;
Promover a incubação de empreendimentos agrícolas de Economia Solidária visando à
criação de cooperativas e associações de produtores locais;
Continuar fomentando a articulação e associação dos produtores locais por meio de
seminários, encontros temáticos, trocas de experiências e insumos;
Manter e ampliar as lideranças engajadas com a temática do projeto como agentes
multiplicadores da agroecologia nas comunidades (PCS, 2009)52
.
As condições para o implemento do projeto no município pautam-se em
ações de formação e participação em suas duas fases, o que norteia, de forma
contínua e conjunta, seus passos metodológicos. Em sua essência, grande
parte da estratégia metodológica participativa utilizada no projeto tomou como
base o chamado ―Processo Multi-atoral para o Desenvolvimento e a
Implantação de Políticas e Programas de Agricultura Urbana‖ (PMPEA)53
(PLANEJAMENTO..., 2006). No projeto, a partir da aplicação adaptada dessa
metodologia, elabora-se um mapeamento dos atores54 e equipamentos que
compõem o meio social local e através de reuniões de esclarecimentos de
conteúdo e objetivos do projeto, procura-se sensibilizar e mobilizar um grupo, a
fim de obter sua adesão e formar uma equipe local multi-atoral co-responsável
pela proposta. É feito um diagnóstico participativo para identificar os potenciais
de agricultura urbana e periurbana nas comunidades, com a realização de
52
Idem (2009). 53
Os PMPEA são considerados processos substanciais que visam reunir todos os atores em uma nova
forma de comunicação e diálogo, análise situacional, planejamento, tomada de decisões,
implementação, monitoramento e avaliação das propostas direcionadas a uma ação que pode ocorrer
em nível internacional, nacional, regional ou local, adaptados à sua realidade. A partir de seus
princípios de transparência e participação, eles são utilizados como: estratégias para desenvolver
parcerias e reforçar coalizões; promover a apropriação e o compromisso; criar benefícios e confiança
mútua; envolver os grupos sub-representados em estruturas formais e informais; integrar diversos
pontos de vista; e contribuir para mudanças reais nas realidades locais (PLANEJAMENTO..., 2006). 54
Os atores são todos aqueles que têm interesse em uma decisão particular, tanto como indivíduos ou
como representantes de um grupo ou instituição. Isto inclui as pessoas, grupos, organizações ou
instituições que influem nas decisões ou que poderiam influir nelas, bem como todos que são afetados
por elas (Idem, ibid.).
113
reuniões onde haja possíveis agentes multiplicadores ao mesmo passo que
também tenham famílias com perfil à adesão no projeto. Ainda há no
diagnóstico, visitas de campo em terrenos potencialmente disponíveis e aptos
para práticas agrícolas, como também nas residências de famílias que
possuem algum perfil ou interesse de participação. Com a adesão dos atores
estratégicos e das famílias, é realizada uma formação teórico-prática por meio
de diálogos sobre temas correlatos ao projeto, que visa a participação de
ambos na implantação dos sistemas produtivos e a multiplicação da proposta.
Ocorre então, a construção participativa de sistemas produtivos adaptados à
realidade local com técnicas de manejo sustentável, a partir dos princípios e
conceitos da agroecologia e do saber popular (PCS, 2007).
Uma etapa da metodologia muito rica e fundamental foi a realização do
diagnóstico participativo referente a visitas de campo nas residências de
famílias, feitas com o intuito de identificar o perfil ou interesse delas em
participar do projeto, e também o potencial local à agricultura. Mais de 100
famílias foram visitadas em algumas comunidades do município com essa
finalidade, e os resultados foram os mais diversos. Houve famílias que
gostariam de participar, e efetivamente o fizeram, outras que apenas se
interessavam em apoiar; também tinham aquelas que duvidavam da proposta,
algumas que achavam uma boa idéia e outras que não se colocavam a
disposição para tal empreitada. No geral, a receptividade dos habitantes, tanto
aos técnicos como à proposta, foi positiva e estimulante. Contudo, o mais
importante foi comprovar de forma vivencial, ainda que em uma parcela
pequena da população, que realmente havia uma propensão e uma aptidão à
agricultura no município, e em particular, no bairro de Itatuba. Ficou evidente
também, que o município possui uma população essencialmente migrante onde
muitos trazem um saber tradicional camponês por suas origens no campo e os
utilizam na vida cotidiana da cidade. As imagens abaixo ilustram algumas das
ricas visitas de diagnóstico realizadas às famílias moradoras de determinadas
comunidades do município.
114
Foto 02: Sra. Josefa na residência onde viveu na comunidade de Itatuba. Cultivava alimentos consorciados para seu consumo, a partir de seu saber tradicional camponês originário na Bahia.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
10/09/2009.
Foto 04: Sr. Nelson, um dos moradores mais antigos da comunidade de Itatuba vindo do interior paulista. Possui um Sistema Agroflorestal intuitivo consorciado com diversos cultivos e criação animal.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
11/09/2009.
Foto 06: Sr. Braulino, baiano morador da comunidade chamada Fazenda Atalaia. Na residência onde vive, cultiva lavouras, hortaliças, plantas medicinais e um pomar, além de criar galinhas.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
17/07/2008.
Foto 03: Propriedade do Sr. José Matias, onde realizava um cultivo de hortaliças para comercialização direta no bairro de Itatuba e região. Seu manejo é misto, com agricultura orgânica e convencional.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
19/06/2008.
Foto 05: Sr. Cassiano, morador da Fazenda Atalaia veio de Minas Gerais ainda jovem. Possui um pequeno quintal Agroflorestal que cultiva com muito orgulho e carinho a partir de seus conhecimentos tradicionais.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
11/11/2009.
Foto 07: Sra. Henelida, moradora do bairro Capuava. Aplica o manejo tradicional no cultivo de hortaliças, temperos e chás para auto-consumo, venda e doação a parentes e vizinhos da comunidade.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
30/06/2008.
115
Foto 08: Sra. Luiza Ferrazo, descendente de europeus que migrou do Rio Grande do Sul para viver com sua família na comunidade do Jd. Mimás, onde cultiva plantas medicinais, flores e ornamentais.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
28/03/2008.
Foto 10: Propriedade do Sr. Hirai e Sra. Miko, integrantes da colônia japonesa e vivem no Vale do Sol. São pequenos agricultores convencionais com foco na cultura de pêssego, hortaliças e orquídeas.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
03/06/2008.
Foto 09: Sra. Zezé, agricultora com um conhecimento tradicional camponês muito rico. Em sua residência na Fazenda Atalaia, cultivava uma grande diversidade de culturas consorciadas em lavouras.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
05/06/2008.
Foto 11: Pedro, jovem que trabalha com artesanato em sua residência no Jd. Mimás. Em seu quintal ele mantém uma grande diversidade de cultivos para alimentação e recuperação ambiental.
Fonte: fotografia realizada por John H. B. Zappala em
01/04/2008.
Tendo como proposta central em ambas as fases a implantação de
práticas agrícolas sustentáveis em comunidades do município, o projeto
Colhendo Sustentabilidade procura promover, como já explanado, a segurança
alimentar e nutricional da população local na medida em que a produção dos
sistemas comunitários de cultivos é destinada para auto-consumo, bem como
sua inclusão socioeconômica na medida em que possibilita a comercialização
direta dos excedentes produzidos, ao mesmo passo que contribui à
conservação ambiental por meio dos agroecossistemas comunitários.
Ao se traçar objetivos e metas no projeto, baseando-se em metodologias
que viabilizem sua implantação de acordo com o que se estabelece, espera-se
116
atingir resultados na totalidade da proposta em suas duas fases. Contudo, não
iremos apresentar e aprofundar nos resultados alcançados como um todo, sem
querer negar sua relevância ou inferir que sejam menos importantes, mas sim
por não ser o foco da presente análise. Uma apresentação e avaliação de
resultados passariam necessariamente por uma análise de suas conquistas e
desafios, diga-se de passagem, são muitos e grandes, pois nem tudo ocorre
como se planeja e se sonha acontecer. Com isso em foco, se permitiria a
elaboração de uma nova pesquisa. Os objetivos, metas e metodologias
trazidas aqui, possuem o intuito de trazer à luz as ações propostas em uma
esfera, cuja qual, é referência ao sistema produtivo agroecológico de Itatuba,
que nela está inserido e aprofundaremos a seguir.
5.3. A experiência prática com enfoque agroecológico
Em 21 de novembro de 2008, com a população local residente na
comunidade de Itatuba e região junto da equipe técnica executora do projeto,
se iniciaram as atividades de formação e implantação do sistema produtivo
agrícola comunitário com enfoque agroecológico. Como previa o edital do
MDS, para realização do projeto seria necessária a existência de um terreno,
público ou privado, disponibilizado por um determinado período para que os
trabalhos pudessem ser efetuados. Em Itatuba, a prefeitura municipal cedeu
parte de um terreno público ali existente para a implantação de dois sistemas
produtivos, totalizando uma área de 10.000m² ou um hectare de terra (figura
07), sendo utilizado na medida em que o trabalho fosse avançando e de acordo
com o ritmo imposto pelas famílias participantes.
Para uma construção participativa do trabalho, a metodologia utilizada
inicialmente consistia em realizar dois encontros semanais, nas manhãs das
terças-feiras e das sextas-feiras, para formação teórica e troca de
conhecimentos entre as famílias envolvidas e os técnicos, em conjunto com
atividades práticas de manejo sustentável a partir dos ensinamentos da
agroecologia e do saber popular tradicional trazido pelos participantes. Em um
primeiro momento do encontro, todos se reuniam numa sala, cedida
117
gentilmente pelo Centro de Controle de Zoonoses municipal (CCZ) localizado
ao lado do terreno, para uma conversa sobre temas pré-planejados. Num
segundo momento da manhã, o grupo se deslocava ao terreno para aplicação
dos conhecimentos adquiridos (e/ou resgatados) e das propostas construídas
ou adaptadas pelo grupo no encontro. Sempre havia um momento lúdico no
meio do período de atividades como forma de harmonizar e integrar o grupo, e
também de descontração com um lanche comunitário.
Figura 07: Localização do terreno disponibilizado para o sistema produtivo. A área do polígono
vermelho corresponde a inicialmente cedida, e a área em amarelo a realmente utilizada.
Fonte: figura adaptada pelo autor a partir da imagem do Google Earth (acessado em 12/11/2011).
No decorrer da implantação do projeto em Itatuba, entre a execução de
suas duas fases, cerca de 40 famílias revezaram seu envolvimento na
participação dos encontros semanais de formação, troca de conhecimentos e
elaboração participativa para implantação do sistema de produção agrícola
alimentar a partir de técnicas sustentáveis de manejo (PCS, 2009). É comum
na agricultura urbana e periurbana, sobretudo a comunitária, haver uma
flutuação entre os participantes, pois geralmente essa não é a principal
atividade econômica da pessoa envolvida. Portanto, nessa área, em momentos
diferentes, foram envolvidas famílias distintas que em ao menos um período
CCZ
118
podem ter convivido juntas. De fato, algumas deixaram de participar por
problemas pessoais ou por opção, outras por conseguir um emprego fixo
remunerado, permanecendo atualmente um grupo reduzido de sete famílias,
mas são aquelas que realmente se apropriaram da proposta e possuem o
objetivo de gerar trabalho e renda através da agricultura e com isso promover
uma transformação socioambiental utilizando-se de técnicas e princípios
agroecológicos.
O perfil das famílias que se envolveram é o mais variado. Dentre as
pessoas que compuseram o grupo existiram aquelas economicamente mais
favorecidas, mas em sua maioria eram de baixa renda. Os níveis de formação
educacional também são distintos, desde os que possuem ensino superior até
os não-alfabetizados. Com relação às atividades profissionais exercidas pelos
participantes em sua vida, encontramos pessoas que trabalharam na indústria,
no comércio, como autônomos e em serviços informais como motoristas
particulares, catadores de materiais recicláveis, diaristas, donas de casa,
empregados da construção civil, caseiros em propriedade particular, entre
outros. Entretanto, uma característica recorrente e de particular importância à
análise, diz respeito ao trabalho na agricultura em algum período da vida de
muitos participantes, sobretudo dos atuais, e que será abordada mais a frente
no texto. No que tange a questão de gênero, geração e etnia, também houve
variações, o que enriqueceu o processo. Na composição do grupo, o número
de mulheres sobressai em relação aos homens. A faixa etária predominante é
de pessoas acima dos 40 anos, com muitos aposentados da chamada terceira
idade, mas também houveram jovens e crianças envolvidas. A origem dos
participantes é bastante distinta, o que também será alvo de discussão
posteriormente no texto com relação aos atuais integrantes do grupo.
A área do terreno disponibilizado apresentava uma série de desafios,
desde solo degradado com baixa fertilidade, passando pelo acesso e
inexistência de benfeitorias, até a infra-estrutura básica para realização das
atividades, tanto teóricas como práticas. Contudo, era um dos poucos espaços
públicos adequados e disponíveis para o que se pretendia no projeto, e a
comunidade envolvida, estimulada pela equipe técnica, se adaptou ao lugar
119
superando as dificuldades iniciais e as que foram surgindo ao longo do
trabalho. Os materiais e ferramentas utilizadas no principio, eram armazenados
no CCZ, e transportadas pelo grupo para realização das atividades práticas
sempre que necessário.
Com a compra dos materiais permanentes, através do recurso financeiro
disponibilizado pelo MDS, foi possível adquirir um container para
armazenamento dos materiais e insumos no próprio terreno. Ainda com esse
recurso, foram comprados outros equipamentos para auxiliar na execução do
projeto em suas duas fases, e em particular, de suma importância para
implantação desse sistema produtivo, como micro-tratores, trituradores de
resíduos orgânicos, roçadeiras e estufas agrícolas para produção de mudas.
Somado a isso, com o valor oferecido pela prefeitura municipal e pela SEAE,
no decorrer do processo houve a aquisição de itens básicos de consumo
referentes a materiais de papelaria utilizados na parte de formação e
ferramentas para implantação do sistema produtivo, como enxadas, pás,
forcados, carriolas, regadores, mangueiras, e outros relacionados à infra-
estrutura e insumos agrícolas, por exemplo, arames, materiais elétricos,
sementes, mudas e composto orgânico. Instituições e munícipes parceiros,
assim como os próprios participantes, também colaboraram através de
doações de alguns desses materiais básicos.
Por muitos anos, de acordo com relatos dos moradores da comunidade,
o terreno utilizado para execução do projeto em Itatuba teve um uso intensivo
destinado para silvicultura de eucalipto a partir das técnicas convencionais
dominantes de produção na agricultura moderna. Além desse fato, sucessivas
queimadas foram feitas para controle das plantas adventícias nascidas
espontaneamente. Com isso, os fatores bióticos e abióticos desse ambiente
assim como os recursos naturais existentes no ecossistema, passaram por um
processo elevado de degradação devido ao uso insustentável do local por um
longo período. Pela imagem retratada na figura 07, é possível notar aspectos
de solo deteriorado e exposto, baixa biodiversidade e inexistência de
benfeitorias, tendo assim uma visão dessa área do terreno antes do início da
implantação do sistema produtivo.
120
Através da visão sistêmica promovida pela agroecologia (ALTIERI, 1999;
GLIESSMAN, 2005), um sistema produtivo deve ser entendido como um todo,
onde os componentes se relacionam de forma dinâmica. Esse entendimento é
importante para observar a origem de qualquer desafio e procurar superar suas
causas e não de tentar eliminar somente os sintomas. Precisam ser
observados os fluxos de água, ar, energia e matéria entre eles. Através da
observação dessa interação, é possível otimizar os fluxos ou ciclos, gastando
cada vez menos recursos naturais e reutilizando ou reciclando materiais. O
objetivo maior é tornar o sistema produtivo cada vez mais auto-suficiente, ou
seja, produzindo seus próprios insumos, garantindo a sustentabilidade da
unidade comunitária. É com esse olhar que procuraremos analisar o sistema
produtivo de Itatuba.
Para iniciar os trabalhos práticos no terreno, fazia-se necessário a
implantação de algumas benfeitorias. Para proteger o local e ter maior controle
de acesso de pessoas, o grupo realizou o cercamento de uma parcela da área
utilizando-se de bambus coletados na região e mourões feitos com os
eucaliptos ainda existentes no terreno. Mesmo assim, após os plantios, houve
casos de perda de cultivos devido a colheitas feitas por pessoas não
participantes e entrada de cavalos no sistema produtivo. Posteriormente, com a
aquisição de materiais pelo projeto, foi feita uma cerca, ainda que provisória,
com os mourões de eucalipto e arame farpado para melhorar a segurança na
área toda. Já na segunda fase do projeto, pela dificuldade em se instalar uma
cerca definitiva na área total devido à falta de recursos financeiros, a equipe
executora e os participantes se mobilizaram e realizaram uma parceria com a
empresa mineradora instalada em Itatuba, a fim de obter um auxilio para
adquirir parte dos materiais necessários para cercar a área que já vinha sendo
utilizada até o momento, correspondente a 5.000m² do terreno (Figura 07).
Outra importante benfeitoria foi a construção de um espaço para abrigar
os participantes. A partir de técnicas de construção que utilizam os recursos
disponíveis no meio ambiente local, o grupo elaborou uma cabana usando
como pilares alguns troncos colhidos de eucaliptos, bambus para a estrutura do
telhado e capim sapê para a cobertura final. Nesse espaço, passou-se a
121
realizar as atividades de formação e troca de experiências e a ser utilizado
como abrigo para refeições, descanso e recepção de visitantes. Essa prática,
junto à implantação da cerca, resgatou e trouxe aos participantes o princípio do
saber popular tradicional e da agroecologia de utilização dos recursos
existentes localmente para a elaboração de benfeitorias necessárias nos
agroecossistemas a partir de técnicas simples, que podem muito bem servir
para outras finalidades na vida das famílias envolvidas.
Em boa parte da área onde as atividades iniciais foram realizadas o solo
apresentava-se extremamente desgastado e com baixíssima fertilidade,
processos erosivos aparentes, uma estrutura compactada, composição argilosa
predominante, além de estar com nível de acidez acima do natural
característico no ecossistema. Para reverter esse quadro e poder iniciar os
plantios, sobretudo de plantas mais exigentes a nutrientes do solo como
hortaliças, foram realizadas atividades de formação no grupo com práticas de
conservação e recuperação do solo.
Num primeiro momento, como ainda não haviam disponíveis insumos
produzidos localmente e pela necessidade de trazer um breve retorno aos
participantes de forma a estimulá-los à proposta através das colheitas, foi feita
a aquisição de uma grande carga de composto orgânico com a finalidade de
utilizá-lo para resgatar a fertilidade do solo, melhorar sua estrutura e corrigir
sua acidez, já que uma recuperação natural seria muito vagarosa. Foram
realizados diálogos no grupo sobre a composição, recuperação e conservação
do solo e sua importância para a agricultura, ao mesmo tempo em que havia a
prática correspondente. O solo ideal para práticas agrícolas equilibra
porcentagens de minerais, matéria orgânica, água e ar.
Através da compostagem de resíduos orgânicos é possível contribuir
para o processo de recuperação da fertilidade do solo com a reposição desses
elementos. Sob condições controladas são dispostos em pilhas ou leiras de até
1,5m de altura, resíduos de matéria orgânica fresca, ricos em nitrogênio, junto
a resíduos de matéria orgânica seca, ricos em carbono, passando por estágios
de decomposição que são realizados por microorganismos que necessitam de
calor, umidade e oxigênio para transformar o material grosseiro inicial em um
122
rico adubo natural que, após 90 dias de maturação, ao estabilizar-se serve
tanto para reestruturar como para fertilizar o solo (GLIESSMAN, 2005).
Fotos 12 e 13: Produção de composto orgânico
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 14/02/2009 e 18/08/2009.
Dessa maneira, foram elaboradas diversas composteiras ao longo das
atividades com o grupo (cerca de 10 toneladas) e até hoje essa prática
continua fundamental para o manejo sustentável do agroecossistema, pois
além de melhorar o solo, favorece a produção interna de insumos, como requer
um sistema produtivo com enfoque agroecológico. Além disso, retira dos
aterros sanitários e lixões toneladas de resíduos orgânicos que não teriam
aproveitamento algum nesses locais, apenas contribuiriam para poluir ainda
mais o ambiente. Mesmo com uma demanda grande por esse material, o grupo
atual ainda não consegue suprir toda sua necessidade com a produção interna
e utiliza parte do composto orgânico que é comprado pelo projeto.
Além da compostagem o grupo utiliza-se de outras técnicas sustentáveis
para o manejo mais adequado da terra. Uma delas é a adubação verde ou
vivificação do solo, uma prática agrícola que consiste no plantio de espécies
vegetais de inverno ou verão, de ciclo anual ou perenes, em rotação ou em
consórcio com as culturas de interesse alimentar e comercial, cobrindo o
terreno por um período ou por todo ano. Geralmente as sementes são
misturadas e plantadas juntas para aumentar a capacidade produtiva do solo.
Utilizam-se espécies de gramíneas e leguminosas que são capazes de fixar
nitrogênio do ar através de suas raízes por relações simbióticas mutualísticas
123
com fungos e bactérias, e disponibilizá-lo no solo para os cultivos (WUTKE et.
al., 2007).
A adubação verde promove o incremento da atividade biológica do solo
e de sua fertilidade, também contribuindo com a proteção contra a erosão e
radiação solar. Possibilita ainda, a descompactação, estruturação e areação do
solo, aumentando sua capacidade de reter água e nutrientes. Ela favorece a
redução de problemas nos cultivos, como a incidência de fitoparasitos do solo e
o crescimento de plantas espontâneas. A biomassa resultante pelo seu plantio
e posterior corte, pode ser incorporada ao solo ou deixada sobre a superfície
como cobertura protetora até se decompor (Idem, ibid.).
Fotos 14 e 15: Manejo e plantio de adubação verde
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 17/03/2009 e 07/05/2010.
Por tudo isso, ela contribui para aumentar a auto-suficiência do grupo
em relação à aquisição de insumos externos ao sistema produtivo e ainda, com
o uso de algumas espécies como o feijão guandu, são utilizadas na
alimentação dos participantes e cultivadas como quebra vento ao redor da área
para proteger as culturas mais sensíveis.
O manejo retratado na foto 14 corresponde ao plantio de adubação
verde em uma das áreas mais degradadas do terreno. Após aproximadamente
seis meses o adubo verde foi tombado e incorporado ao solo. Posteriormente
nesse local foram cultivadas hortaliças que apresentaram como resultados um
desenvolvimento e produtividade excelentes. Na foto 15, o grupo está
semeando a adubação verde a lanço, prática que consiste em jogar as
124
sementes misturadas em um solo minimamente preparado com a roçada das
plantas espontâneas e a aeração superficial. Nessa área são cultivadas
espécies de ciclo anual em lavouras, e no momento o grupo estava realizando
a rotação de culturas com a adubação verde para posteriormente entrar com os
cultivos alimentares.
O solo também é beneficiado com o uso da ―cobertura morta‖, que
consiste na utilização de matéria orgânica seca para forrar e proteger a terra da
radiação solar, mantendo assim a umidade e evitando sua compactação. Em
grande parte dos canteiros e nos caminhos do sistema produtivo a cobertura
morta é aplicada com essa função. Contudo, por não haver uma fonte rica de
matéria seca no terreno, o grupo recebe grande parte desse material da
varrição de jardins das residências vizinhas que iriam dispor esse resíduo em
um local onde ele seria inutilizado, e no sistema produtivo o grupo reutiliza esse
importante insumo em seu favor e do ambiente.
O terreno do sistema produtivo está em uma área elevada margeada por
ribeirões. Muito provavelmente no período em que a cobertura vegetal primária
estava conservada existira o afloramento de água na área do terreno,
sobretudo pela característica da região de Itatuba em possuir um elevado
potencial hídrico. Entretanto, as possíveis nascentes de água que ali existiram
já estavam secas. Com isso, para ter acesso à água, o grupo inicialmente
utilizava-se do abastecimento público fornecido ao CCZ, coletado através de
uma mangueira e com alguns regadores se fazia a irrigação dos cultivos. Com
a expansão da produção e a redução do grupo, essa prática de irrigação com
regadores se tornou inviável. Portanto, foram instaladas mangueiras maiores
para ampliar o alcance da irrigação na área de horticultura do sistema
produtivo, agora a partir do abastecimento público fornecido para a Unidade
Básica de Saúde (UBS) do bairro. Futuramente se pretende ter o acesso a
água no próprio terreno, seja por poço, coleta de chuva ou por recuperação de
nascentes, com o intuito do sistema produtivo se tornar mais sustentável com
relação a esse recurso natural. Uma observação importante a ser colocada, é
referente ao fato de ter havido uma articulação, mediada pela equipe técnica
executora, entre o grupo e os aparelhos públicos locais para ter acesso à água,
125
mostrando o quão importante é a participação da comunidade como um todo
em projetos que visam o envolvimento local sustentável.
Com o foco inicial do projeto voltado para a produção agrícola destinada
ao auto-consumo das famílias envolvidas, procurou se iniciar as atividades de
plantio com culturas de ciclo curto a médio, com hortaliças e uma pequena área
de lavoura com plantas anuais, de forma a obter colheitas mais rápidas para
estimular a participação da comunidade e favorecer o propósito de gerar renda
e segurança alimentar dentro dos cronogramas estabelecidos. Por haver
pessoas advindas dos mais diversos lugares do país55 e grande parte delas
trazer sua cultura camponesa, as formas de cultivar a terra frequentemente se
distinguem uma das outras. Com isso, muitas vezes existem dificuldades de
aceitamento pelos participantes por um modo de produzir em detrimento de
outro. As propostas para realização de plantios com enfoque agroecológico
trazidas pela equipe técnica sempre buscam valorizar e associar as diferentes
maneiras de produção agrícola trazidas pelos participantes e introduzir o
enfoque agroecológico de forma adequada a elas, como também a título de
experimento para comparar os diversos meios de se realizar uma agricultura de
base sustentável sem menosprezar nenhum conhecimento.
Foto 16: Início da implantação do Foto 17: Elaboração dos canteiros iniciais
sistema produtivo de Itatuba para o cultivo de hortaliças
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 16/12/2008 e 24/04/2009.
Grande parte das mudas e sementes utilizadas para os plantios foram
55
As origens das pessoas que compõem o grupo atual que realiza as atividades no sistema produtivo de
Itatuba serão abordadas mais adiante no texto.
126
adquiridas pelo projeto e distribuídas pela equipe técnica. Porém, sempre
orientando os participantes ao propósito de se atingir uma autonomia na
produção destes insumos, como através do beneficiamento de sementes das
plantas cultivadas e da produção interna de mudas. No momento, o grupo
ainda não atingiu a auto-suficiência total na necessidade de produzir
internamente suas sementes e mudas. Por terem uma parte dessa produção
ainda incipiente, o grupo busca complementá-la por meio de compras em
outros locais ou utilizam as sementes e mudas fornecidas pelo projeto.
O trabalho realizado pela equipe técnica executora em fomentar a
autonomia do grupo e promover a auto-suficiência no agroecossistema
constitui-se numa das tarefas mais complexas de ser realizada. Procura-se nas
atividades formação teóricas e práticas, dialogar sobre a importância em se
suprimir as relações hierárquicas e de submissão para gerar a autonomia do
grupo, e estimula-se constantemente a necessidade em produzir seus próprios
insumos para atingir uma auto-suficiência na produção agrícola, de modo que
se favoreça a auto-regulação do agroecossistema.
Os plantios agrícolas foram realizados por etapas, criando núcleos de
cultivos formados por espécies que tiveram rotatividade ao longo tempo. Dados
coletados a partir de registros internos do projeto indicam que: no núcleo de
horticultura foram cultivadas cerca de 50 variedades de hortaliças e 25 de
plantas medicinais e aromáticas; no núcleo de lavoura existiram mais de 30
tipos de plantas anuais; além das variedades perenes que estão distribuídas
entre os núcleos e das que estão presentes no sistema agroflorestal que será
abordado mais adiante no texto. Só na primeira fase do projeto foram
realizados mais de 17.000 plantios, dentre mudas e sementes utilizadas em
todos os núcleos, com uma média aproximada de 200 espécies cultivadas.
Muitas dessas variedades cultivadas permanecem atualmente plantadas ou em
rotação no sistema produtivo. Na tabela 08, pode ser observada a diversidade
de espécies cultivadas pelo grupo atualmente ao longo das atividades.
127
Tabela 08: Variedade de espécies cultivadas em rotação atualmente no sistema produtivo
Variedades de hortaliças:
Abobrinha italiana, abobrinha africana, acelga, agrião apimentado, alcachofra, alface americano, alface crespo, alface crespo roxo, alface liso, alface mimoso, alface mimoso roxo, alface quatro estações, alho, alho poro, almeirão catalonha, almeirão de corte, almeirão pão de açúcar, berinjela, beterraba, brócolis ninja, brócolis ramoso, caruru, cebola crioula, cebola roxa, cebolinha, cenoura, chicória, coentro, couve, couve flor, escarola, espinafre, jiló, morango, mostarda, pimenta cambuci, pimenta de bode, pimenta dedo de moça, pimentão, rabanete, radichio, repolho, repolho roxo, rúcula, salsa, salsão, serralha, tomate cereja.
Variedades de plantas medicinais
e aromáticas:
Alecrim, alfavaca, anis estrela, babosa, bálsamo, boldo, boldo do chile, camomila, capim santo, capuchinha, cavalinha, citronela, erva doce, gravatá, hortelã, hortelã pimenta, levante, losna, manjericão, manjerona, mastruz, melissa, mil folhas, pariparoba, poejo, tanchagem.
Variedades de plantas anuais:
Abacaxi, abóbora menina, abóbora moranga, abóbora paulista, açafrão, amendoim, araruta, batata doce, batata inglesa, cabaça, caramuela, chuchu, ervilha torta, fava, feijão carioca, feijão de corda, feijão guandu, feijão rajado, feijão vermelho, gengibre, girassol, inhame, mandioca, maxixe, melancia, melão caipira, milho crioulo mogiano, milho crioulo caiano, milho canjica, milho pipoca, milho roxo, quiabo, quiabo de metro.
Variedades de plantas perenes:
Amendoim forrageiro, amora, aroeira pimenta, assa peixe, banana, caju, cana, caruru de veado, eucalipto, flores diversas, jurubeba, mamão, manga, maracujá, nêspera, romã, taioba.
Fonte: Tabela elaborada pelo autor a partir de dados presentes em relatórios do projeto Colhendo Sustentabilidade.
A partir dessa variedade, nos núcleos de cultivo as espécies são sempre
consorciadas, prezando pela diversificação e adequação ao ambiente, ciclos
naturais e a cultura agrícola e alimentícia das famílias participantes. A
consorciação permite otimizar a produção pelo melhor aproveitamento da área
e dos recursos existentes, conferindo um aumento da biodiversidade e
minimizando riscos caso haja problemas com alguma cultura. Entretanto, nem
todos os cultivos podem ser associados numa mesma área, tendo que
considerar aspectos como tolerância a sombreamento, profundidade do
sistema radicular e hábito de crescimento. Assim, as plantas são divididas em
companheiras e antagonistas (HENZ; ALCÂNTARA; RESENDE, 2007, p. 55).
Quando companheiras há uma ajuda recíproca entre os cultivos que acabam
por beneficiar seu crescimento, e quando antagônicas há o favorecimento de
uma espécie cultivada sobre outra. Muitas vezes também, o consórcio das
espécies promove uma proteção para os cultivos, por exemplo, ao cultivar
plantas aromáticas, com sabor e cheiro forte, em meio ao cultivo de hortaliças
evitam-se problemas com insetos que danificam a horticultura, pois afastam ou
inibem a ação desses seres vivos. Contudo, como qualquer outra estratégia de
manejo agroecológico, não se deve utilizar de tais práticas de forma isolada,
mas sim em conjunto com outras técnicas para que haja maior equilíbrio no
sistema produtivo (Idem, ibid., p. 57).
128
Foto 18: Primeiros cultivos consorciados de
plantas anuais
Foto 19: Plantios iniciais de hortaliças
associadas nos canteiros
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 28/01/2009 e 08/05/2009.
A diversidade de cultivos é importante para o grupo de participantes
assim como para o ambiente do sistema produtivo por diversas razões. De
acordo com Gliessman (2005, p. 450):
Com mais diversidade, cada espécie pode ser cultivada em um local especifico da área
que esteja adequado às exigências da espécie escolhida;
O aumento contínuo da diversidade eleva as oportunidades para coexistência e a
interferência benéfica entre as espécies;
Os ambientes perturbados decorrentes do manejo agrícola podem ser melhor
explorados;
Frequentemente uma maior diversidade permite um uso mais eficiente dos recursos
naturais disponíveis;
A diversidade reduz o risco para os produtores, pois se uma cultura não for bem
sucedida, as outras podem compensá-la;
Um conjunto de distintas culturas pode criar uma diversidade de micro-climas dentro do
sistema produtivo que podem atrair organismos benéficos aos cultivos;
A diversidade na paisagem agrícola pode contribuir para a conservação da
biodiversidade em ecossistemas adjacentes;
O aumento da diversidade promove uma variedade de serviços ecológicos dentro e
fora do sistema, como a reciclagem de nutrientes e a regulação hídrica local.
129
Figuras 08 e 09: Algumas hortaliças e frutas cultivadas no agroecossistema
Fonte: figuras elaboradas a partir de fotografias realizadas por John H. B. Zappala entre 2009 e 2011.
A biodiversidade visível no terreno estava reduzida a alguma formação
de capoeira e de vegetação herbácea, ainda com a existência de diversos pés
de eucalipto e pouca diversidade de fauna. Uma vegetação secundária estava
ainda em processo muito incipiente de formação, notado pela presença
elevada de plantas espontâneas56, em sua maioria adventícias, e algumas
espécies nativas pioneiras arbustivas e arbóreas. A partir da troca de
conhecimentos entre os participantes do projeto e a equipe técnica executora,
houveram diálogos sobre a importância dessas formações vegetais já
existentes no ambiente do terreno. Essas plantas dão sinais importantes sobre
o funcionamento e formação do ecossistema, como a qualidade do solo e o
clima local (INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 26).
Portanto, essa vegetação se constitui como indicadora viva de como se
pode realizar um manejo adequado naquele ambiente específico, o que alguns
participantes já tinham como conhecimento por suas experiências na
agricultura. Assim, essa vegetação espontânea passou a ser considerada como
uma aliada que está a disposição para auxílio dos participantes quando feito
um manejo adequado sobre ela. A implantação do sistema produtivo incorporou
grande parte dessa diversidade existente e a ampliou significativamente como
vimos acima, e ao ser associada às demais práticas sustentáveis
56
A vegetação espontânea é aquela que aparece quando o solo está exposto ou com pouca diversidade.
Ela surge com o objetivo de recolonizar a área rumo à formação de um ambiente com maior
biodiversidade. A vegetação espontânea abre o caminho para o estabelecimento de plantas mais
arbustivas e arbóreas ao longo do tempo, na busca de reconstruir um ecossistema próximo do original
(INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 26).
130
desenvolvidas, promoveram a formação de um agroecossistema.
Foto 20: Diversidade de hortaliças na área Foto 21: Canteiro circular com alfaces diversas
onde antes havia adubação verde e plantas aromáticas no centro
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 25/09/2009 e 05/11/2010.
Para que essa diversidade de plantas possa ter um crescimento
adequado numa área que estava extremamente degradada, o manejo
agroecológico da terra para elaboração de canteiros e implantação de lavouras
faz toda diferença na produção.
Na elaboração de canteiros, os participantes revolvem a camada
superficial fértil do solo para aerar e descompactar a terra. Frequentemente
eles abrem uma vala no meio do canteiro, enchem ela com matéria orgânica
seca e cobrem a vala cheia com a terra. Os canteiros atingem entre 30 a 40
cm de altura com comprimentos e formatos variados para favorecer a criação
de micro-habitats no agroecossistema. Por cima dos canteiros, assim como de
boa parte de todo solo da área, é realizada a aplicação de ―cobertura morta‖,
matéria orgânica seca que protege o solo.
Outra técnica utilizada pelo grupo é o chamado ―canteiro instantâneo‖,
recomendável para áreas onde o solo está muito compactado e pouco fértil.
Consiste em elaborar um canteiro com uma estrutura feita basicamente por
matéria orgânica seca, como galhos e folhas, até atingir cerca de 70 cm de
altura. São feitas aberturas ao longo do canteiro nos lugares onde serão
realizados os plantios.
Utiliza-se em ambas as técnicas uma quantidade de composto orgânico
no exato local onde se realiza o plantio para fertilizar o solo onde a planta irá
131
crescer. São técnicas que mesclam o saber popular tradicional e os
ensinamentos da agroecologia no preparo do solo para o cultivo.
Foto 22: Elaboração de canteiro
instantâneo com palha
Foto 23: Plantio de ervas medicinais no
canteiro espiral estruturado com entulho
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 17/04/2009 e 13/03/2010.
Outra importante contribuição em benefício do grupo e à formação do
agroecossistema foi a implantação de um Sistema Agroflorestal (SAF). A
agrofloresta é uma forma de uso da terra que combina a produção de culturas
agrícolas com espécies florestais, de forma simultânea ou em sequência na
mesma área, buscando conciliar produtividade e rentabilidade econômica com
a conservação do ambiente e a melhoria da qualidade de vida e do trabalho
dos agricultores. Consiste ainda, na tentativa de harmonizar as atividades da
agricultura com os processos naturais específicos de cada lugar (FRANCO,
2007, p. 05-06). Assim, a implantação do SAF se espelha na diversidade e no
processo de sucessão natural57 do ecossistema local para produzir alimentos e
outros produtos agrícolas através do conhecimento do ambiente e do manejo
planejado pelos agricultores.
Dentre as variações de práticas existentes para a elaboração de um
SAF, no agroecossistema de Itatuba os técnicos e o grupo optaram pela
combinação de espécies arbóreas, a partir de mudas, com culturas agrícolas
anuais a partir de sementes, classificada por Gliessman (2005, p. 490) como
57
Sucessão natural é a sequencia de modificações na composição das associações de plantas em um
ecossistema ao longo do tempo e do espaço. Cada espécie vegetal possui sua função e dentro da
sucessão uma planta cria e auxilia a outra, preparando o terreno onde uma ocupará o lugar que a outra
ocupava, sucedendo-a até o ambiente se estabilizar dinamicamente (FRANCO, 2007, p. 06).
132
agrossilvicultura. Cada espécie ou cultura foi disposta e plantada de acordo
com seus requerimentos ecológicos para possibilitar seu desenvolvimento
adequado, atendendo a necessidade de nutrientes, água, radiação solar e área
que ocupa no local (FRANCO, 2007, p. 05), sendo essas características
combinadas através de um planejamento elaborado pela equipe técnica
executora com contribuições dos participantes do projeto.
Para o planejamento do SAF, a equipe técnica elaborou um croqui
(Anexo I) com uma proposta de implantação adequada ao terreno e mudas e
sementes disponíveis. O passo a passo de sua construção foi apresentado aos
participantes com o intuito de obter contribuições à proposta, como quais
culturas anuais eles desejavam produzir neste núcleo, ao mesmo tempo em
que ocorria a formação do grupo sobre o tema, e assim o processo fosse
construído de forma mais participativa.
A área destinada para o SAF forma um núcleo produtivo de
aproximadamente 1.000m² do terreno, onde foram utilizadas 152 mudas de
plantas arbóreas dentre 38 espécies, em sua maioria nativas da Floresta
Atlântica como mostra a tabela 09. As plantas estão dispostas em oito linhas no
sentido Leste-Oeste para obter boa luminosidade solar, com espaçamento de
três metros entre as mudas e entre as linhas de plantio. Entre as mudas, de
forma sucessiva em toda linha, estão intercalados plantios de margaridão
(Tithonia diversifolia), como fonte de biomassa e sombra, e adubação verde
com bananeiras, como fonte de nitrogênio, potássio e água. Nas entre-linhas
são plantadas culturas anuais como abacaxi, abóbora, mandioca, milho e feijão
de forma associada e rotativa a cada ciclo específico e de acordo com o
calendário agrícola dos participantes.
Tabela 09: Mudas plantadas e sua disposição no Sistema Agroflorestal
Linha 1 Linha 2 Linha 3 Linha 4 Linha 5 Linha 6 Linha 7 Linha 8
Araçá Eritrina Jatobá Ipê amarelo Araçá
Ipê amarelo Jatobá Eritrina
Banana Araucária Banana Guabiroba Banana Guabiroba Banana Araucária
Goiaba Banana Ingá Banana Ingá Banana Ingá Banana
Paineira Uvaia Jacarandá mimoso Pitanga Guanandi Pitanga Araribá Uvaia
Banana Manga Banana Jabuticaba Banana Jabuticaba Banana Manga
Pitanga Banana Jatobá Banana Goiaba Banana Jatobá Banana
Urucum Quaresmeira Pindaíva Pau brasil Cambuci Mirindiba Pindaíva Quaresmeira
Banana Cambuci Banana Palmito juçara Banana
Palmito juçara Banana Cambuci
133
Araçá Banana Cereja do rio grande Banana Café Banana
Cereja do rio grande Banana
Sibipiruna Goiaba Imbiruçu Castanha maranhão Jequitibá
Castanha maranhão Imbiruçu Goiaba
Banana Guabiroba Banana Palmito juçara Banana
Palmito juçara Banana Guabiroba
Urucum Banana Ingá Banana Café Banana Ingá Banana
Cereja do rio grande
Aroeira salso Guabiroba Mirindiba Cambuci Pau Brasil Guabiroba
Aroeira salso
Banana Manga Banana Jabuticaba Banana Jabuticaba Banana Manga
Jabuticaba Banana Ingá Banana Goiaba Banana Ingá Banana
Paineira Uvaia Pau ferro Guabiroba Guanandi Guabiroba Alecrim de campinas Uvaia
Banana Araucária Banana Jerivá Banana Jerivá Banana Araucaria
Goiaba Banana Grumixama Banana Ingá Banana Grumixama Banana
Tangerina Eritrina Cabreúva Ipê roxo Araçá Ipê roxo Cabreúva Eritrina
Fonte: Tabela elaborada pelo autor a partir de dados presentes no croqui do Sistema Agroflorestal de Itatuba e
relatórios do projeto Colhendo Sustentabilidade.
Na escolha das espécies utilizadas no SAF, procurou-se atentar para o
uso de plantas mais rústicas e adequadas ao ecossistema da região, e no
plantio, combiná-las da melhor forma possível em um adensamento e
disposição que favorecesse o processo de sucessão natural entre elas, além
de permitir seu consorciamento com a introdução de culturas anuais ao longo
de seu desenvolvimento. Nas fotos 24 e 25 é possível observar a diferença no
gradiente da paisagem com relação ao segundo plano das imagens. Na foto 24
é nítida a diferença que compõe a paisagem, e na foto 25 essa evidência passa
a ser minimizada com o crescimento do SAF, ou seja, ele começa a se integrar
a paisagem do bioma.
Foto 24: Área do SAF preparada antes de
sua implantação no terreno
Foto 25: Área do SAF após um ano e meio
de crescimento das espécies plantadas
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 14/06/2009 e 25/02/2011.
A implantação do SAF procurou otimizar os efeitos benéficos das
134
interações que ocorrem entre os componentes arbóreos e as culturas, a fim de
obter maior diversidade de produtos à segurança alimentar e à comercialização
em diferentes épocas do ano, incrementado a renda dos participantes em curto,
médio e longo prazo. Ou seja, se consegue rendimentos econômicos a partir
das culturas anuais e plantas frutíferas de ciclo curto, enquanto se aguarda a
maturação das espécies florestais de ciclo mais longo (FRANCO, 2007, p. 08).
De acordo com Furlam (2006, p. 09-10),
[...] A articulação entre sistemas agroflorestais, geração de renda e
segurança alimentar é possível e seu êxito depende
fundamentalmente do trabalho das comunidades e das iniciativas que
promovam a cooperação e o intercâmbio de conhecimentos e
experiências locais. [...] O manejo por sistemas agroflorestais tem
demonstrado ser capaz de satisfazer as necessidades das famílias ao
longo do ano inteiro, e em muitos casos produzirem excedentes para
comercializar em mercados regionais, nacionais e internacionais. [...]
Esses efeitos benéficos também colaboram para diminuir as necessidades de
insumos externos ao sistema, reduzir os impactos que as práticas agrícolas
proporcionam no ambiente, e promover a recuperação de uma área degradada
em consonância com o ecossistema em que está inserido o sistema produtivo
como um todo (GLIESSMAN, 2005, p. 490; NARDELE; CONDE, [20--], p.04).
Um sistema agroflorestal toma o ecossistema local como referência para
sua elaboração e com isso pretende se aproximar ao máximo da dinâmica
natural do bioma em que está inserido. Assim, ele pode contribuir com os
mesmos benefícios que traz um agroecossistema sustentável com enfoque
agroecológico ao meio socioambiental local, aliando produção de alimentos e
conservação cultural e natural. Ou seja, possibilita a recuperação e a
conservação da fertilidade do solo, aumenta a biodiversidade na área, auxilia
na manutenção dos recursos hídricos, utiliza os recursos naturais de forma
sustentável, promove a recuperação e a conservação do ecossistema no local
e em seu entorno, valoriza o conhecimento tradicional dos agricultores,
possibilita maior segurança alimentar aos produtores, diminui os riscos em
eventuais perdas de cultivos, incrementa a renda das famílias e garante às
135
presentes e futuras gerações maior qualidade de vida, contrapondo-se ao
sistema de produção agrícola convencional dominante apresentado no capítulo
um. A figura 10 traz uma comparação entre as diferenças de manejo e de
sucessão entre um meio natural e um meio agroflorestal, e as compara com o
manejo da agricultura convecional.
Figura 10: Comparação entre a sucessão natural, agricultura convencional e agricultura
agroflorestal num ecossistema
Fonte: Sistemas Agroflorestais (FRANCO, 2007, p. 15).
Observa-se na figura 10, a ocorrência de um processo de sucessão
natural ao longo do tempo aonde, dentre outros fatores, o solo vai se
aprofundando e ganhando características de fertilidade junto com o aumento
da diversidade da vegetação até atingir um ponto de estabilidade. Com a
introdução da agricultura convencional dominante, essas características vão
sendo suprimidas com a introdução de monoculturas e o manejo agrícola feito
através de pacotes tecnológicos que usam maquinaria pesada e insumos
químicos industrializados, até que o sistema se torne degradado e
consequentemente improdutivo. A partir do uso de técnicas agroecológicas
introduzidas com a implantação de um sistema agroflorestal, a fertilidade do
solo e a diversidade da vegetação aumentam de forma concomitante entre
136
esses e outros fatores, resgatando aspectos de um ecossistema natural, porém
em um período de tempo mais curto devido ao manejo seletivo dos agricultores
feito de forma sustentável.
As atividades de implantação inicial dos núcleos de cultivos geralmente
são realizadas em mutirões de um ou dois dias que reúnem os agricultores do
sistema produtivo e pessoas voluntárias, tanto da comunidade como de outras
regiões. Essa é uma forma de apoio mútuo comum entre agricultores
familiares, onde se reúnem vizinhos e amigos para um dia de trabalho na
propriedade de uma família agricultora, que fornece alimentação aos demais.
Assim, sempre que há a necessidade ou como um compromisso cordial entre
os agricultores, eles se revezam para agraciar a cada período uma família
diferente (NARDELE; CONDE, [20--], p. 14). Com esse espírito, o projeto visa
resgatar essa prática nas atividades mais significativas ou iniciais de um núcleo
de produção comunitário, sempre de forma planejada e formativa.
No agroecossistema de Itatuba os mutirões para implantação dos
núcleos de lavoura, do sistema agroflorestal, e de horticultura em seu início,
foram todos pré-planejados de forma que se beneficiassem todos os
envolvidos, com uma formação mais efetiva sobre as atividades realizadas.
Também para compreenderem a importância de sua realização em mutirão,
uma forma de resgatar práticas cooperativas tradicionais que se perderam ao
longo dos anos e trazê-las de forma adequada a uma nova realidade inserida
no contexto da cidade.
Foto 26: Mutirão para implantação de
lavoura
Foto 27: Mutirão para implantação da
agrofloresta
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 01/09/2009 e 26/06/2009.
137
Como fruto de todo esse trabalho realizado pelas famílias participantes
em conjunto com a equipe técnica a partir das propostas do projeto Colhendo
Sustentabilidade, vieram sucessivas e diversas colheitas dos produtos
cultivados. Em linhas gerais, pode-se dizer que ao longo de três anos de
atividades no agroecossistema de Itatuba foram colhidas quantidades e
qualidades consideráveis de alimentos destinados para suprir boa parte da
demanda alimentar das famílias envolvidas na produção e ainda gerar um bom
excedente. Na primeira fase do projeto, por dados de registro interno do
projeto, estima-se que foram realizadas mais de 5.000 colheitas em todos os
núcleos de cultivo desse sistema produtivo.
As boas colheitas indicam que é possível produzir alimentos saudáveis
no meio urbano e periurbano sem necessariamente degradar o ambiente onde
se dá a reprodução dos meios de vida, ao contrário, o conserva e o recupera a
partir de uma agricultura de base sustentável com enfoque agroecológico, onde
se considera tanto os ensinamentos científicos como os trazidos e construídos
de forma empírica pelos participantes ao longo das atividades descritas. Com
isso, garantiu-se um aumento na segurança alimentar e nutricional das famílias
envolvidas além de diversificar sua alimentação com produtos que geralmente
não se consumia, e gerar renda com o que elas deixaram de gastar com a
compra desses alimentos.
Figuras 11 e 12: Agricultores realizando as colheitas e levando os produtos
Fonte: figuras elaboradas a partir de fotografias realizadas por John H. B. Zappala entre 2009 e 2011.
138
Figuras 13 e 14: Algumas hortaliças e plantas anuais colhidas no agroecossistema
Fonte: figuras elaboradas a partir de fotografias realizadas por John H. B. Zappala entre 2009 e 2011.
O excedente dessa produção passou a possibilitar uma incipiente
experiência de comercialização direta no próprio agroecossistema e nas
vizinhanças, como também em eventos periódicos que aconteceram no
município. Os participantes colhiam os produtos e levavam a seus
consumidores ou estes vinham ao terreno realizar suas compras. A idéia de
gerar uma renda extra às famílias envolvidas começou a tomar corpo e elas
começaram a se organizar para ampliar a produção e formar um fundo
financeiro com a renda que entrava pela venda das hortaliças. A princípio essa
organização ficou sob responsabilidade da equipe técnica executora com o
acompanhamento dos participantes. Nesse momento, as famílias envolvidas no
sistema produtivo localizado no parque municipal Francisco Rizzo também
estavam integradas pela proposta de comercialização e então os dois grupos
se uniram para um fortalecimento mútuo.
Com o tempo, o foco da produção destinado para auto-consumo passou
a mudar para o da comercialização, sem necessariamente deixar o outro de
lado. Com isso, algumas famílias que não estavam pré-dispostas a se
organizar em um grupo com a finalidade de comercializar produtos, optaram
por sua saída do projeto. Outras não permaneceram por dificuldade em se
adaptar as propostas de formar um grupo organizado sem hierarquias onde se
pudesse produzir de forma cooperada. Alguns conflitos de idéias e princípios,
além de financeiros, inevitavelmente começaram a surgir, o que também
afastou algumas pessoas. Assim o grupo foi se selecionando até atingir a
configuração atual com sete integrantes.
139
Apesar da saída de muitas famílias, a formação desse grupo associado
constitui-se em uma das maiores conquistas do projeto e dos próprios
participantes. A partir dele ficou evidente que além de produzir alimentos
saudáveis de forma sustentável para o auto-consumo, através da agricultura
urbana e periurbana também é possível gerar trabalho e renda com a prática
da comercialização do excedente da produção, e ainda suprir uma parcela da
demanda local por produtos agrícolas. Entretanto, é preciso salientar que a
agricultura urbana e periurbana não pretendem substituir a agricultura rural, e
sim complementá-la (PLANEJAMENTO..., 2006). Além disso, no grupo
permaneceram aqueles que mais se apropriaram e tomaram para si os
princípios e conceitos da agroecologia, passando a ser multiplicadores dessa
forma de entender o mundo e se relacionar em sociedade, ao menos como
agricultores. Tornaram-se assim, uma referência no município no que diz
respeito à agricultura de base sustentável, ainda que com muitos desafios a
serem superados.
A organização desse grupo culminou com a formação do
empreendimento popular de economia solidária ―Elo da Terra‖ em janeiro de
2010. Em caráter informal e experimental, eles passaram a comercializar sua
produção em uma banca instalada uma vez por semana em frente ao parque
Francisco Rizzo. O experimento rendeu bons frutos e os integrantes passaram
a realizar esse ponto de comercialização de forma permanente as quartas-
feiras. Hoje eles também escoam sua produção para restaurantes,
empreendimentos solidários de consumo consciente, em eventos municipais e
regionais, diretamente nos sistemas produtivos como no início, e numa feira
denominada ―Feira Agrossustentável‖, realizada quinzenalmente aos domingos
no mesmo parque municipal junto a outros agricultores urbanos e periurbanos
do município e região que são acompanhados pelo projeto. Em média eles
chegam a comercializar entre oitocentos a mil reais por mês, e a renda obtida é
distribuída entre os integrantes do grupo de acordo com as horas trabalhadas
de cada um, e uma pequena parcela fica no fundo de investimentos58 como
58
No caso do Elo da Terra, o grupo decidiu em assembléia por ter um fundo de investimento indivisível,
ou seja, ele não pertence aos membros, mas ao empreendimento. Nesse molde, o fundo sinaliza que o
empreendimento não está a serviço de seus membros, mas de toda sociedade (SINGER, 2002, p. 15).
140
garantia para qualquer eventualidade ou necessidade do grupo. O
acompanhamento desse empreendimento é realizado pelos técnicos do projeto
através de um processo de incubação59 seguindo os conceitos e princípios da
Economia Solidária.
A idéia central nas formas de comercialização do grupo é sempre trazer
a compra para mais perto da produção e assim melhorar os preços dos
produtos de forma justa, tanto para os agricultores como para os consumidores.
Isso também possibilita melhorar a qualidade dos produtos ofertados, já que
eles chegam mais frescos ao destino final. Os consumidores possuem um
papel muito importante nesse processo, pois ao estimular os produtores locais
através da compra direta, o mercado local também é fortalecido, criando maior
independência da economia de mercado (INSTITUTO GIRAMUNDO
MUTUANDO; PROGERA, 2009, p. 20).
Atualmente a economia de mercado é pautada pela competitividade em
todas as suas esferas, desde a produção até o trabalhador. Com a junção de
empresas multinacionais, por um lado essa competição na economia foi
minimizada sem deixar de existir e ser orientadora da sociedade, e de outro,
criaram-se oligopólios gigantescos que acabam por reger a vida e
consequentemente o pensamento das pessoas (SINGER, 2002, p. 07). Em
partes, isso explica porque a economia atual produz desigualdade de forma
crescente na sociedade, pois se há competição necessariamente deve haver
um ganhador e, no caso, alguns milhões de perdedores. De acordo com Singer
(2002, p. 09) ―para que tivéssemos uma sociedade em que predominasse a
igualdade entre todos os seus membros, seria preciso que a economia fosse
solidária em vez de competitiva‖. E mais, uma sociedade diferente da atual não
deve se pautar apenas na esfera econômica para guiar seus rumos, e sim ter
esse aspecto como parte das outras formas de ―organizar a casa‖ no seu todo.
Para isso as pessoas devem procurar cooperar entre si ao invés de competir
Em caso de encerramentos das atividades, esse fundo será repartido entre os integrantes que estiverem
no corpo de trabalho nesse momento, de acordo com o tempo de colaboração de cada um ao
empreendimento. 59
Incubação é um processo de acompanhamento permanente realizado por terceiros, geralmente com uma
metodologia participativa, que dá assessoria para identificar demandas em empreendimentos
populares e planejar estratégias a serem adotadas de acordo com sua realidade (AUTOGESTÃO...,
2007, p. 17).
141
para se reproduzir socialmente. De forma deturpada, essa cooperação existe
no interior da economia de mercado, pois cada atividade especializada
depende da outra para ser completa. Ocorre que, essa forma de cooperar não
está organizada igualitariamente ou equitativamente, pois as pessoas estão
associadas através de um contrato entre desiguais, e não entre iguais como
propõe a economia solidária (Idem, ibid., p. 09).
Na forma de produção cooperada que a equipe técnica propõe ao grupo
de agricultores, todos devem ter direitos sobre a parcela de renda obtida, de
acordo com sua dedicação no empreendimento, e sobre as decisões tomadas
sempre em assembléias, onde ninguém manda em ninguém. Se houver
progressos todos ganham e se houver prejuízos todos compartilham (Idem,
ibid., p. 10). No processo de formação dos integrantes, se enfatiza o
entendimento de que a desigualdade não é natural como se faz crer no modo
atual de organização das atividades econômicas. A aplicação dos princípios de
produção e propriedade coletiva une todos na busca de um objetivo comum,
onde a solidariedade e a equidade regem as ações do empreendimento.
Contudo, há a necessidade de uma orientação permanente para que se atinjam
esses objetivos, e que é feita através do processo de incubação do grupo. Em
concordância com Gonçalves (2010, p. 109) pode-se dizer que:
No decorrer dos trabalhos, essa experiência ganhou um caráter
maior, de transformações nas relações sociais locais, principalmente
quando se pensa nas relações de trabalho com os princípios da
economia solidária. A experiência também mostrou um caráter de
novas apropriações do espaço, com o uso do solo para produzir
alimento para o auto-consumo e para a comercialização, algo não
comum em se tratando de espaço urbano.
No processo de incubação, o grupo é orientado para a construção de um
empreendimento popular de agricultura urbana e periurbana administrado de
maneira democrática pela autogestão, na busca de atingir uma autonomia em
sua organização, estrutura e recursos financeiros. Através da autogestão as
decisões são tomadas coletivamente em assembléias realizadas pelo grupo
142
semanalmente, visando uma horizontalidade nas relações internas (SINGER,
2002, p. 18). Contudo, as pessoas não são naturalmente inclinadas à
autogestão por estarem imersas num contexto alienante promovido pelo modo
de organização econômico da sociedade moderna pautado pela diferença e
hierarquia nas relações de trabalho, e por isso não raras vezes essa prática
corre o risco de ser corroída pela ―lei do menor esforço‖, pois é muito raro que
algum integrante se preocupe em discutir se alguma decisão tomada foi
realmente a melhor (Idem, ibid. p. 20-22, grifo nosso). O bom funcionamento da
autogestão está ligado à participação quantitativa e qualitativa de cada
integrante, implicando em uma mudança na cultura de produção e de gestão
no empreendimento, e necessariamente na cultura de todos os envolvidos
(AUTOGESTÃO..., 2007, p.12). Com a incubação, os técnicos executores
procuraram realizar uma formação nesse sentido e elaborar participativamente
formas de sistematização do trabalho, planejamento de produção e
comercialização, organização das atividades, distribuição de tarefas, e a
criação de um regimento interno com as diretrizes que orientam o
empreendimento. Também houve diálogos sobre resolução de conflitos,
métodos de administrar a renda obtida, formas de retiradas mensais60,
maneiras de captação de recursos através de projetos, além de uma orientação
para uma institucionalização do empreendimento, já que ele ainda se encontra
na informalidade, o que dificulta o acesso a recursos e financiamentos. Troca
de experiências com outros agricultores e outros empreendimentos solidários
também fizeram parte da formação do grupo, junto a uma série de
participações em eventos relacionados à agroecologia e a economia solidária.
Assim, o grupo foi se tornando mais maduro com o tempo e hoje já
apresenta indicadores de que pode chegar a uma estrutura autônoma
cooperada, mas um acompanhamento orientador ainda se faz bastante
necessário, sobretudo no que tange os ensinamentos da Economia Solidária.
Existem fragilidades em sua estrutura organizacional e dificuldades em
aumentar a retirada mensal dos integrantes, pois ela ainda é muito baixa para
60
Em empreendimentos solidários os integrantes não recebem salários escalonados que visam à
maximização dos lucros, mas sim retiradas que variam conforme a receita obtida, onde o grupo decide
coletivamente se as retiradas devem ser iguais ou diferenciadas entre os membros (Idem, ibid., p. 12).
143
que eles possam viver apenas com essa renda. Com isso, boa parte do grupo
não se dedica exclusivamente às atividades ligadas diretamente ao
agroecossistema, o que dificulta ainda mais a formação de um
empreendimento coeso e economicamente viável. Algumas outras dificuldades
atuais estão deixando os integrantes do grupo um tanto preocupados, como
com a ocorrência da venda do terreno público onde está o agroecossistema de
Itatuba. Esse fato deixou o empreendimento bastante incerto quanto a sua
continuidade, pois nessa área está o principal sistema de produção agrícola do
grupo. Contudo, eles estão organizados para lidar com o problema e até certo
ponto confiantes quanto a sua permanência no local.
Foto 28: Banca semanal em frente ao
parque municipal
Foto 29: Comercialização na Feira
Agrossustentável
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 31/01/2011 e 03/07/2011.
O projeto Colhendo Sustentabilidade também vive um momento de
transição com o fim do convênio entre a prefeitura municipal e a SEAE para o
repasse de recurso em sua segunda fase. O poder público local está
assumindo a responsabilidade em continuar as propostas do projeto nas
comunidades onde ele está inserido e assim não paralisar todo trabalho. Por
outro lado, parte da equipe técnica executora firmou um compromisso entre os
membros do corpo interno de trabalho para dar continuidade às ações
realizadas, porém de forma voluntária, como uma militância pela causa, mas
não com a mesma freqüência diária que é possível pela remuneração que é
feita ao trabalho, suprindo os gastos necessários para uma atuação integral. O
intuito principal desse voluntariado consiste, principalmente, em não permitir
144
que haja um impacto negativo nas comunidades com uma transição brusca,
onde se corre o risco de que parte, ou toda proposta se perca.
Nesse sentido, conforme apresentado ao longo do texto, há um grande
potencial à conservação da diversidade cultural e natural nas ações
desenvolvidas através da implantação do agroecossistema de Itatuba que não
pode ser desperdiçado devido a dificuldades conjunturais transitórias por parte
das agências de fomento ao projeto. Dessa forma, o acompanhamento da
equipe técnica executora no agroecossistema de Itatuba, assim como ao Elo
da Terra, continua sendo realizado, ainda que com menor freqüência, mas com
o mesmo intuito de promover junto aos agricultores uma transformação
socioambiental em âmbito local e regional.
Fotos 16 e 30: Imagens de dois momentos do agroecossistema de Itatuba no mesmo ângulo de
visão: no início em dezembro de 2008 e após três anos de atividades em novembro de 2011
Fonte: fotografias realizadas por John H. B. Zappala respectivamente em 16/12/2008 e 04/11/2011.
5.4. Troca de experiências e saberes
Ao longo de todo processo de implantação do agroecossistema em
Itatuba houve uma intensa troca de experiências e saberes entre a equipe
técnica do projeto e as famílias envolvidas, e entre elas próprias, o que
enriqueceu sobremaneira toda proposta.
Como colocado no item anterior, o autor da presente análise integra a
equipe de trabalho que executou o projeto em suas duas fases como um dos
coordenadores técnico-pedagógico na implantação de sistemas produtivos e de
formação das famílias nas comunidades do município. Essa função
145
essencialmente se desenvolveu com atividades diárias de campo junto aos
participantes nas comunidades do município. Através de registros diários, o
material coletado em campo foi regularmente anotado contendo as atividades
desenvolvidas nos encontros, conversas do cotidiano, relatos espontâneos,
expressões e impressões que posteriormente eram transferidas para relatórios
mensais.
Por essa fonte de dados, tomando como base a análise qualitativa
interpretativa de observação participante61, procuraremos trazer alguns
depoimentos relativos ao acompanhamento atual, feitos especificamente pelos
participantes do agroecossistema de Itatuba e que correspondem aos
integrantes do empreendimento solidário Elo da Terra, com ênfase em parte da
história de vida dessas pessoas no que tange seu passado camponês, sua
migração ao município de Embu das Artes e as contribuições que o projeto
trouxe à suas vidas através de seu enfoque agroecológico.
Houve um trabalho de acompanhamento muito próximo das famílias
participantes, o que permitiu uma relação de cumplicidade entre elas e o autor.
Dessa forma, em grande medida, elas deixaram de olhar para o técnico como
um agente externo ao trabalho, mas sim como um deles. Claro que sempre
houve uma relação diferente, pois o estereótipo de técnico não deixou de existir
perante os participantes, apenas foi amenizado com o tempo nas conversas e
práticas do cotidiano.
De acordo com Bosi (2003, p. 60), numa relação entre pesquisador e
depoente, de maneira análoga no projeto, entre técnico e participante, “[...]
ambos sofrem o peso de estereótipos, de uma possível consciência de classe,
e precisam saber lidar com esses fatores no curso da entrevista‖, em particular,
neste caso, dizemos ―no curso das atividades‖. Segundo a autora, lapsos e
incertezas nos relatos possibilitam a autenticidade às falas das pessoas e,
muitas vezes, os que falam de forma segura e linear correm maior risco de
serem levados pelo estereótipo (BOSI, 2003). Sem o intuito de fazer uma
entrevista onde se pretende coletar histórias orais dos interlocutores, esse
processo ocorreu naturalmente ao longo das ações do projeto através dos
61
Ver a introdução do trabalho no que se refere à análise qualitativa interpretativa de observação
participante.
146
registros de campo onde se captavam essas informações orais dos
participantes como indicadores do trabalho. Assim, o risco de cair em
estereótipos ou falas evasivas foi bastante reduzido, já que as anotações eram
realizadas durante o trabalho, sem que houvesse pausas para tais relatos.
A coleta de dados via oral promove a produção de uma nova
documentação sendo um contraponto a documentação oficial do que se está
pesquisando e por preencher um vazio intransponível deixado por documentos
impressos (DEBERT, 1986, p. 141). Também por possibilitar um diálogo entre
pesquisador e pesquisado, aqui entre técnico e participante, o que não ocorre
na relação com documentos (Idem, ibid.). Os diálogos trazem a sensação de
estarmos mais próximos dos fatos relatados pelas pessoas, e:
―É assim que histórias de vida e relatos orais fazem convites
irrecusáveis para rever interpretações, desenvolver novas hipóteses e
encaminhar novas pesquisas de forma a refinar os grandes conceitos
explicativos e seus pressupostos‖ (DEBERT, 1986, p. 156).
Durante as atividades com os participantes não se procurava ter
diálogos baseados em verdades universais, pois não existem verdades
incontestáveis, onde cada um conta a sua verdade (BOSI, 2003). Tem-se que
levar em conta que o pesquisador possui uma visão de mundo e a transforma e
é transformada pela realidade que investiga assim como a sociedade analisada
também está suscetível a mudança. Portanto, o pesquisador será, em certa
medida, influenciado pelo seu posicionamento teórico-metodológico (CASTRO
OLIVEIRA, 1998, p. 06-09).
Posto isso, buscamos nos depoimentos dos participantes do projeto
formas de enriquecer a análise teórica aqui realizada, procurando situá-los
através do posicionamento intelectual do pesquisador, e assim possibilitar
novas contribuições aos temas pesquisados através de sua visão e claro, do
que é interpretado pela e da visão dos participantes. Selecionamos algumas
passagens de relatos de seis integrantes do empreendimento solidário Elo da
Terra para extrair de suas percepções fatos que possam ser relacionados a
título de exemplo com algumas idéias centrais trazidas ao longo deste trabalho.
147
Como visto acima no texto, Embu das Artes é composta por uma
população essencialmente de migrantes, o que podemos verificar no que se
refere às distintas origens dos participantes selecionados, dada as devidas
proporções, pois não se trata de um censo, mas de evidências específicas.
Dentre essas pessoas, se verificam três mulheres, Andradina (―Dina‖), Josefa
(―Zefa‖) e Maria Conceição (―Ceiça‖); e três homens, Alcides (―Mãe Branca‖),
Carlos e Gilson. Com origens em cidades do interior, no estado da Bahia temos
Zefa, de Minas Gerais, Dina e Ceiça, do Paraná, Mãe Branca, do interior de
São Paulo, Gilson, e da capital, Carlos. As que vieram de outros estados e do
interior de São Paulo migraram ainda jovens, com idades entre doze e vinte
anos, sempre com a ilusória expectativa de melhorar de vida, segundo seus
relatos. Alguns passaram por outras cidades até se fixarem em Embu das Artes
em média há 45 anos. Trata-se, portanto, de pessoas entre 50 e 75 anos de
idade, ou seja, com larga experiência de vida.
Com exceção de Carlos e Gilson, todos os demais tiveram um passado
camponês em suas origens, e mesmo que tenham migrado ainda jovens,
carregam com distintas emoções essa vivência no campo. Boa parte de sua
formação, quando crianças e jovens, ocorreu durante o trabalho tradicional na
terra, o que acarretou na produção de sua cultura. As impressões, formas de
trabalho e influências da agricultura se distingue na vida de cada um.
Carlos nasceu na capital paulista e seu contato com a agricultura
ocorreu depois de já estar em idade madura, com um atual desejo de
transformar Embu das Artes em um celeiro de produtos agroecológicos. Gilson
nasceu e viveu sua juventude no interior de São Paulo, residindo em uma
fazenda em que seu pai era empregado, e apesar de não ter chego a lidar com
o cultivo da terra, guarda muitas lembranças desse período no campo.
Dina e Ceiça foram camponesas que trabalhavam como agregadas em
distintas fazendas no interior de Minas Gerais. Ambas viviam da produção
familiar de diversos tipos de culturas agrícolas e criação de animais, as quais
eram utilizadas para consumo e venda do excedente apenas para adquirir
produtos que não possuíam. O manejo da terra era feito de modo tradicional,
sem uso de insumos industrializados ou máquinas. Ceiça conta que adaptava
148
os cultivos ao clima e em determinados períodos realiza mutirões recíprocos
com os vizinhos para implantação das lavouras. É comum notar em ambos os
relatos a presença de uma contradição no sentimento por aquele tempo: elas
dizem que a vida era boa, pois plantavam o que comiam, mas por outro lado foi
um período de muito sofrimento e chegavam até a passar fome. Como suas
famílias trabalhavam como agregadas e não tinham a posse da terra, elas
eram sujeitas ao dono da fazenda, que impunha sua lógica para retirar a renda
da terra que elas cultivavam. Assim, quando havia perdas nos cultivos, o que
ficava para sua família era muito pouco até mesmo para o mínimo necessário
na alimentação. Daí decorre a contradição: serem satisfeitas por produzir
alimentos, mas estarem sujeitas aos ditames do patrão.
Ao contrário delas, Zefa, na Bahia, e Mãe Branca, no Paraná,
praticavam a agricultura tradicional familiar em terras próprias, o que confere
significativas diferenças em seus relatos. O manejo da terra era similar, feito de
forma tradicional, associando culturas agrícolas em consonância com o meio
ambiente, também para consumo, venda e troca do excedente para aquisição
de produtos que não produziam. Por não estarem sujeitas a um patrão e a
renda da terra não ser essencialmente voltada para o mercado, suas vidas
eram relativamente mais autônomas, pois a fartura das colheitas retornava em
benefício próprio. Apesar de relatarem que o trabalho era duro, não passavam
necessidades, mesmo que tivessem alguma perda nos cultivos, sempre havia
algo que eles podiam colher devido à diversificação na produção. Daí a
diferença com relação a Dina e Ceiça, que apesar de terem cultivos diversos,
esses estavam sob a posse do patrão e voltados para a lógica de mercado.
Contudo, de acordo com Mãe Branca, a vida no campo começou a
mudar quando o governo começou a pagar pela retirada das culturas que
produziam para implantar pacotes tecnológicos com o intuito de modernizar a
agricultura. Esse fato gerou endividamento das famílias e por não terem como
pagar, passaram a vender suas terras e migrar para outros lugares em busca
de uma outra vida. Nesse caso, temos um exemplo da ampliação da sujeição
da renda da terra ao capital, como apresentamos no capítulo dois e três, onde
a lógica da produção capitalista na agricultura passa a subordinar os
149
camponeses de forma mais incisiva ao seu benefício e excluí-los socialmente.
Passando para o momento atual, do envolvimento dessas pessoas com
o projeto Colhendo Sustentabilidade, encontramos relatos sobre como a
agroecologia impactou suas vidas. Em geral, encontramos nos relatos que
esse fato lhes trouxe benefícios, como poder resgatar parte de seu passado na
agricultura tradicional, produzir seu próprio alimento de maneira saudável e
sustentável, e ter novas oportunidades de trabalho e geração de renda. As
técnicas e conhecimentos da agroecologia se somaram e ampliaram o saber
desses participantes do projeto, passando assim a terem novas compreensões
sobre como a agricultura está relacionada com o meio ambiente e como isso
pode transformar a realidade em que vivem e de toda população.
Para Zefa, o trabalho realizado em grupo no projeto lhe traz mais
estímulo, pois um ajuda o outro a chegar a um objetivo comum, e ela pode,
através do empreendimento solidário Elo da Terra, gerar uma renda extra e
complementar sua alimentação. Ceiça relata que aprendeu a ―alimentar‖ a terra
como se deve, de forma que o ambiente não seja degradado e a terra retribua
com alimentos para as pessoas, pois é dela que nós vivemos. Ela considerara
que com apenas um gesto proposto por esse trabalho agroecológico, eles
podem estar contribuindo para manter as riquezas naturais às presentes e
futuras gerações. De forma análoga, encontramos nos relatos de Dina que a
agroecologia preza pela continuidade da vida no planeta e sem ela o ser
humano irá perecer, pois, pela interpretação do autor, para ela a forma de
produção agrícola moderna irá deteriorar o meio de sobrevivência das pessoas.
Segundo Mãe Branca, seu conhecimento se juntou com o saber agroecológico
e se tornou ainda mais útil para ele e para seus companheiros. Gilson relata
que passou a ter maior noção sobre a importância do cuidado com a terra após
seu contato com a agroecologia. De acordo com seu relato, todas as pessoas
têm uma origem, uma história, e no projeto é possível trocar os diversos
saberes contidos na cultura de cada um. Para ele, o trabalho que eles
desenvolvem mostra ao sistema que existe outro meio de viver e se reproduzir
em sociedade. Tomaremos esses relatos para fechar nossa interpretação, com
complementações nas considerações finais que vem a seguir.
150
6. Considerações Finais___________________________________________
Ao longo do presente trabalho, procurou-se abordar alguns temas de
forma que eles pudessem ser relacionados uns com os outros no decorrer dos
capítulos dois a quatro, e por fim eles fossem uma das bases para a discussão
do capítulo cinco. A título de recapitulação, os capítulos iniciais discorreram
sobre a agroecologia, o saber tradicional camponês e a conservação da
diversidade cultural e natural pela agricultura; e o capítulo final procurou uma
abordagem envolvendo uma experiência prática em agroecologia que pudesse
ser relacionada às idéias dos primeiros capítulos.
Em geral, procuramos trazer na análise os conceitos básicos sobre a
agroecologia, como sua prática pode possibilitar uma agricultura sustentável e
através de um diálogo de saberes mudar a forma das pessoas em produzir
alimentos e se relacionar entre elas e com a natureza. Enfatizou-se seus
benefícios para a conservação das riquezas naturais nos agroecossistemas
que estão sob seu enfoque, assim como, quanto à produção agrícola está
intimamente relacionada com as questões sociais e culturais que a compõe. A
agroecologia fornece conceitos e princípios que contribuem para uma
transformação nas relações socioambientais hoje estritamente orientadas pela
economia de mercado.
Para tanto, buscou-se estabelecer como contraponto a agricultura tida
como convencional, praticada a partir da Revolução Verde junto a toda gama
de transformações trazidas por pacotes tecnológicos aplicados na produção
agrícola, que culminaram na degradação ambiental, perca da diversidade
natural dos ecossistemas e cultural das populações tradicionais camponesas,
estratificação social e avanço do capitalismo sobre a produção de alimentos.
Porto Gonçalves (2004) mostra que a agricultura praticada no Brasil a partir da
Revolução Verde tornou-se hegemônica e tida como modelo entre os
agricultores de todo país. Sucintamente, esse processo promoveu em muitos
locais a perda do modo de cultivo que era praticado a diversas gerações,
visando seu enquadramento nos novos parâmetros agrários/agrícolas
baseados na devastação de áreas para a produção de monoculturas.
151
Também, buscou-se trabalhar sobre o saber tradicional camponês e
suas implicações na agricultura e nas relações de reprodução da população
camponesa. Trouxemos, em linhas gerais, algumas práticas da agricultura
tradicional e como elas estão intimamente ligadas ao meio e aos ciclos naturais
que compõem os ecossistemas. Tais práticas permitem não só a conservação
das riquezas naturais, como também, possibilitam o entendimento de como é
possível voltar a olhar o humano como parte da natureza. Vimos que são
consideradas populações tradicionais camponesas aquelas que, através de
seus princípios e conceitos básicos, cultivam alimentos de acordo com sua
necessidade e em consonância com a natureza, produzindo assim sua cultura.
O conceito de camponês foi aqui analisado em suas esferas social e
moral. Em âmbito social, o camponês se constitui como uma classe criada e
recriada pelo capitalismo, e dessa forma o contradiz constantemente por terem,
os camponeses, práticas não essencialmente capitalistas de produção na
agricultura. Em sua esfera moral, o camponês traz valores solidários de relação
entre as pessoas e o trabalho e de integração com a natureza que podem
contribuir com uma vida menos fragmentada e de maior equilíbrio com os
ecossistemas. Esses valores não deixam de acompanhar o camponês seja
onde ele estiver. Mesmo ao migrar, sua cultura migra com ele, e isso é um fator
essencial à sua integridade enquanto sujeito, além de transformar o lugar onde
vive quando têm a possibilidade de transmitir seus conhecimentos.
No que tange a conservação da diversidade biológica e cultural em
nossa sociedade, observamos que motivos ligados ao modo de vida capitalista
e ao pensamento reducionista cartesiano levaram a humanidade a se
relacionar com natureza de uma maneira utilitarista e preservacionista. O
produtivismo decorrente do modo capitalista de produção transforma a
natureza em mercadoria, e faz de suas riquezas um modo de manter sua lógica
reprodutiva de sujeição e degradação. A dissociação homem-natureza, inerente
ao pensamento cartesiano moderno, orientou a criação de espaços protegidos
onde as pessoas não podem habitar ou tem sua vida controlada pelas
restrições de uso do solo que são estabelecidas nessas áreas, sobretudo por
não serem consideradas como parte do ecossistema, muitas vezes
152
mantenedoras e estimuladoras da biodiversidade.
Segundo Diegues (2000), é fundamental investigar a necessidade de
conservar a biodiversidade junto à conservação da diversidade étnica que
existe nesses locais. Essas populações tradicionais são responsáveis não só
pela manutenção do ecossistema como também são fundamentais ao
enriquecimento da vida nesses locais através do manejo agrícola que praticam
cotidianamente. Assim, sua relação com a conservação da natureza é direta e
essencial ao ecossistema. Motivados pela busca por novas formas de
conservação cultural e natural, procuramos algumas alternativas para conciliar
envolvimento humano e conservação da natureza de maneira democrática e
sustentável, buscando um conhecimento adquirido pelas mais diversas
sociedades ao longo do tempo. O resgate do saber tradicional das populações
camponesas que habitam estes espaços e sua associação com a agroecologia
pode ser uma das principais transformações necessárias para a eficiência em
atingir o objetivo da conservação em áreas especialmente protegidas em que
haja atividades humanas produtivas.
Assim, buscamos entender como pode ser possível conciliar a
conservação da biodiversidade e da diversidade sócio-cultural através de uma
agricultura sustentável. Nesse contexto, a agroecologia fornece uma gama de
teorias e práticas possíveis de serem utilizados para amenizar os impactos no
ambiente e possibilitar o resgate do envolvimento humano com a natureza
através da agricultura. A possibilidade de conservação da biodiversidade e do
equilíbrio ecossistêmico associado ao uso sustentável das riquezas naturais é
ainda mais efetiva quando são integrados o conhecimento agroecológico e o
saber tradicional camponês, enriquecendo sobremaneira as formas de pensar
e agir perante a natureza e a produção de alimentos.
Uma efetiva apropriação da agroecologia pelo agricultor tradicional e a
associação de seu conhecimento a esta ciência permitem a elaboração de um
saber que vai além do plano conceitual. Este conjunto permite um olhar
diferenciado às relações socioambientais, sobretudo quando o sentimento de
pertencimento ao meio é resgatado e estimulado. Há uma re-valorização das
pessoas e de sua relação com o mundo natural. Uma população consciente e
153
organizada, além de promover o uso mais sustentável dos recursos, se
reproduz de maneira mais integrada, conservando sua cultura ao mesmo passo
que conservam o seu meio de existência, e em particular, entram em equilíbrio
com o todo que compõe a vida local, regional e mundial.
Muitas práticas da agricultura tradicional vão ao encontro do desejo aqui
proposto em atingir uma nova forma de vida, com a construção de um saber
plural e horizontal de integridade com a natureza. Por exemplo, essas práticas
adotam múltiplas formas de cultivo para assegurar uma produção constante de
alimentos, variando e adequando sua nutrição de acordo como os produtos que
serão colhidos num período do ano, além de produzir em sintonia com o clima,
o que dispensa a utilização excessiva de insumos, necessários caso os cultivos
fossem realizados fora de época. Ou seja, os alimentos são produzidos em
consonância com o meio e às necessidades fisiológicas humanas. Essa
diversificação também promove proteção e controle dos cultivos, pois eles
ficam menos suscetíveis ao aparecimento de enfermidades nas plantas e os
agricultores ficam precavidos das intempéries ambientais que podem ocasionar
perdas nas culturas mais sensíveis, garantindo assim alguma colheita.
Para chegarmos a objetivos realmente transformadores, as ações junto
à manutenção da agricultura tradicional devem operar na base, com um
enfoque de baixo para cima, começando pelos que ali estão, no âmbito local,
com suas necessidades e aspirações, seus conhecimentos em agricultura e
seus recursos naturais autóctones. Na prática, o enfoque consiste em
conservar e fortalecer a lógica produtiva dos camponeses mediante programas
participativos, utilizando-se de unidades demonstrativas que incorporem tanto
as técnicas tradicionais como as agroecológicas. Desta maneira, o
conhecimento e as percepções ambientais dos agricultores tradicionais ficam
integrados a esquemas de inovação agrícola que permitem a conservação das
riquezas culturais e naturais e possibilite um envolvimento local sustentável.
(ALTIERI; NICHOLLS, 2000, p. 33).
Entretanto, não se quer, e nem se pode, propor a resolução de todos os
problemas socioambientais através da agroecologia e de sua associação ao
saber tradicional camponês. Mas, se pode mudar a forma de se relacionar com
154
mundo através desse enfoque, criando um olhar crítico perante a realidade e
produzir possibilidades de transformações efetivas no mundo contemporâneo.
Há um longo caminho a se seguir em busca de uma nova relação
socioambiental que permita suprimir a diferença de classes e criar maior
sinergia entre as ações humanas e o uso das riquezas naturais.
Reverter um processo que foi construído com tamanha permissividade à
degradação e uso insustentável dos elementos constituintes da natureza,
baseado em relações de desigualdade e competição que se impuseram de
distintas maneiras nas mentalidades das pessoas como se fossem naturais,
contendo a verdade única e possível, quando na verdade elas resultam da
forma como se organizam as atividades econômicas capitalistas, dividindo a
sociedade entre aqueles que detêm a propriedade dos meios de produção e
aqueles que vendem a sua força de trabalho para ganhar a vida (SINGER,
2002, p. 10), requer determinação e persistência, além de tempo. Urge a
necessidade de uma transição do modo de vida atual a uma nova forma de se
relacionar em sociedade e com o meio ambiente.
Por meio da experiência prática em agroecologia do projeto Colhendo
Sustentabilidade em Embu das Artes, entendemos que é possível produzir
alimentos saudáveis de maneira sustentável no meio urbano e periurbano, ao
mesmo passo que ocorre o resgate e a valorização do saber tradicional
camponês de pessoas que migraram do campo em busca de uma outra
perspectiva de vida que muitas vezes não se realiza. Ao se envolverem em
atividades que lhes permite trabalhar de maneira comunitária, onde seu
conhecimento é valorizado e seus valores são revividos, essas pessoas se
sentem parte do processo, daquilo que fazem e do meio onde se dá sua
reprodução. A permanente troca de experiências entre as pessoas envolvidas e
os técnicos que mediam a implantação da proposta proporciona a construção
de uma nova realidade para ambos e para o local.
Essa experiência permite entender a terra como um bem coletivo, onde
se produz alimentos a partir do que o ambiente nos oferece como riqueza
natural. As práticas desenvolvidas permitiram aumento significativo na
segurança alimentar e nutricional das pessoas que se envolveram nas
155
atividades, além de gerar renda com a comercialização do excedente a partir
dos princípios da economia solidária. Portanto, o manejo agrícola não ocorre
necessariamente para produzir ao mercado, o que lhe confere um aspecto não-
capitalista de produção. Soma-se a tudo isso o fato dessa produção ser
realizada em um agroecossistema localizado em uma área de proteção
ambiental, onde o uso do solo é regulamentado de forma diferenciada, e seu
sistema agroecológico permite maior consonância com esse espaço,
contribuindo inclusive para recuperá-lo, mantê-lo e diversificá-lo.
Percebemos que ao interpretar qualitativamente os relatos das pessoas
envolvidas no projeto, realmente existe uma troca de experiências e saberes
que se torna essencial para auxiliar na compreensão da proposta desta
pesquisa, pois se trata, em geral, de migrantes camponeses que carregam uma
cultura tradicional e que foram envolvidos por uma proposta agroecológica de
produção de alimentos, ilustrando através dessa experiência prática, uma
alternativa possível para proporcionar uma transformação na realidade local no
que tange a esfera ambiental e socioeconômica atual.
Portanto, os preceitos teóricos que trouxemos ao longo de todo trabalho
e sua associação a experiência prática em agroecologia, nos permite inferir que
é possível criar novas formas de relação entre as pessoas e com os
ecossistemas por meio da agricultura. Pode-se dizer também que existem
meios de subverter a ordem social dominante através de novas formas de
pensar e agir em sociedade. Criar um envolvimento sustentável que possibilite
a conservação das riquezas naturais e culturais é possível, e necessário.
Procuramos aqui dar algumas contribuições para que a vida seja posta em
outras esferas que compõe o todo da realidade socioambiental em que nos
encontramos, porque:
[...] a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles (2004).
156
7. Referências Bibliográficas_______________________________________
ALTIERI, M. A. (Org.). Agroecología: bases científicas para una agricultura
sustentable. Montevideo: Nordam-Comunidad, 1999.
__________. Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura sustentável. 5ª
ed. Porto Alegre: UFRGS, 2008.
ALTIERI, M. A.; NICHOLLS, C. I. Agroecología: teoría e práctica para una
agricultura sustentable. México: PNUMA, 2000.
AUTOGESTÃO e economia solidária: uma nova metodologia. 3º vol. São
Paulo: ANTEAG (Associação Nacional dos Trabalhadores e
Empresas de Autogestão e Participação Acionária), 2007.
BACELA, D. F.; SILVA, A. P. F. O bom selvagem e o preservacionista genocida:
mitos e conflitos na utilização e conservação da biodiversidade
brasileira por populações não-industriais. Revista Biociências,
UNITAU, v. 14, n. 2, p.144-151, 2008.
Disponível em: <http://www.periodicos.unitau.br>
BENSUSAN, N. Conservação da biodiversidade em áreas protegidas. Rio de
Janeiro: FGV, 2006.
BOMBARDI, L. M. O papel da geografia agrária no debate teórico sobre os
conceitos de campesinato e agricultura familiar. Revista GEOUSP -
Espaço e Tempo, São Paulo, n. 14, p. 107-117, 2003.
Disponível em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp14/>
__________. O Bairro Reforma Agrária e o processo de territorialização
camponesa. São Paulo: Annablume, 2004.
157
__________. Intoxicação e morte por agrotóxicos no Brasil: a nova versão do
capitalismo oligopolizado. NERA – Núcleo de Estudos, Pesquisas e
Projetos de Reforma Agrária, Boletim DATALUTA, São Paulo, p. 01-
21, 2011.
Disponível em: <www.fct.unesp.br/nera 1>
BOSI, E. Sugestões para um jovem pesquisador. In: BOSI, E. O Tempo vivo da
memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003. p. 59-68.
BRANDÃO, C. R. Repensando a Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense,
1984. p. 223-252.
BRASIL (Federação). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS). Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
(SESAN). Seleção de Proponentes para apoio a projetos de
Agricultura Urbana e Periubana. Brasília: Edital SESAN/MDS nº 01,
2007.
CABRAL, N. R. A. J.; SOUZA, M. P. Área de proteção ambiental: planejamento
e gestão de paisagens protegidas. São Carlos: Rima, 2002.
CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A. Agroecologia: alguns conceitos e
princípios. Brasília: MDA: SAF: DATER-IICA: Artigo publicado, 2004.
CAPORAL, F. R.; COSTABEBER, J. A.; PAULUS, G. Agroecologia: matriz
disciplinar ou novo paradigma para o desenvolvimento rural
sustentável. Brasília: Artigo publicado, 2006.
CAPRA, F. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. Tradução de Newton Roberval Eichemberg. São Paulo:
Cultrix, 1996.
158
CARSON, R. Primavera Silenciosa. Tradução de Raul de Polillo. São Paulo:
Melhoramentos, 1964.
CASTRO OLIVEIRA, B. Do Palco aos Bastidores: Cena e Contracena do
Trabalho de Campo. 1998. Cap. 01. Tese (Doutorado em
Antropologia) – Departamento de Antropologia, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo,
São Paulo. 1998.
DEAN, W. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira.
Tradução de Cid Knipel Moreira. Revisão técnica de José Augusto
Drummond. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DEBERT, G. G. Problemas relativos à utilização da história de vida e história
oral. In: CARDOSO, R. (Org.) A aventura antropológica. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1986.
DIEGUES, A. C. (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da
natureza nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Annablume; Hucitec, 2000.
__________. O mito moderno da natureza intocada. 4ª ed. São Paulo:
HUCITEC; NUPAUB-USP, 2004.
DIEGUES, A. C.; ARRUDA, R. S. V. (Org.). Saberes tradicionais e
biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente; São
Paulo: USP, 2001.
Disponível em: <http://www.usp.br/nupaub/Saberes_PDF.pdf>
DIEGUES, A. C.; VIANA, V. M. (Org.). Populações Tradicionais e Manejo dos
Recursos Naturais da Mata Atlântica. 2ª ed. São Paulo: HUCITEC;
NUPAUB; CEC, 2004.
159
EMBU DAS ARTES (Município). MELO, M. A.; FRANCO, M. I. (Org.). Atlas
socioambiental de Embu das Artes. Embu: Prefeitura da Estância
Turística de Embu das Artes, 2008.
FABRINI, J. E.; MARCOS, V. Os camponeses e a práxis da produção coletiva.
São Paulo: Expressão Popular; UNESP, 2010.
FERNANDES, B. M. Questão Agrária: conflitualidade e desenvolvimento
territorial. Artigo publicado. [S. l.]: [s. n.], [2004?].
Disponível em:
<http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Bernardo_QA.pdf>
FRANCO, F. S. Sistemas Agroflorestais: princípios e aplicações para a
agricultura familiar em Botucatu. Botucatu: [s.n.], 2007.
FURLAN, S. A. Florestas culturais: manejo sociocultural, territorialidades e
sustentabilidade. Agrária, São Paulo, n. 3, p. 3-15, 2006.
GLIESSMAN, S. R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura
sustentável. 3ª ed. Tradução de Maria José Guazzelli. Porto Alegre:
UFRGS, 2005.
GONÇALVES, B. C. No asfalto se colhe a esperança: a experiência da
agricultura urbana agroecológica como prática de desenvolvimento
local auto-sustentável na Região Metropolitana de São Paulo. 2010.
140 f. Monografia (Bacharel em Geografia) – Departamento de
Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010.
GUTERRES, I. Agroecologia Militante: contribuições de Enio Guterres. São
Paulo: Expressão Popular, 2006.
160
HENZ, G. P.; ALCÂNTARA, F. A.; RESENDE, F. V. Produção orgânica de
hortaliças: o produtor pergunta, a Embrapa responde. Brasília:
Embrapa Informação Tecnológica, 2007.
HERCULANI, S. A população tradicional caipira e sua reprodução sociocultural
frente às políticas públicas de conservação e os processos de
educação – Parque Estadual do Jurupará, Ibiúna – SP. 2009. 140 f.
Dissertação (Mestrado em Geografia) – Departamento de Geografia,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo. 2009.
HOLANDA FERREIRA, A. B. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
INSTITUTO GIRAMUNDO MUTUANDO/ PROGRAMA DE EXTENÇÃO RURAL
AGROECOLÓGICA (PROGERA). MOREIRA, R. M.; STAMATO, B.
(Org.). Agroecologia (Cadernos Agroecológicos). Botucatu:
Giramundo, 2009.
LATOUCHE, S. A Ocidentalização do Mundo: ensaio sobre a significação, o
alcance e os limites da uniformização planetária. Rio de Janeiro:
Vozes, 1994.
MARQUES, M. I. M. Algumas considerações sobre o entorno rural da cidade de
São Paulo. In: OLIVEIRA, A. U.; CARLOS, A. F. (Org.). Geografia
das metrópoles. São Paulo: Contexto, 2006. p. 133-149.
MARTINS, H. H. T. S. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 02, p. 289-300, maio/ago, 2004.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n2/v30n2a07.pdf>
161
MARTINS, J. S. Sobre o modo capitalista de pensar. São Paulo: HUCITEC,
1993.
MEIRELES, C. Reinvenção. In: Os melhores poemas de Cecília Meireles.
Seleção de Maria Fernanda. 15ª ed. São Paulo: Global, 2004. p. 45.
MELO, M. M. Capitalismo versus sustentabilidade: o desafio de uma nova ética
ambiental. Florianópolis: UFSC, 2006.
NARDELE, M.; CONDE, I. Apostila Sistemas Agroflorestais. [S. l.]: [s. n.], [20--].
PEREIRA, B. E.; DIEGUES, A. C. Conhecimento de populações tradicionais
como possibilidade de conservação da natureza: uma reflexão sobre
a perspectiva da etnoconservação. Desenvolvimento e Meio
Ambiente, n. 22, p. 37-50, jul./dez. 2010. Editora UFPR.
OLIVEIRA, A. U. Modo capitalista de produção e agricultura. 2 ed. São Paulo:
Ática, 1987.
__________. São Paulo: dos bairros e subúrbios rurais às bolsas de
mercadoria e de futuro. In: CARLOS, A. F.; OLIVEIRA, A. U. (Org.).
Geografias de São Paulo: a metrópole do século XXI. São Paulo:
Contexto, 2004. p. 123-161.
OLIVEIRA, A. U.; MARQUES, M. I. M. (Org.) O Campo no Século XXI: território
de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa
Amarela; Paz e Terra, 2004.
OLIVEIRA, C. L. Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa:
tipos, técnicas e características. Revista Travessias, ed. 4,
Educação, cultura, linguagem e arte, [2009?].
Disponível em:
<http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_004/educacao.htm>
162
PESSOA, F. Ser Grande. In: BLAUTH, Guilherme. De olho na vida: encontros
com a ecopedagogia. Paulo Lopes, SC: Instituto Harmonia na Terra,
2008.
PINHEIRO, G. S. R. Agricultor familiar e projeto agroecológico de vida. 2004.
114 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
2004.
Disponível em:
<http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/1400/TESE-AFRAV.pdf?sequence=1>
PLANEJAMENTO e Implementação Multi-Atoral de Políticas e Programas de
Ação em Agricultura Urbana, Módulos 01 e 02, 2006, Belo Horizonte.
Curso-oficina, Belo Horizonte, Programa Cidades Cultivando para o
Futuro, 2 a 4 de outubro de 2006.
PORTO GONÇALVES, C. W. As Minas e os Gerais: breve ensaio sobre
desenvolvimento e sustentabilidade a partir da geografia do Norte de
Minas Gerais. Departamento de Geografia da UFF: [s. n.], [19--?].
__________. Os (des)caminhos do meio ambiente. 12ª ed. São Paulo:
Contexto, 2005.
__________. O latifúndio genético e a r-existência indígeno-campesina. Artigo
publicado. [S. l.]: [s. n.], [2008?]. (Paginação irregular)
Disponível em: <http://www.floresta.ufpr.br/firelab/artigos/artigo376.pdf>
PROJETO Colhendo Sustentabilidade: práticas comunitárias de agricultura
urbana e segurança alimentar e nutricional (PCS). Embu das Artes:
[s.n.], 2007-2009.
RECLUS, E. Do sentimento da natureza nas sociedades modernas.
Organização e tradução Plínio Augusto Coêlho. São Paulo:
163
Expressão & Arte; Imaginário, 2010.
SANTILLI, J. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo:
Peirópolis, 2009.
SÃO PAULO (Estado). Academia de Ciências do Estado de São Paulo
(ACIESP). WATANABE, S. (Org.). Glossário de Ecologia. São Paulo:
ACIESP, 1997.
__________. Secretaria do Meio Ambiente (SMA). Coordenadoria de
Planejamento Ambiental Estratégico e Educação Ambiental
(CEPLEA). Áreas Especialmente Protegidas. São Paulo:
SMA/CEPLEA, 2006.
SAUER, S.; BALAESTRO, M. V. (Org.). Agroecologia e os desafios da
transição agroecológica. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
SHIVA, V. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da
biotecnologia. Tradução Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia,
2003.
SILVA, S. R. Camburi, território de brancos, negros e índios no limite do
consenso caiçara. Transformações de uma população tradicional
camponesa. 2004. 203 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) –
Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2004.
__________. Negros na Mata Atlântica, territórios quilombolas e a conservação
da natureza. 2008. 355 f. Tese (Doutorado em Geografia) –
Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2008.
164
SILVA, V. A. A campesinidade presente na construção do espaço geográfico da
cidade de Cubatão. 2006. 257 f. Dissertação (Mestrado em
Geografia) – Departamento de Geografia, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
2006.
SINGER, P. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2002.
SPERGEL, B.; TERBORGH, J. (Org.). Tornando os parques eficientes:
estratégias para a conservação da natureza nos trópicos. Curitiba:
UFPR; Fundação o Boticário, 2002.
TEIS, D. T.; TEIS M. A. A abordagem qualitativa: a leitura no campo de
pesquisa. Artigo publicado. 2006.
Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/_listas/tematica.php?codtema=67>
VESENTINI, J. W. Geografia, Natureza e Sociedade: ecologia e geopolítica; a
dialética da natureza; ecologismo e revolução social. São Paulo:
Contexto, 1989.
VIEIRA, D. P. Poesia, resistência, utopia. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
WOORTMANN, E. F.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a lógica e a
simbólica da lavoura camponesa. Brasília: Universidade de Brasília,
1997.
WUTKE, E. B. et. al. Bancos comunitários de sementes de adubos verdes:
informações técnicas. Brasília: Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, 2007.
165
Anexos_________________________________________________________
Anexo 01: Croqui do Sistema Agroflorestal de Itatuba