Contribuições teóricas advindas do campo psicanalítico para uma abordagem do
fenômeno constituído pelos Transtornos Globais do Desenvolvimento – TGD.
Márcia Rejane Frangullys
Tamara da Silveira Valente
Resumo
Este artigo trata dos resultados de um estudo constituído de uma pesquisa bibliográfica sobre crianças com Transtornos Globais de Desenvolvimento – TGD – que, no campo psicanalítico, recebe o nome de autismo, e da implementação do projeto em uma escola de educação especial da rede conveniada do estado do Paraná. O principal objetivo foi o de trabalhar com os professores dessa escola alguns conceitos psicanalíticos sobre a etiologia do fenômeno do autismo e sobre o papel da linguagem falada e da escrita como elementos propiciadores da inclusão escolar dessas crianças. Durante a implementação, esse tema foi apresentado aos professores de uma escola de educação especial na tentativa de levá-los a conhecer algo do saber psicanalítico, com os quais pudessem desenvolver um conhecimento sobre o processo de subjetivação dessa criança e, a partir disso, adotar uma posição frente a esse aluno tendo o conhecimento escolar, principalmente a escrita, com elemento estruturante do sujeito.
Palavras-chave: Psicanálise. Transtornos Globais do Desenvolvimento. Autismo. Inclusão Escolar.
Abstract
This article brings the results of a study constituted by a bibliographic research about the Global Development Disorders –GDD – which, according to the Psychoanalytical epistemology, receives the name of Autism, followed by the implementation of the project in a public school of the State of Paraná. The main objective of the project was to work some psychoanalytical concepts about the etiology of the autistic phenomena, and the role the spoken and written languages play in the school inclusion of autistic child. During the implementation of the project, these themes were introduced to the teachers of a especial education school in the attempt to make them learn some concepts developed in the psychoanalytical ground with which they could develop some knowledge about the process of becoming a subject and, therefore, adopt a position towards this student based on the school contents, mainly the written language, as an structural element in the psychical formation of a subject.
Key-words: Psychoanalysis. Global Development Disorders. Autism. School Inclusion.
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Introdução
O presente artigo contempla o relato do estudo: Contribuições da psicanálise para
compreensão de crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento, realizado
durante o Programa PDE – Programa de Desenvolvimento Educacional promovido pelo
Governo do Estado do Paraná e a SEED – Secretaria de Estado da Educação. O Plano
Integrado de Formação Continuada dos professores compreende sinteticamente quatro
partes principais: projeto de pesquisa, produção didático-pedagógica, implementação do
projeto de pesquisa na escola e trabalho final (artigo).
O projeto de pesquisa partiu da delimitação do seguinte problema: O professor
poderá se servir de uma epistemologia psicanalítica para compreender melhor seu aluno
e contribuir na sua constituição subjetiva?
A intenção foi a de desenvolver conhecimento no campo das necessidades
educativas especiais a partir da interface que relaciona a aprendizagem de crianças com
TGD, as características subjetivas dessas crianças e alguns pressupostos da psicanálise.
O que se propõe é que o professor reveja espaços e práticas pedagógicas voltando-se
para a singularidade de cada criança, privilegiando suas particularidades e o percurso
próprio de cada criança em direção a sua organização subjetiva.
Inicialmente, foram caracterizados os conceitos psicanalíticos que pudessem
contribuir para o esclarecimento da dimensão subjetiva da criança com Transtornos
Globais do Desenvolvimento e tomou-se para isso como base, as leituras de Maria
Cristina Kupfer em “Freud e a educação” (1989) e “Educação para o futuro - Psicanálise e
educação” (2000). Para essa autora, foi descobrindo o conceito de inconsciente que se
chegou a Lacan, para ele o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Esse fato
encaminhou a pesquisa para o estudo da constituição humana a partir da linguagem e
suas implicações na criança autista. Os escritos da criança do Centro Lydia Coriat e a
leitura de Laznick-Penot foram outras grandes contribuições para desenvolver o tema.
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Os conceitos da psicanálise e sua implicação na aprendizagem e na relação
professor/aluno com TGD
Para a Secretaria de Educação Especial (SEESP/MEC, 2008), alunos com
Transtornos Globais do Desenvolvimento, são os que apresentam alterações qualitativas
das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses restrito,
estereotipado e repetitivo. Neste grupo estão os alunos com autismo, síndrome do
espectro do autismo e psicose infantil. Esta conceituação tem como referência a
Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde –
10° revisão, (CID-10), por ser a classificação oficialmente adotada no Brasil a partir de
1996. Essa referência coloca em uma mesma categoria as psicoses infantis e o autismo,
independentemente de suas causas. Há uma multiplicidade conceitual que envolve esses
quadros, que ainda se apresentam com definições imprecisas. Assim quando falamos
aqui em Transtornos Globais do Desenvolvimento, falamos em crianças e adolescentes
em grave sofrimento psíquico ou constituindo uma estruturação atípica, seja ela o autismo
ou a psicose.
Partindo-se da premissa de que a psicanálise é um campo de conhecimento cujo
objeto são os processos inconscientes, e, que esse campo do conhecimento produz
conceitos como o desejo de saber, a transferência, a sublimação e as pulsões
inconscientes que também podem contribuir para a educação, tornou-se necessário
esclarecer como se constitui uma subjetividade e qual o impacto dessa constituição na
aprendizagem e na relação professor/aluno.
Kupfer(1989), em seu livro Freud e a Educação, esclarece esses conceitos e
sugere algumas possíveis relações com a educação. Ela explica que, para Freud, cada
trauma tem um nexo causal que foi reprimido e afastado da consciência, e que a vida
sexual é conteúdo para formação de tais traumas. Quem empurra o trauma para fora da
consciência é o eu, por não poder suportar o conteúdo causador do trauma. O eu é uma
estrutura psíquica responsável por defender o aparelho psíquico das pulsões, regrando-as
e quando a idéia traumática é expulsa da consciência, ela se mantém registrada no
psiquismo. Aqui se inicia o fenômeno da divisão da consciência que mais tarde foi
chamado de inconsciente. O inconsciente se manifesta através dos sintomas, dos sonhos,
dos atos falhos e, o tempo todo, em nossa linguagem. Exemplos de atos falhos
acontecem quando esquecemos ou trocamos nomes de pessoas conhecidas; são
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pequenas manifestações que emergem principalmente em nossa fala, à qual não se
costuma dar muita importância, mas, longe de serem casuais, são sempre significativas.
Para a psicanálise o inconsciente é que está na posição de comando, sendo o centro do
psiquismo. No campo da educação, o inconsciente aponta limites à ação pedagógica e a
psicanálise aponta para determinantes psíquicos que escapam ao controle do professor.
Reconhecer a existência do inconsciente é reconhecer que, como professores, não temos
total controle sobre o que ensinamos aos nossos alunos nem está ao alcance do
professor conhecer o efeito do seu ensino sobre os alunos.
Nos primeiros anos de sua prática clinica, Freud acreditava que as neuroses
ligadas aos distúrbios da sexualidade eram resultado de práticas moralistas da época
transmitidas pela educação. Mais tarde, ele se dá conta de que há, no interior da própria
sexualidade, um desprazer e que é este desprazer que dá força à moralidade. Para conter
a pulsão é preciso acontecer um recalque, pois uma vida inteira sob o domínio das
pulsões seria impossível. “É em nome da própria sobrevivência individual que o eu opera
o recalque da sexualidade” (KUPFER, 1989).
A pulsão sexual pode ser decomposta em pulsões parciais. No decorrer da
constituição sexual dos seres humanos estão presentes, no início, práticas de natureza
perversa na criança como o exibicionismo, a curiosidade dirigida aos órgãos genitais, o
prazer de sucção, o prazer ligado à defecação, a aspectos que deixarão suas marcas no
psiquismo resultando nas perversões adultas, e que Freud a chamou de pulsões parciais
(KUPFER, 1989).
Antes do advento e do domínio do interesse genital já na adolescência, as pulsões
parciais são vividas livremente pela criança que ainda não tem um objeto preciso ao qual
dirigir sua pulsão. Somente depois que estiverem reunidos os elementos necessários para
conformar a genitalidade é que a criança buscará um objeto sexual sobre o qual dirigir
seu impulso sexual. Até então a pulsão não possui qualquer fixação e o objeto pelo qual
se satisfaz sexualmente lhe é indiferente e intercambiável. A pulsão sexual sendo de
caráter maleável e decomponível, proveniente da ausência de objeto, é passível de se
dirigir a outros fins, e pode sofrer deslocamentos. Freud propõe pela canalização das
pulsões sexuais em direção aos valores morais superiores, aos bens culturais de
produção socialmente útil, onde poderia estar localizado o papel primordial da educação.
Ao falar sobre o desejo de saber, Freud estaria falando sobre uma teoria da
aprendizagem. Foram as crianças com seus porquês e os cientistas com suas buscas que
o levaram a pensar nos determinantes psíquicos que levam alguém a querer saber.
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Segundo Kupfer(1989), qual seria a razão que motiva essa busca ao conhecimento? Para
Freud o momento de fundamental importância na vida da criança é o da descoberta da
diferença sexual anatômica, e na interpretação dada a essa descoberta. E a criança
interpreta como perda, de que falta alguma coisa, essa descoberta gera angústia, Freud
chamou de angústia de castração e abrir a essa angústia gerada pela perda é que faz a
criança querer saber.
Inicialmente os instrumentos dos quais a criança dispõe para a situação são as
investigações sexuais infantis, pois o que está em jogo é a necessidade de definir seu
lugar no mundo. Quando essas investigações caem sob o domínio da repressão
sublimam-se em pulsão de saber, associada à pulsão de domínio e a pulsões de ver.
Podemos dizer que o desejo de saber associa-se com o dominar, o ver e o sublimar. Mas
o que vem a ser sublimar? Quando dizemos que as investigações são reprimidas não é a
educação que as reprime. As crianças deixam de lado a questão sexual por uma
necessidade própria e inerente à sua constituição. Acontece, então, um deslocamento dos
interesses sexuais para os não-sexuais, ou seja, as crianças desviam, não
conscientemente, a energia pulsional para objetos não sexuais. Não é que elas deixam de
perguntar, pois a força da pulsão continua estimulando essas crianças que passam a
perguntar sobre outras coisas para poder continuar pensando sobre as questões
fundamentais que vão estruturar o seu psiquismo. Essa investigação, quando dirigida a
objetos não-sexuais diz-se sublimada, transforma-se em curiosidade, agora dirigida a
objetos de modo geral, derivando daí o prazer de pesquisar, o interesse pela observação
da natureza, o gosto pela leitura, etc. Quando acontece a sublimação, é como se
ocorresse uma associação do desejo de saber com a pulsão de domínio, conhecer
profundamente. São todos determinantes que levam a criança a querer aprender
(KUPFER, 1989, p.84).
Mas o ato de aprender pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina.
Então chegamos a uma manifestação inconsciente que foi revelada, inicialmente, no
campo específico da relação médico-paciente, e, mais tarde, Freud afirma tratar-se de um
fenômeno presente em qualquer relação humana, inclusive na relação professor-aluno: a
transferência. Segundo Kupfer (1989, p. 92), “Transferir é atribuir um sentido especial
àquela figura determinada pelo desejo”. Ou, para usar o sentido da palavra transferência,
transfere-se, desloca-se algo (sentido) de um lugar para outro. Na relação professor-
aluno, a transferência acontece quando o desejo de saber do aluno se agarra a um
elemento particular, que é a pessoa do professor, sempre considerando que o ato de
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aprender pressupõe uma relação com outra pessoa, a que ensina. O professor torna-se
depositário de algo que pertence ao aluno e em conseqüência disso o professor é
carregado de uma importância especial, que lhe confere poder. Professor e aluno estão
referidos à transferência, e é importante que o professor se sustente neste lugar de saber
e o que isto representa. A figura do professor fica carregada de uma importância especial,
da qual emana um poder que ele passa a ter sobre o aluno.
O professor colhido pela transferência passa a fazer parte do cenário inconsciente
do aluno, e tudo o que ele disser será escutado a partir dessa especial posição. A
tentação de abusar do poder que é conferido ao professor na transferência é muito
grande. É preciso não deixar isso acontecer, pois ao impor seu próprio desejo na forma
de valores e idéias, poderá atingir o poder desejante do aluno que poderá cessar de fazer
a transferência com seu professor. É na dependência dessa relação que o professor
encontra a possibilidade de sustentar o saber que a criança supõe estar em seu poder,
para efetivar o seu discurso desse lugar de onde fala. É necessário que o professor esteja
atento para não se tornar uma autoridade que imporá seu próprio desejo à criança, pois
não podemos esquecer jamais, que o professor também é marcado por seu próprio
desejo inconsciente.
Conhecer conceitos como a transferência, o desejo de saber e as pulsões,
possibilita resignificar a relação professor-aluno, permitindo compreender melhor a
criança, especialmente a criança com TGD, abrindo caminhos para que o professor possa
incentivá-las a inserirem-se no campo simbólico, ou seja, a possibilidade de operar seu
mundo interior num espaço projetivo. O professor que se posiciona com o referencial
psicanalítico, renuncia ao poder conferido a ele, dando espaço para as diferenças, e,
poderá ajudar a criança a lidar com seu desejo e com o aprender. Implica também em
escutá-la, mesmo que a criança não se expresse por palavras, e de uma posição aberta,
tomando o cuidado para não se deixar barrar pelas suas próprias questões. Diferente do
que se pensa, crianças com TGD não precisam de limite, mas sim do simbólico, e, nesse
sentido a função de educador é ajudá-las a “falar” a respeito do que vivem,
independentemente da forma, tomando como suposto que há uma organização no
pensamento inconsciente dessas crianças, mesmo que essa organização não se
assemelhe à organização do pensamento secundário, que é o que a escola exige de seus
alunos sem esses transtornos.
Torna-se importante salientar a noção de pensamento primário e secundário,
sendo o primário relacionado ao inconsciente, a imagens simples que podem condensar
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grandes áreas de conflito ou se referir a outros elementos, categorias de tempo e espaço
são ignoradas, é como uma expansão da atividade dos instintos, caracterizado por
desejos e governado pelo princípio do prazer. O pensamento secundário é governado
pelo princípio da realidade, os processos de pensamento necessitam levar em conta o
mundo externo e ordená-los logicamente podendo ser expressados pela linguagem
verbal.
A linguagem
Para Lacan (apud SIBEMBERG, 1998, p. 64) O inconsciente é estruturado como
uma linguagem. A linguagem é o eixo central da constituição do sujeito psíquico. Quando
os bebes nascem não têm um saber instintivo que possa garantir sua sobrevivência assim
como os animais. O universo da criança se organiza em torno das significações
produzidas pela linguagem e é por meio desta que o outro transmite à criança o saber
sobre o mundo que a rodeia. É na relação com o Outro1, representante dos significantes e
da articulação de significações sociais de uma dada cultura, que vai se organizando um
saber sobre si, o objeto e o outro. O primeiro Outro é a mãe, que através do olhar, do
toque e da palavra coloca a criança em um circuito desejante, conferindo-lhe as
significações que ela irá atribuir ao mundo das coisas e das relações intersubjetivas. É
assim, através da linguagem, na relação com o outro, que a criança vai construindo seus
referenciais imaginários e simbólicos. Se há uma falha precoce na apresentação dos
referentes imaginários e simbólicos, a criança pode ficar excluída do campo das trocas
simbólicas da linguagem, reduzida ao real do corpo perceptivo não subjetivado. Quando
ocorre essa falha é a criança que não se interessa pela presença do outro e nem
apresenta significação alguma no olhar, pois não recorre à linguagem para perceber as
coisas do mundo, passando a produzir sintomas que aparecem nas estereotipias.
É através da constituição de um sujeito psíquico que a aprendizagem aparece
como conseqüência de sua inclusão subjetiva no campo significante. Jerusalinsky (apud
SILBEMBERG, 1998, p. 65), aponta quatro momentos fundamentais para a constituição
na criança de sua posição social de sujeito desejante no campo da linguagem: “1. O
1 O conceito de Outro, escrito com letra maiúscula, em psicanálise lacaniana, designa um lugar simbólico, o
significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, que determinam o sujeito, às vezes de maneira externa a ele, outra de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo. Encontramos em CHARCZUK, M.S.; FOLBERG, M.N. (orgs.), p. 83, apud Dicionário de Psicanálise de ROUDINESCO).
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trabalho com o sintoma autista (estereotipias, negativa do olhar do outro, ausências,
formações fóbicas e obsessivas) considerando-o como único recurso de organização
mental que a criança dispõe. 2. Acesso à ordem especular. 3. Aparecimento da demanda
na criança, dirigida ao outro. 4. Introdução da função simbólica, aparecimento da palavra”.
A psicanálise ajuda quando o foco é a linguagem da criança, mas é preciso uma escuta
“diferente”, torna-se necessário operacionalizar esta escuta que pode ser conseguida pela
atenção ao discurso da criança, seja ele o discurso corporal, ou um discurso plástico, ou
mesmo um discurso verbal. Cabe ao professor tentar entender o que está sendo dito,
independentemente da forma de “falar”.
Segundo Laznik-Penot (1997, p.10), “as produções sonoras de uma criança autista
podem ser escutadas, mesmo que não tenham a função de comunicação, mesmo que
não exista ainda a intersubjetividade”, mas, na escola, muitas vezes, essas produções
passam despercebidas ou são até ignoradas. É comum os professores não apostarem
nessa comunicação e por conseqüência não a escutarem, ou, se escutadas, tais
produções são tomadas por gritos sem sentido, mera fala ecolálica e se tenta “corrigi-las”.
Considera-se mais pedagógico ocupar as crianças com atividades repetitivas para que
fiquem em silencio, do que valorizar e incentivar suas produções sonoras e tentativas de
comunicação.
Para Lacan (apud LAZNIK-PENOT, 1997, p.11), “uma fala é uma fala, porque
alguém acredita nela”. E Lazni-Penot complementa escrevendo que, cabe a alguém fazer
a criança perceber que o que ela diz pode ser mensagem para algum destinatário. A partir
daí, a criança opera toda uma série de processos psíquicos capazes de suprir o que falha
em seu funcionamento mental. Se uma fala é escutada como uma fala que tem
significação, a criança pode produzir outras deixando desdobrar redes de sentido entre as
frases.
Nos estudos iniciais em relação à criança autista, acreditava-se que a linguagem
autística não serviria para comunicar, só repetiam enunciados e que não eram capazes
de usar os pronomes se não os invertendo. Essa idéia trouxe sérias conseqüências, e é
discutível sob a perspectiva do referencial psicanalítico. Até hoje, as pessoas se
interessam pelos laços afetivos que a criança pode ou não tecer com o meio, mas
negligencia-se a atenção que deve ser dada aos enunciados da criança. A escuta desses
enunciados é rica e pode nos dar referencias sobre o que deve vir do Outro para que uma
criança autista possa se assumir como sujeito de seu próprio enunciado.
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As repetições ou mesmo as trocas pronominais se ligam a elementos significantes
para a criança e, se for dado mais atenção a este tipo de linguagem pode-se reconhecer
representações possíveis tanto no plano imaginário como no simbólico, ou seja, é
possível encontrar algumas representações inconscientes capazes de constituir um
sujeito. Se, ao emitir um enunciado, a criança encontra a escuta do Outro, em vez de
rejeitá-lo como não pertencendo ao código, passa a reconhecê-lo. Lacan acrescenta
(apud LAZNIK-PENOT, 1997, p. 142) “aceitar ratificar como mensagem o que acaba de
ser proferido, mesmo que a significação deva permanecer temporariamente em suspenso,
indica para a criança que ela pode ser ouvida para além do se dizer”. Mesmo que
inicialmente um enunciado tenha atravessado a criança e depois tenha saído dela sem
que ela possa destiná-lo a alguém, nem modulá-lo numa demanda qualquer, quando lhe é
devolvido como tendo uma significação, como fazendo mensagem, algo se inscreve para
ela. Pode ser que, mais tarde, a criança possa se identificar com a fonte deste prazer
experimentado pelo Outro. O que é remetido para a criança é que ela proferiu um
enunciado que foi escutado pelo Outro. O analista realiza essa escuta como trabalho
terapêutico, mas quais seriam as possibilidades para o professor poder se utilizar do
referencial psicanalítico em sua prática pedagógica?
O professor pode considerar as produções da criança, sejam elas gestuais,
linguageiras, ou qualquer outra forma de produção, como significante, e portadoras do
que, nessas produções, se esboça como formação do inconsciente. Mas, para que isto
ocorra, é preciso que uma pessoa se tome por destinatário destas produções, mesmo que
não lhe tenham sido endereçadas pela criança, ou seja, é preciso encarnar o lugar do
Outro real. Então, apostar que ela possa não apenas sustentar um discurso que se
endereça a um outro, mas também utilizar a linguagem para trabalhar os impossíveis aos
quais a criança se encontra confrontada. O professor psicanaliticamente orientado pode
oferecer a escuta às crianças autistas permitindo que possam encontrar em si mesmas os
meios de operar um trabalho de representação. Aceitar como mensagem o que foi
proferido pelo aluno, mesmo que a significação deva permanecer temporariamente em
suspenso, indica para a criança que ela pode ser ouvida para além do seu dizer.
Segue o relato de um acontecimento cotidiano em uma escola para crianças e
adolescentes com Transtornos Globais do Desenvolvimento em que se apresenta a
importância de valorizar a linguagem, seja ela corporal ou qualquer outra forma de
comunicação.
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T. tem 16 anos, é aluno da escola especial há oito anos, mas ainda hoje encontra
dificuldade em permanecer na sala de aula e em participar das atividades coletivas. Fica
sempre em um canto da sala, no pátio ou no salão coberto isolando-se sempre de todos.
Não apresenta desejo algum a não ser por alguns objetos que traz de casa, ou fica em
atitude de espreita até consegui-los na escola, tais como: fotografias, revistas, sapatos e
outros objetos aos quais não foi relacionado nenhum significado. Às vezes, ele usa de
atitudes agressivas para consegui-los, guardando-os na mochila, da qual não se separa
nunca, nem quando vai ao banheiro. T. não fala e não aceita contato físico, sua sala fica
próxima à cantina que é aberta para a cozinha, e é no espaço entre a sala e a cantina que
T. passa a maior parte do seu tempo na escola. Parece alheio a tudo que o cerca, mas
em determinada ocasião ocorreu um fato que nos fez perceber que T. observava tudo ao
seu redor. Nesse dia, quando o ônibus chegou (ele sempre sabe o horário exato do
ônibus chegar, mesmo que não esteja sob o seu campo de visão) para levar os alunos
para casa no final da manhã, T. correu para a cozinha, empurrou a cozinheira, abriu a
porta do balcão embaixo da pia, pegou um pacote de sal e saiu correndo
desesperadamente em direção ao ônibus. Mas acabou tropeçando na calcada, caiu,
derrubou o pacote de sal que estourou e se esparramou pelo chão. Os alunos já estavam
todos no ônibus e as atendentes vieram saber o por quê da demora de T., pois o ônibus
não podia se atrasar para chegar à próxima escola. T. agachado tentava juntar o sal e
não deixava ninguém se aproximar. Alguns professores trazem vassoura e pá para varrer
o sal, e T., então, é tomado por uma fúria que afasta os professores enquanto continua
tentando juntar o sal com as mãos. Havia sal esparramado por todos os lados e os
professores novamente tentam varrer o sal e recolher com a pá, enquanto T. continua
desesperado catando os minúsculos grãos de sal
Segundo Sibemberg (1998, p. 70) “Os três eixos sintomáticos do autismo, ou seja,
a falta de linguagem comunicativa, a falta de interação social e a ausência de brincar
imaginativo e simbólico, nos revelam o quanto a linguagem é constitutiva do sujeito
humano”. Considerar esses três eixos pode colocar a criança na direção de constituí-la
num corpo subjetivado e o professor pode contribuir para tanto compreendendo a função
da linguagem e promovendo o espaço da escuta. T. neste caso não foi escutado, e foi
perdida uma oportunidade de oferecer sustentação para que se pudesse buscar as
representações capazes de operar ligações psíquicas para ele. É o momento em que se
reconhece a importância da valorização da linguagem verbal ou não verbal e se vislumbra
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a possibilidade de o professor contribuir na inserção do aluno no campo simbólico
promovendo a escuta e propondo sua expressão, seja ela pela linguagem corporal, verbal
ou escrita.
A escrita
O grande desafio para os professores de alunos com Transtornos Globais do
Desenvolvimento é o da alfabetização desses alunos. Sob o enfoque psicanalítico, o
desafio é o de fornecer instrumentos como a leitura e a escrita, dentro das possibilidades
subjetivas e para além das possibilidades cognitivas da criança, e a aposta é que esses
instrumentos serão importantes para o reordenamento simbólico do aluno.
Segundo Kupfer(1997), a maneira como a criança desenvolve seu processo de
construção da escrita testemunha a presença de um sujeito em trabalho de construção do
significante. O exercício de construção da escrita possibilita a entrada do Outro, que pode
fazer emergir o sujeito. É por isso que a escrita ou tentativas de escrita das crianças
autistas muitas vezes se apresentam como um código carregado de significações.
“A aprendizagem da escrita pode produzir efeitos subjetivantes que não são
necessariamente os mesmos da linguagem falada. É por isso que pode haver aí um
sujeito da escrita antes de se instaurar um sujeito da palavra” (KUPFER, 2000, p.110). A
escrita produz representações diferentes da linguagem oral, ou, quando se escreve,
produz-se um texto que não está ali quando se fala. É necessário compreender como se
dá a articulação entre os processos mentais e a posição ou presença de um sujeito
inconsciente. A criança, desde os seus primeiros anos de vida, receberá inscrições
psíquicas que são marcas operadas pelos primeiros agentes de humanização, ou seja, os
pais. Essas inscrições se desdobram em inúmeras outras inscrições, sempre em conexão
com a primeira, que é uma marca inicial e que estará presente em todas as suas escolhas
futuras. A aprendizagem, em relação à qual não há nenhuma demarcação prévia no
sujeito, regerá os deslocamentos a partir dessa inscrição primordial.
Para dirigir esses deslocamentos, a criança precisa desenvolver estruturas mentais
em que estarão presentes as marcas primordiais, bem como também estarão presentes
na aprendizagem, nas suas dificuldades em aprender e no seu estilo próprio de aprender
e de escrever. Serão as marcas que evidenciam a presença de um sujeito.
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As inscrições não predeterminam nada da aprendizagem de uma criança, são
como se fossem as sombras das formas nas quais o sujeito vai encaixando os objetos
que a experiência da vida lhe oferece. Se não houver transformações simbólicas, não há
espaço para indagar que posição esse objeto tem na cadeia simbólica do Outro. Não há
conhecimento se o enunciado que o sustenta não tem uma posição simbólica e está se
referindo a um real. Então, vêm os efeitos avassaladores da psicose, e o que a escola
pode oferecer?
Kupfer (2000, p.109) indaga “se não puderem subjetivar-se pelo ingresso no campo
simbólico, o que se faz usualmente pela mão do Outro falante - os pais -, não seria
possível tentar novamente pela mão de um outro, digamos, escrevente?”.
Quando aprendem a escrever, as crianças ganham certa organização libidinal e
podemos perceber uma diminuição da agitação motora; surgem formas que testemunham
a presença de um sujeito em trabalho de construção do significante. É uma subjetivação
por sua condição de linguagem ou mesmo uma entrada na palavra, quando a escrita
surge para elas. Sob o referencial psicanalítico, o trabalho de alfabetização consiste em
apresentar o universo escrito à criança autista ou psicótica, fazendo o apelo a um sujeito
que parece tender para esse universo, na busca de se dizer. A escrita não é uma simples
representação da linguagem falada. Escrever não é só reproduzir o que se fala, é algo
mais, e, como exemplo, existem casos de crianças autistas que escrevem, mas não
falam.
A maioria dos métodos de alfabetização usados nas escolas insiste em estabelecer
uma relação entre a aprendizagem e os objetos em si. Mas se afirmamos que na escrita
não há correspondência entre palavra e coisa, o que vemos na escrita não tem relação
direta com o que se percebe num entorno social. O que é escrito é o traço, e não a
percepção, é o efeito do trabalho da letra, que se revela pela instalação da operação
significante. Pode-se dizer que a linguagem da escrita pode produzir efeitos subjetivantes
que não são necessariamente os mesmos da linguagem falada.
Lacan (apud JERUSALINSKY, 1997) diz que “o inconsciente é uma escritura,
escritura de letra e não de sentido”. A escritura é uma sucessão de marcas, resultando na
instalação ou constituição do sujeito do inconsciente. O traço que se revela na escrita já
não é mais o traço inscrito primordialmente, mas é um feixe de relações. Tomemos o caso
de S. que é um adolescente, aluno de uma escola de educação especial que gosta muito
de escrever. Escreve todos os dias nas paredes de seu quarto, e enquanto está na
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escola, sua mãe lava as paredes para quando S. chegar, começar a escrever novamente.
Escreve sempre as mesmas palavras, a letra da música “Choram as rosas” de Bruno e
Marrone. O texto na parede é o efeito do trabalho da letra, é o efeito do encontro com o
real da letra. A marca se desprende do corpo, que se acalma. “Os efeitos devastadores
do gozo do Outro, de um Outro não barrado, podem ser interrompidos por meio de um
inicio de inscrição simbólica trazida pela letra” (KUPFER, 2000, p.114). Talvez o
movimento de subjetivação de S. possa ser atribuído ao poder subjetivante da escrita.
Um educador orientado pela Psicanálise pode, ao propor a aprendizagem da
escrita a uma criança autista, oferecer um caminho alternativo, uma outra chance de
recomeçar um bordejamento para o real. Desde o aprender a escrever, até sua
expressividade através da escrita, poderá produzir para essa criança, a montagem da
operação significante, tarefa primordial para aqueles cuja subjetivação ainda não veio.
A psicanálise em seu sentido clássico busca tocar o real pelo simbólico. Kupfer
(2000) propõe instituir o simbólico em torno do real. Assim também na educação, não
adianta desejar moldar a criança ao ideal do eu do educador, mesmo porque a criança
psicótica quase nunca está atenta a esses ideais e, portanto, não coloca o educador no
lugar de identificação como fazem as outras crianças. Mas, é o professor que imprime a
direção a qualquer ato educativo, instituindo regras e se responsabilizando por sua
sustentação. É o professor que sugere caminhos ao mesmo tempo em que escuta o
sujeito que ali emerge, ou mesmo pode antecipá-lo para permitir seu advento.
Reflexões sobre a inclusão de crianças com Transtornos Globais do
Desenvolvimento
Considerando os pressupostos da psicanálise quanto à relação da criança autista e
o campo da escrita, e o lugar que a escola ocupa em tempos de inclusão para todos, este
capítulo relata a inclusão de duas crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento,
possibilitando uma reflexão sobre os significantes produzidos pelas crianças nesse
processo.
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R. tem quinze anos e está na escola especial há oito anos. Foi encaminhado com
diagnóstico de Autismo. A avaliação apontava para atraso na aquisição da linguagem e
na socialização. A mãe relatou que planejava “dar” a criança e que ele não havia sido
aceito na creche, pois usava fraldas aos cinco anos. Quando R. chegou à escola especial
apresentava fala ecolálica, mas desde o início estabeleceu contato com os adultos e
crianças. Tinha fixação por carrinhos e pilhas, repetindo o tempo todo “pilhas, pilhas,
pilhas...”. De início, estava sempre agitado e com muitas estereotipias motoras. Na sala
de aula, R. se envolveu com o trabalho realizado pela professora demonstrando se
adaptar a rotina diária e acompanhando as atividades pedagógicas, as estereotipias
diminuíram e R. passou a encadear frases, às vezes contextualizadas, outras não.
Também começou a falar na primeira pessoa indicando que conseguia realizar
subjetivação do Outro e dando sinais de que poderia se beneficiar de um processo de
inclusão na escola regular. Os professores, a equipe pedagógica e a mãe reuniram-se
várias vezes para discutir essa questão. O contato com a escola regular foi realizado em
2005, quando R. estava com doze anos. Foi proposto em uma reunião com
representantes das duas escolas e da Secretaria Municipal de Ensino responsável pelo
ensino fundamental que R. continuasse na escola especial no período da manhã e
freqüentasse a escola regular três dias por semana no período da tarde, na sala do Pré. O
acompanhamento de R. se realizou através de reuniões para a discussão do caso, em
algumas ocasiões com a mãe, em outras com a equipe da escola regular, e em outras
com todos os envolvidos. Nas primeiras reuniões, a professora da escola regular relatava
que o trabalho com R. estava difícil, que ela se sentia isolada e que não tinha formação
especializada, mas continuou com R. em sua turma. Em 2006, R. passou a freqüentar as
duas escolas, a especial e a regular em períodos opostos, integralmente, e na escola
regular passaria a freqüentar a Etapa Inicial-Ciclo I. Nas reuniões a professora do ensino
regular novamente queixava-se muito da falta de iniciativa de R., mas elogiava sua
aceitação às regras da escola. Em setembro, a escola regular decidiu que ele retorna
para a sala do Pré-B, mas a escola especial não foi comunicada. Em 2007, começa
novamente na Etapa Inicial-Ciclo I, completando o ano nesta turma. A professora relatou
que naquele ano R. foi se tornando cada vez mais comunicativo, circulando pelos
espaços da escola com desenvoltura e relacionando-se com adultos e crianças. Quando
na escola especial perguntava-se a R. como está a outra escola, respondia com alegria
contando da aula de informática e das brincadeiras no recreio. A inclusão de R. alterou
significativamente sua posição diante do Outro, mas o desejo de aprender conteúdos
formais ainda não tinha aparecido.
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O segundo caso é o de S., uma menina encaminhada para escola especial com
diagnóstico de Autismo. Aos cinco anos de idade a avó trouxe S., que não falava, evitava
contato visual e apresentava intenso isolamento. Com o passar do tempo, os pais, que
estavam separados, começaram a vir à escola e a escola especial acompanhou uma
disputa judicial entre os dois para ficar com S. Depois de muitos conflitos, em que a
escola quase sempre era envolvida, a mãe assumiu sua homossexualidade indo morar
com a namorada, e abrindo mão da guarda de S.. O pai, que sempre afirmara cuidar
melhor de S., ficou pela primeira vez com a sua guarda, mas tanto no período em que
ficava com a mãe, como no período em que ficou com o pai, S. vinha para a escola
demonstrando pouco cuidado com higiene e alimentação. Quanto a esse fato a escola
especial precisou recorrer algumas vezes ao Conselho Tutelar. Na escola, S. chorava
muito, não demonstrava desejo de ir ao banheiro e tinha diarréias constantes, tinha muito
medo de aglomerações, principalmente quando havia apresentações com fantasias de
animais, palhaços ou máscaras. Aos poucos, passou a sair no pátio durante as visitas do
“cão amigo”, uma ONG que traz diversos cães para brincar com as crianças da escola, o
que anteriormente lhe causava terror. Na sala de aula correspondia às atividades
propostas demonstrando muita satisfação nas aulas de educação física, na qual começou
a balbuciar as primeiras palavras. Passou a sinalizar quando precisava ir ao banheiro e
não demonstrava mais tanto medo durante os passeios e visitas que a escola realizava. O
pai comunicou a escola especial que iria matricular S. na escola regular, pois não tinha
com quem deixá-la no período da tarde. A escola especial, então, entrou em contato com
a escola regular que o pai indicou, era uma escola próxima a casa de S., que passou a
freqüentá-la três vezes por semana no período da tarde, e foi feito acordo com o pai para
que ela não abandonasse as terapias. S. teve severas dificuldades de adaptação na
escola regular, o que demonstrava chorando quase o tempo todo. Mesmo depois de três
anos freqüentando a escola regular, ainda, em algumas ocasiões, vai ao banheiro e não
volta mais para a sala de aula. Quando dão conta da falta de S., ela é encontrada
chorando no banheiro.
Sobre a inclusão de alunos com Transtornos Globais do Desenvolvimento no
ensino regular, Jerusalinsky (2004, p.16) diz que é viável em alguns casos. “Depende de
que grau de extensão tenham as metáforas não paternas que cada criança psicótica em
particular poderia vir a constituir, para encontrar pontos de referencia que mobilizem seu
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desejo de aprender, sua curiosidade”. Ou seja, depende de algumas marcas com algum
poder de dar sentido ao que vier a se conectar a elas, com poder de servir de referência
para um conjunto mais ou menos extenso de significações possíveis, o que lhe daria um
certo lastro no mundo simbólico e uma conseqüente diminuição da angustia que acomete
aquele que não sabe onde está ou que perde seus pontos de referencia identificatórios,
só pelo fato de mudar de posição no espaço, como acontece com S. descrito no segundo
relato. Neste caso, foi uma inclusão como imposição, não se levou em conta as
particularidades da criança nem se era o momento ou a forma adequada de entrada da
criança na escola regular.
É importante perceber como e quando a inserção da criança autista na escola pode
ser terapêutica ou pode ter efeitos devastadores para essa criança. O aluno só deve ser
incluído se apresentar condições de aprender e estar com outras crianças e pessoas, e
não pelo fato de ser somente um direito adquirido, ou simplesmente porque os pais não
têm onde deixá-lo.
No primeiro relato percebemos que, na escola regular, R. começou a se relacionar
com o mundo, descobriu objetos, novos espaços e o Outro; começou a vivenciar o
simbólico. As proposições escolares relacionadas ao conhecimento formal ainda não
fazem parte do desejo de R.. O que se pode fazer é viabilizar uma circulação desejante, o
que já está acontecendo na escola regular, para que algo da ordem da aprendizagem
aconteça. Foi de fundamental importância o significante escola para R., e, certamente
poderia ser para outras crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento, que
apresentem as condições adequadas para serem incluídas.
“Como alternativa ao Outro desregrado, a escola, entendida como discurso social,
oferece à criança uma ordenação, oferece as leis que regem as relações entre os
humanos que regem o simbólico, para delas a criança tomar o que puder”. (KUPFER,
2000, p. 91).
Isso implica em considerar que a função da escola não é apenas ensinar
conteúdos, oferecendo muito mais do que a chance de aprender. E como designação de
lugar social, é extremamente importante no caso de crianças psicóticas ou com
transtornos graves, ainda mais em tempos de inclusão para todos. Então, é necessário
apostar no poder subjetivante dos diferentes discursos que são postos em circulação na
escola, no interior do campo social, com o intuito de assegurar, sustentar ou modelar
lugares sociais para as crianças. Nesse sentido, os discursos em torno do escolar são
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particularmente poderosos, pois é a escola que oferta um lugar social a elas, é a escola
que lhes constitui e lhes dá identidade. Uma criança que freqüenta a escola se sente mais
reconhecida socialmente do que aquela que não freqüenta. É diferente quando uma
pessoa se refere a uma criança com transtornos graves dizendo: é uma criança que vive
internada, ou, a criança que não sai de casa; do que dizer que é uma criança que vai para
a escola. Por isso, quando crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento
reclamam que querem ir à escola como seus irmãos, isso funciona como um signo de
reconhecimento de serem capazes de circular pela norma social, e efetivamente, acaba
tendo efeitos terapêuticos.
“A escola é uma instituição normal da sociedade, por onde circula, em certa
proporção, a normalidade social. Portanto alguém que freqüenta a escola se sente mais
reconhecido socialmente do que aquele que não freqüenta” (JERUSALINSKY, apud
KUPFER, 2000, p.89). Quando caminhamos com nossos alunos pela vizinhança da
escola, organizamos uma festa para a comunidade ou saímos no comércio local,
registramos um acolhimento progressivo e disponibilidade para ajudar. A circulação pela
vizinhança vai se tornando viável. É o significante escola que possibilita esta
aproximação, a criança que fica em casa não tem esse beneficio na leitura social.
A implementação na escola
Após a pesquisa, no segundo ano do programa, durante o primeiro semestre, o
projeto foi socializado na escola de origem, juntamente com a produção didático-
pedagógica que neste caso foi um Caderno Temático. A proposta para socialização foi em
forma de grupo de estudos envolvendo os professores e a equipe técnico-pedagógica da
escola de Educação Especial Alternativa.
Iniciamos o primeiro grupo de estudos com o filme “L’enfant sauvage”, (“O menino
selvagem”, realizado pelo cineasta Frances François Truffaut. O filme conta a história de
uma criança selvagem encontrada em uma floresta francesa em 1798. Levada para Paris,
foi observada pelo mais célebre psiquiatra da época, Pinel, que a considerou como um
idiota irrecuperável e pelo jovem médico Itard que, ao contrário, considerou ser possível
recuperar o atraso provocado não por inferioridade congênita mas pelo seu isolamento
total. Para provar a veracidade das suas razões, Itard pediu a tutela desta criança. Na sua
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casa, com a ajuda da sua governanta, Mme. Guérin, iniciou a difícil tarefa de desenvolver
as faculdades dos sentidos, intelectuais, afetivas e sociais de Victor, nome que Itard deu a
criança.
Solicitamos que fosse observado durante o filme e em relação a Itard:
- Quem é o educador?
- Objetivos do educador.
- Função do educador.
E em relação ao menino Victor:
- Quem é o sujeito?
- Que lugar ocupa para o educador?
Ao final do filme foi comentado sobre a insensibilidade do menino em relação a
gestos afetivos e que Itard fracassou frente a metodologias e estratégias pedagógicas,
não conseguindo desenvolver gostos que seriam próprios para uma criança de sua idade,
nem desenvolver linguagem oral e escrita como proposto. Também foi observado que
Mme. Guérin exercia mais influência que Itard sobre o menino, pois criou um vínculo
maior com ele, e com seu tom de voz conseguia transpor a barreira do seu silêncio.
Foi então, apresentado o projeto no formato de slides na TV pendrive, destacando
os estudos de Maria Cristina Kupfer, Jeryusalinsky e os “Escritos da criança” do Centro
Lydia Coriat nos quais foram baseados os estudos realizados e, foi proposta uma breve
análise. Os professores relataram que consideram trabalhar com alunos com TGD, uma
das áreas mais complexas na educação especial, o que exige uma constante busca por
conhecimentos que possam contribuir na intervenção escolar e que possam auxiliar na
abordagem, aprendizagem e desenvolvimento desses alunos. E que todos os professores
teriam que falar a mesma linguagem, o que é bastante difícil, pois os alunos apresentam
uma leitura diferente: a da agressão e da auto-agressão, da ausência de linguagem
verbal, da falta do desejo de aprender, da falta de curiosidade e interesse por conteúdos
acadêmicos e, principalmente, o da dificuldade de convívio com o outro. Os professores
concordaram que é necessário compreender melhor o aluno com TGD, e que a
Psicanálise parte dessa ótica; valorizar o aluno em relação às suas produções e ao seu
discurso, mesmo que sejam inicialmente incompreensíveis. Ficou claro que o projeto vem
de encontro às necessidades que os professores vivenciam em se tratando de alunos
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com sofrimento psíquico grave, considerando que a aprendizagem na escola refere-se a
um processo complexo em que estão incluídas variáveis como aluno, professor,
organização curricular, metodologias, estratégias, recursos e outros. Conhecer a
estruturação subjetiva de uma criança permite pensar como ela significa e interpreta o
mundo, como constrói laços sociais, de que forma se relaciona com a lei, com regras e
objetos de aprendizagem. O espaço escolar também pode vir a constituir-se num
organizador psíquico, mas se faz necessário que o professor conheça e reconheça seu
alunado, dispondo de intervenções pedagógicas que possam tornar a aprendizagem
escolar tão significativa quanto à aprendizagem envolvendo situações da vida prática.
No segundo grupo de estudos passamos para o Caderno Temático. Os professores
já haviam recebido cópias anteriormente e alguns fizeram uma leitura prévia. Logo no
início surgiu a questão sobre a nomenclatura que, no decorrer do programa (entre 2008 e
2009), mudou oficialmente em âmbito federal sendo definida pelo MEC como Transtornos
Globais do Desenvolvimento – TGD, em substituição ao termo Condutas Típicas usado
até então pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Todos concordaram que há
uma multiplicidade conceitual e que esta última conceituação, TGD, tem como referência
a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde,
Décima Revisão(CID – 10), que coloca em uma mesma categoria as psicoses e o
autismo, o que dificulta ainda mais os estudos na área. Foi esclarecido que a Psicanálise
apóia-se um modelo estrutural em detrimento da mera descrição de sintomas e que
crianças e adolescentes com TGD, são crianças e adolescentes em uma estruturação
psíquica atípica, ou ainda, em que haja dificuldades em sua estruturação.
Foi realizado o estudo do capítulo inicial do Caderno Temático que caracteriza
conceitos como a transferência, o desejo de saber e as pulsões que são determinantes
psíquicos na aprendizagem. Ao final do estudo foi comentado que tais conceitos podem
auxiliar como subsídios imprescindíveis para se pensar a prática pedagógica com alunos
com TGD.
No terceiro grupo de estudos foram analisados os capítulos II e III, que trazem uma
reflexão acerca da linguagem e da escrita, e sobre o papel da alfabetização na educação
de crianças com dificuldades na constituição de sua subjetividade. Houve uma intensa
troca de experiências sendo descritos inúmeros casos de alunos que conseguem decorar
hinos religiosos, mas não conseguem estabelecer um diálogo contextualizado nem
responder a perguntas sobre o seu cotidiano, e de alunos que lêem até em outras línguas
como em inglês, mas não entendem o que lêem. Nesse sentido a discussão foi remetida a
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Jerusalinsky, citado no capítulo III do Caderno Temático, que esclarece que a Psicanálise
trabalha a constituição do sujeito e também os aspectos fundamentais para o sujeito
interagir com o mundo, incluindo-se aí as aprendizagens, a linguagem, a comunicação,
etc.
Durante o último grupo de estudos, em que foi analisado o capítulo IV do Caderno
Temático, houve grande participação do grupo ao ser abordado o estudo de dois casos de
inclusão de crianças com TGD no ensino regular. Entre os participantes estavam os que
se opunham radicalmente, sustentando sua negação na falta de estrutura educacional, no
despreparo dos professores e no descrédito em relação às possibilidades dessas
crianças. Enquanto outros declaravam acreditar nas possibilidades do aluno e na função
estruturante da escola para crianças e adolescentes com TGD, mas falam de uma
inclusão responsável, em que é essencial perceber a criança, diferente do diagnóstico
que apresenta, valorizando e dirigindo um olhar diferenciado a partir do qual podem ser
construídas alternativas e estratégias no campo educativo. A reflexão se direcionou,
então, para os significantes produzidos no processo de inclusão de uma criança com
TGD, vislumbrando cada vez mais escola e educação como espaços possíveis desde que
seja superada a concepção de escola como mero espaço social de transmissão de
conhecimentos.
Conclusão
Durante a abordagem dos conceitos iniciais da psicanálise foram realizadas
aproximações com exemplos do cotidiano da escola havendo o reconhecimento de que a
educação pode ter a função de inserir a criança com TGD em um processo de
“sujeitamento”, servindo como um processo estruturante e tendo o professor como
facilitador para a criança nesta travessia de elaboração de si mesma, ao passar a
considerar a transferência aluno-professor sendo mediada pela afetividade e pelo
processo de identificação, em que a pulsão do saber e o acesso ao simbólico reforçam o
mecanismo de aprendizagem. Foram apontados alguns aspectos que enfatizam esse
reconhecimento, tais como:
- Apostar nas crianças tendo expectativas factíveis em relação ao seu aprendizado;
- Acreditar que as crianças apresentam estilos de aprendizagem diferentes;
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- Oferecer suporte para a realização das atividades para que as crianças consigam vencer
desafios;
- Sustentar a construção de percursos singulares;
- Considerar a criança como um sujeito diferente do quadro clinico que a descreve.
Os grupos de estudos serviram como um caminho para despertar o interesse pela
psicanálise nos professores, atendendo ao objetivo proposto no início desse trabalho, que
foi o de levar algumas contribuições para que se pudesse desenvolver um conhecimento
sobre o processo de subjetivação dessas crianças e, a partir disso, adotar uma posição
frente a esse aluno tendo o conhecimento escolar, principalmente a escrita, com elemento
estruturante do sujeito.
Uma questão foi constantemente discutida durante os estudos:
Como sustentar o trabalho pedagógico com crianças com TGD entre o ideal de
escola para todos e a singularidade do olhar psicanalítico?
Entre os professores participantes tornou-se clara a opção pela transformação do
espaço escolar em um território fértil para o crescimento e a expressão do aluno com
TGD, aproximando-o de si mesmo, fazendo-o enunciar-se e a comunicar-nos sua
singularidade. E, também manifestaram a opinião de que a escola, especial ou regular, é
um lugar de referência para esses alunos considerando que cada criança constrói
caminhos em sua aprendizagem e os percorre com os traçados de um saber singular,
sendo primordial que o professor reveja seu lugar diante da necessidade de que essas
crianças sejam escutadas e de que elas possam construir laços que fundem sua relação
com o outro e com a aprendizagem.
Ao final do estudo se vislumbrou a possibilidade de o professor se servir de uma
orientação psicanalítica para compreender seu aluno e até contribuir na sua caminhada
subjetiva. Mas, para se reconhecer e considerar os processos inconscientes e sua
implicação na aprendizagem e na relação professor-aluno há um longo caminho para se
percorrer, o que nos leva a reafirmar aqui a necessidade da abertura de campos de
interlocução entre a psicanálise e a educação de crianças com Transtornos Globais do
Desenvolvimento.
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