FOLHA
EXPLICA
NIETZSCHE OSWALDO GIACOIA JNIOR
PUBLIFOLHA
2000 Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. 2000 Osvaldo Giacoia Jnior Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A. Editor: Arthur Nestrovski Capa e projeto grfico: Silvia Ribeiro Assistente de projeto grfico: Marilisa von Schmaedel Reviso: Mrio Vilela Editorao: eletrnica Picture
Dados internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP Brasil)
Giacoia Jnior, Osvaldo Nietzsche / Osvaldo Giacoia Jnior. - So Paulo : PUBLIFOLHA, 2000. (Folha explica)
ISBN 85-7402-212-8
1. Filosofia alem 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844 1900 I. Ttulo II. Srie
00-2125 CDD-193
ndices paro catlogo sistemtico: 1. Nietzsche: Filosofia alem 193
PUBLI FOLHA Diviso de Publicaes do Grupo Folha Av. Dr. Vieira de Carvalho, 40, II" andar, CEP 01210-010, So Paulo, SP Tels.:(11) 3351-6341/6342/6343/6344 - Site. www.publifolha.com.br
SUMRIO
INTRODUO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE..................................9 1. A CRISE DOS VALORES.......................................... 15 2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA.....................21 3. O JOVEM NIETZSCHE...............................................27 4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES............41 5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU COMO TORNAR-SE O QUE SE .................................53 6. BREVE HISTRIA DA RECEPO DA OBRA DE NIETZSCHE.............................................71 7. DADOS BIOGRFICOS............................................. SUGESTES DE LEITURA............................................89
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para Rachel Cristina
Todos esses pssaros audazes, que voam ao longe, ao mais longnquo
certamente! em algum lugar no podero ir mais longe e pousaro sobre um mastro
ou um msero recife , e, alm do mais, to gratos por esse deplorvel pouso! Mas
quem poderia concluir disso que adiante deles no h mais nenhuma descomunal
rota livre, que eles voaram to longe quanto se pode voar. Todos os nossos grandes
mestres e precursores acabaram por se deter, e no com o gesto mais nobre e mais
gracioso que o cansao se detm: tambm comigo e contigo ser assim! Mas que
importa isso a mim e a ti! Outros pssaros voaro mais longe!... E para onde
queremos ir? Queremos passar alm do mar? Para onde nos arrasta esse poderoso
apetite que para ns vale mais do que qualquer prazer? Mas por que precisamente
nessa direo, para l onde at agora todos os seus cia humanidade declinaram?
Talvez um dia diro de ns que tambm ns, navegando para o Ocidente,
espervamos alcanar ninas ndias mas que nosso destino era naufragar no
infinito? Ou, meus irmos! Ou?
Aurora, aforismo 575
(Traduo de Rubens Rodrigues Torres Filho)
INTRODUO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE
Dentre os clssicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais
incmodo e provocativo. Sua vocao crtica cortante o levou ao submundo de nossa
civilizao, sua inflexvel honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaa
ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convices mais
firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanas. Essa atitude deriva do que
Nietzsche entendia por filosofia.
Para ele, filosofar um ato que se enraza na vida e um exerccio de liberdade.
O compromisso com a autenticidade da reflexo exige vigilncia crtica permanente,
que denuncia como impostura qualquer forma de mistificao intelectual. Por isso,
Nietzsche no poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de f. O
destino da cultura, o futuro do ser humano na histria, sempre foi sua obsessiva
preocupao. Por causa dela, submeteu crtica todos os domnios vitais de nossa
civilizao ocidental: cientficos, ticos, religiosos e polticos.
Nietzsche um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e
a poltica moderna como transformao vulgarizada de antigos valores metafsicos e
religiosos, numa conjurao subterrnea que conduz ao amesquinhamento das
condies nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele um dos mais
intransigentes crticos do nivelamento e da massificao da humanidade. Para ele, isso
era uma conseqncia funesta da extenso global da sociedade civil burguesa, tal como
esta se configurou a partir da Revoluo Industrial.
Nietzsche se ope a supresso das diferenas, a padronizao de valores que,
sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposio totalitria de interesses
particulares; por isso, ele tambm um opositor da igualdade entendida como
uniformidade. Assim, denunciou a transformao de pessoas em peas annimas da
engrenagem global de interesses e a manipulao de coraes e mentes pelos grandes
dispositivos formadores de opinio.
O esforo filosfico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes
correntes histricas responsveis pela formao do Ocidente: a tradio paga greco-
romana e a judaico-crist; e o que resultou da fuso entre as duas.
Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herana cultural de nossa
tradio, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que at hoje impregnam
nosso vocabulrio e povoam nosso imaginrio poltico e artstico. Tais so, por exemplo,
as noes de Apoio e Dionsio, transformadas em categorias estticas, os conceitos de
vontade de poder, alm-do-homem (bermensch), eterno retomo e niilismo e a figura da morte
de Deus.
impossvel se colocar altura dos principais temas e questes de nosso
tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Atesta radical, ele atribui ao homem a
tarefa de se reapropriar de sua essncia e definir as metas de seu destino. Dele afirma o
filsofo Martin Heidegger: "Nietzsche o primeiro pensador que, perante a histria
universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a
reflete internamente em toda a sua extenso metafsica. Essa pergunta reza: como
homem, em sua essncia at aqui, est o homem preparado para assumir o domnio da
terra?"1
Nesse sentido, Nietzsche o pensador de nossas angstias, que no poupou
nenhuma certeza estabelecida sobretudo as suas prprias convices e desvendou
os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixo que liga a vida ao
pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna,
sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do sculo 19. Dessa sua
condio, postado entre o final e o incio de duas eras, Nietzsche esboou um quadro
que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milnio, em
direo a um destino que ainda no se pode discernir.
A despeito de sua viso sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um
arauto de novas esperanas. Sua mensagem definitiva a criao de novos valores, a
instituio de novas metas para a aventura humana na histria tambm um cntico
de alegria. Essa uma das razes pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da
combinao paradoxal de elementos antagnicos: sombra e luz, agonia e xtase,
gravidade e leveza.
Isso explica por que, para ele, o riso e a pardia so operadores filosficos
inigualveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso
crtico das crenas cannicas, tambm um mestre da ironia. Sua ambio consiste em
tomar superfcie o que profundidade, restituir a graa ao peso da seriedade filosfica.
Opositor ferrenho da dialtica socrtica, Nietzsche reedita, no mundo
moderno, o gesto irnico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversrio de
Plato, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inverso pardica do
platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristo, d, no entanto, sua
autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o ttulo Ecce Homo ("Eis o
Homem") expresso empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco
antes da Paixo.
Nietzsche, o filsofo-artista, um poeta que s acreditava numa filosofia que
fosse expresso das vivncias genunas e pessoais, vendo na experincia esttica uma
espcie de xtase e redeno, , por isso mesmo, um precursor da crtica a um tipo de
racionalidade meramente tcnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da
gravidade das questes com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artstico,
poeticamente sugestivo; s acreditava na autenticidade de um pensamento que nos
motivasse a danar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrio:
Moro em minha prpria casa
Nada imitei de ningum
E ainda ri de todo mestre
Que no riu de si tambm.2
Sem extravasar os limites dos livros desta srie, Folha Explica Nietzsche se
prope a ser uma apresentao geral do homem e do filsofo Friedrich Nietzsche. Seu
objetivo fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de
Nietzsche no para depois encerr-los em qualquer cmara da memria, mas sim
para despertar seu interesse e estimul-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de
Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, s vezes, tambm
contra Nietzsche.
1 Heidegger. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vortrge und Aufstze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102. 2 Epgrafe de A Gaia Cincia; em Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p 195.
1. A CRISE DOS VALORES
O pensamento filosfico de Nietzsche pode ser comparado a uma espcie de
sensor que registra e antecipa questes e desafios de nosso sculo. Sua ambio
realizar um diagnstico fiel da situao do homem moderno. Para ele, no resta dvida
de que, herdeiro dos progressos do Iluminismo, julgamo-nos liberados das cadeias da
ignorncia e da superstio. Confiantes nas possibilidades advindas da utilizao
industrial da cincia e da tcnica, estamos certos de poder descobrir todos os segredos
do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as formas de opresso,
violncia, explorao. Afinal, somos devotos do deus Logos,3 confiantes em sua
onipotncia.
Nietzsche, porm, meditou sobre o lado obscuro, as conseqncias que
poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convico. Esse otimismo
representa, para ele, a face resplandecente de um avesso sombrio: o mesmo progresso
conduz inexoravelmente exausto dos valores herdados da tradio, sua
impossibilidade de dar sustentao a futuros projetos viveis, no campo quer do
conhecimento, quer da tica, quer da poltica.
Nietzsche se encontrava no limiar de uma experincia do mundo em que, como
conseqncia dos progressos do conhecimento, noes como Verdade, Falsidade,
Justia, Bem, Mal, Virtude tinham sido relativizadas, no podendo mais responder a
nossa eterna pergunta pelo sentido da existncia. Para ele, no cabia ao filsofo
justificar ou condenar esse estado de coisas, mas constat-lo; essa constatao seria,
ento, o nico caminho que permite vislumbrar uma sada. Toda tentativa de negar essa
condio representa no apenas uma desonestidade intelectual e moral, mas sobretudo
o risco da catstrofe; ou seja, a possibilidade de que o esvaziamento de valores
autnticos nos conduza de volta barbrie, destruio daquilo que de mais precioso a
humanidade conquistou ao longo da histria: a dignidade da pessoa humana.
Por essa razo, Nietzsche dedicou sua vida a realizar trs tarefas principais:
compreender a lgica desse movimento contraditrio ao longo do qual o progresso do
3 Logos: palavra grega que significa "palavra", "discurso" e "razo"; termo que d origem palavra lgica e que, em sentido amplo, equivalente racionalidade.
conhecimento leva perda de consistncia dos valores absolutos; a partir da, denunciar
todas as formas de mistificao pelas quais o homem moderno oblitera sua viso dos
perigos de sua condio; por fim, destrudos os falsos dolos e esses so os valores
mais venerados pelo homem moderno assumir corajosamente o risco de pensar novos
valores, abrir novos horizontes para a experincia humana na histria.
Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia sobre a
Europa ao final do sculo 19. Filha de seu prprio tempo, sua obra submete a uma
crtica impiedosa todas as esferas da cultura. Porm, ao exigir do homem moderno que
tome conscincia das conseqncias, das possibilidades e dos limites de seu saber e agir,
Nietzsche coloca questes que at hoje prosseguem conosco. Num de seus mais belos e
clebres textos, pe em cena o drama de nossa condio:
"No ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manha clara, acendeu
um candeeiro, correu para o mercado e gritava incessantemente: 'Procuro Deus!
Procuro Deus?' E, como l se reunissem justamente muitos daqueles que no
acreditavam em Deus, provocou ele ento grande gargalhada. 'Perdeu-se ele, ento?',
dizia um. 'Ter-se-ia extraviado, como uma criana?', dizia outro.'Ou se mantm oculto?
Tem ele medo de ns? Embarcou no navio? Emigrou?' desse modo gritavam e riam
entre si. O homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o oUiar. 'Para onde
foi Deus?', clamou ele,'eu vos quero dz-lo! Ns o matamos, vs e eu! Ns todos somos
seus assassinos? Como, porm, fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem
nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos ns quando
desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se move ela, ento? Para onde nos
movemos ns? Longe de todos os sis? No nos precipitamos sem cessar? E para trs,
para o lado, para frente, de todos os lados? H ainda um alto e um baixo? No erramos
como atravs de um nada infinito? No nos bafeja o espao vazio? No ficou mais frio?
No vem, sem cessar, sempre a noite e mais noite? No se tem que acender candeeiros
pela manh? Nada ouvimos ainda do rumor dos coveiros,que sepultam Deus? Nada
sentimos ainda do cheiro da decomposio divina? tambm os deuses se
decompem! Deus morreu! Deus permanece morto! E ns o matamos! Como que nos
consolamos, ns os assassinos de todos os assassinos? Aquilo de mais santo e poderoso
que o universo possuiu at agora sangrou sob nossos punhais quem enxuga de ns
esse sangue? Com que gua poderamos nos purificar? Que cerimnias de expiao,
que divinos jogos teramos de inventar? A grandeza desse feito no demasiado grande
para ns? No teramos que nos tomar, ns prprios, deuses, para apenas parecer
dignos dele? Jamais houve um feito maior e sempre quem tenha apenas nascido
depois de ns pertence, por causa desse feito, a uma histria mais elevada do que foi
toda histria at agora!' Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus
ouvintes. Tambm estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele
arrojou o candeeiro ao solo, de modo que este se estilhaou e apagou.'Chego cedo
demais', disse ele ento; 'no estou ainda no tempo oportuno. Esse acontecimento
formidvel est ainda a caminho e peregrina ele ainda no penetrou nos ouvidos dos
homens. Relmpago e trovo precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo,
feitos precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para serem vistos e ouvidos.
Este feito est ainda mais distante deles do que os astros mais remotos , e todavia eles
o consumaram'. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em
diversas igrejas e nelas entoado seu requiem aetemam Deo. Conduzido para fora e instado
a falar, teria ele replicado sempre apenas isto: 'O que so, ento, as igrejas, se no criptas
e mausolus de Deus? 4
A passagem descreve o sentimento de abandono que, como vazio opressivo,
esmaga a conscincia do homem moderno. Os cnicos escarnecedores, reunidos na
praa do mercado, somos tambm ns, vencedores do combate da cincia contra as
trevas da ignorncia. Apenas ns, homens modernos, no estvamos conscientes da
dimenso pica de nosso prprio feito, nada sabamos da tragdia que
desencaderamos, nela precipitando nosso mundo.
Friedrich Nietzsche o pensador a quem coube apreender filosoficamente a
experincia intelectual que marca nosso destino, ao tentar levar at suas conseqncias
extremas o impulso crtico que anima o pensamento filosfico da modernidade. No se
pode, porm, extrair as ltimas concluses desse impulso crtico sem retomar sua
origem, isto , para Nietzsche, metafsica de Plato. Por essa razo, uma das primeiras
e mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui a de refutar e destruir a
metafsica platnica.
4 Nietzsche, Gaia Cincia; aforismo 125: O Homem louco
2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFSICA
Para Nietzsche, pode-se tomar a filosofia de Plato como modelo da metafsica.
Esta se fundamenta numa concepo dualista do universo, estabelecendo uma oposio
de valores entre duas esferas distintas da realidade ou do ser: de um lado, existe um
domnio ideal, considerado como o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira, assim
denominado por ser o plano das essncias, isto , aquilo que, em todo e qualquer
fenmeno constitui sua pura forma ou conceito. Assim, por exemplo, a humanidade
constitui a essncia de cada ser humano particular, ou a triangularidade determina a
natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou traamos. Todos os
indivduos humanos concretos so limitados e finitos, mas a humanidade uma
entidade intelectual, que em nada se altera em virtude da sucesso dos indivduos
singulares.
Tais formas puras, denominadas tecnicamente idias por Plato, teriam sua
origem na idia do Bem ou de Deus que a causa produtora de todas as outras
idias que so as formas gerais do universo.Tais entidades so inacessveis a nossos
rgos dos sentidos; e imutveis, uma vez que no esto submetidas s leis do espao e
do tempo. Por serem as responsveis pela realidade de todo real, foram
tradicionalmente denominadas realidade inteligvel, em contraposio a uma segunda
ordem de realidade, a realidade aparente ou sensvel, que aquela de que temos
experincia ordinria.
Contraposto s essncias inteligveis, o mundo sensvel tradicionalmente
considerado um plano de realidade deficitria, enganosa, mera aparncia ou simulacro
das formas puras, que so como originais ou modelos dos quais toda realidade
emprica, sensvel, constitui uma cpia, necessariamente imperfeita e corruptvel. E a
essa realidade degradada, sujeita s condies do espao e do tempo, que pertence
nossa existncia terrena e corporal.
Nossa alma ou esprito, nossa verdadeira essncia e princpio inteligvel, estaria
como se prisioneira de nosso corpo, sendo por isso induzida ao erro e ao engano pelos
sentidos, que nos arrastam para o plano das aparncias, desviando-nos do que seria
nossa verdadeira destinao: a contemplao das formas puras. Em virtude de nossa
akna racional, imortal, somos aparentados com as puras idias e participantes do
mundo inteligvel.
Todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espcie de recordao do que
outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre,
contemplramos do verdadeiro e divino mundo das idias. Um esprito, ou razo pura,
e um bem em si (um bem ou valor cuja vigncia universal e necessria) constituem as
referncias metafsicas que do sustentao tanto ao conhecimento cientfico quanto s
aes morais do ser humano no mundo.
O anncio, por Nietzsche, da morte de Deus significa o fim do modo
tipicamente metafsico de pensar, na medida em que, para ele, o cristianismo, tanto
como religio quanto como doutrina moral, constitui uma verso vulgarizada do
platonismo, adaptada s necessidades e anseios de amplas massas populares. Por sua
vez, o cristianismo constitui, para Nietzsche, a medula tica do mundo ocidental; da
seiva moral do cristianismo que se nutrem todas as esferas importantes de nossa
cultura, desde a mais abstrata e rarefeita investigao das cincias formais at o plano
material de organizao da vida e do trabalho.
Para Nietzsche, a morte de Deus uma expresso simblica do
desaparecimento desse horizonte metafsico, baseado na oposio entre aparncia e
realidade, verdade e falsidade, bem e mal. Isso significa que no podemos mais
sustentar a crena num conhecimento objetivo, que ultrapasse a particularidade de
nossos afetos.
Para Nietzsche, todo conhecimento inevitavelmente guiado por interesses e
condicionamentos subjetivos, ideolgicos; o conhecimento resulta da projeo de nossos
impulsos e anseios, razo pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por
certa perspectiva, seja individual, seja scio-culturalmente determinada. Se, como
resultado do desenvolvimento das cincias e do aprofundamento do esclarecimento,
chegamos experincia da morte de Deus, ento lcito colocar tambm em questo o
nico valor absoluto que ainda permanece reconhecido pela conscincia cientfica
contempornea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a
possibilidade de colocar em questo a crena na origem divina e no valor absoluto da verdade.
Fazer com que a verdade aparea como um problema implica, para Nietzsche,
problematizar tambm conceitos como o bem e o mal, o justo e o injusto, o lcito e o
proibido, na medida em que verdade, beleza e bondade (justia) sempre foram termos
que mantiveram ntima correlao. Nietzsche , pois, o filsofo que ousa colocar em
questo o valor dos valores. Sua preocupao consiste em trazer luz as condies
histricas das quais emergiram nossos supostos valores absolutos, colocando em
dvida a pretensa sacralidade de sua origem. Em sua genealogia da moral, Nietzsche
pretende tambm submeter a julgamento o valor desses mesmos valores: foram eles
propcios ou nocivos ao florescimento e intensificao da vida humana na terra?
3. O JOVEM NIETZSCHE
Uma exposio geral do pensamento de Nietzsche constitui uma tarefa
dificultada pelo variedade dos temas de que se ocupa, pela extraordinria multiplicao
de pontos de vista por vezes dificilmente conciliveis -sobre um mesmo assunto, pela
diversidade de estilos literrios presentes em sua obra e, sobretudo, pela natureza
radicalmente crtica e polmica de seus escritos. Isso gerou a convico, quase unnime
entre seus comentadores, de que o aspecto assistemtico constitui o trao essencial de seu
pensamento.
Um intrprete contemporneo da obra de Nietzsche, o americano Walter
Kaufmann, escrevendo a respeito desse trao assistemtico, fez notar que Nietzsche
seria mn pensador de problemas, e no pensador de sistemas; alis, de acordo com
Kaufmann, o pensamento nietzscheano no poderia dar ensejo a um sistema. Em
Nietzsche, "a investigao filosfica parte no de um feixe de pressupostos, mas de uma
situao problemtica. Nela esto contidos alguns pressupostos, e outros so
expressamente admitidos ao longo da investigao. O resultado final no tanto uma
soluo do problema inicial, mas antes o discernimento de seus limites: em regra, o
problema no resolvido; ns, porm, nos elevamos acima dele".5
A despeito da diversidade temtica de seu contedo e da multiplicidade de
seus estilos, pode-se facilmente reconhecer que as questes abordadas por Nietzsche
remetem a um centro comum de preocupaes, que os conceitos e argumentos se
renem em constelaes, que se arranjam e modificam ao longo de sua trajetria
filosfica, sem, entretanto, jamais deixar de orbitar em tomo de um centro de gravidade.
"Com a mesma necessidade com que uma rvore d seus frutos, crescem em ns nossos
pensamentos, nossos valores, nossos sins e nos e quandos e ses aparentados e
referidos todos eles entre si e testemunhas de uma nica vontade, de uma nica sade,
de um nico terreno, de um nico sol.6
Na literatura secundria, costuma-se dividir cronologicamente em trs fases a
produo filosfica de Nietzsche. O primeiro perodo estaria situado,
aproximadamente, entre os anos 1870 e 1876. Um segundo momento vai de 1876 a I 882,
5 Kaufman, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, New Jersey: Princeton University, 1974, p. 82. 6 Para a Genealogia da moral. Prefcio, par. 2; em: Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col.
sendo seguido pela derradeira fase, iniciada em 1882 e abruptamente interrompida em
1889. Essa periodizao sobretudo determinada pela seqncia das obras
caractersticas de cada uma das fases.
Contudo, essa diviso sempre foi objeto de debate entre os principais
comentadores da obra de Nietzsche. Por um lado, no se pode negar que determinados
grupos de idias se conservam presentes nos diferentes perodos, o que sugeriria uma
idia de continuidade. Por outro, a trajetria filosfica de Nietzsche marcada por
mudanas significativas, tanto de forma quanto de contedo. As principais vantagens
dessa periodizao so sobretudo de ordem didtica, para fins expositivos.
O primeiro momento se caracterizaria, sobretudo, pelos escritos do assim
chamado "jovem Nietzsche" e coincidiria, em grande parte, com o tempo de docncia na
Universidade de Basilia, como catedrtico de filologia clssica.Tal perodo marcado
pela publicao de O Nascimento da Tragdia a partir do Esprito da Msica (1 872), Primeira
Considerao Extempornea: David Strauss, o Devoto e o Escritor (1873), Da Utilidade e
Desvantagem da Histria Para a Vida (1874), Schopenhauer como Educador (1874) e Richard
Wagner em Bayrenth (1876).
Entretanto, no se pode deixar de fazer meno a textos que permaneceram
inditos durante a vida do autor, ou tiveram restrita circulao, uma vez que so de
grande relevncia para uma interpretao do conjunto de seu pensamento. Dentre eles
cabe citar: O Drama Musical Grego, Scrates e a Tragdia, A Cosmoviso Dionisaca, O
Nascimento do Pensamento Trgico (todos de 1 870); Scrates e a Tragdia G,rega (1871);
Sobre o litnro de Nossas Instituies de Ensino (1872); Cinco Prefcios Para Cinco Livros No
Escritos (1872); A Filosofia na poca Trgica dos Gregos (1873); e, talvez o mais famoso dos
inditos do jovem Nietzsche, Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral (1873).
A PRIMEIRA FASE
De um ponto de vista genrico, pode-se afirmar que i questo central da
filosofia do jovem Nietzsche est ligada ao destino da arte e da cultura no mundo
moderno. Nesse momento, ele se encontra profundamente influenciado pela metafsica
da vontade de Schopenhauer (1788-1860), o terico do pessimismo, que considerava que
Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1974: p. 305.
o universo no era expresso do intelecto e da vontade de Deus, nem efeito de outra
espcie de princpio racional. Para ele, a essncia do universo um impulso cego,
denominado Vontade, vida e insacivel, eternamente em busca de satisfao.
Outra influncia decisiva para o jovem Nietzsche foi a teoria da arte de Richard
Wagner (1813-83). Este tambm se inspirou em Schopenhauer, acreditando que a
msica seria a mais adequada forma de manifestao daquela fora criadora do inundo,
a Vontade. Tomando Wagner e Schopenhauer como seus aliados, Nietzsche empreende
uma crtica radical das tendncias culturais dominantes em seu tempo, caracterizadas
por uma confiana ingnua nas idias de evoluo e progresso lgico ou natural, no
curso dos quais a humanidade teria alcanado um estgio de desenvolvimento em que
estaria em condies de, humanizando a natureza e racionalizando a sociedade,
aproximar-se do ideal da felicidade universal.
Nietzsche se opunha tambm a outra tendncia de sua poca, que consistia em
valorizar uma forma de intelectualidade erudita, burocrtica e estril que, em nome de
uma pretensa neutralidade cientfica, se mantinha numa posio de distncia em
relao aos interesses concretos de um povo, s necessidades e urgncias da vida.
Em contraposio ao gosto dominante entre seus contemporneos, em matria
tanto de filosofia quanto de cincia, arte, religio, moral e poltica, Nietzsche se volta
para a Grcia pr-socrtica, com o propsito de nela buscar uma fora originria, de que
esperava um renascimento do esprito trgico na Europa, um contramovimento em
relao ao cientificismo otimista dos tempos modernos.
Ctico quanto tese de que a natureza humana originariamente boa, no
partilhando a confiana ilimitada na onipotncia da cincia e cia racionalidade,
Nietzsche esperava da arte, especialmente da msica de Wagner, uma restaurao da
cultura trgica, no mesmo esprito em que esta florescera entre os gregos, embalada por
um senso artstico notavelmente desenvolvido e por uma postura corajosa perante o
drama da existncia.
Para Nietzsche, havia algo em comum entre a situao dos gregos, poca do
florescimento da tragdia, e a situao da Europa no sculo 19. Se Schopenhauer tinha
razo, com sua metafsica da Vontade, ento o corao pulsante do universo era um
mpeto cego, desprovido de finalidade, eternamente sofredor, porque eternamente
carente. Por conseguinte, no haveria mais lugar para as iluses consoladoras, at
aquela poca alimentadas pela tradio, de que a cincia, a religio ou a moral seriam
capazes de responder a eterna pergunta pela razo de ser e pelo sentido da existncia
humana no mundo.
Assim, nem pela razo especulativa nem pela razo prtica nem pela via da
cincia, nem pela da moralidade se poderiam justificar a existncia do universo e a
razo de ser da vida humana. O Nascimento da tragdia a Partir do Esprito da Msica
alis toda a metafsica de artista, que caracteriza esse primeiro perodo da filosofia de
Nietzsche encontra nesse diagnstico da situao cultural da Europa seu horizonte
de compreenso: "s como fenmeno esttico toma-se justificada a existncia do mundo [das
Dasein der Welt]7
O NASCIMENTO DA TRAGDIA
E nesse sentido que os gregos do perodo trgico seriam exemplares. Eles
pressentiram e vivenciaram de modo exacerbado as atrocidades da existncia e as
"dores do mundo",sem necessidade cie subterfgios moralistas. Prova disso a
ferocidade de que do mostras os combates entre as cidades-estados, assim como as
agruras materiais e espirituais que estavam na base do florescimento da cultura grega.
Entretanto, mesmo compreendendo que o sofrimento e a violncia da guerra se incluem
entre as condies inexorveis da vida, souberam dar sua existncia a elevao e a
beleza que encontramos presentes em todos os setores do mundo grego, no nvel tanto
das instituies materiais, quanto das esferas superiores da cultura espiritual. Em outras
palavras, os gregos souberam, exemplarmente, dominar o caos de seus impulsos,
atingindo um domnio de si que Uies permitia transfigurar em beleza os horrores da
existncia.
O jovem Nietzsche ilustra essa sua teoria da "jovialidade" (Heiterkeit) grega8
recorrendo proverbial lenda de Sileno, sbio acompanhante do deus Dionsio.i.
Apolodoro narra que o rei Midas empreendeu caa a Sileno, para que este lhe revelasse
o maior de todos os segredos: o que seria paia o homem o melhor e o mais digno de
desejar. Finalmente apreendido e forado a falar, Sileno teria respondido: "Estirpe
7 Nietzsche, O Nascimento da tragdia, cap. V. 8 Serenojovialidade, na excelente traduo brasileira, feita por Jac Guinsburg, de O Nascimento da tragdia. So Paulo: Companhia das letras, 1992, nota 2; p. 145.
miservel e transitria, filhos do acaso e da fadiga, por que me foras a dizer o que para
ti seria mais vantajoso no ouvir? O melhor de tudo totalmente inatingvel para ti: no
ter nascido, no ser, ser nada. E o melhor, em segundo lugar, , para ti, morrer logo".
Esta a lio deixada pela tragdia grega: arte e cultura tm como finalidade a
transformao desse horror em beleza, em poesia pica e lrica popular, em msica e
ditirambos,9 em instituies tico-religiosas e polticas como a obra de arte do Estado
grego. As narrativas mticas, em geral, so expresses de uma vivncia comum do
mundo, fundamentadora da identidade de um povo. Esse , para Nietzsche, o mistrio
de Apoio e Dionsio smbolos intuitivos das duas foras ou impulsos fundamentais da
natureza, aos quais corresponde a dupla face da experincia grega do mundo.
Apolo e Dionsio Apolo representa o lado luminoso da existncia, o impulso para gerar as
formas puras, a majestade dos traos, a preciso das linhas e limites, a nobreza das
figuras. Ele o deus do principio de individuao, da sobriedade, da temperana, da justa
medida, o deus do sonho das belas vises. Dionsio, por sua vez, simboliza o fundo
tenebroso e informe, a desmedida, a destruio de toda figura determinada e a
transgresso de todos os limites, o xtase da embriaguez. Apolo o patrono das artes
figurativas, Dionsio o deus da msica.
A tragdia a sntese dessas foras antitticas: nela se conciliam, por um lado, a
fora cega e inexorvel do destino, que a tudo destri, e, por outro, a intensidade
mxima do que resiste ao destino, a figura colossal do heri. Por essa reconciliao, a
tragdia transfigura em drama artstico aquela sabedoria pessimista de Sileno, segundo
a qual tudo o que nasce mesmo o que h de mais grandioso tem de perecer, para
que o ciclo da vida se perpetue. Sem destruio, no h criao; sem trevas, no h luz;
sem barbrie e crueldade, no h beleza nem cultura.
Scrates e o pensamento cientfico
Em relao ao perodo herico da tragdia tica, a tendncia representada pela
figura de Scrates significou uma ruptura radical. O surgimento da escola socrtica,
9 Gnero potico grego, sobretudo ligado ao cntico coral religioso em culto a Dionsio.
com a extrema valorizao do pensamento lgico e da dialtica, representaria no um
progresso em relao Grcia pr-socrtica, porm o contrrio disso. A racionalidade
de tipo socrtico matriz cio cientificismo moderno tem como pressuposto a
negao da experincia arcaica e genuinamente grega. Scrates e seus contemporneos
j no estariam mais altura da experincia trgica do mundo, no conseguindo
suportar o racionalmente incompreensvel o absurdo da existncia.
Para poder viver, o homem terico busca refgio na mesma f ilusria que est
na raiz da cincia moderna; isto , ele se nutre no otimismo metafsico que est na base
da racionalidade dialtica: a crena na onipotncia do logos cientfico. O tipo de homem
terico, encarnado por Scrates, acredita ser possvel, mediante o princpio de
causalidade, desvendar os segredos mais abissais da realidade no somente conhec-
los, como tambm corrigi-los. O otimismo terico considera a cincia um remdio
universal, que cura a ferida eterna do existir, e identifica no erro e na ignorncia a fonte
de todo mal.
Uma cultura de tipo socrtico necessariamente iluminista e, portanto, hostil
arte e ao mito, considerados uma forma de ignorncia e de iluso, unia vez que no
explicam as verdadeiras causas das coisas. Entretanto, essa mesma cultura se converte
em seu contrrio isto , abre espao para um renascimento da iluso artstica
quando a conscincia do homem terico admite que nem tudo acessvel
racionalidade lgica; mais ainda, que o essencial em nossa existncia permanece envolto
num mistrio impenetrvel a qualquer explicao racional. Tal experincia teria sido
vivida na Grcia e estaria simbolizada no enigma de Scrates ao mesmo tempo sendo
inimigo dos artistas e, no final da vida, compondo msica e pondo em versos algumas
fbulas de Esopo. Isto : retomando ao mito. Essa seria, pois, a catstrofe da razo
socrtica.
Se, em O Nascimento da Tragdia, Nietzsche recorre Grcia como paradigma de
cultura, no com o propsito de oferecer ao pblico um tratado erudito de filologia
clssica. O retomo aos gregos tem os olhos postos no presente, na cultura alem de seu
tempo. Esta representa, para o jovem Nietzsche, o prolongamento, mas tambm a
agonia, de um modelo de cultura que tem em Scrates sua figura emblemtica. Trata-se
de um tipo de cultura essencialmente lgica e dialtica, que, como Scrates, deposita
toda a sua esperana na onipotncia do conhecimento cientfico, no valor absoluto da
verdade a qualquer preo. Tal como Scrates, a cultura moderna sucumbe sua
catstrofe quando chega ao discernimento de suas prprias fronteiras e limites, isto ,
quando reconhece, a partir dos recursos e das exigncias mais avanadas da prpria
cincia, que a razo tcnico-cientfica no onipotente. Mais ainda, que a confiana
nessa onipotncia uma forma poderosa de iluso.
O renascimento do esprito trgico Esse discernimento constitui, para Nietzsche, o principal resultado do
desenvolvimento da filosofia alem desde Kant. A filosofia crtica culminaria com a
descoberta de que os interesses essenciais da vida humana a crena em Deus, na
liberdade e na imortalidade da alma - so racionalmente inexplicveis. Por essa razo,
Nietzsche espera, de uma aliana contrada entre a tradio espiritual da filosofia
alem, simbolizada em Schopenhauer, e o poder irresistvel da msica alem,
simbolizada em Wagner, um renascimento do esprito trgico, que dana novo alento e
autenticidade a uma cultura depauperada, que vive do consumo da cultura de todos os
povos e pocas, numa confuso brbara de todos os estilos; uma cultura consumida
pela erudio vazia, desprovida de identidade prpria e de vitalidade.
Do mesmo modo que, na Grcia, foi a partir do solo sagrado da arte
especialmente da tragdia nascida do esprito da msica que floresceu o melhor da
cultura helnica, assim seria tambm, na Alemanha, o esprito da msica de Wagner o
que redespertaria o vigor originrio dos mitos germnicos, fazendo renascer a cultura
trgica alem e, com ela, como farol para os outros povos da Europa, as possibilidades
de elevar o ser humano bem acima do que eleja realizara ao longo de sua histria.
CONSIDERAES EXTEMPORNEAS Esse constitui todo o sentido da vigorosa polmica que Nietzsche manteve com
as principais correntes intelectuais de seu tempo, num programa com o ttulo
Consideraes Extemporneas. Nestas, Nietzsche pe impiedosamente a nu a hipocrisia, o
artificialismo, a aridez e a cndida auto-satisfao que caracterizam a moderna cultura
europia, em todas as suas esferas. Justamente por ser privada de autntica conscincia
de si, a moderna cultura europia , no mau sentido do termo, artifcio, "filistesmo".
Em razo da hipertrofia do conhecimento histrico, a cultura moderna uma
mistura catica das formas culturais de todas as pocas a que tem acesso; nesse sentido,
o termo que a designa ,para Nietzsche, "barbrie civilizada". Falta-lhe, pois, a
caracterstica que constitui o trao essencial de toda verdadeira cultura: "Cultura ,
sobretudo, a unidade do estilo artstico em todas as manifestaes da vida de um
povo".10
O projeto wagneriano de uma "obra de arte total" seria, portanto, essa fora
geradora de uma nova cultura, expresso artstica das experincias fundamentais que
do origem a uma conscincia de si. Esta, por sua vez, seria nutrida pela energia mgica
do mito e da msica, atuando, na qualidade de potncia tica, como substituto da
moderna religiosidade caduca, que restauraria os laos efetivos de solidariedade,
imprimindo ao povo a unidade de um estilo. E a unidade desse estilo artstico,
marcando todas as formas de manifestao da vida de um povo, desde a produo e
reproduo da vida material at as esferas superiores da cultura, o que
verdadeiramente constitui sua identidade.
Essa a razo de ser da aproximao entre a tragdia grega e o drama musical
wagneriano. Os gregos podem servir de exemplo porque aprenderam, pouco a pouco, a
organizar o caos de elementos que se misturavam confusamente na histria de sua
civilizao: elementos semticos, babilnicos, ldios, persas, egpcios etc. Ao faz-lo, eles
nos indicaram o caminho de superao de nossa barbrie civilizada.
Esse background esttico-metafsico caracterstico do primeiro perodo da
trajetria filosfica de Nietzsche. E justamente nesse horizonte que se deve apreciar a
crtica do jovem Nietzsche s idias modernas de liberdade individual e igualitarismo,
democracia, ao liberalismo, cuja exacerbao ele via se configurar nos movimentos
revolucionrios socialistas e anarquistas. Sua crtica da modernidade poltica, seus
estudos sobre o Estado grego so determinados, antes de tudo, por essa preocupao
com a cultura entendida como transfigurao artstica da natureza.
A motivao fundamental de sua filosofia poltica pode ser buscada no em
alguma identificao com os interesses de uma classe social ou movimento poltico, mas
na compreenso da cultura como redeno da natureza e da vida. Essa mesma
observao vale para as fases ulteriores de seu filosofar. So equivocadas, portanto, as
10 Consideraes Extemporneas III em: Nietzsche, Smtliche Werke, ed. G. Colli/M.Montinari (Kritische Studienausgabe doravante KSA). Berlin/New York?Mnchen: De Gruyter/DTV, 1890, vol. 1, 1; p. 163.
interpretaes que consideram sua obra uma apologia da aristocracia e da escravido.
Nietzsche, de fato, no acreditava que uma organizao racional das relaes
sociais faria desaparecer completamente da sociedade moderna as figuras negativas da
violncia, opresso e explorao. Suas razes para isso consistem em que o ser humano
, sobretudo, uni animal impulsivo, dominado por foras que escapam ao controle
integral e autrquico de sua conscincia. Para Nietzsche, a racionalidade uma forma
refmada da vontade de poder, e no ainda suficientemente vigorosa para exercer pleno
domnio sobre figuras menos espiritualizadas dessa mesma vontade que, na forma de
paixes arrebatadoras, ameaam permanentemente arrastar o homem s experincias
mais terrveis de violncia e destruio.
Num fragmento pstumo que permaneceu indito, escrito no ano de 1883,
Nietzsche registra esta sua viso pessimista da histria da humanidade: "Cultura
apenas uma delgada pelinha de ma sobre um caos incandescente".11 Mas isso no
implica uma justificao terica da fora bruta. Pelo contrrio: em sua opinio, a aposta
fundamental no jogo da cultura sempre consistiu, e consiste ainda, na organizao do
caos, na sublimao das foras vulcnicas que se agitam no interior do homem. No a
apologia do monstruoso e do irracional, mas o reconhecimento sem disfarces de que,
sem a energia poderosa desse caos pulsional, nenhuma elevao e grandeza teria sido
possvel na Terra. Entretanto, a tarefa da cultura consiste justamente em transfigurar
essa matria incandescente em esprito, transformar monstros selvagens em animais
domsticos, com os quais belo e agradvel viver.
11 Fragmento pstumo de 1883, nmero 9(48); em: KSA, vol. 10; p. 362.
4. UMA FILOSOFIA PARA ESPRITOS LIVRES
A ruptura com a metafsica de artista, descrita no captulo anterior, tambm
um distanciamento crtico em relao filosofia de Schopenhauer e uma desiluso com
as esperanas de renovao cultural depositadas no projeto wagneriano. Isso origina a
nova configurao de temas e problemas, caracterstica do segundo perodo de sua
filosofia, no qual h uma predominncia do estilo aforstico, inspirado nos moralistas
franceses.12
No vero de 1876, deu-se a inaugurao solene do Teatro Wagner, na cidade de
Bayreuth, na Baviera, epicentro do projeto cultural denominado "obra de arte total". O
quarto opsculo da srie Consideraes
Extemporneas, tendo por ttulo "Richard Wagner em Bayreuth", foi escrito
como artigo de apresentao, explicitando o significado cultural do empreendimento
wagneriano. Contudo, a despeito dessa sua origem, o texto no deixa de sugerir
avaliaes profundamente ambguas a respeito da obra de Wagner.
Quanto a Schopenhauer, seu nome no sequer mencionado no prximo livro
escrito por Nietzsche, a coletnea de aforismos que constituem os dois volumes de
Humano, Demasiado Humano, publicado em 1878 e unanimemente considerado o marco
inicial de seu segundo perodo de produo. E, no entanto, o livro inteiro um ajuste de
contas definitivo com as idias fundamentais do sistema filosfico do autor de O Mundo
Como Vontade e Representao.
HUMANO, DEMASIADO HUMANO
Dedicando o livro memria do filsofo francs Voltaire e escolhendo como
epgrafe uma citao de O Discurso do Mtodo para bem conduzir a prpria razo e buscar a
verdade na cincia, de Ren Descartes, Nietzsche j o insere simbolicamente na tradio
da filosofia das Luzes, caracterizada pela confiana no poder emancipatrio da cincia,
12 Corrente filosfica francesa dos sculos 16 e 17 que se notabilizou pela capacidade de observao psicolgica dos problemas da moralidade e dos costumes, expressos em estilo literrio caracteristicamente breve, denominado aforismo, ou em mximas e sentenas morais. Franois de Ia Rochefoucauld (1613-80) foi um de seus principais representantes. O aforismo tem extraordinria importncia no modo de pensar e escrever de Nietzsche.
em seu triunfo contra as trevas da ignorncia e da superstio. No por acaso, portanto,
a obra tem como subttulo Um Livro Para Espritos Livres.
Se, para o jovem Nietzsche, era a arte e no a cincia ou a moralidade o
que constitua a atividade verdadeiramente metafsica do homem, permitindo a ele
aproximar-se da dimenso "essencial" da existncia, em Humano, Demasiado Humano ela
destituda desse privilgio. Fazendo uma referncia velada a pressupostos
fundamentais da filosofia de Schopenhauer, dos quais partilhara, Nietzsche toma agora
o cuidado de se afastar criticamente deles: "Que lugar ainda resta agora para a arte?
Antes de tudo, ela ensinou, atravs de milnios, a olhar com interesse e prazer a vida,
em todas as suas formas, e alargar tanto nosso sentimento que por fim brademos:
'Como quer que seja a vida, ela boa'. Essa doutrina da arte sentir prazer na
existncia e considerar a vida humana uma parte da natureza [...] essa doutrina foi
implantada em ns; ela vem luz novamente agora como irresistvel necessidade de
conhecer. O homem cientfico o desenvolvimento do homem artstico".13
Essa segunda fase na trajetria filosfica de Nietzsche pode ser caracterizada,
assim, por uma valorizao do conhecimento cientfico e um abrandamento da oposio
entre arte e cincia que, com seus diferentes matizes, caracterizava a metafsica de
artista do jovem Nietzsche. Agora, o homem terico cujos modelos eram Scrates e
Plato no se ope mais ao artista; pelo contrrio, pensado como seu
desenvolvimento, assim como o prprio artista passa a ser interpretado como
desenvolvimento do homem religioso. O prazer de viver, a satisfao fluda na
contemplao das formas da existncia, cultivados na humanidade sob influncia da
arte, desafogam-se na "irresistvel necessidade de conhecimento".
Se, para o jovem Nietzsche, o aprofundamento do conhecimento cientfico
conduzia a proliferao de um saber erudito e estril, que sufocava a vida, para o
Nietzsche do perodo intermedirio o conhecimento cientfico toma livre o esprito e,
como herdeiro da riqueza e da elevao de nimos produzidas pela arte, passa a
assumir uma funo transfiguradora, embelezadora da existncia.
Pouco mais tarde, em Aurora: Pensamentos Sobre os Sentimentos Morais (1881),
Nietzsche desenvolveria e aprofundaria seu novo entendimento relativo ao papel da
cincia e oposio entre esta e a arte. Contrapondo-se queles que valorizam apenas a
imaginao e as obras-primas do disfarce esttico, que acreditam s reconhecer beleza
no abandono da realidade nua e crua, Nietzsche nos fala de um frisson brotado do
menor e mais seguro passo no progresso do conhecimento. O aforismo em questo tem
como ttulo "Conhecimento e Beleza":
"Eles pensam que a realidade horrvel; contudo, no pensam que o
conhecimento at mesmo da mais horrvel realidade belo, do mesmo modo que aquele
que conhece bastante e amide est, por fim, muito longe de considerar horrvel o
grande todo da realidade, cuja descoberta lhe proporciona sempre felicidade. A
felicidade do homem do conhecimento aumenta a beleza do mundo e toma mais
ensolarado tudo o que ; o conhecimento espalha sua beleza no apenas em tomo das
coisas, como tambm, com o tempo, dentro das prprias coisas".14
Data desse perodo intelectualista a valorizao da disciplina dos mtodos
cientficos, que marcar daqui em diante toda a sua obra. Por essa razo, Nietzsche
procurar desenvolver at o mximo de refinamento seus dotes de fillogo, de
psiclogo a ponto de considerar a si mesmo, anos mais tarde, o primeiro psiclogo
da Europa , de historiador-filsofo, de genealogista da moral. Tambm intensifica
seus estudos de cincias naturais, de fisiologia e biologia, e procura tomar contato com
os ltimos desenvolvimentos das disciplinas mdicas e neurolgicas.
Em 1877, seu amigo Paul Re publica A Origem dos Sentimentos Morais. Pode-se
afirmar que foi em oposio a esse livro que surgiram as hipteses genuinamente
metzscheanas a respeito da gnese de nossos conceitos e sentimentos morais.
E nessa curiosidade histrico-psicolgica a propsito do surgimento de nossos
sentimentos e categorias morais que podemos surpreender em Humano, Demasiado
Humano um procedimento caracterstico, que no abandonar mais a trajetria de seu
pensamento. Trata-se de um tipo de explicao que passa a constituir para Nietzsche,
desde ento, um modelo de conhecimento cientfico: a explicao genealgica.
13 Humano, demasiado humano, I, aforismo 222. 14 Aurora, V, Aforismo 550.
A EXPLICAO GENEALGICA
De acordo com esse mtodo, a explicao de um fenmeno qualquer depende
sempre da reconstituio dos momentos constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira
que o sentido atual desse fenmeno no pode ser obtido sem o conhecimento da srie
histrica de suas transformaes e deslocamentos.
Aplicando-o gnese dos sentimentos morais, Nietzsche afirma que aquilo
que, a um olhar no suficientemente adestrado, pode aparecer como uma oposio
entre contrrios por exemplo, entre bom e mau, egosta e altrusta, mas tambm entre
belo e feio, verdadeiro e falso, objetivo e subjetivo , sempre se revela, luz de sua
considerao histrico-genealgica, como uma transformao do oposto em seu outro.
Sugestivamente, Nietzsche d a isso o nome de "qumica cios conceitos e dos
sentimentos", na medida em que o ilustra a partir do fenmeno qumico da sublimao:
"A filosofia histrica que, de modo algum, pode mais ser pensada
separadamente da cincia natural, o mais jovem de todos os mtodos filosficos,
revelou em casos singulares (c supostamente ser este seu resultado em todos os casos)
que no existem contrrios, a no ser no habitual exagero da concepo popular ou
metafsica, e que um erro da razo subjaz a essa contraposio: nos termos de sua
explicao, no existe, rigorosamente falando, nem um agir no-egosta, nem uma
contemplao desinteressada; ambos so sublimaes, nas quais o elemento
fundamental, quase volatilizado, demonstra-se como existente apenas para a mais
refinada observao".15
Dessa maneira, no somente desaparecem as antteses entre plos opostos,
como tambm se dissolvem as entidades estveis, as substncias fixas e permanentes. O
conjunto inteiro dos fenmenos, seja no domnio da natureza, seja no do esprito,
constitui-se como um universo em constante transformao, um vir-a-ser (ou "devir"). O
carter especfico da abordagem histrico-genealgica nietzscheana constitudo pela
direo de seu olhar investigativo: a perspectiva se orienta de cima para baixo, das
figuras mais solenes e refinadas onde no se percebe a matria grosseira - a suas
condies de possibilidade.
A partir de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche passa a proceder
metodicamente nesse sentido, sempre escavando os subterrneos das mais requintadas
formaes culturais, especialmente da moral.
"Quem contempla aqueles temveis despenhadeiros escarpados onde geleiras
se acumulam considera impossvel que venha um tempo em que, no mesmo stio, se
instale um vale de relvado e floresta, com regatos. Assim tambm na histria da
humanidade: as foras mais selvagens abrem caminho, e, embora destrutivas, de incio
a atividade delas foi necessria para que, mais tarde, um modo de vida mais suave a
erguesse sua morada. As energias terrveis aquilo que se chama o Mal so os
ciclpicos arquitetos e construtores de caminho da humanidade." 16
Percebe-se atuando aqui um ideal de filosofia histrica que no pode prescindir
da colaborao das demais cincias, na medida em que, para estar altura de seu
tempo, o filsofo deve ser capaz de fazer uso dos mais avanados resultados das
disciplinas cientficas, com o propsito de se elevar a uma concepo de mundo
liberada das fantasias e supersties engendradas pela religio, pela moral e pela
metafsica. Nesse sentido, o homem terico no representa apenas o desenvolvimento
do artista, mas, sobretudo, a passagem da infncia religioso-metafsica, atravs do
perodo de adolescncia representado pela arte, para a plena maturidade conferida pelo
esprito cientfico.
Retomando uma metfora comum ao pensamento clssico, que pe em
correspondncia as fases de desenvolvimento da cultura de cada indivduo com as
etapas de evoluo histrico-cultural da humanidade, Nietzsche d a seguinte
expresso sua prpria idia do desenvolvimento humano:
"Os homens retomam cada vez mais rpido as fases costumeiras da cultura
espiritual que foram alcanadas ao longo da histria. Eles atualmente comeam por
fazer seu ingresso na cultura como crianas religiosamente motivadas e desenvolvem
essa sensibilidade em sua suprema vivacidade at o dcimo ano de viela; passam,
ento, por formas cada vez mais enfraquecidas (pantesmo), enquanto se aproximam da
cincia; superam inteiramente Deus, imortalidade e coisas similares, mas sucumbem
magia de uma filosofia metafsica; por fim, esta tambm se tona desacreditada; a arte
parece, ao contrrio, cada vez mais confivel, de modo que, durante algum tempo, a
15 Humano, demasiado humano, I, 1 16 ld..246; em: KSA vol. 2: p. 205.
metafsica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa espcie de transmutao em
arte, ou numa disposio artstico-transfiguradora. Todavia, o senso cientfico se toma
cada vez mais imperioso e conduz o homem para a cincia natural, a histria e,
nomeadamente, para os mais severos modos de conhecimento, ao passo que arte
atribuda uma significao cada vez mais leve e despretensiosa. Isso tudo costuma
ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem. E a recapitulao de uma tarefa
para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30 mil anos".17
Pode-se afirmar, considerando o nvel de generalidade exigido por esta
apresentao, que os dois livros publicados a seguir Aurora: Pensamentos Sobre os
Preconceitos Morais (1881) e A Gaia Cincia (1882) permanecem sob a influncia do
mesmo esprito intelectualista que descrevemos como caracterstico do segundo perodo
da filosofia nietzscheana.18
AURORA E A GAIA CINCIA
Em Aurora, Nietzsche lana mo cia penetrao psicolgica, do rigor de sua
filosofia histrica, para escavar o campo da moralidade e da religio, com o propsito
de examinar as fundaes sobre as quais foram erigidos os majestosos edifcios ticos da
tradio ocidental. Esse trabalho de topeira no subsolo insalubre dos sentimentos
morais visa trazer superfcie de um conhecimento livre de preconceitos as condies e
os propsitos, as motivaes inconfessveis, que esto na origem dos valores ticos
prctensamente absolutos. Trata-se de um livro marcado por uma disposio de nimo
ao mesmo tempo grave e libertria: um livro das profundezas sombrias, que aspira pela
luz da superfcie.
Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legtimo herdeiro da
tradio metafsica ocidental; trata-se, porm, daquele herdeiro em cujo pensamento
essa tradio tomou conscincia de si, por meio do conhecimento de sua prpria
origem. For isso, ela no pode mais se furtar confisso franca das condies
problemticas de surgimento de seus valores mais elevados. A honestidade intelectual,
17 Id., 272; p. 224s. 18 Aqui seria impossvel excluir o livro V A Gaia Cincia, escrito em 1886 e acrescido obra na segunda edio, ocorrida naquele ano. Tanto cronolgica quanto tematicamente, esse livro V A Gaia Cincia pertence ao terceiro
caracterstica da moderna conscincia cientfica, a instncia que impe, como um
dever, a tarefa paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental.
Aurora sugere, pois, o surgimento de uma nova luz para a humanidade, um novo
tempo, que pode sonhar com a esperana brotada da liberdade espiritual.
A Gaia Cincia (1882), por sua vez, pode ser considerado um livro que, mesmo
ainda permanecendo no interior da "filosofia para espritos livres", j anuncia a
transio para a terceira etapa do filosofar nietzscheano. Nele permanece dominante a
perspectiva de valorizao da racionalidade cientfica, mas de uma cincia alegre
("gaia"), que pode se dar ao luxo intelectual de percorrer, com graa e leveza, os
caminhos mais pedregosos, levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa
tradio, sem negatividade ou rancor, esforando-se por multiplicar as perspectivas,
para poder compor uma imagem mais plena das coisas, embora nunca total.
Em A Gaia Cincia - ao lado dos temas sempre presentes na filosofia de
Nietzsche, como a crtica do conhecimento, da arte, da religio, da metafsica e da moral
, pode-se perceber claramente um aprofundamento e intensificao das preocupaes
pedaggicas, a inteno de organizar o pensamento de forma tal que uma leitura
conveniente da obra seja o caminho para a libertao suprema. Para esse leitor ideal, o
livro no visa ensinar uma doutrina; sua lio fundamental a responsabilidade do
pensamento independente. O mestre aqui, sobretudo, aquele que prepara o discpulo
para abandon-lo, para que este empreenda por si mesmo a aventura do esprito.
A filosofia dos espritos livres se toma, em A Gaia Cincia, uma ascese e
preparao para o surgimento da personalidade autntica que, pela disciplina crtica,
aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspiraes que brotam de sua natureza
singular e aquelas que lhe so impostas do exterior, afastando-a do caminho que a
poderia conduzir a si mesma. Nietzsche acredita que esse caminho est reservado apenas
para aqueles poucos que tm a ousadia de pensar e responder por si prprios.
perodo da filosofia de Nietzsche.
5. A DERRADEIRA FILOSOFIA, OU COMO TORNAR-SE O QUE SE
Publicado em quatro partes, entre 1883 e 1885, Assim Falou Zaratustra: um Livro
Para Todos c Para Ningum o trabalho de Nietzsche que mais dificuldades apresenta
interpretao. Nele os ensinamentos e experincias do personagem-ttulo so
apresentados como um drama em prosa, em cuja narrativa se combinam os mais
variados elementos estticos de gnero, forma e estilo. Nietzsche explora ao infinito a
rtmica, a sonoridade e os matizes da lngua alem, ao mesmo tempo que recorre
encenao teatral, a formas diversas de narrao, poesia, ao canto, dana, stira e
pardia, assim como, sobretudo, "intertextualidade". Esse procedimento consiste, no
caso de Nietzsche, em criar novas e surpreendentes significaes, a partir da
apropriao seletiva de textos consagrados pela tradio, ou at mesmo de argumentos
de adversrios, deslocando-lhes o sentido original.
Assim Falou Zaratustra condensa efetivamente todos os focos de interesse que
constituem o mago do pensamento de Nietzsche: a desconstruo da metafsica, a
denncia da hipocrisia moral, as preocupaes com a educao, a poltica e o destino da
cultura, a crtica do Estado.
O livro contm passagens que, desde seu aparecimento, pertencem ao acervo
clssico da filosofia moderna. Alguns fragmentos so o bastante para ilustrar sua
riqueza; num deles, Nietzsche faz implodir o dualismo metafsico que separa corpo e
alma, matria e esprito:
"O corpo uma grande razo, uma pluralidade dotada de um sentido, uma
guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento de teu corpo tambm tua pequena razo, meu irmo, a que
chamas 'esprito', um pequeno instrumento e um pequeno joguete de tua grande razo.
Instrumentos e joguetes so o sentido e o esprito; por detrs deles est, porm, o si
mesmo (Selbst). Por detrs de teus pensamentos e sentimentos, meu irmo, encontra-se
um soberano poderoso, um sbio desconhecido ele se chama si mesmo. Em teu corpo
habita ele, ele o teu corpo".19
Em outro fragmento, Nietzsche condensa suas idias acerca da vocao
pedaggica, essencialmente crtica, de sua filosofia. Seus esforos devero confluir para
o cultivo da personalidade autntica: "Meu irmo! Queres caminhar para a solido?
Queres procurar o caminho que conduz a ti mesmo? Detm-te um pouco e escuta-me.
'Aquele que procura, facilmente se perde a si mesmo. Todo partir para a solido
culpa assim fala o rebanho. E tu fizeste parte do rebanho durante muito tempo. A voz
do rebanho continuar ressoando dentro de ti. Queres, porm, percorrer o caminho de
tua tribulao, que o caminho para ti mesmo? Mostra-me, ento, teu direito e tua fora
para faz-lo".20
No Zaratustra, com a intransigncia do profeta, Nietzsche reedita sua crtica a
todas as esferas da tradio cultural. O personagem central da obra se faz porta-voz de
doutrinas fundamentais para o futuro do homem: a vontade de poder, o eterno retomo do
mesmo e o alm-do-homem.21 A ao combinada desses trs ensinamentos dever
produzir o desmascaramento e a runa da hipocrisia que caracteriza a cultura moderna.
Por essa razo, o livro pode ser compreendido como uma das mais estridentes recusas
dos valores e idias de que se orgulha o homem moderno. Para ele, Nietzsche cunha a
denominao sarcstica "o ltimo homem".
O ltimo homem simboliza a modernidade, que considera a si mesma o ponto
mais avanado do desenvolvimento histrico da humanidade, acreditando que a
finalidade dessa histria consistia precisamente na chegada do moderno. Orgulhoso de
sua cultura e formao, que o elevaria acima de todo passado, o ltimo homem cr na
onipotncia de seu saber e de seu agir.
Para Zaratustra, entretanto, o ltimo homem representa o mais inquietante
rebaixamento de valor do ser humano, a transformao do homem numa massa
impessoal de seres uniformes. O bem supremo almejado pelo ltimo homem sua
concepo de felicidade uma combinao de mediocridade, conforto, bem-estar,
ausncia de sofrimento e grandeza:
"Que amor? Que 6 criao? Que 6 nostalgia? Que estrela? ^Assim
19 Assim falou Zaratustra, I, "Dos desprezadores do corpo". 20 Id . "Do Caminho do criador". 21 O termo original empregado por Nietzsche bermensch, que tambm costuma ser traduzido por "super-homem". Preferimos a traduo proposta por Rubens Rodrigues Torres Filho: Obras Incompletas, op. cit., p. 236 s. As razes da
pergunta o ltimo homem, e pisca os olhos. A Terra se tomou pequena, ento, e sobre
ela saltita o ltimo homem, que toma tudo pequeno. Sua estirpe indestrutvel, como a
pulga; o ultimo homem o que vive mais tempo. 'Ns inventamos a felicidade' dizem
os ltimos homens, e piscam os oUios. Nenhum pastor e um s rebanho! Todos querem
o mesmo, todos so iguais. Quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o
hospcio. Temos nosso prazerzinho para o dia e nosso prazerzinho para a noite, mas
prezamos a sade. 'Ns inventamos a felicidade', dizem os ltimos homens, e piscam os
olhos".22
O alm-do-homem
Alm-do-homem um conceito que s pode ser corretamente apreendido em
antagonismo com a figura do ltimo homem, pois ele constitui um contra-ideal da
tendncia ao nivelamento e uniformizao que, para Nietzsche, caracteriza a moderna
sociedade de massa. Para ele, o homem pode ser visto no como um fim como o
deseja o ltimo homem , mas como um meio para conquistar possibilidades mais
sublimes de existncia.
"Eu vos ensino o alm-do-homem. O homem algo que deve ser superado.
Que tendes feito para super-lo? Todos os seres at agora criaram algo acima deles
prprios: quereis vs ser o refluxo dessa grande mar e retroceder ao animal, ao invs
de superar o homem? Que o macaco para o homem? Uma zombaria e uma dolorosa
vergonha. E justamente isso o que o homem deve ser para o alm-do-homem: uma
zombaria e uma dolorosa vergonha. O homem uma corda estendida entre o animal e
o alm-do-homem uma corda sobre o abismo. Um perigoso passar para o outro lado,
um perigoso caminhar, um perigoso olhar para trs, um perigoso estremecer e parar. A
grandeza do homem est em ser ele uma ponte, e no um fim: o que se pode amar no
homem que ele uma passagem e um crepsculo.23
Essa perigosa travessia que conduz do animal ao alm-do-homem s pode ser
empreendida pelo homem moderno renunciando ao conformismo de sua mediocridade
e auto-satisfao. Fixar o alm-do-homem como alvo de sua nostalgia uma tarefa
escolha se esclarecero abaixo. 22 Assim falou Zaratustra. Prlogo. 23 Id. p. 14 e l6.
qual a humanidade s pode ser conduzida por intermdio dos dois outros
ensinamentos de Zaratustra: a vontade de poder e o eterno retomo. Para Nietzsche,
Schopenhauer tivera razo quando identificou na Vontade o elemento fundamental em
todo o universo. Todavia, do ponto de vista de Nietzsche, ela no pode ser pensada,
como ainda o fizera Schopenhauer, como um mpeto cego, desprovido de finalidade. Se
a Vontade que determina o surgimento e a transformao de todo estado de coisas do
universo, tal Vontade possui uma qualidade fundamental: ela vontade de poder.
A vontade de poder
"Onde encontrei um ser viveu te, l encontrei vontade de poder. E este mistrio
segredou-me a prpria vida:'Veja', disse ela,'eu sou aquela que sempre tem de superar a si
mesma'." Essa superao, a humanidade a realiza por meio das "tbuas de valor", que
traam o rumo para o trabalho civilizatrio dos povos: "Muitos pases viu Zaratustra, e
muitos povos: dessa maneira, ele descobriu de muitos povos o Bem e o Mal. Zaratustra
no encontrou sobre a terra nenhum poder maior do que Bem e Mal. Uma tbua de
valores est suspensa sobre cada povo. Olha, a tbua de suas superaes; olha, a voz
de sua vontade de poder".24
Para que o homem moderno possa ainda criar para alm dele mesmo,
necessrio que se aproprie dessa natureza, ou seja, de sua vontade de poder. Somente
desse modo poder realizar aquilo que, por meio dele, constitui o fervoroso desejo da
vida: superar-se a si mesmo, rompendo a camisa-de-fora em que a encerrou a moderna
civilizao ocidental a rigidez da autoconservao a qualquer custo.
Todavia, para que o homem moderno possa corresponder a esse desejo ntimo
da vida e se colocar em sintonia com ela, antes de tudo necessrio que tenha se
libertado daquele ressentimento que lhe foi inoculado pela tradio metafsica: o
desprezo pela vida, pela terra, pelo mundo, pelo corpo, pelo vir-a-ser, por tudo aquilo
que foi at agora caluniado em nome do "verdadeiro mundo". Somente quando sua
existncia terrena puder deixar de ser vivida sob a tica do juzo e da condenao, como
padecimento e expiao, como ascese, pela qual se conquista a felicidade eterna; somente
24As duas citaes se referem, respectivamente a:. Assim Falou Zaratustra, segunda parte. "Da Auto-superaco", e primeira parte. "Das Mil Metas e da nica Meta".
ento poder o homem instituir para si um ideal que seja tambm o sentido da terra,
liberto da fantasia transcendente de um alm-do-mundo, com a qual ele entorpece a dor
de sua finitude, tragdia de sua existncia.
O eterno retorno
Somente quando o sofrimento no for mais vivido como uma objeo contra a
vida e um motivo para conden-la que o homem poder superar seu desejo de um
alm metafsico e seu rancor contra a passagem do tempo. Somente dessa maneira a
totalidade da vida poder ser assumida, sem acrscimos ou subtraes, com todas as
suas misrias e xtases firmemente encadeados entre si, pois eles se condicionam
mutuamente e aquele que deseja, de fato, as venturas no pode amputar as dores do
mundo.
O ensinamento que conduz a essa forma de superao o eterno retomo do
mesmo. No se trata de mera aceitao resignada dos acontecimentos do destino, mas
de afirmao incondicional, que aceita e bendiz cada instante vivido. For meio desse
ensinamento, o homem deve aprender a agir como se a mais nfima de suas aes
devesse se repetir eternamente, de maneira a dar sua prpria existncia a bela forma
da obra de arte. O eterno retorno a lio que imprime ao instante o selo da eternidade.
Se para seu grande precursor, o filsofo Baruch de Spinoza (1632-77), o
conhecimento verdadeiro conduzia ao amor intelectual de Deus, para Nietzsche o
ensinamento do eterno retomo leva ao amor do destino (amor fati).
"E se um dia ou uma noite um demnio se esgueirasse em tua mais solitria
solido e te dissesse: 'Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, ters de
viv-la ainda uma vez e ainda inmeras vezes; e no haver nela nada de novo, cada
dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que h de indizivelmente
pequeno e de grande em tua vida h de retomar, e tudo na mesma ordem e seqncia -
e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as rvores, e do mesmo modo este
instante e eu prprio. A eterna ampulheta da existncia ser sempre virada outra vez - e
tu com ela, poeirinha da poeira!'- No te lanarias ao cho e rangerias os dentes e
amaldioarias o demnio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante
descomunal em que lhe responderias: 'Tu s um deus, e nunca ouvi nada mais divino!'
Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como s, ele te transformaria e
talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:'Quero isto ainda uma
vez e ainda inmeras vezes?', pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou
ento, como terias de ficar bem contigo mesmo e com a vida, para no desejar nada mais
do que essa ltima, eterna confirmao e chancela?"25
At ser completamente ensombrecido pelo colapso mental que o abateu no
incio de 1889, Nietzsche no conseguiu se restabelecer totalmente da amarga
experincia que significou, para ele, o silncio total que se seguiu publicao de Assim
Falou Zaratustra. A obra no teve sequer a nfima parcela da repercusso que dela
esperava seu autor, e no houve nem uma recepo negativa por parte de amigos e
conhecidos nos quais o filsofo depositava ainda alguma esperana. Nietzsche a
concebera em tal grau de expectativa que ele a considerava um "quinto Evangelho", ou
Antievangelho. No entanto, a obra foi praticamente ignorada durante a vida de seu
autor. Pode-se afirmar que o sofrimento causado por esse silncio constitui a raiz da
preocupao obsessiva de Nietzsche para esclarecer e explicitar as idias fundamentais
de Assim Falou Zaratnstra.
PARA ALEM DE BEM E MAL
As duas obras subseqentes, Para Alm de Bem c Mal (1886) e Para a Genealogia
da Moral (1887), so os principais testemunhos da tentativa de divulgar, como uma
espcie de glossrio conceitual, os temas e problemas do Zaratustra. No primeiro deles,
Nietzsche expe sua hiptese de interpretao global da existncia com base na
perspectiva fornecida pelo conceito de vontade de poder.
Opondo-se ao mecanicismo e a todo positivismo26 que almeja explicar os
fenmenos da natureza a partir de um conjunto de leis gerais, Nietzsche contesta at
mesmo a legitimidade de pretender obter um conhecimento objetivo dos fenmenos da
natureza.Todos os fenmenos do universo seriam explicveis a partir no de leis
naturais, mas do conceito de vontade de poder. O mundo visto por dentro, dir
provocativamente Nietzsche, seria vontade de poder, e nada alm disso. Sendo assim,
25 Gaia Cincia. IV, 341 26 Doutrina filosfica que pretende rejeitar a metafsica e fundamentar o conhecimento unicamente em fatos e leis observveis.
tambm o prprio conhecimento seria expresso da vontade de poder e, portanto, nada
de imparcial, de objetivo, de constatao e organizao lgica de uma lei natural.
"Perdoem este velho fillogo, que no pode resistir maldade de pr o dedo
sobre ms artes de interpretao: mas aquela 'legalidade da natureza de que vs fsicos
falais com tanto orgulho s subsiste graas a vossa interpretao e 'filologia ruim no
nenhum estado de coisas, nenhum 'texto', mas somente um arranjo ingenuamente
humanitrio e uma distoro de sentido, com que dais plena satisfao aos instintos
democrticos da akna moderna! 'For toda parte igualdade diante da lei nisso a
natureza no cie outro modo, nem est melhor do que ns.' Mas, como foi dito, isso
interpretao, no texto; e poderia vir algum que, com a inteno e a arte opostas,
soubesse, na mesma natureza e tendo em vista os mesmos fenmenos, decifrar
precisamente a imposio tiranicamente irreverente e inexorvel de reivindicaes de
potncia que, contudo, terminasse por afirmar deste inundo o mesmo que vs afirmais,
ou seja, que tem um decurso 'necessrio' e 'calculvel', mas no porque nele reinam leis,
mas porque absolutamente faltam as leis, e cada potncia, a cada instante, tira sua
ltima conseqncia. Posto que tambm isto seja somente interpretao - e sereis
bastante zelosos para fazer essa objeo? -, ora, tanto melhor! "27
PARA A GENEALOGIA DA MORAL
Para a Genealogia da Moral talvez seja o livro mais conhecido de Nietzsche.
Nessa obra, ele aprofunda e consolida a crtica da moral levada a efeito em seus escritos
anteriores, especialmente em Humano, Demasiado Humano e Aurora. No entanto,
Nietzsche est convencido de possuir agora maior maturidade e uma linguagem
especial para os problemas que formulara antes. Principalmente, acredita ter fornecido
agora ao mtodo genealgico uma dimenso especial. A genealogia nietzscheana no se
contenta mais apenas com uma abordagem histrica dos sentimentos e conceitos
morais. A gnese histrica tarefa preparatria para uma questo mais incisiva, mais
radical: aquela que se pergunta pelo prprio valor dos valores e avaliaes da moral
tradicional.
"Necessitamos uma critica dos valores morais, necessrio colocar alguma vez em
27 Para alm do bem e do mal, aforismo 22.
questo o prprio valor desses valores -e para isso se tem necessidade de ter conhecimento
das condies e circunstncias das quais surgiram aqueles valores, nas quais se
desenvolveram e modificaram (a moral como conseqncia, como sintoma, como
mscara, como tartufaria, como enfermidade, como mal-entendido; mas tambm a
moral como causa, como remdio, como estmulo, como freio, como veneno), um
conhecimento que no existiu at agora, nem sequer foi desejado."28
Nas trs dissertaes que compem esse livro polmico, a gnese da moral
ocidental enfocada de perspectivas distintas. Nelas Nietzsche antecipa muitas das
mais importantes conquistas tericas da psicanlise de Freud, especialmente quando
descreve a genealogia da conscincia moral. A segunda dissertao desenvolve a tese
nietzscheana de acordo com a qual a cultura superior, com as severas figuras de
moralidade que lhe so caractersticas, no pode ser entendida seno como o processo
de internalizao e espiritualizao da crueldade. "Todos os instintos que no se
descarregam para fora voltam-se para dentro isso que eu denomino interiorizao do
homem: somente com isso que cresce no homem aquilo que mais tarde se denomina
sua'alma'. "29
Decadncia e niilismo
Tambm em Para a Genealogia da Moral aflora um par de conceitos que ser de
imensa importncia para o conjunto inteiro dos demais escritos de Nietzsche, todos de
1888. So os conceitos de decadncia e niilismo, que desempenham uma funo central
no s em O Crepsculo dos dolos, O Anticristo e Ecce Homo, mas tambm nos dois
ensaios psicolgicos sobre Richard Wagner: O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner.
Nesses escritos, Nietzsche interpreta a histria da cultura moderna como
escalada do niilismo. Este, por sua vez, deve ser entendido como um sentimento
opressivo e difuso, prprio s fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a
expresso afetiva e intelectual da decadncia. Por meio dele, o homem moderno
vivncia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa tica,
niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valorao,
28 Para a Genealogia da Moral, Prefcio VI. 29 Id., II, 15.
tanto no plano do conhecimento, quanto no tico-religioso, ou sociopoltico, ficaram
sem consistncia e j no podem mais atuar como instncias doadoras de sentido e
fundamento para o conhecimento e a ao.
Sintomas desse estado de prostrao podem ser detectados, segundo
Nietzsche, em todos os setores da moderna vida social: na arte, plenamente
instrumentalizada para fins de entretenimento, ou, como o chamaramos atualmente,
capturada nos circuitos da indstria cultural; na poltica e na educao, empenhadas em
estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de
produo e reproduo de uma sociedade de massas; na moral, na cincia e na filosofia,
que se tomaram expresses ideolgicas desse desejo de rebaixamento e nivelao da
humanidade, agenciado em escala planetria.
Esse movimento de decadncia pode ser caracterizado no como um estado
permanente, mas como um processo, que pode durar milnios. Um de seus traos mais
caractersticos consiste em que ele inviabiliza a instaurao de um contra-ideal,
expresso de um movimento ascendente de vida. A decadncia se manifesta sobretudo
como ausncia de coeso orgnica, como independncia e destruio recproca de
elementos e funes, cuja ao conjunta constitui o princpio de unidade na vida de um
povo ou cultura. Por essa razo, o trao caracterstico da sociedade moderna o
dilaceramento e a autonomizao de seus segmentos constitutivos, o individualismo
patolgico, que a toma incapaz de se integrar numa totalidade viva, a partir de um
projeto tico comum.
principalmente nos trabalhos regidos pelo par decadncia/niilismo que
Nietzsche se prope fazer o diagnstico dessa condio enferma da moderna Europa.
nesse contexto tambm que se explicita sua crtica da modernidade poltica. Nesses
escritos, Nietzsche diagnostica os movimentos sociais que marcam a histria recente da
Europa tais como o desenvolvimento do socialismo e manifestaes mais violentas e
radicais de anarquismo como aprofundamentos de um processo de decadncia de
valores e instituies que teria tido origem na Reforma e na Revoluo Francesa, e aos
quais ele contrape seu prprio entendimento de ao poltica. A este, Nietzsche d o
nome "Cirande Poltica", pensada cm oposio ao acelerado processo de mediocrizao
da humanidade e banalizao da existncia ("pequena poltica").
O termo "poltica" tem, nesse contexto, um amplo horizonte de significao. A
tarefa consiste na criao das condies propcias ao surgimento de novos filsofos, que
tenham fora e intrepidez suficientes para esculpir a figura futura do humano. Esses
filsofos do futuro experimentados em todas as formas de auto-superao tero
deixado para trs a impotncia do homem moderno em romper as amarras de
moralismo e criar novos valores, como os "legisladores para os prximos milnios". A
to discutida figura do aristocrata a que Nietzsche dedica um dos captulos de Para
Alem de Bem e Mal - deve ser interpretada sobretudo na direo dessa tresvalorao30 do
ideal platnico do filsofo legislador.
Essa "Cirande Poltica" seria a legtima herdeira do que ainda restaria de foras
vivas e potencialidades de grandeza em nossa civilizao ocidental, de que teramos
exemplo na Grcia pr-socrtica e no Renascimento. Em oposio mediocridade dos
nacionalismos polticos, blicos ou econmicos, essa "poltica" teria como alvo a unidade
cultural da Europa; sua figura-smbolo seria, para Nietzsche, a dos bons europeus.
Se, como perda de sentido e valor, o niilismo anuncia o crepsculo do projeto
sociocultural da modernidade, ento a tarefa que Nietzsche atribui sua "Grande
Poltica" est necessariamente ligada a uma tresvalorao de todos os valores.
O ANTICRISTO As formas de avaliao que sempre foram determinantes para o destino atual
de nossa cultura se revelam como o contrrio do que aparentam ser: no degraus para o
crescimento do homem, mas foras comprometidas com um projeto coletivo de
amesquinhamento das condies nas quais poderia prosperar, mais uma vez, a vida
humana na Terra. E por esse caminho que se compreende como a tresvalorao de
todos os valores est essencialmente vinculada ao livro O Anticristo. Para Nietzsche, o
cristianismo em sua associao com o platonismo constitui a matriz de onde
procedem todos os valores cardeais da civilizao europia. Se a condio atual de
nossa cultura marcada pelo niilismo, a possibilidade de sua redeno seria
vislumbrada a partir de uma inverso dos valores fundamentais dessa mesma cultura.
Se ela se caracteriza, sobretudo, por ser uma cultura gerada e nutrida pelo cristianismo,
sua superao seria a tarefa prpria de O Anticristo.
30 Em suas tradues de obras de Nietzsche, Paulo Csar de Souza emprega o termo "tresvalorao" para traduzir Umwertung que significa inverso, reverso. A traduo sugere o movimento no apenas de inverter uma posio anteriormente dada, mas tambm de ultrapass-la, super-la.
Com essa autodesignao polmica e provocativa, Nietzsche se pretende
definir menos como inimigo do Cristo do que inimigo do cristianismo dogmtico,
tomado instituio e secularizado como doutrina filosfica, moral e poltica. Por essa
razo, praticamente s vsperas de sua sncope mental, Nietzsche reformulou
inteiramente seus projetos editoriais, identificando O Anticristo com a prpria obra
Tresvalorao de Todos os Valores, de que originariamente ele seria apenas a primeira
parte.
Nietzsche destinou duas obras concludas nesse mesmo ano de 1888 para servir
de preparao publicao de O Anticristo. O Crepsculo dos dolos e Ecce Homo teriam,
antes de tudo, o objetivo de orientar o pblico filosfico para a leitura e compreenso de
O Anticristo. As futuras geraes seriam conduzidas, por elas, condio de poder
avaliar a profundidade e o significado histrico mundial dessa ltima obra, como se
pode ler na seguinte passagem de Ecce Homo:
"Conheo a minha sina. Um dia, meu nome ser ligado lembrana de algo
tremendo de uma crise como jamais houve sobre a Terra, da mais profunda coliso
de conscincia, cie uma deciso conjurada contra tudo o que at ento foi acreditado,
santificado, querido. Eu no sou um homem, sou dinamite".31
Nietzsche considerava, pois, at o fmal de sua vida lcida, que o silncio que
pairava sobre sua obra no era casual. Sabia que nascera pstumo. Sabia que sua obra
seria necessariamente fonte de mal-entendidos e apropriao indbita por parte de seus
contemporneos.
Por isso, sua confiana e sua esperana estavam nos leitores filosficos do
futuro. No crepsculo de sua razo, importava-Uie, sobretudo, no ser confundido com
uma caricatura daquilo que vivera e pensara. Da o grito com que inicia sua
autobiografia intelectual: "Prevendo que dentro em pouco devo dirigir-me
humanidade com a mais sria exigncia que jamais lhe foi colocada, parece-me
indispensvel dizer quem sou. Nestas circunstncias existe um dever, contra o qual no
fundo rebelam-se os meus hbitos, e mais ainda o orgulho de meus instintos, que
dizer: Ouam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo no me confundaml"32
31 Ecce Homo. Por que sou um destino, 1. Trad Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras. 1995, p.109. 32 Id. Prlogo, 1.
6. BREVE HISTRIA DA RECEPO DA OBRA DE NIETZSCHE
A recepo da obra de Nietzsche, durante o perodo intelectualmente ativo da
vida do filsofo, foi bastante modesta e, ainda assim, s se iniciou (significativamente)
s vsperas da crise que o acometeu.
O Nietzsche-Archiv: Nietzsche e o nazismo Uma primeira recepo, em grande estilo, coincide com os trabalhos do
Nietzsche-Archiv, fundado pela irm do filsofo em 1894. Elisabeth Frster-Nietzsche,
auxiliada por colaboradores (como, por exemplo, o fillogo Richard Oehler e o amigo e
discpulo Peter Gast), ps em movimento uma intensa campanha de divulgao da obra
de Nietzsche, com o propsito de trazer luz sua importncia decisiva para o
pensamento mundial. Frster-Nietzsche e seus colaboradores, ento, procederam de
forma injustificvel reunindo manuscritos de Nietzsche sob a rubrica de temas
arbitrrios.
So fragmentos e manuscritos oriundos de perodos e contextos heterogneos.
Com base nesse procedimento, publicaram duas edies (uma em 1901 e outra em 1911)
de um livro apcrifo, intitulado A Vontade de Poder, que deveria conter, segundo a
verso oficial do Nietzsche-
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