Download - Parecer do Conselho Superior do Ministério Público sobre os Projectos de Lei 4/XII/1.ª, 5/XII/1.ª, 11/XII/1.ª e 72/XII/1.ª (tipificação do crime de enriquecimento ilícito)

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  • 8/3/2019 Parecer do Conselho Superior do Ministrio Pblico sobre os Projectos de Lei 4/XII/1., 5/XII/1., 11/XII/1. e 72/XII/1.

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    PROCURADORIA-GERAL DA REPUBLICA

    A..SSEj'ldBLEIA DA REP(mUCADiv iS< l! )de Apo io i l . . ~ C 'c,-,'".,""~~CACDLO

    ~" U liiw_ 't~flt6 : $Entrn -do~ n~l._f)GtQ:i ._I1.Q)jQ{(

    SliA REFERIlNCIA:Of. n." 340/XIII1:

    Exmo SenhorPresidente da Comissao dosAssuntos Constitucionais, Direitos,Liberdades e GarantiasAssembleia da RepublicaPalacio de S. Bento1249 - 068 LISBOA

    SUA CO l\lUNICA

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    SOBRE OS PROJECTOS DE LEI 4/XII/1 aI5/XII/1 aI l1/XII/1 a e 7Z/XII/1a '(tipificacao do crime de enriquecimento ilicito) 4, \ 0 .2 . J . ' - '"

    PARECER

    1. 0 Conselho Superior do Ministerio Publico nao se pronunciaquestoes de politica legislativa. Assim, saber se a iniciativa de introduzir 0 direito \penal na materia e ou nao fundada em termos sociais e axiol6gicos e assunto de quenao nos ocuparemos. Apenas constatamos que este tema divide e apaixona, mais doque a comunidade juridical 0 todo nacional e que vivemos tempos de excepcao,expostos a maiores ameacas e, consequentemente, desejosos de mais robusta tutelade interesses como as da probidade, integridade e transparencia.

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    A analise a que mais adiante se procedera vail portanto, incidiressencialmente sabre:

    a) se os textos apresentados sao ou nao compativeis com a Constituicaoda Republica e com as normas de "ius cogens" que nos vinculam;

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    b) se as Iormulacoes adoptadas sao passfveis de execucao em termos depoderem gerar eficacia e, assim, constituirem mais valia na abordagem repressiva dotema.

    2. Antes, porem, seja-nos permitido um breve espaco de apreciacaogeneric a da questao,

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    2.1. A Convencao da ONU contra a corrupcao (Convencao de Merida), jaratificada por Portugal, nao impoe a criminalizacao do enriquecimento ilfcito emquaisquer circunstancias, ou seja, a possibilidade de tipificar este crime esta sujeita itobservancia das regras constitucionais e dos principios fundamentais doordenamento juridico de cada Estado Parte. Quer-se, assim, relembrar que 0crime deenriquecimento ilicito, quando obrigue 0 acusado a justificar razoavelmente 0aumento significativo do seu patrimonio, pode conflituar, nalgumas jurisdicoes. como principio da presuncao de inocencia (dr., neste sentido, "Guia Iegielat ioa para laap licacio n de la Co no encio n de Ins Nacio ne s Unidas co n tra In Co rrupcio n", NacionesUnidas, Nueva York, 2006, pags. 86 e 87). Admite-se, contudo, expressamente quenao havera que fixar qualquer presuncao de culpa e que 0 onus da prova recaira,consequentemente, sobre 0 Ministerio Publico, que havera que demonstrar que 0enriquecimento do acusado e superior aos seus proventos legitimos, podendo 0arguido ou acusado, por seu turno, apresentar uma justificacao razoavel ou credivelpara tal discrepancia (cfr. ibidem).ft

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    Normas de conteudo similar foram adoptadas pel a ConvencaoInteramericana Contra a Corrupcao (artigo IX) e pela Convencao da Uniao AfricanaContra a Corrupcao (art" 8). Como corolario do seu caracter nao imperativo emambas se estabelece que os Estados IIque nao tenham definido 0 enriquecimentoilfcito como infraccao" concedem, se as suas leis 0 permitirem, assistencia ecooperacao judiciaria a outros Estados que as requeiram, tendo por base asrespectivas Convencoes.

    As Nacoes Unidas, no supra citado "Guia legislativo" (pag. 86) dao-nosconta de que a tipificacao do enriquecimento ilfcito como crime deu resultadospositivos nalgumas jurisdicoes, citando a proposito 0 exemplo de Hong Kong. Variespaises da America latina (Colombia, Peru e Argentina, por ex.) e de Africa optarampor essa via, provavelmente como tentativa de combater as situacoes de grave egeneralizada venalidade com que se defrontam. Pelo menos a Colombia estende a

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    possibilidade de incriminacao por essa via aos simples particulares e nao apenas aosservidores publicos (como parece ser mais frequente). au seja: cada Estado adequoua previsao legal a gravidade da sua situacao interna.

    2.2. No ambito da Uniao Europeia merece alguma atencao a lei francesaque preve 0 "Crime de nao justificacao de rendimentos". Tal lei evoluiu da simplesprevisao (em 13 de Maio de 1996) de crime para quem nao pudesse justificar osrendimentos correspondentes ao seu modo de vida estando relacionado com uma oumais pessoas que se dediquem ao trafico de estupefacientes ou com varias pessoasque se dediquem ao seu usa (0 chamado "proxenetismo da droga" - art" 222-39-1 doC. Penal) para (em 23 de Janeiro de 2006) 0 crime generico de "nao justificacao derendimentos" (art? 321-6 do C. Penal). Af se incrimina:

    " le fa it d e ne pa s po uo oir ju stifie r d e re sso urce s co rre spo ndant a so n tra in devie o u de ne pa s po u to ir ju stifie r de l 'o rig in e d 'un bie n de te nu , to u t e n e tan i e n re la tio n shabitu e l le s ave c une o u p lu sie u rs pe rso nne s qu i so it se l iu re n i a la com iss io n de crime s o u dede iits pun is d 'au m ain s c inq ans d 'em priso nne men i e t p ro curan t a ce lle s-c i u n p ro fit d ire ct o uin dire ct ... " .

    a caso frances so assume alguma relevancia na economia do nos soempreendimento legislativo pelo facto de nele se surpreender a atribuicao aoacusado / arguido do onus de justificar os rendimentos. a que, tratando-se de pais deinegavel feicao dernocratica e de incontestavel apego aos principios do Estado deDireito e, alem disso, de matriz marcadamente continental ou romano-germanic a,como nos, nao deixa de ser especialmente significativo.

    De resto, Dan Wilsher (da City University, de Londres), no seu estudosobre " In e xp licable W ea lth and il l ic it e n richme nt o f public o ffic ia ls: A mo de l d ra ft tha tre spe ct human rig ths in c orru ptio n ca se s" (in "C rim e, Law & So cia l C ha ng e ", 2006, 45),sugere que a melhor forma de abordar a criminalizacao do enriquecimento ilicito e 0uso de presuncoes legais e que, como parece demonstrar 0 acordao "Salabiaku v.

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    France", de 1998, 0 Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considera que aConvencao nao proibe, em principio, tais presuncoes, desde que confinadas a lirnitesrazoaveis, "tendo em conta a importancia do que esta em jogo e respeitando osdireitos da defesa".

    2.3.vista a vontade politica de enveredar pela senda da criminalizacao, 0problema reside em encontrar uma f6rmula que, respeitando 0 principio dapresuncao de inocencia e a correlativa atribuicao do dever de provar os elementostipicos do crime ao Ministerio Publico, seja passtvel de aplicacao pratica, evitando aarmadilha da atribuicao ao Ministerio Publico da prova diab6lica de factos negativos,que reduziria todo 0 esforco a producao de uma mer a "lei de etiqueta".

    Por outro lado, a questao varias vezes suscitada da faIta de definicao do"interesse protegido" pela nova incriminacao poder-se-a responder, como em 20050fez 0Ministro de Estado do Controle e da Transparencia do Brasil, em proposta delei sobre 0 tema, que "0 que se visa proteger, fundamental mente, e 0 conceito deadministracao integra e honesta, a que tern direito todos os cidadaos, e a irnagern detransparencia e probidade da Administracao e dos que a compoem".

    3. Passemos pois, a analise especifica dos projectos de Lei apresentados.Duma apreciacao conjunta permitirno-nos extrair a imediata conclusao

    de que 0 Projecto de Lei 4jXII/P e 0 que mais se aproxima dos requisitos quecuidamos de enunciar no ponto 1 deste parecer. Alem de que e , salvo 0 devidorespeito por opiniao diversa, 0 que se revela mais bern estruturado do ponto de vistalegistico-formal.

    3.1.Muito sucintamente (e atendo-nos apenas aos aspectos nucleares):

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    a) 0 Projecto de Lei l1/XII/P coloca rotunda e inaceitavelmente 0encargo de justificar a origem licita do patrimonio ou rendimentos sobre 0 arguidoou pessoa investigada.

    b) No n" 2 do projectado art" 374-Apretende estender-se a previsao legala todos os cidadaos, mas aqui com referencia as declaracoes que tenham prestadopara efeitos fiscais, criando diversidade de tratamento em relacao aos titulares decargos politicos ou de altos cargos publicos, que se reportariam a declaracoes de carizdiverse e, por certo, de diferente abrangencia.

    Se se pretendem tambern abranger os cidadaos em geral, porque e que, emhomenagem a maior uniformidade de tratamento, nao se tomam como marco oureferencia, em ambos os casos, as declaracoes efectuadas para efeitos fiscais?

    c) 0n 3 afigura-se redundante, face ao teor dos pretendidos nOs1 e 2.

    d) Desnecessario sera, tambern, 0n" 4, ja que as regras do C Penal (artigos109a 111),bern como os artigos 7e seguintes da Lei 5/2002 (cujo regime se sugereseja aplicado a esta materia) estipulam, em termos amplos e suficientementeexplicitos, 0 perdimento dos " in strume nta sc ele ris" e dos " pr od u cia s ce le ris ".

    e) 0 Projecto de Lei 72/XII/P, pretendendo seguir a tradicao de tratarparalela e simetricamente os actos praticados por funcionarios em geral (na amplaprevisao do art" 386 do C penal) e por titulares de cargos politicos e altos cargospublicos (na acepcao do novo artigo 3-A da lei 34/87), apresenta formulacaocomplexa para 0 n" 1 dos projectados art" 3860 do CP. e art" 27-A da Lei 34/87. Comefeito, ha nesses normativos uma profusao conjugada de conceitos indeterminadosque os tornarao de muito diftcil e onerosa praticabilidade, Fonte de infindaveisdiscussoes jurisprudenciais a varies niveis das jurisdicoes nacionais e europeias:"incremento significativo", "que nao possam razoavelmente", "em manifestadesproporcao", "com perigo manifesto". Parece particularmente perturbadora da

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    eficiencia que afinal se pretende a invocacao do IIperigo manifesto" da provenienciailegftima.

    f) Assinala-se, contudo, como harmoniosa a solucao encontrada para adefinicao de rendimentos legftimos, reportando-a, quer no caso de funcionarios emgeral quer no de titulares de cargos politicos e altos cargos public os as declaracoespara efeitos fiscais (n" 4 de ambos os artigos).

    g) A formula extensivamente descritiva adoptada para os nOs2 e 3 corre 0risco de, ao nao utilizar a tradicional chave de flexibilizacao (0 adverbio"nomeadamente") deixar de fora algumas situacoes tambem carecedoras de tutela.Parece-nos. pois, que seria preferivel uma redaccao mais abstracta e generalizante.Permita-se um exemplo: "Constituem patrimonio ou rendimentos [formulapreferfvel a "patrimonio ou despesas"] os bens ou vantagens de qualquer natureza:

    a) que estiverem na titularidade das pessoas mencionadas;

    b) ou na titularidade de outra pessoa, singular ou colectiva, masde que tenham, por qualquer forma, disponibilidade ou fruicao" .

    h) Compreende-se a intencao dos projectados nOs 5: afastar quaisquerduvidas quanto a nao inversao do denominado onus da prova. Parece, contudo, quea norma e desnecessaria, redundante, desusada ate, face as regras constitucionaisvigentes, "maxime" as que fixam a estrutura acusatoria do processo penal (art" 32",n5) e 0 principio da presuncao de inocencia (art" 32,n'' 2).

    3.2. Quanto ao Projecto de Lei 4fXIIfl a :a) A referencia a Lei 4/83 e alteracoes subsequentes so faz sentido se

    apenas se quiserem abranger na previsao tipificadora titulares de cargos politicos ede altos cargos public os. Se, alem disso, se quiserem tambem abranger funcionarios

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    em geral (na lata acepcao do ja citado art? 3860do C. Penal), mais correcto se nosafigura que a referencia seja a declaracao de rendimentos para efeitos fiscais.

    b) Considera-se que 0 texto do n 1 do projectado art" 371-A ganhariamaior precisao e mais facilmente se eximiria a arguicao de inconstitucionalidade(pelo sempre presente espectro da violacao do principio da presuncao de inocencia)se adoptasse formulacao do genero: "... estejam na posse de patrimonio ourendimentos sem origem Iicita determinada manifestamente superiores aosapresentados nas respectivas e previas declaracoes ... ". Daqui resultaria que sobre 0Ministerio Publico, investigando " n cha rg e e t n de char g e " , como e das suas matriciaisatribuicoes, com a isencao e objectividade que deve usar no exercicio da accao penal,recairia 0 encargo de apurar a origem do patrimonio e rendimentos em causa,designadamente se resultaram de trabalho, de investimento, de doacao, de herancaou de jogo. A resposta negativa a este "protocolo investigatorio" permitiria concluirpela inexistencia de origem licita determinada e, consequentemente, pela hipotese depreenchimento do tipo de ilfcito em aprec;o.A menos que 0 arguidoj acusado, no usado seu direito de defesa, queira enfim revelar a genese do que the e encontrado.

    c) 0 texto ganharia explicitude se mais claramente se afirmasse aresponsabilizacao nao so de titular de cargo politico, de alto cargo publico ou defuncionario que exerca funcoes no momenta como tambern do que as tenha exercidoanteriormente (por ex., nos cinco anos anteriores).

    d) A melhor forma de evitar a arguicao de violacao do principio line bis inidem" sera estabelecer, no texto legal, uma relacao de concurso aparente entre estecrime e outros que estejam subjacentes ao mesmo. Sugere-se, respeitosamente, autilizacao da formula tradicional "se pena mais grave the nao couber por forca deoutra disposicao legal" no segmento final do n" 1.

    e) Caso venham a ser acolhidas estas sugest6es perdera sentido e tornar-se-a desnecessaria a norma projectada para 0 n" 2. Isto e: nos termos gerais, a

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    CONSELHO SUPERIOR DO MI

    justificacao da origem licita excluira a responsabilidade pelo crime deenriquecimento ilicito, mas podera subsistir infraccao de outra natureza (maisfrequentemente, ere-sa, urn crime de natureza tributaria, como a frau de fiscal).

    f) A regra projectada para 0 n" 3 e despicienda, pelas raz6es ja aduzidassupra [ponto 3.1. d)].

    3.2.1. Do conjunto de observacoes que vimos de formular poderiadesenhar-se, em aparente sintonia com a logica dos Projectos de Lei em apre

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    d) No art" 7 da Lei de Organizacao da Investigacao Criminal, atribuindocompetencia reservada para a sua investigacao a Policia [udiciaria.

    e) No art" 26 da Lei 93/99, de 14 de Junho, respeitante a proteccao detestemunhas, como consta ja do projecto de lei 72/ XII/ 1a.

    5. Em prol do conseguimento de maior seguranca jundica e visando, emespecial, evitar a excessiva alocacao de meios a resolucao de maior numero de actosimpugnat6rios, permitimo-nos aconselhar que, qualquer que venha a ser aformulacao aprovada pela Assembleia da Republica, se faca submeter a lei afiscalizacao preventiva do Tribunal Constitucional.

    E 0 que, em prazo consentaneo com a exigencia de IImaior brevidadepossivel" formulada, se nos oferece representar sobre 0assunto.

    Coimbra, 29 de Setembro de 2011

    Euclides Damaso Simoes

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