Diabetes e Risco Cardiovascular

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Diabetes MellitusÉ um grupo heterogêneo dedistúrbios metabólicos que apresentam emcomum a hiperglicemia. Essa hiperglicemia éo resultado de defeitos na ação da insulina, nasecreção de insulina ou em ambos.

A classificaçãoproposta pela Organização Mundial daSaúde (OMS) e pela Associação Americanade Diabetes (ADA) inclui quatro classes clínicas: DM tipo 1, DMtipo 2, outros tipos específicos de DM e diabetesmellitus gestacional (Tabela 1).

DM Tipo I

O DM tipo 1 (DM1), forma presente em5%-10% dos casos, é o resultado de umadestruição das células beta pancreáticas comconsequente deficiência de insulina. Na maioriados casos essa destruição das células beta émediada por auto-imunidade, porém existemcasos em que não há evidências de processoauto-imune, sendo, portanto, referida comoforma idiopática do DM1.Os marcadores deauto-imunidade são os auto-anticorpos: antiinsulina,antidescarboxilase do ácido glutâmico (GAD 65) e antitirosina-fosfatases (IA2 eIA2B). Esses anticorpos podem estar presentesmeses ou anos antes do diagnósticoclínico, ou seja, na fase pré-clínica da doença,e em até 90% dos indivíduos quando a hiperglicemiaé detectada. A taxa de destruição das células beta évariável, sendo em geral mais rápida entre ascrianças. A forma lentamente progressiva ocorregeralmente em adultos e é referida como latentautoimmune diabetes in adults (LADA).

O DM1 idiopático corresponde a uma minoriados casos. Caracteriza-se pela ausênciade marcadores de auto-imunidade contra ascélulas beta

Diabetes mellitus tipo 2:

O diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é a formapresente em 90%-95% dos casos e caracteriza-se por defeitos na ação e na secreção dainsulina. Em geral ambos os defeitos estão presentesquando a hiperglicemia se manifesta,porém pode haver predomínio de um deles. Amaioria dos pacientes com essa forma de DMapresenta sobrepeso ou obesidade, e cetoacidoseraramente desenvolve-se espontaneamente,ocorrendo apenas quando associada aoutras condições como infecções. O DM2 podeocorrer em qualquer idade, mas é geralmentediagnosticado após os 40 anos. Os pacientesnão são dependentes de insulina exógenapara sobrevivência, porém podem necessitarde tratamento com insulina para a obtençãode um controle metabólico adequado.Diferentemente do DM1 auto-imune nãohá indicadores específicos para o DM2. Existemprovavelmente diferentes mecanismos que resultamnessa forma de DM, e com a identificaçãofutura de processos patogênicos específicos oudefeitos genéticos, o número de pessoas comessa forma de DM irá diminuir à custa de umamudança para uma classificação mais definitivaem outros tipos específicos de DM.

4. Outros tiposespecíficos de DM

Pertencem a essa classificação formasmenos comuns de DM cujos defeitos ouprocessos causadores podem ser identificados.A apresentação clínica desse grupo ébastante variada e depende da alteração debase. Estão incluídos nessa categoria defeitosgenéticos na função das células beta, defeitosgenéticos na ação da insulina, doençasdo pâncreas exócrino e outras condições

5. Diabetes MELLITUSgestacionalÉ qualquer intolerância à glicose, de magnitudevariável, com inicio ou diagnóstico durantea gestação. Não exclui a possibilidade

de a condição existir antes da gravidez, masnão ter sido diagnosticada. Similar ao DM2, oDM gestacional é associado tanto a resistênciaà insulina quanto à diminuição da funçãodas células beta(7). O DM gestacional ocorreem 1%-14% de todas as gestações, dependendoda população estudada, e é associadoa aumento de morbidade e mortalidade perinatal(8). Pacientes com DM gestacional devemser reavaliadas quatro a seis semanas após oparto e reclassificadas como apresentandoDM, glicemia de jejum alterada, tolerânciaà glicose diminuída ou normoglicemia. Namaioria dos casos há reversão para a tolerâncianormal após a gravidez, porém existe umrisco de 17%-63% de desenvolvimento deDM2 dentro de 5-16 anos após o parto(9).

Alterações funcionais e estruturais das grandes artérias exercem um importante papel na patogênese das doenças cardiovasculares. O diabetes mellitus, ao lado da hipertensão arterial e do envelhecimento, pode induzir essas alterações em diferentes territórios arteriais, e assim levar ao desenvolvimento de aterosclerose e suas conseqüências cardiovasculares. A principal alteração da função das grandes artérias é o aumento da rigidez, enquanto que a principal alteração estrutural é o maior espessamento da camada intima-media da artéria carótida, encontradas em ambos os tipos 1 e 2 de diabetes. Os mecanismos destas alterações estruturais e funcionais arteriais no diabetes incluem a resistência à insulina, o acúmulo de colágeno devido à glicação enzimática inadequada, disfunção endotelial e do sistema nervoso autônomo. O aumento de rigidez arterial é um marcador de risco cardiovascular em pacientes diabéticos, e o tratamento tanto do diabetes per se quanto de dislipidemia e hipertensão arterial associadas pode modificar beneficamente essas alterações arteriais.Tanto o diabetes tipo 1 quanto o tipo 2 são associados com excesso de doença cardiovascular (DCV), onde as principais causas de mortalidade são conseqüência de lesões ateroscleróticas de grandes artérias como o infarto do miocárdio e o acidente vascular cerebral. Diversos estudos têm demonstrado alterações funcionais e estruturais de grandes artérias em diabéticos, principalmente aumento da rigidez arterial em diabéticos tanto do tipo 1 quanto do tipo 2.

ALTERAÇÕES DAS PROPRIEDADES VASCULARES NO DIABETES TIPO 1

O risco de DCV em pacientes com diabetes tipo 1 é particularmente elevado na presença de nefropatia, mas também é elevado nos pacientes sem envolvimento renal do diabetes. Tem sido evidenciado que pacientes com diabetes tipo 1 têm artérias mais rígidas do que indivíduos não-diabéticos da mesma faixa etária, e que este processo de enrijecimento arterial se inicia antes que qualquer sinal das complicações microvasculares ou macrovasculares possa ser detectado (10,11). Essas alterações,

inclusive, parecem ocorrer precocemente, pois crianças pré-púberes já apresentam aumento de rigidez arterial, demonstrado por tonometria de artéria braquial, quando comparadas com crianças saudáveis da mesma idade (20).

Este aumento da rigidez arterial encontrado em pacientes com diabetes tipo 1 parece ser correlacionado com a duração da doença, independentemente da idade (13), e tem repercussões sobre o comportamento da pressão arterial destes pacientes. Em um estudo populacional (12) realizado na Finlândia (FinnDiane) envolvendo cerca de 3.000 pacientes com diabetes tipo 1 e 5.500 controles não-diabéticos, demonstrou-se que os indivíduos diabéticos tinham maior pressão arterial sistólica em todos os grupos etários, e a pressão diastólica foi maior em diabéticos abaixo de 40 anos e menor naqueles acima de 45, caracterizando uma pressão de pulso mais elevada nos indivíduos diabéticos. Além disso, o estudo demonstrou que esse aumento prematuro da pressão de pulso é fortemente relacionado ao tempo de exposição à hiperglicemia e ao desenvolvimento de nefropatia diabética, embora essa alteração da pressão de pulso tenha sido encontrada também nos pacientes sem microalbuminúria. Em outro estudo europeu (21), envolvendo 3.250 pacientes com diabetes tipo 1, demonstrou-se que a pressão de pulso foi associada com a idade, mas também com a presença de complicações microvasculares do diabetes, tais como microalbuminúria e retinopatia. Os importantes resultados destes dois estudos suportam o conceito de um envelhecimento vascular precoce em portadores de diabetes tipo 1, visto que a pressão de pulso é um marcador de aumento da rigidez arterial.

A maioria dos estudos (11,22-26) tem demonstrado que os pacientes com diabetes tipo 1 apresentam artérias mais rígidas que indivíduos normais, mas vários importantes fatores, como idade do paciente, duração da doença, artéria estudada, sexo, o grau de controle com o tratamento, e as complicações da doença, podem influenciar os efeitos do diabetes tipo 1 sobre as grandes artérias. Assim, os resultados de alguns estudos são conflitantes. Analisando a distensibilidade aórtica em jovens com diabetes tipo 1 e que apresentavam menos de 1 ano de diagnóstico, Lehmann e cols. (24) mostraram aortas mais distensíveis (78%) nestes indivíduos. Em contrapartida, Kool e cols. (25) mostraram, em adultos diabéticos tipo 1 não complicados, uma redução de distensibilidade na artéria femural, mas não nas artérias carótida ou braquial. Outro estudo (26) relatou aumento da rigidez da carótida e da aorta em mulheres mas não em homens com diabetes tipo 1, e nessas mulheres houve correlação entre rigidez aórtica, duração do diabetes e disfunção autonômica. Em um estudo italiano (11), os autores mostraram em pacientes com diabetes tipo 1 um enrijecimento e um espessamento da parede arterial difuso, mesmo em pacientes sem qualquer complicação clínica vascular, demonstrando que a hipertrofia e a rigidez de grandes artérias são marcadores precoces de dano vascular nesta patologia (figura 2). Quando todos os dados publicados são considerados em conjunto, com exceção de um estudo, todos os demais mostram diminuição da distensibilidade arterial no diabetes tipo 1. Essas anormalidades

arteriais, relatadas em crianças, adolescentes e pacientes jovens, parecem ser mais pronunciadas na aorta do que nas extremidades inferiores, com uma correlação significante com a exposição do vaso à hiperglicemia.

 

 

Com relação às alterações estruturais, tem sido demonstrado que pacientes diabéticos tipo 1, desde a infância (27) até aqueles pacientes com complicações associadas (28), apresentam maior espessura intima medial (EIM) de artéria carótida do que os indivíduos sem a doença da mesma faixa etária. Em um desses estudos houve uma correlação importante entre EIM de carótida e disfunção endotelial, sugerindo a participação das alterações do endotélio no desenvolvimento de aterosclerose destes pacientes.

 

ALTERAÇÕES DAS PROPRIEDADES VASCULARES NO DIABETES TIPO 2

Assim como em pacientes com diabetes tipo 1, vários estudos mostraram alterações da estrutura e função de grandes artérias em indivíduos com diabetes tipo 2, principalmente aumento da rigidez aórtica e da EIM da carótida (15,19,22,29-32), sugerindo que a rigidez arterial pode contribuir para aterosclerose acelerada no diabetes tipo 2. Em um desses estudos, Lehmann e cols. (24)

analisaram a complacência aórtica em pacientes diabéticos tipo 2 utilizando medidas de VOP, e observaram que os diabéticos tipo 2 tinham aortas mais rígidas do que os controles não-diabéticos de mesmo sexo e idade. No Strong Heart Study (33), a rigidez arterial foi medida por ultra-som em indígenas americanos, sendo 1.810 diabéticos e 944 normoglicêmicos. Os pacientes diabéticos tinham uma rigidez arterial significativamente aumentada em relação aos não-diabéticos e, além disso, a condição "diabetes" foi independentemente associada com a rigidez mesmo após ajustes para idade, sexo, altura, índice de massa corpórea, pressão arterial sistólica e uso de medicação anti-hipertensiva.

Outro importante estudo (17), envolvendo 619 holandeses (Hoorn Study), avaliou a distensibilidade central e periférica em indivíduos com metabolismo de glicose normal, em indivíduos com intolerância à glicose e em pacientes com diabetes tipo 2. Tanto a rigidez de artérias centrais quanto de artérias periféricas estavam mais elevadas nos pacientes com intolerância à glicose e nos diabéticos, em comparação com os controles normais (figura 3).

 

 

Na maioria dos estudos de rigidez arterial em diabetes, os melhores determinantes da rigidez arterial foram a idade e os níveis de insulina plasmática, mas também observou-se correlação com a área sob a curva glicêmica. A presença de diabetes em pacientes com outros fatores de risco cardiovascular, como hipertensão arterial, tem efeito deletério sobre a já comprometida função vascular. Neste sentido, Amar e cols. (19) demonstraram em hipertensos não tratados que os portadores de diabetes e de intolerância à glicose apresentavam valores mais elevados de VOP

do que naqueles com glicemia normal, havendo uma correlação positiva entre VOP e glicemia de jejum. Em estudo de nosso grupo envolvendo pacientes com hipertensão arterial leve/moderada, dentre diferentes determinantes, incluindo sensibilidade ao sal, os níveis de glicemia foram independentemente preditores da VOP aórtica (34).

As alterações funcionais das grandes artérias em pacientes diabéticos do tipo 2 parecem sofrer influência do sexo. No estudo de Westerbacka e cols. (35), a rigidez arterial, avaliada pelo índice de incremento da pressão central de aorta obtido por tonometria de aplanação de carótida, foi mais elevada em mulheres do que em homens. Em outro estudo (36), envolvendo 186 indivíduos diabéticos e não-diabéticos, as mulheres diabéticas apresentaram VOP mais elevada que as não-diabéticas, enquanto entre os homens a VOP não diferiu entre os diabéticos e não-diabéticos após ajuste para pressão arterial. Além disso, o enrijecimento da aorta relacionado à idade foi maior apenas em mulheres diabéticas. Assim, em homens, a presença de diabetes tipo 2 não é necessariamente responsável por uma maior rigidez arterial além do efeito da hipertensão arterial concomitante, enquanto em mulheres o diabetes tipo 2 é associado a um aumento acelerado da rigidez arterial relacionado à idade além do esperado para um determinado nível de pressão arterial.

Independentemente dessas diferenças relacionadas ao sexo, as alterações da rigidez arterial presentes em diabéticos tipo 2 ocorrem precocemente, mesmo na ausência de outros fatores de risco ou de manifestações clínicas de doença cardiovascular. Em outro estudo de nosso grupo (18), demonstramos uma elevação da VOP da aorta, artéria predominantemente elástica, e também da VOP da artéria braquial, predominantemente muscular, em pacientes diabéticos tipo 2 sem nenhuma manifestação clínica de doença cardiovascular ou fator de risco associado (figura 4). Nesse mesmo estudo, a VOP aórtica foi significativamente relacionada aos níveis de glicemia e à hemoglobina glicosilada, salientando a participação do estado hiperglicêmico nas alterações da função vascular desses pacientes.

 

 

Assim como já demonstrado em pacientes hipertensos (5) ou com insuficiência renal crônica dialítica, a rigidez arterial avaliada pela VOP aórtica foi um marcador de eventos e mortalidade cardiovascular de indivíduos com diabetes tipo 2 (37). Neste estudo, realizado em 397 pacientes diabéticos de diferentes etnias, a VOP aórtica também foi maior nos indivíduos diabéticos comparados aos normoglicêmicos, e a mortalidade em 10 anos foi mais elevada entre os diabéticos. Além disso, a VOP aórtica, ao lado de idade, tabagismo e valor da curva glicêmica, foi um preditor independente de mortalidade total, deslocando a pressão arterial sistólica quando ambos foram inseridos no mesmo modelo. Os pacientes diabéticos que morreram eram significativamente mais velhos, fumavam mais, tinham uma VOP 2,6 m/s mais elevada e a pressão arterial média era 10 mmHg mais alta que a daqueles que não morreram (tabela 1).

 

 

Com relação às alterações estruturais, tem sido consistentemente demonstrado que a EIM de carótida é maior nos indivíduos com diabetes tipo 2 do que nos não-diabéticos (16,38-40). Em um desses estudos (40), Insulin Resistance Atherosclerosis Study, que envolveu 1.625 pacientes em vários graus de estado hiperglicêmico, isto é, normoglicêmico, intolerância à glicose, diabetes recém-diagnosticado e estabelecido, a EIM de carótida foi significativamente maior nos estados diabéticos (figura 5). Além disso, o diabetes mellitus é fator importante de progressão da EIM de carótida, como foi demonstrado em estudo (41) realizado em 1.192 indivíduos, onde o aumento da espessura intima medial de carótida após 5 anos de seguimento foi 2 vezes maior na população diabética do que nos normoglicêmicos, após correção para outros fatores de risco.

 

 

A EIM de carótida também tem valor prognóstico cardiovascular em pacientes diabéticos tipo 2. A EIM aumentada está associada com doença arterial coronária e é preditora de eventos futuros de infarto do miocárdio silencioso e doença coronariana em diabéticos tipo 2 (42).

Ambas as alterações funcionais e estruturais parecem estar inter-relacionadas em pacientes diabéticos, como foi observado em um estudo (14) realizado em 225 indivíduos com diabetes tipo 2, onde a rigidez arterial avaliada pela análise da onda de pulso por tonometria de aplanação foi significativamente e independentemente relacionada à EIM da artéria carótida.

 

MECANISMOS DE AUMENTO DA RIGIDEZ ARTERIAL E DAS ALTERAÇÕES VASCULARES ESTRUTURAIS EM PACIENTES DIABÉTICOS

As alterações da função vascular presentes tanto no diabetes tipo 2 quanto no diabetes tipo 1 têm vários mecanismos fisiopatológicos possíveis. Um dos mecanismos seria relacionado ao aumento da resistência à insulina, e conseqüente hiperinsulinemia. A insulina

reduz significativamente a rigidez de grandes artérias quando infundida agudamente (30 a 60 min), provavelmente por um mecanismo endotélio-dependente, como demonstrado em indivíduos jovens saudáveis (35), sugerindo que hiperinsulinemia pode promover também um aumento da rigidez arterial no período pós-prandial por disfunção endotelial. A associação de resistência à insulina e aumento da rigidez arterial tem sido demonstrada em indivíduos com diabetes mellitus tipo 2, onde a captação de glicose mediada por insulina foi positivamente associada com o coeficiente de complacência da artéria carótida (43).

A hiperglicemia também pode diretamente afetar a estrutura e, conseqüentemente, a função de grandes artérias. Tem sido demonstrado que a hiperglicemia causa importantes alterações quantitativas e qualitativas na elastina e no colágeno de paredes de artérias centrais (17). Outro possível mecanismo que pode permitir elevação da rigidez arterial nos pacientes diabéticos é a glicação de proteínas e o aumento de produtos finais de glicação avançada. Esses produtos podem formar ligações de moléculas de colágeno na parede arterial, desta forma diminuindo a distensibilidade (17). Condições hiperglicêmicas podem promover acúmulo de colágeno devido a uma glicação não-enzimática e conseqüentemente aumentar a rigidez de artérias centrais e periféricas (44). Por fim, resultados de estudo desenvolvido em nosso laboratório sugerem que alterações do sistema nervoso autônomo podem induzir as alterações da rigidez arterial presentes nos pacientes diabéticos. Neste estudo, demonstramos (18) que pacientes diabéticos sem complicações cardiovasculares ou renais apresentavam elevações da VOP aórtica e braquial correlacionadas com alterações do reflexo autonômico simpático, principalmente aquelas dependentes dos barorreceptores, sugerindo a participação do sistema nervoso autônomo na mediação das alterações da rigidez arterial presentes em pacientes com diabetes.

O aumento da EIM da carótida pode ser desencadeado pela hiperglicemia, como descrito anteriormente, com conseqüente aumento da quantidade de colágeno e elastina da parede arterial. Mas esse mecanismo não deve ser o único, pois há evidências de participação da inflamação e da genética nas alterações estruturais de grandes vasos presentes no diabetes. Com relação à inflamação, achados de estudo (45) realizado em diabéticos tipo 2 mostraram que a extensão da espessura intima medial de carótida foi relacionada à proteína C reativa e ao fibrinogênio. A participação genética no desenvolvimento da lesão estrutural vascular de pacientes diabéticos tipo 2 foi sugerida por Yazdanpanah e cols. (46), que recentemente demonstraram maior EIM de carótida em pacientes com diabetes tipo 2 que apresentavam polimorfismo genético da a-aducina 1. Esse polimorfismo se caracteriza pelo aumento da atividade da bomba sódio-potássio, aumentando a reabsorção tubular renal de sódio e conseqüentemente elevando o risco de hipertensão sal-sensível e de doença vascular associada.

 

RELAÇÃO ENTRE RIGIDEZ ARTERIAL E COMPLICAÇÕES CARDIOVASCULARES E RENAIS DOS PACIENTES COM DIABETES MELLITUS

Lesão vascular generalizada deve ser um mecanismo patogênico comum ligando as complicações renais e, o desenvolvimento de aterosclerose no paciente diabético. Além disso, a presença de alterações funcionais e estruturais de grandes artérias pode piorar o prognóstico de pacientes com diabetes e outras complicações, principalmente as renais, manifestas por microalbuminúria ou insuficiência renal. Pacientes com doença renal terminal e diabetes têm uma VOP aórtica mais elevada do que aqueles indivíduos sem diabetes, e essa condição contribui para a maior mortalidade e morbidade cardiovascular desses pacientes (47). Uma relação positiva entre pressão de pulso, um marcador clínico de elevada rigidez arterial, e proteinúria tem sido observada (48), e, em um recente estudo em pacientes japoneses com diabetes tipo 2, a microalbuminúria foi independentemente relacionada à EIM da artéria carótida (49). Em outro estudo recentemente publicado, Smith e cols. (50) demonstraram que pacientes com diabetes tipo 2 que apresentam uma razão albumina/creatinina elevada têm uma maior rigidez aórtica que os indivíduos com razão menor, e que os valores de pressão arterial elevados desses pacientes com excreção de albumina maior são os mediadores dessa correlação. Além disso, nesse mesmo estudo, em pacientes com diabetes tipo 2 sem lesão renal manifesta, o ritmo de filtração glomerular (RFG) foi negativamente associado com a VOP aórtica. Esses dados reforçam os obtidos por Taniwaki e cols. (51), que demonstraram que o RFG foi negativamente e independentemente relacionado à rigidez de artéria carótida. Os dados desses dois estudos sugerem que em diabetes tipo 2, o nível de função renal, bem antes da insuficiência renal, é um importante fator contribuinte para a rigidez arterial. Assim, alterações funcionais renais precoces per se parecem interagir não somente com a função de pequenas mas também de grandes artérias, contribuindo para o desenvolvimento e progressão do envelhecimento vascular e do processo aterosclerótico dos pacientes diabéticos.

Com relação às complicações cardiovasculares, alguns autores (52) têm demonstrado que a maior rigidez de artérias de membros inferiores está associada com fluxo arterial diastólico de artéria poplítea diminuído, à isquemia de pé induzida por exercício e a sintomas isquêmicos de doença arterial periférica em pacientes com diabetes mellitus tipo 2. Também se tem demonstrado que doença arterial coronária com manifestações isquêmicas está relacionada com aumento da VOP aórtica e não de outros territórios arteriais em pacientes diabéticos, indicando a participação da rigidez de artérias centrais no mecanismo de isquemia miocárdica de pacientes com diabetes tipo 2 (53).

 

EFEITOS DO TRATAMENTO SOBRE A RIGIDEZ ARTERIAL

O tratamento do diabetes per se, ou o tratamento de co-morbidades associadas ao diabetes como hipertensão e dislipidemia, pode promover melhora das alterações estruturais e funcionais das grandes artérias em pacientes diabéticos. Embora não existam muitos estudos abordando esses tópicos, algumas publicações têm mostrado resultados auspiciosos que incentivam a realização de estudos com maior número de participantes. O tratamento de pacientes diabéticos com glitazonas ou metformina melhora a função vascular de pacientes diabéticos via aumento de adiponectina, permitindo um entendimento melhor dos mecanismos dos efeitos do tratamento sobre as alterações vasculares. Tem-se demonstrado efeitos benéficos do uso de estatinas sobre a rigidez arterial regional de membros inferiores de pacientes com diabetes tipo 2, independentemente da redução dos níveis de colesterol (54). Em estudo (55) recentemente publicado, os autores demonstraram em 42 pacientes normotensos com diabetes tipo 1 ou tipo 2, que o uso por 6 meses de inibidor da enzima conversora reduziu significativamente a VOP aórtica independentemente do efeito sobre a pressão arterial, sobretudo nos pacientes com diabetes tipo 1. Confirmando esses dados, Tropeano e cols. (56) demonstraram em 57 pacientes com hipertensão e diabetes tipo 2 que o uso de inibidor de enzima conversora por 7 meses aumentou significativamente a distensibilidade de carótida independentemente do efeito sobre a artéria braquial.

 

CONCLUSÃO

Pacientes portadores de diabetes mellitus tipo 1 e tipo 2 apresentam alterações estruturais e funcionais de grandes vasos que muito provavelmente têm um papel fundamental no desenvolvimento de aterosclerose desses pacientes e suas respectivas complicações cardiovasculares. A possibilidade de detectar precocemente essas alterações através de métodos não-invasivos permite identificar os pacientes de maior risco que se beneficiarão de um tratamento mais agressivo. Além disso, abre-se uma perspectiva nova de abordagem terapêutica dos pacientes diabéticos, com a adoção de medidas não-farmacológicas ou farmacológicas que interfiram nessas modificações vasculares e conseqüentemente ajudem a diminuir a mortalidade cardiovascular desses pacientes.

 

INTRODUÇÃO

A doença cardiovascular é responsável por até 80% das mortes em indivíduos com diabetes mellitus (DM) do tipo 2. De fato, o risco relativo de morte por eventos cardiovasculares, ajustado para a idade, em diabéticos é três vezes maior do que o da população em geral.21 Estudo observacional recente mostrou que o risco de morte por doença arterial coronariana em pacientes com DM do tipo 2 é semelhante àquele observado em indivíduos não diabéticos que

tiveram um infarto agudo do miocárdio prévio.8 As mulheres, que habitualmente têm menor risco de doença cardiovascular do que os homens, passam a ter maior risco do que eles se forem diabéticas.9

As razões para a manifestação de aterosclerose acelerada em pacientes diabéticos ainda não são completamente compreendidas. Foram sugeridos como mecanismos prováveis os efeitos tóxicos diretos da glicose sobre a vasculatura, a resistência à insulina e a associação do DM a outros fatores de risco.8

O DM do tipo 2 sabidamente associa-se a vários fatores de risco cardiovasculares, incluindo hipertensão arterial sistêmica (HAS), obesidade, resistência à insulina, microalbuminúria e anormalidades nos lipídios e lipoproteínas plasmáticas, caracteristicamente elevação de triglicerídeos e redução de colesterol contido na lipoproteína de alta densidade (colesterol HDL). A associação desses fatores de risco tem sido denominada síndrome metabólica ou síndrome X.17 A relação entre hiperglicemia e doença cardiovascular pode ser atribuída à prevalência elevada desses fatores de risco nos pacientes com a síndrome metabólica ou a um antecedente comum a todos esses fatores.

O estudo MRFIT (Multiple Risk Factor Intervention Trial) claramente confirmou que a HAS, hipercolesterolemia e tabagismo são independentemente preditivos de mortalidade por doença cardiovascular e a presença de pelo menos um desses fatores de risco tem impacto maior sobre a mortalidade em indivíduos diabéticos do que em não diabéticos.21 Mais recentemente, os resultados do UKPDS (United Kingdom Prospective Diabetes Study) , grande estudo multicêntrico realizado no Reino Unido, vieram a confirmar a potencialização dos fatores de risco clássicos para doença arterial coronariana nos indivíduos diabéticos.25

Uma epidemia de DM do tipo 2 vem ocorrendo nos últimos anos, com tendência de crescimento na próxima década.14,15 Portanto, as complicações do DM do tipo 2, entre as quais as cardiovasculares, emergem como uma das maiores ameaças à saúde em todo o mundo, com imensos custos econômicos e sociais.4 Recentemente, obteve-se comprovação de que mudanças de estilo de vida (exercício físico regular e redução de peso) podem diminuir a incidência de DM do tipo 2 em indivíduos com intolerância à glicose.2,24

É fundamental, portanto, a identificação do perfil de risco global da população com DM e demais anormalidades da homeostase glicêmica a fim de direcionar as ações em saúde. O objetivo do presente estudo foi identificar a prevalência real dos fatores de risco para a doença arterial coronariana em indivíduos com diferentes graus de anormalidades da homeostase glicêmica.

 

MÉTODOS

Foi realizado um estudo observacional, analítico, de delineamento transversal e de base populacional do Estado do Rio Grande do Sul (RS). Foi utilizada a base de dados criada para a pesquisa original, a qual avaliou a prevalência dos fatores de risco para doença arterial coronariana no Estado.7 A amostra calculada foi de 1.066 indivíduos, selecionados por amostragem aleatória por conglomerado, mediante os seguintes parâmetros: 1) tamanho da população: infinita; 2) erro (precisão absoluta): 3%; 3) prevalência esperada: 50% (variabilidade máxima); 4) nível de confiança: 95%. Para manter a representatividade da população urbana, a amostra foi distribuída proporcionalmente à população do município-sede de cada uma das 19 coordenadorias da Secretaria Estadual da Saúde, representando as 19 microrregiões do Estado.

O presente estudo foi realizado no período de julho de 1999 a outubro de 2000.

Foi aplicado um questionário estruturado sobre os fatores de risco coronariano (sedentarismo, diabetes, tabagismo, HAS, hipercolesterolemia) e as características sociodemográficas a todos os adultos maiores de 20 anos residentes no domicílio selecionado. Os entrevistadores, técnicos de enfermagem e estudantes de medicina, foram treinados segundo as normas do VI Joint National Committe (1997)19 para uma adequada mensuração da pressão arterial e também para o preenchimento adequado do questionário. Os indivíduos entrevistados tiveram seu peso, altura e pressão arterial medidos pelos entrevistadores, além da obtenção de uma amostra de sangue com recomendação de jejum de oito a 12 horas para determinação dos valores de glicemia de jejum e colesterol sérico total.

A coleta de sangue, seguindo protocolo padronizado, foi realizada no dia seguinte à entrevista. As amostras foram mantidas em tubos fluoretados, em gelo, até serem congeladas. A pressão arterial foi medida em dois momentos durante a visita domiciliar, com intervalo mínimo de três minutos entre a primeira e a segunda medidas, registrando-se a última. As balanças e esfigmomanômetros foram calibrados e aprovados pelo Inmetro.

Todos os indivíduos da amostra assinaram um termo de consentimento, procedendo-se então à aplicação do questionário e às mensurações citadas.

Os fatores de risco citados foram identificados e comparados entre três grupos de indivíduos, classificados de acordo com sua homeostase glicêmica: normais (glicemia de jejumGJ<110 mg/dl), com glicemia de jejum alterada (GJ=110 e <126 mg/dl) ou diabéticos (glicemia de jejumGJ>126 mg/dl ou história pessoal de DM ou uso de drogas anti-diabéticas). A hipertensão arterial sistêmica foi definida como pressão arterial =140/90 mmHg ou inferior, se em uso de medicamentos anti-hipertensivos. Hipercolesterolemia foi definida como colesterol sérico total =200 mg/dl. A obesidade foi definida como índice de massa corporal (IMC; calculado pela divisão do peso em quilogramas pela altura em

metros ao quadrado) =30 kg/m2. Os indivíduos com freqüência de atividade física menor do que três vezes por semana foram considerados sedentários. Consumo atual de cigarros, independente do número por dia, definiu tabagismo. Foram também avaliados a renda familiar, número de pessoas na família e comparecimento a serviço público de saúde nos últimos 12 meses.

Para a análise dos dados foi utilizado o pacote estatístico Stata 7. Foram calculadas as freqüências absolutas e relativas dos fatores de risco, além de sua distribuição de acordo com as faixas etárias. Os dados foram expressos como médias, intervalos de confiança ou percentagens. Foi estabelecido nível prévio de significância de 5%. As variáveis categóricas foram comparadas utilizando-se qui-quadrado de Pearson, enquanto que as contínuas mediante teste t de Student ou Anova. Todos testes estatísticos foram bi-caudais. Para controle do efeito de delineamento (amostra por conglomerados) foi utilizada a série de comandos "svy" do Stata, por meio da criação de clusters, onde cada cluster representava cada uma das microrregiões do Estado do RS. Foram aplicados modelos de regressão logística, controlados para o efeito de delineamento, para controlar os efeitos da idade e do IMC sobre as associações encontradas entre os fatores de risco e o grau de anormalidade da homeostase glicêmica apresentada pelos indivíduos. Nesses modelos foram comparados, separadamente, os indivíduos normais com os que apresentaram glicemia de jejum alterada ou diabetes.

 

RESULTADOS

Foram avaliados1.063 dos 1.066 indivíduos selecionados inicialmente, com uma perda de 0,3%. Desse total, 992 possuíam dados suficientes para serem classificados em três diferentes grupos, de acordo com sua homeostase glicêmica, representando 93% da amostra total. Comparando-se os dados demográficos da amostra com os dados do Censo Populacional de 2.000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), observou-se sua representatividade em relação à população adulta do RS.

A média de idade para o total da amostra foi de 44 anos (IC 95%: 41,3-46,5), com uma proporção de 18% maiores de 60 anos, 47,4% do sexo masculino. Aproximadamente 74% tinham renda familiar igual ou inferior a seis salários- mínimos, enquanto 42% possuíam renda familiar igual ou inferior a três salários-mínimos. Cerca de 42% dos indivíduos não completaram o ensino básico (menos de oito anos de escolaridade). Na Tabela 1, observam-se as principais características da amostra, discriminadas por sexo. Foram estatisticamente significativas as diferenças relacionadas à escolaridade e renda familiar (ambas menores no sexo feminino), ao comparecimento a serviço público de saúde no último ano (maior no sexo feminino) e à presença de níveis mais elevados de colesterol total e idade mais elevada nas mulheres.

A prevalência de diabéticos foi de 12,4% (N=123), enquanto 7,4% (N=74) apresentavam glicemia de jejum alterada. No grupo de indivíduos diabéticos, 31,7% (N=39) desconheciam apresentar essa patologia. A Figura evidencia a relação direta entre o aumento da idade e o crescimento na prevalência de DM e glicemia de jejum alterada, assim como da hipercolesterolemia e da HAS.

 

 

Na Tabela 2, pode-se observar a comparação da prevalência dos fatores de risco para doença arterial coronariana entre os diabéticos, indivíduos com glicemia de jejum alterada e indivíduos normais. Na comparação entre os três grupos, indivíduos com níveis alterados de glicemia de jejum e com diabetes apresentaram associação estatisticamente significativa com o aumento da idade, do lMC e, também, com a presença de obesidade, HAS e hipercolesterolemia. A análise post-hoc demonstrou que os indivíduos com glicemia de jejum alterada apresentavam idade mais elevada, maior prevalência de HAS, de hipercolesterolemia e de obesidade. Tanto o grupo de indivíduos com glicemia de jejum alterada, como o grupo com diabetes haviam procurado com significativa maior freqüência os serviços públicos de saúde.

Sexo, renda familiar, escolaridade, presença de hipercolesterolemia, hipertensão, sedentarismo e obesidade não foram diferentes entre os indivíduos que desconheciam ser diabéticos e aqueles que já tinham esse diagnóstico previamente. No entanto, os últimos apresentavam GJ menor do que os indivíduos que desconheciam sua condição de diabéticos (137,8 vs

182,7 mg/dl, p=0,004), assim como apresentavam menor prevalência de tabagismo (26,2 vs 41%, p=0,04). Esses dados estão representados na Tabela 3.

A fim de controlar o efeito da idade e do IMC sobre a prevalência de HAS e sobre os níveis séricos de colesterol entre os indivíduos normais e os com glicemia de jejum alterada, procedeu-se ao cálculo da razão de risco mediante uso de modelos de regressão logística. Verificou-se, assim, associação entre a presença de HAS (OR=1,93; IC 95%=1,07-3,48) e de glicemia de jejum alterada, independente da idade e do IMC. Não se observou, no entanto, associação com os níveis de colesterol sérico (OR=1,16; IC 95% =0,74-1,83). Ao se comparar indivíduos normais com diabéticos, também mediante análise de regressão logística, não se observou associação independente da idade e do IMC entre a presença de HAS (OR=0,97; IC 95%=0,61-1,53) e de colesterol elevado (OR=1,49; IC 95%=0,94-2,37) com a presença de diabetes.

 

DISCUSSÃO

A prevalência de diabetes encontrada na amostra foi maior do que a encontrada por Malerbi et al12 em Porto Alegre, em 1992 (8,9%). Os dados do presente estudo se basearam nos novos critérios diagnósticos, que utilizam ponto de corte da glicemia de jejum mais baixo do que o usado naquele estudo (126 mg/dl vs 140 mg/dl). No entanto, a grande maioria dos pacientes daquele estudo foram diagnosticados como diabéticos porque apresentavam glicemia maior do que 200 mg/dl após sobrecarga oral com 75 g de glicose. Sabe-se que esse critério é equivalente, quanto à prevalência de diabetes diagnosticada, ao que utiliza glicemia de jejum maior do que 126 mg/dl. Ambos os estudos incluíram como diabéticos aqueles indivíduos que, mesmo com glicemias de jejum menores do que os valores citados, relatassem história prévia de diabetes ou uso de drogas anti-diabéticas. Há que se considerar, nessas diferenças, que o estudo atual envolveu uma amostra de toda a população urbana do RS, enquanto que o anterior avaliou apenas uma amostra da cidade de Porto Alegre. Esse aumento na prevalência de diabetes é comparável ao que vem sendo observado em países desenvolvidos e em desenvolvimento.14,16,22

É provável que esses aumentos na prevalência de diabetes decorram do já estabelecido aumento na prevalência de obesidade no Brasil, observado em três grandes estudos transversais entre 1975 e 1997.15 O elevado número de obesos na população atualmente estudada em ambos os sexos reforça essa hipótese. Além disso, foram observados maior IMC e maior número de obesos dentre os indivíduos com algum grau de anormalidade da homeostase glicêmica (diabetes ou glicemia de jejum alterada).

Altas taxas de obesidade foram detectadas no Estado analisado (19,5 e 21,8%, em homens e mulheres, respectivamente) comparativamente às do País como um todo (6,9 e 12,5%) em

homens e mulheres, respectivamente.15 Mesmo observando-se atualmente maior prevalência de diabetes no RS em relação aos dados de 1992, ela parece ser menor do que a esperada pelo grande número de indivíduos obesos detectado. É provável que outros fatores determinantes de alterações da homeostase glicêmica, além da obesidade (susceptibilidade genética ao desenvolvimento do diabetes, resistência à insulina), não teriam tão elevada freqüência. Baixa prevalência de DM do tipo 2 em relação à alta prevalência de obesidade foi descrita em uma população rural do Chile recentemente.18 Em outras regiões do Brasil, em subpopulação específica,3 o aumento da incidência de diabetes foi paralelo ao aumento da obesidade, de forma que diferenças regionais de fatores envolvidos na determinação do diabetes, além da obesidade, estariam atuantes.

Alterações da homeostase glicêmica ainda não diagnósticas de diabetes foram observadas em 7,4% dos indivíduos do presente estudo, menor do que em Porto Alegre em 1992 (12,2%).12 Os dados usados na presente pesquisa baseiam-se na recomendação da Associação Americana de Diabetes,6 a qual introduziu a categoria de glicemia de jejum alterada (glicemia de jejum entre 110 e 126 mg/dl). Os dados anteriores basearam-se em resultados de teste de tolerância à glicose. A categoria glicemia de jejum alterada foi sugerida como equivalente à intolerância à glicose, o que não tem se comprovado. Indivíduos com risco elevado para doença cardiovascular seriam melhor identificados pelo teste de tolerância à glicose, pois cerca de 30% dos indivíduos com glicemia elevada após esse teste têm glicemia de jejum menor do que 100 mg/dl.1 Indivíduos com glicemia de jejum alterada têm mortalidade cardiovascular menor do que aqueles com diabetes ou intolerância à glicose.23 Apesar da controvérsia a respeito do diagnóstico de diabetes,1,6 a GJ é mais econômica e de fácil execução, de forma que é preferencialmente utilizada em estudos que avaliam grande número de pessoas, tais como esse.

Observou-se menor número de indivíduos que são diabéticos e que desconheciam a doença previamente ao estudo: 46% foram reconhecidos pelo Censo Brasileiro de Diabetes12 versus 31,7% pela presente pesquisa. Os dados sugerem que as eventuais medidas tomadas pelo Ministério da Saúde13 com o objetivo de diagnosticar o diabetes em maior número de casos foram efetivas, pelo menos no Estado estudado. Tendo em vista os altos custos representados pelas complicações crônicas da doença, presentes em até 50% dos indivíduos com DM do tipo 2 no momento do diagnóstico,26 é essencial que as medidas reconhecidamente de prevenção (redução de peso e maior atividade física)2,24 sejam colocadas em prática, naturalmente mediante detecção precoce de alterações da homeostase glicêmica. As novas estratégias recentemente propostas pelo Ministério da Saúde são de grande importância nesse contexto.13

O aumento no número de indivíduos com alguma anormalidade da homeostase glicêmica proporcional ao aumento da idade está de acordo com o conhecimento prévio de que a tolerância à glicose vai diminuindo com o envelhecimento dos indivíduos. Esses dados são

evidenciados no presente estudo tanto pela idade média mais elevada nos grupos com glicemia de jejum alterada e nos diabéticos, assim como pelo maior percentual de indivíduos acima de 60 anos nesses mesmos grupos. O mesmo pode-se dizer do maior número de indivíduos hipertensos e com hipercolesterolemia nas faixas etárias mais elevadas, de acordo com dados prévios de outras populações.10

É esperado observar-se menor número de fumantes dentre os indivíduos diabéticos, visto que constituem um subgrupo que caracteristicamente consulta os serviços de saúde com mais freqüência do que indivíduos sem diabetes. São, portanto, maior alvo de intervenções relacionadas à prevenção das complicações crônicas do diabetes, o que inclui a suspensão do tabagismo.11,20

Caracteristicamente, os pacientes com DM do tipo 2 apresentam elevação dos triglicerídeos e redução dos níveis de colesterol HDL, sem, no entanto, apresentarem elevação dos níveis de colesterol contido na lipoproteína de baixa densidade (colesterol LDL) além do esperado para a população em geral.17 Os dados encontrados no presente estudo evidenciaram valores mais elevados de colesterol total em indivíduos diabéticos, mas essa associação não foi mantida controlando-se para o IMC e para a idade. No entanto, mesmo não se podendo afirmar uma relação causal entre o DM ou glicemia de jejum alterada e as elevações do colesterol total, a associação dessas variáveis, e, em especial, a dependência de ambas do sobrepeso que esses indivíduos apresentam é de real interesse do ponto de vista das metas a serem buscadas no atendimento da população. Elas deverão visar principalmente medidas educativas para a prevenção da obesidade.

Os indivíduos com algum grau de anormalidade na homeostase glicêmica apresentaram maior prevalência de HAS. O mesmo não foi observado quando realizada análise multivariada, controlando-se a influência da idade e do IMC. Manteve-se, no entanto, a associação de maior prevalência de HAS no grupo com glicemia de jejum alterada. Tendo em vista a abundância de dados na literatura reconhecendo a associação do DM à HAS,5,10 essas diferenças dos dados encontrados podem ser atribuídas aos maiores cuidados com a saúde por parte dos pacientes diabéticos e, portanto, à maior chance de terem seus níveis pressóricos controlados. Essa hipótese é fortalecida pelo maior número de indivíduos diabéticos que compareceram ao serviço de saúde no último ano (63,4%) em comparação com os normais (51,1%) e os com glicemia de jejum alterada (57,1%). Como discutido anteriormente, não é possível relacionar causalmente o DM à HAS, mas a associação de ambos é fato, assim como a dependência dessas variáveis ao sobrepeso apresentado por esses indivíduos. Dessa forma, as condutas tomadas para a prevenção da obesidade terão como repercussão um menor número de indivíduos hipertensos.

O atual levantamento da prevalência de fatores de risco numa subpopulação de indivíduos já com alto risco para doença coronariana (anormalidades da homeostase glicêmica) mostra a importância de diagnosticar essa entidade e, a seguir, rastrear os

indivíduos diagnosticados quanto aos demais agravantes freqüentemente presentes. É essencial a identificação desses indivíduos como um grupo-alvo para a tomada de ações preventivas cardiovasculares em nível individual e populacional. Em nível mais precoce ainda, a intervenção ideal é a prevenção do DM, hipertensão e dislipidemia. Ela pode ser obtida, pelo menos parcialmente, a partir de programas de saúde dirigidos às populações com maior risco para a doença (indivíduos com sobrepeso e obesidade, em especial), que estimulem a atividade física e a redução de peso corporal.

A doençacardiovascular é a causa mais freqüente demorbidade e mortalidade nos pacientes com Diabetes Mellitus (DM).A prevenção primária da doença macrovasculardo diabetes implica a prevenção dodiabetes associada à dos outros fatores derisco de doença cardiovascular freqüentementeassociados à doença, como hipertensão,dislipidemia, obesidade e sedentarismo.Consideram-se pacientes de risco indivíduosacima de 40 anos, com excesso de peso, sedentáriose com antecedente de diabetes na família. Também mulheres que tenham dadoà luz recém-nascidos com peso igual ou maiorque 4kg e pessoas com glicemia de jejum alteradaou tolerância diminuída à glicose sãoconsiderados de alto risco para desenvolverdiabetes e doença cardiovascular.Tanto na prevenção primária como na secundáriaé altamente necessária a cessação dofumo. Esse fato tem que ser altamente enfatizadopelo clínico e incorporado em qualquerplano de prevenção de doença cardiovascular.A prevenção secundária significa o tratamentoe o controle adequado da hiperglicemia,seja com o uso de agentes orais, sejacom insulina. Nessa etapa continua sendotambém fundamental a mudança do estilo devida: perda de peso através de dieta adequadae implementação da atividade física.

Além da intervenção na mudança do estilode vida, que seguramente é a principal medidade prevenção da doença cardiovascular,tem também sido preconizada a intervençãofarmacológica. Entre os fármacos recomendadosa aspirina tem sido universalmente aceita.Convém salientar que o pacientecom diabetes possui risco maior emdesenvolver doença cardiovascular, sendo, porexemplo, esse risco o mesmo de uma pessoa

não-diabética que já tenha tido um eventocardíaco.Com o objetivo de prevenção de doençamacrovascular, o paciente com diabetes temque ter rigorosamente controlado os seus níveisde pressão arterial e de lípides, sendo queos alvos a serem atingidos são mais exigentesque os do indivíduo não-diabético. Além disso,a perda de peso acoplada à implementação daatividade física após avaliação cardiopulmonartem que ser sistematicamente enfatizada.

COMPLICAÇÕESMACROVASCULARESE MORTALIDADESabemos que as causas mais comuns de óbitono DM tipo 1 são a doença coronariana precocee a insuficiência renal (por nefropatia diabética).As causas predominantes de óbito no DM tipo 2são o infarto agudo do miocárdio (75& dos eventosmacrovasculares) e a doença cerebrovascular(AVE, demência vascular).Hoje em dia está claro que o controle glicêmico rígido,aliado à correção da hipertensão arterial dislipidemiae obesidade possuem importante efeito redutorda incidência de eventos cardiovasculares no diabéticotipo 2.Inúmeros estudos da área básica e da área clínicacomprovaram a relação entre diabetes mellitus e aterosclerose,porém, ainda não se conhece os mecanismosmoleculares dessa associação. Sabe-se queo diabetes está relacionado a maiores níveis de fibrinogênioplasmático, de PA-1 (agente antifibrinolítico),maior agregação plaquetária e à presença da dislipidemia,particularmente a hipertrigliceridemia, a reduçãodo HDL-colesterol e o aumento da fração densae pequena do LDL-colesterol. A hiperglicemia emsi contribui para o processo de aterosclerose pormecanismos obscuros, que culminam para a disfunçãoendotelial. A síndrome plurimetabólica apresentao acúmulo de vários fatores de risco: obesidade,hipertensão arterial, dislipidemia. Não devemos esquecerque a microalbuminúria por si só é um fatorde risco independente para eventos cardiovascularese óbito cardíaco.1. Doença Coronariana e CardíacaO famoso estudo Framingham mostrou que o diabetesmellitus é um fator de risco independente paraeventos cardiovasculares (IAM, AVE), sendo 2-3 vezesmaior para o sexo masculino e 3-4 vezes maiorpara o sexo feminino. O risco de IAM no diabéticoque nunca teve IAM é o mesmo do não-diabéticoque já teve um IAM, em torno de 20%. Um estudomostrou que o risco de IAM em indivíduos não-diabéticos

sem história prévia de infarto, em diabéticossem história prévia de infarto, em não-diabéticos cominfarto prévio e em diabéticos com infarto prévio éde 3,5%, 18,8%, 20% e 45%, respectivamente. O IAMtem incidência maior nos diabéticos, ocorre em idademais jovem e apresentam maior mortalidade precoce(primeiro mês pós-IAM), especialmente no IAM anterior(40% a mais) e tardia. Em um estudo, a mortalidadefoi após 1 ano, 2 anos e 5 anos pós-IAM, respectivamente,de 18%, 22% e 42% nos diabéticosversus 6%, 8% e 18% nos não diabéticos. O IAMnos diabéticos cursa com maior incidência de disfunçãoventricular esquerda, insuficiência cardíaca,reinfarto e novos eventos isquêmicos. Tanto aquelesque infartaram quanto os que apresentam anginaestável ou instável possuem uma doença coronarianamais extensa, do ponto de vista do número de vasosacometidos e da complexidade das lesões. O diabetesmellitus ainda aumenta significativamente a chancede reestenose após angioplastia, necessitando frequentementedo uso dos stents recobertos. O estudoBARI, que comparou angioplastia versus cirurgia derevascularização em pacientes com angina estável elesão multivascular, sem disfunção de VE, não mostroudiferença significativa entre os dois métodos quantoa chance de eventos, exceto nos diabéticos, queapresentaram resultados bem mais favoráveis com acirurgia (mortalidade de 19% versus 34% no grupo daangioplastia). Outros estudos além do BARI, que utilizarama angioplastia com stent versus a cirurgia demonstraramresultados semelhantes; ou seja: no diabéticoé melhor operar o paciente multivascular doque colocar stent nos vasos acometidos...A disautonomia do diabetes aumenta a chance deum evento isquêmico se apresentar de forma atípica(dor atípica, sem dor) e aumenta a incidência de eventosisquêmicos silenciosos. Os estudos recentes têmrevelado que a isquemia silenciosa tem um prognósticono mínimo comparável ao dos pacientes que têmangina.A insuficiência cardíaca congestiva por cardiopatiadilatada tem maior incidência nos diabéticos. A cardiomiopatiaisquêmica, o infarto miocárdico e a cardiopatiahipertensiva são os principais fatores etiológicos.Entretanto, mesmo afastadas essas etiologias,a incidência de cardiopatia dilatada ainda permanecemaior.. O resultado da autópsia de alguns pacientesdiabéticos com cardiopatia dilatada mostra múltiplospequenos infartos, com fibrose e doença microvascular.Esta é a Cardiomiopatia Diabética.2. Doença CerebrovascularO risco de AVE isquêmico está aumentado (2 vezes)nos diabéticos, especialmente os do tipo 2. A associaçãoentre diabetes mellitus, hipertensão e tabagismoé alto risco para eventos vasculares encefálicos.A doença carotídea aterosclerótica, bem como a doença

aterosclerótica das artérias cerebrais de médioe pequeno calibre são mais comuns nos diabéticos.O grau de comprometimento é maior, havendo menorcapacidade de redes colaterais. Talvez por isso, agravidade dos AVEs tende a ser maior. A hiperglicemiaaguda durante a fase do acidente vascular podecontribuir para as complicações hospitalares e a maiormortalidade desses pacientes.Um outro tipo de doença cerebrovascular que é maiscomum nos diabéticos é a demência vascular.3. Arteriopatia PeriféricaA aterosclerose das artérias dos membros inferioresfrequentemente acompanha os diabéticos de longadata e contribui bastante para a má resolução dasúlceras e feridas do 'pé diabético'. A doença vascularacomete muito mais o território tíbio-peroneiro(artérias tibiais e fibulares) do que o território fêmoropoplíteo,isto é, a aterosclerose arterial dos membrosinferiores é mais distal nos pacientes diabéticos. Istodificulta os procedimentos de revascularização emalguns pacientes, aumentando o índice de amputaçõespor isquemia. A hipertensão arterial e, especialmente,o tabagismo são fatores de risco que aumentamacentuadamente a incidência da doença isquêmicados membros inferiores nos diabéticos (e tambémnos não-diabéticos).A isquemia de membros inferiores sintomática, diagnosticadapela alteração de cor da extremidade (eritrocianosecom o membro para baixo e palidez com omembro para cima), queda da temperatura e ausênciade pulsos arteriais, deve ser tratada. Se a condutaconservadora for ineficaz, ou houver isquemia agudapor trombose, deve-se indicar a cirurgia de revascularização.A arteriografia é mandatória para programaro procedimento. Os diabéticos apresentamcomumente doença difusa do leito distal, dificultandoa cirurgia ou contraindicando-a.

RESUMO

A miocardiopatia diabética é uma doença do músculo cardíaco causada pelo diabetes mellitus e não relacionada às patologias vascular e valvular ou à hipertensão arterial sistêmica. Observações experimentais e clínicas têm demonstrado hipertrofia, necrose, apoptose e aumento do tecido intersticial miocárdico. Acredita-se que a miocardiopatia diabética seja decorrente de anormalidades metabólicas como hiperlipidemia, hiperinsulinemia e hiperglicemia, e de alterações do metabolismo cardíaco. Tais alterações podem causar aumento do estresse oxidativo, fibrose intersticial, perda celular e comprometimento do trânsito intracelular de íons e da homeostase do cálcio. Clinicamente, é possível a detecção de disfunção diastólica assintomática na fase inicial. No momento em que surgem os sinais e sintomas de insuficiência cardíaca,

observamos disfunção diastólica isolada, sendo que o comprometimento da função sistólica, habitualmente, é tardio. O tratamento da miocardiopatia diabética com insuficiência cardíaca não difere das miocardiopatias de outras etiologias e deve seguir as diretrizes de acordo com o comprometimento da função ventricular, se diastólica isolada ou diastólica e sistólica.

Descritores: Miocardiopatia; Diabetes mellitus; Insuficiência cardíaca; Fisiopatologia; Tratamento

ABSTRACT

Diabetic cardiomyopathy is a myocardial disease caused by diabetes mellitus unrelated to vascular and valvular pathology or systemic arterial hypertension. Clinical and experimental studies have shown that diabetes mellitus causes myocardial hypertrophy, necrosis, and apoptosis, and increases interstitial tissue. The pathophysiology of diabetic cardiomyopathy is incompletely understood. It appears that metabolic perturbations such as hyperlipidemia, hyperinsulinemia, hyperglycemia, and changes in cardiac metabolism are involved in cellular consequences leading to increased oxidative stress, interstitial fibrosis, myocyte death, and altered intracellular ions transient and calcium homeostasis. Clinically, an early detection of asymptomatic diastolic dysfunction is possible. When patients develop signals and symptoms of heart failure, isolated diastolic dysfunction is usually detected. Systolic dysfunction is a late finding. Treatment of heart failure due to diabetic cardiomyopathy is not different from myocardiopathies of other etiologies and must follow the guidelines according to ventricular function, whether diastolic or diastolic and systolic impairment.

Keywords: Cardiomyopathy; Diabetes mellitus; Heart failure; Pathophysiology; Treatment

 

 

O CONTÍNUO AUMENTO DA PREVALÊNCIA e incidência de diabetes mellitus (DM) nas últimas décadas tem alertado a atenção médica para a necessidade de mudança de hábitos de vida da população com o objetivo de reduzir os fatores de risco para DM como obesidade, alimentação inadequada e inatividade física e, conseqüentemente, reduzir a ocorrência de complicações cardiovasculares.

Estudo com dados da Organização Mundial de Saúde estimou a prevalência de DM em 2,8% na população mundial em 2000, o

equivalente a 171 milhões de pessoas. Projetou, ainda, para 2030 a prevalência de 4,4% na população mundial, representando cerca de 366 milhões de pessoas acometidas pela doença (1). No Brasil, a prevalência observada de DM em 9 capitais entre 1986 e 1988, na faixa etária de 30–69 anos, foi de 7,6% (2). Estudo recente mostrou, na mesma faixa etária, prevalência ainda maior (12,1%) na população urbana de Ribeirão Preto, SP (3).

Diabetes mellitus é um distúrbio que consiste na resposta secretória defeituosa ou deficiente de insulina, manifestando-se pela utilização inadequada de glicose pelos tecidos com conseqüente hiperglicemia. Os distúrbios do metabolismo da glicose podem causar complicações que envolvem doenças cardiovasculares, incluindo hipertensão arterial sistêmica, doença arterial coronariana e insuficiência cardíaca, sendo que 75% dos pacientes diabéticos morrem por algum evento cardiovascular (4-6).

Nas últimas décadas, e principalmente nos últimos anos, tem surgido grande número de evidências de que pacientes diabéticos sofrem também de uma forma de doença miocárdica não relacionada à doença arterial coronariana ou à hipertensão arterial sistêmica, denominada cardiomiopatia ou miocardiopatia diabética. Dentre os diversos problemas cardíacos que surgem em decorrência do DM, a miocardiopatia diabética tem sido reconhecida como uma doença cardíaca específica, que ocorre em aproximadamente 30% dos pacientes diabéticos tipo 1 (7,8).

 

OBSERVAÇÕES EPIDEMIOLÓGICAS E CLÍNICAS

Rubler e cols. (1972) foram os primeiros a introduzir o termo miocardiopatia diabética após o estudo post-mortem de quatro pacientes diabéticos que tiveram insuficiência cardíaca congestiva na ausência ou evidência de doença arterial coronariana, valvulopatia, doença congênita, hipertensão arterial ou alcoolismo (7).

Levantamentos epidemiológicos realizados há mais de 30 anos já mostravam que homens diabéticos têm mais que o dobro de freqüência de insuficiência cardíaca (IC) do que os não-diabéticos, enquanto que as mulheres têm quintuplicado o risco para IC. O risco excessivo persiste independentemente de ajustes para idade, hipertensão arterial, obesidade, hipercolesterolemia ou doença arterial coronariana (9). Mais recentemente, nos grandes ensaios clínicos que avaliaram os inibidores da enzima conversora da angiotensina no tratamento da IC, como o SOLVD, ATLAS e V-HeFT II, foram observadas altas prevalências de DM, respectivamente 26%, 19% e 20%, enquanto que a prevalência observada de DM na comunidade foi de 4 a 6% (10-12).

De acordo com Rossen, pode existir correlação entre miocardiopatia diabética e microangiopatia, tendo em vista as

semelhanças entre as anormalidades na função microvascular coronariana observadas no diabetes e na cardiomiopatia dilatada idiopática (13). Em cerca de 72% dos pacientes diabéticos normotensos foi observada doença evidente de pequenos vasos, enquanto que em pessoas não-diabéticas esse achado foi somente de 12% (14). Além disso, anormalidades da reserva de fluxo coronariano têm sido consistentemente demonstradas em pacientes diabéticos sem doença arterial coronariana epicárdica. Fibrose perivascular e intersticial e hipertrofia miocárdica foram também achados freqüentes em diabéticos (15,16). No estudo UKPDS (United Kingdom Prospective Diabetes Study), os eventos cardiovasculares fatais foram 70% mais freqüentes que as complicações microvasculares, após 9 anos de seguimento (17,18). Embora os doentes com DM tenham maior prevalência de dislipidemia, hipertensão arterial e obesidade, esses fatores isoladamente não justificam o aumento da mortalidade, sendo o DM aceito hoje como um importante fator de risco independente para o desenvolvimento de falência cardíaca.

Estudos em pacientes diabéticos sem IC mostraram comprometimento miocárdico de pequena monta em cerca de 20–40% dos doentes. Os pacientes diabéticos apresentavam elevação da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (VE) e redução do débito cardíaco quando confrontados com pacientes não-diabéticos. Pacientes com DM e que foram acometidos por infarto agudo do miocárdio apresentam aumento da prevalência de IC e pior evolução que os não-diabéticos, tendo disfunção diastólica mais severa quando comparados a indivíduos de grau semelhante de coronariopatia (19). Estudos ecocardiográficos em portadores de DM sem IC têm relatado hipertrofia ventricular esquerda e, sistematicamente, comprometimento da função diastólica do VE, principalmente alteração do relaxamento ventricular, mesmo na ausência de hipertrofia miocárdica (20,21). Com a utilização de técnicas ecocardiográficas mais sofisticadas, foi demonstrada também disfunção sistólica do VE em pacientes diabéticos com fração de ejeção normal (22). Portanto, em indivíduos com DM e sem IC a disfunção diastólica do VE é um achado relativamente comum. No momento em que ocorrem manifestações clínicas de IC, o comprometimento diastólico pode ser observado praticamente em todos os pacientes. Posteriormente, com a progressão da doença, haverá também disfunção sistólica do VE.

 

OBSERVAÇÕES EXPERIMENTAIS

Vários modelos de experimentação animal são utilizados para o estudo da miocardiopatia diabética. Na indução de DM considerado do tipo 1, a administração de estreptozotocina ou aloxana causa destruição de parte das células beta pancreáticas com conseqüentes hipoinsulinemia, hiperglicemia e manifestação de características observadas no diabetes tipo 1 como hiperfagia, polidipsia e perda de peso corporal. Nesses modelos, foram observados perda de proteínas contráteis, perda de miócitos e

alterações na SERCA-2a com conseqüente diminuição do seqüestro de cálcio no retículo sarcoplasmático e sobrecarga intracelular de cálcio (23). Além disso, em nosso laboratório observamos aumento dos lípides séricos e aumento da atividade do estresse oxidativo (24). Provavelmente em decorrência da hipoinsulinemia, a hipertrofia miocárdica não tem sido habitualmente observada nesse modelo (23).

Para o modelo experimental de DM tipo 2, geralmente são utilizados ratos Zucker e camundongos geneticamente modificados ob-/ob- (deficiência de leptina) e db-/db- (deficiência de receptores de leptina). Nesses modelos, os animais desenvolvem obesidade, resistência à insulina com hiperinsulinemia e hiperglicemia. Hipertrofia miocárdica é a anormalidade cardíaca mais comumente observada (23).

Independentemente dos modelos experimentais, os animais diabéticos apresentam comprometimento da função diastólica do VE. Em relação à função sistólica do VE, a literatura fornece inúmeros estudos mostrando redução da função em modelos de DM tipo 1 avaliada in vivo, invasivamente (estudo hemodinâmico) ou não (ecocardiograma), e in vitro (preparação de coração isolado e de músculo isolado) (25,26). No DM tipo 2 as conclusões sobre a função sistólica não são consistentes. Os autores têm relatado desempenho sistólico comprometido em preparação de coração isolado; no entanto, ao estudo ecocardiográfico a função não tem sido diferente do normal (27). A discrepância entre os resultados dos vários estudos parece estar relacionada às diferentes condições experimentais e à disponibilidade de substratos nos meios de perfusão (23).

Recentemente demonstramos redução dos índices de encurtamento da parede do VE avaliados por ecocardiograma em ratos com DM induzido por estreptozotocina. Nesse experimento, no estudo da função miocárdica em preparações com músculo papilar do VE, observamos lentificação da contração e do relaxamento miocárdico. Além da hiperglicemia, houve aumento dos níveis séricos de colesterol total, LDL-colesterol e triglicérides e diminuição do HDL-colesterol. A atividade do estresse oxidativo avaliada pelos níveis séricos de hidroperóxido e lipoperóxido estava elevada, e foi interessante observar que a administração do antioxidante rutina reverteu, total ou parcialmente, as alterações bioquímicas séricas e funcionais do coração (24,28).

 

FISIOPATOLOGIA

A miocardiopatia diabética é vista, atualmente, como resultado de complexas relações entre anormalidades metabólicas que acompanham o diabetes e suas conseqüências celulares, levando à alteração da estrutura e função miocárdica (23). Os três distúrbios metabólicos característicos do diabetes são: hiperlipidemia (geralmente na forma de aumento de triglicérides e de ácidos

graxos livres), hiperinsulinemia nas fases mais precoces e, após falência das células beta-pancreáticas, hiperglicemia. O aumento sérico de lípides, insulina e glicose induz alterações na ativação de fatores de transcrição celular dos miócitos cardíacos que resultam em modificações na expressão gênica e na utilização miocárdica de substratos, crescimento miocárdico, disfunção endotelial e aumento da rigidez miocárdica (29).

O entendimento dos efeitos celulares causados por estes distúrbios metabólicos nos cardiomiócitos poderia ser útil para prever as alterações estruturais e funcionais que podem ocorrer no coração de pacientes com diabetes. A seguir, apresentaremos evidências experimentais a respeito do papel das alterações metabólicas acima mencionadas sobre o desenvolvimento da miocardiopatia diabética.

Aumento dos ácidos graxos

Em condições fisiológicas, a glicose é o principal carboidrato utilizado pelo coração. Quando comparado à glicose, os ácidos graxos são os substratos preferidos pelas células cardíacas e correspondem a cerca de 70% do ATP gerado aerobicamente pelo coração (30). A alteração predominante que ocorre no metabolismo cardíaco no DM é a supressão da utilização de glicose e a utilização excessiva de ácidos graxos associada ao estoque intracelular de lípides.

O aumento dos ácidos graxos livres tem papel crítico no desenvolvimento de resistência celular à insulina e hiperinsulinemia compensatória e na disfunção contrátil do miocárdio. Os ácidos graxos livres alteram a transdução do sinal mediado pela insulina tanto por ação na membrana celular, ativando a proteína quinase d, como por efeitos intracelulares decorrentes do aumento de sua concentração no interior do miócito (31). No DM há aumento da oxidação de ácidos graxos e acúmulo mitocondrial de acil carnitina, levando à piora da fosforilação oxidativa (30). O aumento intracelular dos ácidos graxos livres pode também alterar diretamente a contratilidade miocárdica por meio de encurtamento do potencial de ação e alteração no trânsito intracelular de cálcio. No miócito, as enzimas que catalizam a glicólise são localizadas próximas ao sarcolema e ao retículo sarcoplasmático. O ATP gerado pela glicólise é preferencialmente utilizado por enzimas transportadoras de íons, como a SERCA-2a (enzima responsável pela captação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático) e a Na+-K+-ATPase. Assim, a inibição da glicólise cardíaca decorrente do aumento da oxidação de ácidos graxos no diabetes pode alterar o funcionamento dessas enzimas e, conseqüentemente, o trânsito intracelular de cálcio (30). É importante salientar que alterações no trânsito intracelular de cálcio podem também ocorrer por outros mecanismos como, por exemplo, a diminuição na expressão gênica das enzimas SERCA-2a e trocador Na+/Ca2+ (responsável pela troca Na+/Ca2+ no sarcolema), observada em animais com ambos os tipos de diabetes (32,33). Finalmente, o acúmulo de ácidos graxos livres no interior do miócito pode induzir lipotoxicidade e contribuir diretamente para a morte celular por apoptose nas situações em

que os ácidos graxos acumulados não sofrem beta-oxidação (23,29,30,34). Os mecanismos responsáveis pela lipotoxicidade ainda não estão completamente definidos. Tem sido aventado que a maior oxidação de ácidos graxos causa aumento das espécies reativas de oxigênio, que podem ocasionar dano celular e induzir apoptose (30).

A partir de estudos experimentais com animais transgênicos, foi demonstrado que o aumento de ácidos graxos circulantes contribui fundamentalmente para o desenvolvimento de resistência à insulina e hiperinsulinemia compensatória, e também afeta diretamente a função cardíaca (23).

Hiperinsulinemia

Embora as ações celulares da insulina no organismo sejam atenuadas em situações de resistência à insulina, a hiperinsulinemia sistêmica pode acentuar a ação da insulina nos tecidos responsíveis à insulina como o miocárdio, que não manifesta resistência celular à insulina (23).

A hiperinsulinemia tem papel importante em estimular a hipertrofia cardíaca. Atualmente, são reconhecidos pelo menos três mecanismos celulares pelos quais a insulina induz hipertrofia (23,35). Agudamente, a insulina estimula o crescimento do miócito por meio da mesma via pela qual ela media a captação de glicose, a via PI3K (fosfatidil inositol 3 quinase-a) e em seqüência a Akt-1. A Akt-1 fosforila e inativa a GSK-3 (glicogênio sintase quinase-3), que é inibidora da transcrição nuclear e governa o processo hipertrófico via NFAT-3 (nuclear factor in activated lymphocytes). Além disso, a Akt-1 ativa a mTOR (mammalian target of rapamycin) com subseqüente ativação da p70-ribossomal S6 quinase-1 (p70rsk), levando a aumento da síntese protéica. Essas ações mitogênicas mediadas pelo receptor da insulina podem ser atenuadas quando a sinalização da insulina pela via PI3K/Akt-1 é piorada durante hiperinsulinemia crônica (23). Entretanto, a hiperinsulinemia crônica pode aumentar a ativação miocárdica da via Akt-1 também indiretamente, por meio de aumento da ativação do sistema nervoso simpático mediada pelos receptores 2-adrenérgicos via proteína quinase A e Ca2+-calmodulina quinase (36). Esses mecanismos podem predominar quando a sinalização da insulina é atenuada pela via PI3K. Finalmente, outras vias mediadas por insulina e relacionadas ao desenvolvimento de hipertrofia podem estar operativas, principalmente as vias ERK/MAP (extracelular signal-regulated kinase/mitogen-activated protein) (37). Estes dados fortemente sugerem que o hiperinsulinismo crônico está associado à hipertrofia cardíaca, e esta pode iniciar-se muito precocemente no diabetes tipo 2, uma vez que o hiperinsulinismo precede o desenvolvimento da hiperglicemia.

Hiperglicemia

Além da lipotoxicidade causada pela hiperlipidemia, a hiperglicemia também causa toxicidade celular, conhecida como glicotoxicidade,

que contribui para as alterações cardíacas observadas em doentes com diabetes (30).

A hiperglicemia causa aumento da oxidação da glicose e geração mitocondrial de superóxido. O estresse oxidativo induzido pela hiperglicemia ativa a poli(ADP-ribose) polimerase-1 (PARP) como uma enzima reparativa (23). A ativação da PARP regula várias reações celulares como reparo de DNA, expressão gênica e sobrevida celular. Entretanto, a ativação excessiva da PARP pode iniciar vários processos celulares e causar dano celular. A PARP também tem papel na inibição da enzima desidrogenase gliceraldeído fosfato (GAPDH), derivando a glicose de sua via glicolítica para vias bioquímicas alternativas. Estas vias incluem aumento na formação de produtos finais de glicação avançada (AGEs), aumento de hexosamina e ativação da proteína quinase C, que são consideradas mediadoras da lesão celular induzida por hiperglicemia (23). O aumento de AGEs promove a formação de ligações irreversíveis com várias macromoléculas. Por exemplo, a sua ligação ao colágeno induz fibrose intersticial e a ligação às enzimas SERCA-2a e RyR (canais sensíveis à rianodina, responsáveis pela liberação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático) leva à inativação ou redução de suas funções (30,38,39). Além disso, pode haver redução da quantidade de SERCA-2a decorrente de aumento de hexosamina no miócito. Estes dados fornecem evidências para a associação entre hiperglicemia e alteração da expressão e função das enzimas SERCA-2 e RyR, com conseqüente piora do relaxamento, contratilidade e rigidez miocárdica (23). De acordo com a relação entre hiperglicemia e alterações subcelulares, foi verificado que a severidade da disfunção diastólica em diabéticos se correlaciona positivamente com os valores séricos da hemoglobina glicada (40).

Em resumo, levando em conta as alterações cardíacas decorrentes de anormalidades metabólicas em diabéticos, poderia ser possível prever as manifestações da miocardiopatia diabética de acordo com a duração e severidade de alterações na homeostase dos ácidos graxos livres, insulina e glicose (23).

Além das alterações metabólicas, outros fatores também têm sido implicados no desenvolvimento da miocardiopatia diabética. Uma vez iniciadas as alterações subcelulares cardíacas, a ativação de receptores miocitários para estiramento celular leva à ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona e do sistema nervoso simpático. As conseqüências maléficas da ativação excessiva desses sistemas sobre o aparelho cardiovascular já são bem conhecidas, em estudos clínicos e experimentais. Outra alteração que foi observada em corações de ratos diabéticos é a indução do programa de genes fetais, habitualmente encontrada em situações de hipertrofia e insuficiência cardíaca (29). Finalmente, fatores extra-cardíacos como disfunção endotelial, aumento da rigidez arterial (41) e neuropatia autonômica (42) certamente têm influência sobre o comportamento mecânico do coração e, portanto, desempenham papel importante nas manifestações clínicas decorrentes da miocardiopatia diabética.

 

QUADRO CLÍNICO, DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO

O diagnóstico definitivo de miocardiopatia diabética é difícil de ser estabelecido, principalmente porque os sinais, sintomas e achados de exames diagnósticos são inespecíficos. Além disso, o quadro clínico e laboratorial que levou a suspeita de miocardiopatia diabética pode ser decorrente de co-morbidades muito prevalentes entre os diabéticos, como hipertensão arterial sistêmica, doença aterosclerótica coronariana e obesidade. Mesmo na ausência de co-morbidades, os achados clínicos podem ser indistinguíveis daqueles causados por outras formas de cardiomiopatia. Portanto, na avaliação dos pacientes com hipótese diagnóstica de miocardiopatia diabética, devem ser investigadas outras possíveis causas de comprometimento miocárdico.

Interessantemente, apesar de existirem diferenças entre os modelos experimentais de diabetes tipo 1 e 2, em humanos as manifestações clínicas são semelhantes nos dois tipos de diabetes. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que humanos com diabetes tipo 1 são tratados com insulina e, portanto, não apresentam hipoinsulinemia (23).

Habitualmente, a manifestação clínica da miocardiopatia diabética caracteriza-se por dispnéia devido à congestão pulmonar decorrente da disfunção diastólica do VE. Posteriormente, com o avanço da doença, pode ocorrer comprometimento do desempenho sistólico agravando o quadro de IC. Os sinais e sintomas de IC direita, assim como a forma clínica de miocardiopatia dilatada com IC global, não são comuns na miocardiopatia diabética (43).

Além da IC, pacientes com DM, quando comparados aos não-diabéticos, apresentam maior incidência de arritmias, principalmente extra-sístoles ventriculares e supraventriculares e até mesmo fibrilação ventricular e morte súbita (44). Evidências sugerem que os distúrbios de ritmo e de condução podem ser causados por neuropatia autonômica, hipertrofia miocárdica e fibrose intersticial observadas na miocardiopatia diabética.

O ecocardiograma é o exame mais indicado, considerando custo e benefício, na avaliação estrutural e funcional do coração de pacientes com DM. A hipertrofia do VE pode ser observada em até um terço dos pacientes com DM tipo 2, independentemente dos valores da pressão arterial ou do uso de inibidores da enzima conversora de angiotensina (45). Como referido anteriormente, acredita-se que a hipertrofia seja causada por uma combinação de fatores como hiperinsulinemia, ativação dos sistemas neuro-hormonais renina-angiotensina-aldosterona e sistema nervoso simpático, e também pelo aumento da rigidez aórtica com conseqüente elevação do estresse sistólico na parede do VE. Apesar de evidências de que a hipertrofia seria um dos principais fatores causadores de disfunção diastólica do VE, ainda não está definido se as anormalidades da função diastólica são decorrentes

da hipertrofia ou hiperglicemia (23). Com a complementação do exame ecocardiográfico convencional com a técnica do Doppler tissular foi possível identificar disfunção diastólica do VE com fração de ejeção normal em até 75% dos pacientes diabéticos, normotensos, não coronarianos e sem sinais ou sintomas de IC (20). Apesar da fração de ejeção normal e da ausência de IC, há estudos mostrando ser possível a detecção de algum grau de disfunção sistólica pelo Doppler tissular (22,46).

A dosagem do peptídeo natriurético cerebral (BNP) realizada em pacientes diabéticos sem IC não se mostrou útil na identificação de portadores de disfunção diastólica observada ao ecocardiograma (47).

No tratamento da miocardiopatia diabética é de fundamental importância o controle do DM de acordo com as diretrizes vigentes, o controle do peso corporal, a alimentação saudável e a atividade física regular, além do controle rigoroso de doenças associadas, principalmente hipertensão arterial, doença coronariana e dislipidemia.

O tratamento da IC e da arritmia por miocardiopatia diabética não difere do tratamento de miocardiopatias de outras etiologias (48). A seguir serão descritas algumas particularidades do tratamento da IC em pacientes com DM.

Betabloqueadores

Ainda hoje existe alguma resistência para o uso de betabloqueadores em pacientes diabéticos devido ao seu efeito desfavorável à resistência insulínica ou à dificuldade de percepção da hipoglicemia por parte do paciente. No entanto, com a melhor compreensão da IC e do papel deletério da hiperatividade do sistema adrenérgico no estado hemodinâmico e na remodelação cardíaca, os betabloqueadores mostraram-se essenciais no tratamento da IC. Alguns estudos sugerem que, em relação aos demais betabloqueadores, o carvedilol teria vantagens em pacientes diabéticos com IC devido ao seu efeito favorável sobre a sensibilidade à insulina e os lipídeos séricos, assim como a sua atividade vasodilatadora periférica. Recomenda-se não utilizar betabloqueadores com atividade simpatomimética intrínseca, como pindolol, particularmente em pacientes diabéticos com IC.

Inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA)

Os inúmeros ensaios clínicos com o uso de IECA mostraram que esse grupo de fármacos é imprescindível no tratamento da IC devido ao efeito benéfico na redução de morbidade e mortalidade. Além disso, foi demonstrado que o efeito favorável é ainda maior nos pacientes diabéticos.

Bloqueadores do receptor da angiotensina II (BRA)

Em pacientes diabéticos, o benefício desse grupo de drogas parece ser inferior aos IECA no tratamento da IC. Portanto, a recomendação atual é utilizar esses bloqueadores somente em pacientes intolerantes aos IECA.

Importante ressaltar que os grandes benefícios dos medicamentos na morbidade e mortalidade foram demonstrados em pacientes que apresentavam comprometimento da função sistólica do VE. Nos poucos ensaios clínicos que incluíram pacientes com IC e fração de ejeção normal do VE e, portanto, supostamente portadores de disfunção diastólica isolada, os resultados foram inconclusivos. Como na grande maioria dos pacientes com miocardiopatia diabética, principalmente na fase inicial, a IC é decorrente de disfunção diastólica isolada, habitualmente o tratamento consiste em reduzir os sintomas de congestão pulmonar e/ou periférica (diuréticos), controlar a freqüência ventricular em doentes com fibrilação atrial (betabloqueadores, digital ou antagonistas de cálcio) e tratar rigorosamente as co-morbidades como hipertensão arterial sistêmica e doença coronariana (betabloqueadores, IECA, BRA ou antagonistas de cálcio).

O DIABETES MELLITUS (DM) É, atualmente, um dos maiores e mais sérios problemas de saúde pública em países desenvolvidos e em desenvolvimento devido à sua elevada prevalência, morbidade e mortalidade. Estimativas recentes da Organização Mundial de Saúde (OMS) calculam que em 2030 existirão, aproximadamente, 333 milhões de pacientes diabéticos, sendo projetado para o nosso país um universo de 11 milhões de indivíduos (1). No Brasil, na década de 80, a prevalência média de DM era de 7,6% na faixa etária de 30 a 70 anos, com cerca de 30 a 50% dos casos não diagnosticados (2). Entretanto, dados recentes de Ribeirão Preto, SP, demonstram aumento de aproximadamente 79% nesta prevalência (3).

Nas últimas décadas, as inovações no tratamento do DM vêm permitindo um aumento na expectativa de vida do paciente resultando em maior prevalência de complicações crônicas, destacando-se a doença cardiovascular (DCV). Esse dado é ratificado em diferentes séries da literatura que observaram que mais de 50% da mortalidade dos pacientes com DM2 está relacionada à DCV. A incidência de doença arterial coronariana e cerebrovascular é duas a quatro vezes maior nos pacientes com DM2 do que na população geral, sendo que os que desenvolvem DCV apresentam um pior prognóstico e uma menor sobrevida em relação aos indivíduos não-diabéticos (4). O paciente com DM2 tem um risco até quatro vezes maior de morte por eventos cardiovasculares do que a população geral, sendo considerado como de risco semelhante ao de indivíduos não-diabéticos que apresentaram infarto agudo do miocárdio (IAM) (4). Essa elevada prevalência de DCV, além de ser importante causa de morbi-mortalidade, é de grande impacto sócio-econômico, pois a DCV assume relevante importância para os custos diretos da doença e para um importante percentual dos custos indiretos, devido ao absenteísmo, perda da produtividade e mortalidade precoce (5).

O estudo de Framingham foi iniciado em 1948, numa época de transição epidemiológica em que a mortalidade e a incidência da DCV vinham aumentando progressivamente e pouco se conhecia sobre seus fatores de risco e fisiopatologia. Utilizando variáveis simples, clínicas e laboratoriais, freqüentemente utilizadas na prática clínica diária, esse estudo prospectivo e de longa duração permitiu definir e estratificar o RCV como a probabilidade de ocorrer um evento coronariano maior em 10 anos (6).

O objetivo deste trabalho foi estratificar o RCV em uma população de pacientes diabéticos brasileiros acompanhados em um Hospital universitário, de acordo com o escore de Framingham, e avaliar possíveis associações e correlações com outras variáveis clínicas e laboratoriais não incluídas neste escore.

 

PACIENTES E MÉTODOS

Foram avaliados em corte transverso 333 pacientes com DM2, acompanhados no Serviço de Diabetes e Metabologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, no período de março de 2004 a fevereiro de 2005, aninhados em uma coorte de 811 pacientes. Os dados foram extraídos de uma ficha de atendimento padronizada contendo informações clínico-demográficas e laboratoriais, de uma consulta selecionada aleatoriamente neste período.

Foi aplicado o escore de Framingham em todos os pacientes para determinação do risco de morte por doença coronariana. A equação do risco de Framingham foi computada como a probabilidade de desenvolvimento de um evento coronariano em 10 anos, por sexo, utilizando os seguintes parâmetros: idade, colesterol total, colesterol-HDL, tabagismo, pressão arterial sistólica (PAS), pressão arterial diastólica (PAD) e diabetes (7). Os pacientes foram classificados em grupos quanto ao risco CV em 10 anos: < 20% e > 20% de probabilidade de apresentar um evento CV (7).

A circunferência abdominal (CA) foi considerada a menor medida entre o rebordo costal e a espinha ilíaca ântero-superior, sendo representativa de risco aumentado de complicações metabólicas associadas à obesidade; segundo definições da Organização Mundial de Saúde (OMS), aquela > 80 cm para o sexo feminino (M) e > 94 cm para o sexo masculino (H), e de risco muito elevado aquela > 88 cm (M) e > 102 cm (H) (8). Recentemente, foram definidos novos valores de referência para circunferência abdominal, de acordo com a etnia, pela International Diabetes Federation (IDF), sendo considerado CA de RCV aumentado o valor > 90 cm (H) e > 80 cm (M) para grupo étnico da América Central e do Sul (9).

O IMC foi calculado dividindo-se o peso (Kg) pela altura ao quadrado (m2), utilizando-se IMC > 25 kg/m2 para a definição de sobrepeso e > 30 kg/m2 para obesidade conforme critério da OMS (8). Os pacientes foram estratificados em IMC < 25 kg/m2 e IMC > 25 kg/m2

para fins de análise estatística.

A PA foi determinada com o paciente sentado após repouso de 15 minutos, considerando hipertensos aqueles que faziam algum tipo de tratamento e/ou apresentavam PAS > 140 mmHg e/ou PAD > 90 mmHg, e controlados aqueles com PA < 130/80 mmHg (10).

A análise laboratorial da glicemia, colesterol, colesterol-HDL e triglicerídeos foi realizada por método enzimático e colorimétrico (Cobas Mira Roche). Os valores de colesterol LDL foram calculados pela fórmula de Friedewald, quando os níveis de triglicerídeos eram < 400 mg/dL.

A glicemia pós-prandial foi dosada através do mesmo método da glicemia de jejum, sendo realizada após 2 horas do desjejum habitual do paciente, onde, neste período, eram mantidas suas atividades rotineiras.

A análise estatística foi realizada através do programa Epi Info (versão 2002) e SPSS for Windows (versão 13.0), utilizando-se, para análise estatística para as variáveis numéricas com distribuição normal, os testes t de Student e ANOVA e, para as variáveis numéricas com distribuição anormal, os testes de Mann Whitney e Kruskall-Wallis. Na análise das variáveis categóricas, utilizamos o teste de Qui-Quadrado com correção de Yates. Para correlação entre variáveis numéricas, utilizamos a correlação de Pearson e correlação de Spearman. Realizamos a regressão múltipla em stepwise com risco cardiovascular como variável dependente, e, como independentes, as variáveis que apresentaram valor de p< 0,1 na correlação de Pearson. Os dados são apresentados como média ± DP, mediana (mínimo-máximo) com intervalo de confiança de 95% (95% IC). Consideramos como significante um valor de p bicaudal < 0,05. O protocolo do estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Hospital Universitário Pedro Ernesto.

 

RESULTADOS

Da amostra estudada (n= 333), 215 (64,6%) eram do sexo feminino e 118 (35,4%), do sexo masculino. A média de idade na população geral foi de 59,6 ± 9,7 anos, sem diferença entre os sexos. A duração conhecida do diabetes foi de 12 (0,5–43) anos, sendo maior nas mulheres do que nos homens (15,3 ± 9,3 vs. 12,3 ± 8,1 anos, p= 0,004). As médias de glicemia de jejum e pós-prandial da amostra avaliada foram de 165 ± 72 e 233 ± 90 mg/dl, respectivamente. O IMC da amostra geral foi de 28,8 ± 5,7 kg/m2, sendo maior nas mulheres do que nos homens (29,2 ± 5,4 vs. 27,6 ± 4,5 kg/m2, p= 0,03). A prevalência de tabagismo, considerando-se atual ou prévio, foi de 30,6% (n= 102), sendo mais freqüente no sexo masculino comparado ao feminino (48,3% vs. 20,9%, p< 0,001). Sedentarismo foi referido por 170 (51,4%) pacientes. Os dados demográficos, clínicos e laboratoriais da população estudada estão descritos na tabela 1.

 

 

A prevalência de hipertensão arterial sistêmica (HAS) nesta população foi de 81,8% (n= 270). Do total de pacientes, 261 (78,4%) utilizavam medicações anti-hipertensivas (AH), e 72 (21,6%) não estavam em uso destas medicações. Destes, 12 (16,7%) pacientes apresentavam HAS e 60 (83,3%) eram normotensos.

 

 

O RCV em 10 anos na população geral de acordo com o escore de Framingham foi de 18,7 ± 10,8%, sendo maior no sexo masculino do que no sexo no feminino: [20% (2 a 53) vs. 15% (1 a 27), p< 0,001].

O RCV não foi associado ao IMC, dose de insulina, glicemia de jejum, glicemia capilar na consulta, nível de uréia plasmática. O risco foi correlacionado com a duração conhecida do DM, com o nível de triglicerídeos, creatinina plasmática, glicemia 2 horas pós-prandial e circunferência abdominal. Esses dados estão descritos na tabela 2.

 

 

Quando avaliamos a CA de acordo com a classificação da IDF, verificamos que, dos 288 pacientes que tinham CA aferida, 237 (83,3%) apresentavam CA de risco CV aumentado e 51 (17,7%), CA de baixo risco CV. Observamos que os pacientes com valores de CA

de alto risco apresentavam maior risco de mortalidade CV em 10 anos de acordo com o escore de Framingham do que os pacientes com CA de baixo risco [18% (1–53) vs. 13% (1–45), p= 0,003] (tabela 3).

 

 

 

 

Ao considerarmos a classificação da CA de acordo com a OMS, observamos que 103 (35,8%) pacientes apresentavam CA de baixo risco CV; 154 (53,5%), de risco aumentado e 31 (10,8%), de risco muito elevado. Observamos associação do risco CV conferido pela CA com o risco de mortalidade CV em 10 anos avaliado pelo escore

de Framingham, sendo respectivamente de 5,59 ± 2,46% nos pacientes de baixo risco, 13,96 ± 2,56% nos pacientes de risco aumentado e de 28 ± 8,74% nos pacientes de risco muito elevado (p= 0,001). Esses dados estão descritos na tabela 3.

Observamos maior prevalência de risco de morte CV > 20% em 10 anos avaliado pelo escore de Framingham no sexo masculino do que no feminino (55,1% vs. 38,6%, p= 0,003). Os pacientes com risco CV > 20% apresentavam maior CA (p= 0,006), creatinina plasmática (p= 0,002) e duração conhecida do DM (p< 0,001), não havendo diferença em relação às demais variáveis analisadas. Esses dados são apresentados na tabela 4.

 

 

No modelo de regressão múltipla em stepwise, avaliando o risco de mortalidade CV em 10 anos avaliado pelo escore de Framingham como variável dependente e sexo, duração conhecida do diabetes, creatinina sérica, CA, triglicerídeos, GJ, GPP, e tratamento do DM como variáveis independentes, observamos que o sexo masculino, maior duração conhecida do DM, níveis séricos de triglicerídeos, CA e níveis séricos de creatinina foram as variáveis independentes significativas (p< 0,001). Esses dados estão descritos na tabela 5.

 

 

DISCUSSÃO

O diabetes mellitus pode ser considerado uma das doenças crônicas de maior impacto para o sistema de saúde pública devido a seu elevado grau de morbi-mortalidade decorrente de suas complicações crônicas micro e macrovasculares. Dados do Sistema Único de Saúde (DATASUS-2003) demonstram que o DM encontra-se entre as doenças endócrinas como sexta causa de morte no Brasil (11).

O diabetes apresenta grande impacto sócio-econômico, como recentemente destacado em estudo envolvendo os custos da doença nos Estados Unidos em 2002 (12). Neste estudo, o custo total da doença (do diabetes) foi de 132 bilhões de dólares/ano, sendo que a DCV assumiu relevante importância, pois representou 20% dos custos diretos e um importante percentual dos custos indiretos da doença (5). Acrescenta-se a isto o custo per se do controle glicêmico no diabetes, onde para cada aumento de 1% no valor da hemoglobina glicada há uma elevação em 7% dos custos esperados totais (12).

O DM é considerado um fator de risco independente de DCV, e freqüentemente agrega outros fatores de risco CV presentes na síndrome metabólica (SM): obesidade central, dislipidemia (hipertrigliceridemia e baixo HDL colesterol) e HAS. O aspecto de maior relevância no diagnóstico da SM é o risco de desenvolvimento de DM2 e de doença cardiovascular (13). A SM abrange outros fatores de risco não contidos no Escore de Framingham, dentre os quais a obesidade central, avaliada pela circunferência abdominal (CA), e a hipertrigliceridemia, que têm assumido importância como fatores preditores de doença cardiovascular (7). Vários estudos têm demonstrado a importância da hipertrigliceridemia como fator independente de RCV (14). Golden e cols. demonstraram que a HAS e os altos níveis de triglicerídeos foram os dois fatores que mais contribuíram para o espessamento da camada íntima da carótida, considerado como um marcador precoce da aterosclerose (15).

O escore de Framingham continua sendo até os dias atuais uma forma confiável, simples e de baixo custo de identificação de pacientes ambulatoriais sob maior risco de doença CV, o que possibilita a introdução de rastreamento mais rigoroso e terapias mais agressivas como forma de prevenção de eventos coronarianos futuros (16). Mas, apesar de ser considerado um entre os melhores métodos disponíveis para estimar o RCV em diabéticos, tanto para o sexo masculino quanto para o feminino em qualquer faixa etária, já se reconhece que a acurácia em predizer o risco na população diabética é menor do que na não-diabética (17). Isso ocorre provavelmente porque no Estudo de Framingham a prevalência do diabetes (7% no sexo masculino e 5% no sexo feminino) era baixa e não se incluíam no seu escore os níveis de triglicerídeos (17). A equação de Framingham para estimar o RCV nos pacientes com diabetes em 10 anos pode subestimar seu risco real, dada a maior incidência de eventos CVs agudos em diabéticos do que o esperado, principalmente quando se compara com a estimativa para população não-diabética. Isso também acontece quando se

considera o HDL-colesterol separadamente como preditor de risco CV no diabético (18).

O risco de morte CV pelo escore de Framingham de nossa amostra foi maior no sexo masculino quando comparado ao feminino, apesar de as mulheres apresentarem maiores IMCs e tempo de duração conhecida do diabetes (19). Esse fato poderia ser justificado pela maior prevalência de tabagismo no sexo masculino que, em concordância com o estudo INTERHEART, representa um dos fatores mais importantes para IAM, especialmente em homens (20). Alguns trabalhos, como o estudo de San Antonio, demonstraram maior mortalidade por doença cardiovascular nas mulheres diabéticas (21), provavelmente decorrente de características étnicas e demográficas da população.

O RCV pelo escore de Framingham foi associado a maior CA, maiores níveis séricos de creatinina e duração do diabetes. Vários trabalhos têm demonstrado associação da CA com RCV por aumento de depósito de gordura intra-abdominal (22) (obesidade centrípeta). Entretanto, recentemente foi mencionado no INTERHEART (23,24) que a relação cintura-quadril (RCQ) superaria a CA como preditor de RCV, independente do sexo, faixa etária, etnia, tabagismo, dislipidemia, diabetes ou HAS. Esse trabalho sugere que a obesidade centrípeta teria maior importância no desenvolvimento de DCV quando comparado ao IMC. Várias hipóteses podem justificar essas diferenças: alterações hormonais, liberação local de adipocitocinas e alterações na relação do tecido adiposo/massa muscular. Dessa forma, o impacto global da obesidade seria subestimado pela avaliação do IMC (24).

A obesidade centrípeta apresenta elevada prevalência na população com DM2 e contribui para o desenvolvimento da resistência insulínica e do estado pró-inflamatório sistêmico observado nesses pacientes, resultando em maior aterogênese vascular e trombose. Observamos correlação entre hiperglicemia pós-prandial e RCV pelo escore de Framingham, o que poderia ser um fator adicional no desencadeamento do estresse oxidativo (25), podendo contribuir para o desenvolvimento da aterosclerose sistêmica e DCV.

A associação entre risco de mortalidade CV pelo escore de Framingham e os níveis séricos de creatinina poderia ser explicada pela agregação de fatores de risco cardiovasculares associados à nefropatia diabética. No entanto, é importante enfatizarmos que estudos recentes têm reconhecido a importância da creatinina plasmática como fator de risco CV independente, destacando-se o desenvolvimento precoce da doença coronariana (26,27).

Os níveis de glicemia de jejum não foram relacionados com risco CV > 20%. Isso pode ser explicado pelo fato de que a maioria dos pacientes não apresentava controle glicêmico adequado. A dificuldade em obtenção de bom controle glicêmico em longo prazo é uma característica da maioria dos estudos com pacientes com

DM2 e parece ser independente do nível sócio-econômico ou acesso ao sistema de saúde (28).

Uma das limitações do nosso estudo foi a dificuldade em confirmarmos a doença cardiovascular subclínica através de exames complementares por dificuldades inerentes à nossa instituição. A outra limitação foi a ausência de um grupo controle pareado. No entanto, consideramos que esse dado não acrescentaria informações relevantes, uma vez que qualquer paciente diabético tem uma pontuação maior no escore de Framingham do que o não-diabético (dois pontos para os homens e quatro para as mulheres diabéticas, versus zero para não-diabéticos). Além disso, a população diabética tem maior prevalência de HAS e dislipidemia, como já demonstrado em vários estudos (29-31), incluindo dados de nosso meio (32).

Concluímos que a população com DM2 estudada apresentou alto risco para eventos cardiovasculares segundo os critérios de Framingham, como também agregou outros fatores de risco presentes na síndrome metabólica. Considerando-se o elevado custo das investigações cardiológicas para o sistema de saúde público, estudos posteriores poderão ratificar se a aplicação rotineira deste escore prático e não-invasivo permitiria um melhor direcionamento na solicitação dessas investigações. Isso poderia resultar na adoção de medidas de intervenção mais precoces e intensivas nesses pacientes, no sentido de reduzir ou controlar o risco coronariano.