Post on 14-Sep-2015
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C o le o E d u c a o F s ica
T edio
Editora Uniju Iju - Rio Grande do Sul - Brasil
2003
Cenas de um casamento (in)feliz
uando falamos de teoria
da Educao Fsica no
insistimos na sua adjetivao
como teoria cientfica. Isso no
significa que tenhamos abandonado
a pretenso de racionalidade para essa
teoria,- muito mais, significa alertar para
a necessidade de elucidar o conceito
de racionalidade cientfica que
utilizado no discurso e na prtica, bem
como para as dificuldades de
tal empreendimento. O debate
epistemologia) atual parece indicar
muito mais, por um lado, no sentido
da superao da racionalidade cientfica
clssica ou predominante (originada no
plano da fsica e adotada pelas cincias
naturais e tambm pelo positivismo
como modelo para as cincias sociais
e humanas), e, por outro, no sentido
de certo relativismo que desloca
a racionalidade cientfica do pedestal
da racionalidade enquanto tal e a coloca
no mesmo nvel de outras "racio
nalidades" ou discursos acerca
da realidade. As dificuldades e os
movimentos aludidos parecem indicar
prudncia no que diz respeito
reivindicao de adjetivar uma teoria
da Educao Fsica de cientfica,
embora indique tambm prudncia
quanto propenso de abandonar
precocemente a pretenso da funda
mentao racional da prtica. Nem
consumar o casamento nem o divrcio.
1999, Editora Uniju
Rua do Comrcio, 1364
Caixa Postal 560
98700-000 - Iju - RS
- Brasil -
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Responsabilidade Editorial e Administrativa:
Editora Uniju da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Uniju; Iju, RS, Brasil)
Servios Grficos: Sedigraf
Capa: Elias Ricardo Schssler
Primeira edio: 1999
Segunda edio: 2003
Catalogao na Fonte
Biblioteca Central Uniju
B796e Bracht, Valter
Educao fsica & cincia : cenas de um casa
mento (in)feliz / Valter Bracht. 2.ed. - Iju: Ed. Uniju,
2003.- 160 p. - (Coleo educao fsica).
ISBN 85-7429-102-1
1.Educao fsica 2.Cincia do esporte 3.Motri
cidade humana 4.Prtica pedaggica 5.Epistemo
logia I.Ttulo II.Srie.
CDU: 796
796:001
______________________________________001: 796____________ _
Editora Uniju afiliada:
A ssociao B rasile ira das E ditoras U niversitrias
A coleo Educao Fsica um projeto editorial da Editora
Uniju, vinculado a um conselho editorial interinstitucional, que visa
dar publicidade a pesquisas que buscam um constante aprofundamento
da compreenso terica desta rea que vem constituindo sua reflexo
conceituai, bem como os trabalhos que garantam uma maior aproxi
mao entre a pesquisa acadmica e os profissionais que encontram-
se nos espaos de interveno. Promover este movimento sem dvi
da o maior desafio desta coleo.
Conselho EditorialCarmen Lucia Soares - Unicamp
Mauro Betti - Unesp/Bauru
Tarcisio Mauro Vago - UFMG
Luis Osrio Cruz Portela - UFSM
Amauri Bassoli de Oliveira - UEM
Giovani De Lorenzi Pires - UFSC
Valter Bracht - UFES
Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp
Paulo Evaldo Fensterseifer - Uniju
Vicente Molina Neto - UFRGS
Elenor Kunz - UFSC
Victor Andrade de Melo - UFRJ
Silvana Vilodre Goellner - UFRGS
Comit de RedaoPaulo Fensterseifer
Fernando Gonzalez
Maria Simone Vione Schwengber
Leopoldo Schonardie Filho
Joel Corso
SUMRIO
INTRODUO.................................................................. 9
PARTE I - EDUCAO FSICA E CINCIA
A CONSTITUIO DO CAMPO ACADMICO
DA EDUCAO FSICA............................................... 15
As caractersticas da teorizao na Educao Fsica.. 16
As Cincias do Esporte e a despedagogizao
do teorizar em Educao Fsica................................. 18
Repedagogizando o discurso acadmico no campo
da Educao Fsica..................................................... 24
Consideraes finais (perspectivas)............................ 25
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA............. 27
O campo acadmico da Educao Fsica.................. 28
Consideraes finais (problematizaes) ................... 37
A PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO FSICA: CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE........................41
As diferentes concepes do objetoda Educao Fsica..................................................... 42
A especificidade pedaggica da cultura corporal de movimento .......... .................................................. 48
PARTE II - A(S) CINCIA(S) DO ESPORTE, A CINCIA DA MOTRICIDADE HUMANA
AS CINCIAS DO ESPORTE: QUE CINCIA ESSA?. 57
O conhecimento do conhecimento............................ 61
A questo da identidade epistemolgica da rea..... 63
O debate em tomo do objeto da Educao Fsica .. 65
Breves olhares sobre o caso da pedagogia............. 68
A Educao Fsica e a cientificidade...................... .70
As Cincias do Esporte:fragmentao versus unidade................................. 71
Consideraes finais................................................... 73
AS CINCIAS DO ESPORTE NO BRASIL:UMA AVALIAO CRTICA......................................... 75
Como se caracterizam as prticas cientficas no mbito das Cincias do Esporte?.......................... 76
O esporte e as Cincias do Esporte: empreendimentos da modernidade........................... 85
Dimenses da interdisciplinaridade nas Cincias do Esporte................................................................... 91
A Condio ps-moderna, a crise da razo
cientfica e as Cincias do Esporte............................ 95
A TESE DA CINCIA DA MOTRICIDADE HUMANA,
DE MANUEL SRGIO.................................................... 99
Kefren Calegari dos Santos
Sobre Manuel Srgio e a tese da Cincia
da Motricidade Humana.......................................... 101
Levantando questes............................................... 104
Discutindo questes................................................. 105
Consideraes finais................................................ 113
Quadro da evoluo do pensamento
de Manuel Srgio em torno da CMH...................... 114
PARTE III - DILOGOS (IM)PERTINENTES
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA:
UM DILOGO COM MAURO BETTI......................... 117
Debatendo com M. Betti ......................................... 119
Consideraes finais................................................ 128
EPISTEMOLOGIA E POLTICA NA EDUCAO
FSICA BRASILEIRA..................................................... 129
Delineando as posies presentes na Educao
Fsica brasileira e no CBCE...................................... 132
Consideraes finais................................................ 139
CONSIDERAES FINAIS ...................................... 143
BIBLIOGRAFIA 149
INTRODUO
O pior casamento o que d certo.
(Millr Fernandes, 1994)
Os escritos aqui reunidos discutem uma relao que,
guardadas as limitaes de uma metfora, apresenta algu
mas caractersticas presentes nas relaes conjugais.
No h aqui, obviamente, um julgamento de valor acerca
do prprio casamento, entendido no seu sentido tradicional
de unio de dois seres humanos, embora o texto em epgrafe
assim o sugira. Muito mais, pretende discutir a possibilidade
de que uma relao bem-sucedida, neste caso, pode trazer
antes um resultado negativo do que positivo. Assim como
podemos questionar ser o casamento condio indispensvel
para a felicidade humana, tambm podemos colocar em
dvida a positividade da relao da Educao Fsica (EF)
com a cincia, ou mesmo a transformao da Educao Fsi
ca em cincia.
De qualquer forma uma relao de risco (menos para
a cincia do que para a Educao Fsica). Eliminar a identi
dade de um dos plos desta relao (do casamento), trans-
formando um no outro, confundindo os dois, ou subordinan
do uma identidade outra (no caso a EF cincia), pode,
assim como no casamento, ter resultados desastrosos.
Se ilidirmos o fato de que a EF , em certo sentido,
filha da cincia moderna (o que significaria em caso de casa
mento uma relao incestuosa), o casamento entre a EF e a
cincia sempre foi almejada, mesmo porque, at h bem
pouco tempo a cincia era um grande partido. Um tal
casamento poderia trazer EF (ao noivo ou noiva, como
se queira) prestgio e status social (o dote da cincia seria
enorme) e, por extenso, a todos que a sustentam e a fa
zem.
Embora hoje a cincia continue a ser um grande par
tido, ela perdeu muito de seu glamour; a imagem da
racionalidade cientfica est muito mais arranhada hoje do
que estava h vinte anos. Muitas vozes, em funo deste
questionamento, hoje falam na necessidade do divrcio ou
no rompimento do noivado.
O esporte, a partir de sua crescente importncia no
contexto da cultura corporal de movimento, entra em cena e
vai constituir com a EF e a cincia um tringulo amoroso.
Assumiu o lugar do noivo ou da noiva (EF); falou em seu
nome e ofereceu-se para contrair o matrimnio (ou patrim
nio) com a cincia. A reivindicao por cincia pelo fenme
no esportivo redundou na tentativa de se instituir as chama
das Cincias do Esporte e nestas a EF foi renomeada de rea pedaggica.
A crise de identidade da EF foi entendida ento como
resultado da incapacidade da EF concretizar o casamento.
Hoje, ao contrrio, alguns entendem que sua ligao com a
cincia j foi forte/longe demais e que seria preciso resgatar
outros valores que lhe so prprios para que possa superar
sua crise de identidade. Nessa tica, um tal casamento no
s no superaria a crise da Educao Fsica, como desvirtua
ria suas caractersticas mais importantes.
Outros, como o nosso caso, advogam para a EF uma
relao com a cincia que ao mesmo tempo de proximida
de e de distanciamento. Isto significa que as identidades dos
parceiros no se confundem. S com esta condio a rela
o parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as pos
sibilidades, mas tambm, sobre as limitaes da cincia,
exatamente para no tom-la como um dogma.
Os textos aqui reunidos foram escritos em diferentes
momentos da discusso que vem-se travando nos ltimos
anos, na nossa rea. Assim, minhas posies aparecem no
seu processo de desenvolvimento.
E sempre muito difcil organizar textos escritos de for
ma esparsa numa ordem lgica. A forma encontrada e que
pareceu menos problemtica foi a de organiz-los em trs
partes: I - Educao Fsica e Cincia, discute a constitui
o do campo acadmico da EF, as questes epistemolgicas
que se colocam a partir da EF e a especificidade do conheci
mento tratado pela EF; II - A(s) Cincia(s) do Esporte, a
Cincia da Motricidade Humana, rene os textos que
enfocam especificamente as tentativas de se constituirem as
Cincias do Esporte e a Cincia da Motricidade Humana,
bem como uma avaliao crtica da sua produo. Nesse
ponto tivemos a colaborao de um jovem e tale ato : o pro
fessor de Educao Fsica, Kefren Calegari dos Santos, que
levanta pontos importantes para a discusso da tese de Ma
nuel Srgio; III - Dilogos (im)pertinentes, rene os textos
que debatem com posies expressas por outros pesquisa
dores da rea que se ocupam com essa questo, num caso
identificando o interlocutor, Mauro Betti, e em outro dialo
gando com posies presentes na rea.
Cabe neste momento agradecer s vrias instituies e
aos colegas que foram fundamentais para o desenvolvimen
to destas reflexes; Ao Conselho Nacional de Desenvolvi
mento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), que por algum tem
po colaborou mediante a concesso de uma bolsa de pesqui
sa; UFES, que me acolheu como docente; aos colegas de
trabalho do LESEF; aos colegas de dilogo que no nomino
para no cometer injustias esquecendo algum.
A CONSTITUIO DO CAMPO ACADMICO
DA EDUCAO FSICA1stssss*'** v" '
Neste captulo tomamos como foco de ateno a cons
truo do campo acadmico da EF no Brasil, com especial ateno para o perodo que vai do final da dcada de 60 at nossos dias.
E importante desde logo ressaltar que nossa ateno
recai sobre a produo acadmica da rea, vale dizer, a
teorizao que envolve e acompanha esta prtica social que
convencionamos chamar de Educao Fsica, ou seja, um
estudo sobre o pensamento da EF brasileira e sobre como
ela vem-se pensando. Especificamente, perseguimos a ques
to de como foram pensados os limites/contornos deste cam
po, quem dele participa legitimamente, quais problemticas
so privilegiadas e reconhecidas como pertencentes ao cam
po, ou seja, como a partir deste conjunto de prticas forja-se o prprio campo.
Outro aspecto que considero necessrio aclarar desde
logo, dadas as posies que venho defendendo em relao
ao uso do termo EF (Bracht, 1992 e 1995), de que enten-
1 Este texto foi inicialmente apresentado no IV Encontro Nacional de Histria do Esporte, Lazer e Educao Fsica (Belo Horizonte/MG, 1996).
do esta, fundamentalmente, como uma prtica que tematiza
com a inteno pedaggica as manifestaes da cultura cor
poral de movimento. Esse entendimento, sabemos, est lon
ge de ser unanimidade. Ele convive com vrios outros que
estendem o significado do termo para, por exemplo, todas
as manifestaes da cultura corporal de movimento, ou en
to, como mais comum, para todos os campos de atuao
do profissional de EF. E ntido que ao longo do desenvolvi
mento do campo acadmico da EF2nem sempre foi esse o
entendimento, muito ao contrrio, os limites deste campo
sempre estiveram difusos (e confusos). Assim, embora parta
da posio acima aclarada, ser preciso, para analisar a
construo do campo acadmico EF, adentrar e enfocar as
produes que se colocam como pertencentes ao campo,
mas que partem de uma outra viso de quais so seus con
tornos.
As caractersticas da teorizao na Educao Fsica
O surgimento ou a incorporao de prticas corporais
nos currculos escolares na Europa no sculo XVIII e princi
palmente XIX foi precedida e portanto resultou de uma srie
de mudanas e desenvolvimentos no mbito da medicina e
da prpria pedagogia3. Na medicina, os avanos provoca
ram uma valorizao da atividade fsica, como elemento
fomentador e garantidor de sade, e, na pedagogia, a acei
tao crescente de uma viso de homem calcada na cincia,
2 Coloco aspas exatamente para chamar a ateno de que uma denominao
provisria, porque concorrente com denominaes (e propostas) como as de Cin
cias do Esporte, Cincia do Movimento Humano ou Cincia da Motricidade
Humana.
3 Essas mudanas esto ancoradas no complexo processo de mudanas societrias
mais amplas, mas que aqui no sero discutidas.
basicamente nas cincias naturais, levou a se fundamentar a
propriedade das prticas corporais pertencerem ao currculo
escolar (Cachay, 1988). O sculo XIX vai ser o sculo da
sistematizao dos chamados mtodos ginsticos cujo dis
curso cientfico fundamentador era predominantemente de
rivado das cincias biolgicas, sendo os intelectuais que cons
truram esse discurso do campo mdico e tambm pedag
gico, sendo, neste ltimo caso, a fundamentao tambm
fortemente marcada por pressupostos biolgicos. Outra ins
tituio importante e que foi cadinho da elaborao terica da EF a militar.
Assim, as estruturas de pensamento, com seus pressu
postos cientficos e filosficos, estavam ancoradas tanto na
instituio mdica quanto na militar, mas tambm na pr
pria pedagogia. Neste sentido interessante a hiptese le
vantada por Ferreira Neto (1999), de que, no caso brasileiro,
a instituio militar construiu, nas dcadas de 30 e 40 deste
sculo, um projeto de EF para o pas, articulado com um
projeto para a educao brasileira como um todo.
Sem adentrar aos detalhes dessa produo de forma
diferenciada, como alis seria necessrio, gostaria apenas
de destacar uma sua caracterstica que julgo ser possvel
identificar. Refiro-me ao fato de que a teorizao da ginsti
ca escolar era realizada a partir de um olhar pedaggico
(mdico-pedaggico, moral-pedaggico), ou seja, as prti
cas corporais eram construdas e vistas como instrumentos
para a educao para a sade e para a educao moral.
Teorizar4 era fundamentar uma prtica pedaggica envol
vendo prticas corporais, embora com base em um arcabouo
4 E importante ressalvar que os intelectuais ativos no mbito da ginstica escolar ou EF trabalhavam mais na perspectiva da recepo dos mtodos ginsticos do que na
construo fundamentada destes. Quem sabe a nica iniciativa neste sentido na poca tenha sido o concurso promovido em 1942 para a elaborao de um mtodo nacional de EF (Ministrio da Educao e da Sade, 1952).
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terico-metodolgico marcadamente biolgico. Outra carac
terstica a de que essa teorizao era realizada, necessaria
mente, por intelectuais de outros campos (medicina, foras
armadas, pedagogia, cincias polticas), uma vez que o campo
acadmico EF (ou ginstica escolar) no havia ainda se
constitudo. Isto passa a se realizar com a formao em nvel
de terceiro grau, de profissionais civis de EF, bem como com
a afirmao da EF enquanto curso de formao de professo
res, nas instituies superiores de ensino.
As caractersticas da formao de instrutores de gins
tica, inicialmente, e de professores de EF, mais recentemen
te, fortemente marcada pela idia de treinamento atravs
da execuo de movimentos, fizeram retardar o apareci
mento do intelectual da EF. No me refiro aqui ao intelectual
no singular, mas, sim, ao agente social pertencente a um
campo acadmico capaz e instrumentalizado para construir
teoria que fundamente a prtica pedaggica em EF. Exis
tem indicadores de que os intelectuais que pensaram a EF
brasileira, neste perodo, trouxeram/adquiriram o instrumental
para tanto em outros campos, ou seja, o campo da EF no
dispunha dos meios para teorizar sua prtica. De qualquer
forma o discurso, a teorizao neste campo emergente, era,
at a dcada de 60, marcadamente de carter pedaggico.
As Cincias do Esporte e a despedagogizao do teorizar em Educao Fsica
Se nas suas origens, no Brasil, e at aproximadamente
a dcada de 60 o discurso no mbito da EF era marcado
pelo vis pedaggico (de tom muitas vezes fortemente
normativo), a partir de ento passa a ganhar espao um
teorizar cientificista. Logo levantou-se a questo se a EF
'"' 8 l ,,.
era uma cincia ou uma disciplina acadmica ou cientfica.
Questo levantada muito em funo de uma presso exter
na para que a EF se legitimasse no campo cientfico, que
tem nas universidades seu locus privilegiado.
Fator determinante para essa nova onda cientificista
na EF, no entanto, foi o enorme desenvolvimento que so
freu, aps a II Guerra Mundial, o fenmeno esportivo e como
ele foi absorvido ou se imps EF.
As dcadas de 60 e 70 so cruciais para o campo
acadmico da EF e isto no somente no caso do Brasil.
Alis, no Brasil, esse movimento apresenta um atraso de
quase uma dcada em relao aos pases capitalistas desen
volvidos. Whitson e Macintosh (1990), retratam como, no
Canad, nas dcadas de 60 e 70, o discurso humanista da
EF foi substitudo por um outro, de tipo cientificista, com
base nas Cincias do Esporte (CE) ou Cincias do Movimen
to Humano, sob a influncia dos EUA. Willimczik (1987),
por outro lado, analisando o desenvolvimento da Cincia
Desportiva (Sportwissenschaft) na Alemanha, afirma que a
discusso terico-cientfica naquele pas sobre a questo do
objeto desta rea, centrou-se no perodo de 1935 a 1970,
na contraposio entre teoria da EF (Leibeserziehung) e te
oria dos exerccios corporais (Leibesbungen). Mas, em pri
meiro plano, o objeto era visto como um objeto pedaggico.
No final dos anos 60 se imps a denominao Cincia
Desportiva e isso, segundo o autor, em funo da tendncia
internacional nesse sentido, bem como do fato de que o
esporte tornou-se o fenmeno dominante nesta rea. Dietrich
e Landau (1987, p. 384s.) vo alm, afirmando que o con
ceito de pedagogia desportiva (Sportpdagogik) determinou
o fim da poca do conceito de teoria da EF (Leibeserziehung)
com suas concepes orientadas nas teorias da educao.
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Alm disso, tambm a pedagogia desportiva, como outras
subdisciplinas da Cincia Desportiva, vo ser funcionalizadas
a partir dos interesses da instituio desportiva.
Podemos perceber ento pelas anlises de Greendorfer
(1987), Whitson e Macintosh (1990), Willimczik (1987) e
Dietrich e Landau (1987), que tanto na Alemanha como no
Canad e nos EUA, nas dcadas de 60 e 70, a EF esteve
orientada para a melhoria do desempenho esportivo no pas5.
O Diagnstico da EF/Desportos no Brasil (Costa, 1971)
apontou uma deficincia no mbito da medicina desportiva,
considerada uma das razes da deficincia da rea. A partir
da investimentos foram orientados para melhorar o nvel de
desenvolvimento cientfica da rea, como o incentivo
ps-graduao e os investimentos em laboratrios de fisiolo
gia do exerccio. Nesse contexto fundada, no final dos
anos 70, uma nova entidade cientfica, o Colgio Brasileiro
de Cincias do Esporte (CBCE).
A produo acadmica volta-se para o fenmeno es
portivo. a importncia social e poltica desse fenmeno
que faz parecer legtimo o investimento em cincia neste
campo. Por sua vez, aqueles que atuam no campo ou tem
interfaces com ele privilegiam o tema do esporte porque
ele que oferece as melhores possibilidades de acumulao
de capital simblico por via de seu tratamento cientfico.
So pesquisas que dele se ocupam que tm maiores chances
de serem reconhecidas no campo e fora dele6. Ou seja, a
importncia poltica e social do fenmeno esportivo (ou do
5 Evidncias disso podem ser encontradas nos documentos: Diagnstico da EF e dos
Desportos no Brasil (Costa, 1971); Plano Nacional de EF e Desportos 1976-1979
(Brasil, 1976) e era Gonalves, J. A. P. Subsdios para implantao de uma poltica
nacional de desportos. Braslia, 1971, entre outros.
6 Como lembra Bourdieu (1983, p. 124), intil distinguir entre determinaes'propriamente cientficas e as determinaes propriamente sociais das prticas es
sencialmente sobredeterminadas.
desempenho esportivo do pas em nvel internacional) que
confere legitimidade ao prprio campo acadmico da EF ou
das Cincias do Esporte7 ou EF e Cincias do Esporte (EF & CE).
E nesse contexto que se permite afirmar a EF nas
universidades, que se permite um discurso cientfico na rea,
com reivindicao conseqente de cursos de ps-graduao,
simpsios cientficos, entidades cientficas, financiamento de
pesquisas cientficas, estruturao de laboratrios de pesqui
sa, etc., que forjado um novo agente social, o intelectual
da EF, ou seja, intelectual com formao original em EF e
que agora almeja tambm a prtica cientfica, isto , reivin
dica e se lana prtica de teorizar (cientificamente) so
bre... Bem, qual o objeto deste teorizar? Em princpio o
objeto construdo ou ganho enfocando o fenmeno esporti
vo e a problemtica central a melhoria da performance esportiva.
A partir de 1970 a EF colocada explicitamente e
planejadamente a servio do sistema esportivo, desempe
nhando o papel de base da pirmide, sistema esse que pos
sua como culminncia a alta performance esportiva. Plane
jou-se constituir a EF como elemento do sistema esportivo.
EF e esporte ou EF/esporte deveriam elevar o nvel de apti
do fsica da populao.
O campo da EF/CE permeado, nas dcadas de 70 e
80, por profissionais de diferentes disciplinas. Ele
pluridisciplinar: mdicos, psiclogos, socilogos, professores
de EF, etc. .importante destacar, no entanto, que o teorizar
7 Segundo Paiva (1994), a iniciativa de elevar a profisso de EF condio de
Cincias do Esporte tem seu pice na publicao do editorial da RBCE 2(2), onde
se l: o professor de EF no pode mais ser representado como um homem forte e
de boa vontade [...]: em resumo, ele hoje no mais o professor de ginstica, maso mestre em cincias do esporte.
nr-
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de carter cientificista vai-se dar fundamentalmente a partir
das cincias-me, como a fisiologia, a psicologia, etc. como
ainda hoje diagnosticam Gaya (1994), Greendorfer (1987) e
Willimczik (1987), com tendncias especializao a partir
de subdisciplinas. Ora, o profissional de EF, num primeiro
momento, premido pela busca de reconhecimento no e para
o campo, vincula-se a uma especialidade ou a uma
subdisciplina das Cincias do Esporte (ou da EF ou ainda da
Cincia do Movimento Humano) e torna-se um cientista
no mbito da fisiologia do exerccio, da biomecnica, da
sociologia do esporte e no um cientista da EF. fcil perce
ber que a EF enquanto prtica pedaggica quase que desa
parece do horizonte de preocupaes deste teorizar, com
exceo das preocupaes como as que buscavam identifi
car o mtodo mais eficiente para ensinar determinada des
treza (esportiva).
O discurso pedaggico que havia caracterizado este
campo em construo, at mais ou menos a dcada de 60,
deslocado para um plano secundrio - s no final da dca
da de 80 que as pesquisas mostram que h um aumento
crescente das pesquisas na rea que vai ser denominada, no
interior das Cincias do Esporte, de pedaggica (Matsudo,
1983; Gaya, 1994).
Isso acontece porque o sistema esportivo somente apela
para a categoria educao como forma de buscar legitimida
de social. Estando, no entanto, orientado por outros princ
pios, permanece a questo educacional apenas como recur
so retrico. O que importa mesmo a medalha! Isso no
significa que ele no tenha efeito educativo, ao contrrio.
Significa, isto sim, que a lgica que define as aes no cam
po esportivo (que determina o que est em jogo no campo)
ignora e no influenciada pelo resultado educativo o
campo ou o sistema esportivo indiferente ao resultado que
produz em termos educacionais. As aes no sistema espor
tivo no sero redefinidas em funo de um melhor ou pior
resultado educacional e, sim, em funo de um melhor ou pior resultado esportivo8.
Assim, o esporte se imps EF, como contedo e
como sentido da prpria EF (Bracht, 1992). O esporte
que legitima a EF porque faz coincidir seu discurso com o
daquela no que diz respeito ao seu papel nos planos
educativo e da sade - o esporte se imps tambm enquan
to tema e orientador da teorizao neste campo acadmico
em construo. Em suma, o discurso pedaggico na EF foi
quase que sufocado pelo discurso da performance esportiva;
literalmente afogado pela importncia sociopoltica das me
dalhas olmpicas, ou pelo desejo, tornado pblico, por medalhas.
Chegou-se aqui a uma situao que, na esteira de
Bourdieu (1996), poderamos denominar de subordinao
estrutural, com o campo acadmico da EF/CE usufruindo
de quase nenhuma autonomia para determinar a problem
tica terica a ser privilegiada no campo. Essa tendncia
funcionalizao deste campo acadmico a partir dos interes
ses da instituio esportiva tambm foi detectada por Whitson
e Macintosh (1990) e Dietrich e Landau (1987) para os ca
sos do Canad e Alemanha, respectivamente.
8 Aos poucos o sistema esportivo vai sentindo-se forte o suficiente para abandonar o discurso da promoo da educao e da sade. O presidente da Confederao
Brasileira de Natao, Coaracy Nunes Filho, afirmou, em entrevista revista Veja, que educao no tem nada a ver com esporte, mesmo que esporte tambm seja educao (Nunes Filho, 1995, p.8).
....n r *
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FamiliaNotaBusca por reconhecimento no mbito cientfico. Esvaziamento do teorizar sobre a prtica pedaggica.
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FamiliaNota"subordinao estrutural"
Repedagogizando o discurso acadmico no campo da Educao Fsica
No mesmo processo de busca de reconhecimento aca
dmico da EF e dos seus profissionais no mbito universit
rio, alguns destes freqentaram cursos de ps-graduao
(mestrado) em programas da rea da Educao (filosofia da
educao, principalmente)9.
a partir do contato, no com as Cincias do Esporte,
e sim com o debate pedaggico brasileiro das dcadas de 70
e 80, que profissionais do campo da EF passam a construir
objetos de estudo a partir do vis pedaggico. Independen
temente da matriz terica que esses profissionais vo ado
tar, o que caracteriza suas reflexes que esto orientadas
pelas cincias humanas e sociais e isso por via do discurso
pedaggico10.
Essa vertente vai representar no s um plo de resis
tncia poltica no campo, defendendo interesses no-domi-
nantes, interesses alis ligados aos do sistema esportivo, mas,
tambm, resistncia acadmica ao cientificismo das Cin
cias do Esporte. Mais recentemente alguns autores (Coletivo
de Autores, 1992; Bracht, 1992; Betti, 1992) vm refor
ando a necessidade de construo de uma teoria da EF,
entendida esta como uma prtica pedaggica, ou seja, uma
repedagogizao do teorizar na EF, uma vez que essa prti
ca pedaggica foi quase que alijada do campo enquanto
objeto. A construo de um corpo terico com base num
discurso pedaggico, que possa filtrar e reconverter, luz da
lgica desse campo, a influncia externa do sistema es
9 Alguns dos mais influentes na rea: Vtor Marinho de Oliveira, Joo Paulo Subir
Medina, Apolnio Abadio do Carmo, Lino Castellani Filho e Carmen Lcia Soares.
10 Isso tambm vai redundar numa certa fragilidade terica dessa produo.
portivo, elemento importante para a construo da auto
nomia (pedaggica) da EF. claro que, no momento em que
a educao e o magistrio esto numa situao catica em
nosso pas, s mesmo pensando na perspectiva da resistn
cia possvel alimentar essa necessidade.
Consideraes finais (perspectivas)
O campo acadmico da EF ou da EF/CE11, como
convencionou-se cham-la no interior do CBCE, hoje cru
zado e recortado por basicamente trs perspectivas diferen
tes de caracterizao ou de delimitao: a) tentativa de deli
mitao de um campo acadmico que teorize a prtica pe
daggica que tematiza manifestaes da cultura corporal de
movimento, ou seja, o teorizar a estaria voltado para a cons
truo de uma teoria da EF, entendida enquanto uma prti
ca pedaggica; b) tentativa de construir um campo interdis-
ciplinar a partir das Cincias do Esporte, que, em alguns
casos (Gaya, 1994), reivindica uma Cincia do Esporte vol
tada para as necessidades da prtica esportiva; c) a tentati
va de construo de uma nova cincia, a Cincia da Motri
cidade Humana (Srgio, 1989; Tojal, 1994; Cavalcanti,
1994). O que importante e interessante ressaltar que
todas essas perspectivas vo buscar a tradio e as institui
es da original EF (ginstica escolar) - se colocam como herdeiras desta.
Existe uma forte presso, j que a total instrumentali
zao da EF no foi possvel em funo de uma resistncia
interna (com desdobramentos acadmico-cientficos e polti-
11 No CNPq a rea tratada como a subrea EF e faz parte das cincias da sade. Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC) a rea denominada de
Cincias do Esporte/Motricidade Humana e faz parte das cincias aplicadas.
FamiliaRealce
FamiliaNotaDuas frentes:resistncia poltica; resistncia acadmica ao cientificismo.
cos), no sentido da construo de um campo acadmico liga
do/voltado ao esporte. Existem sinais de que se est cons
truindo um discurso para justificar o surgimento de um cam
po acadmico autnomo ligado ao esporte - que no estaria
subordinado aos cdigos da pedagogia como o caso da EF. A reivindicao de uma cincia do esporte tem como base a
importncia sociopoltica (e econmica) do esporte e a contribuio da cincia para o seu progresso.
Parece-nos claro, por exemplo, que os cursos de bacharelado em esporte sejam j o resultado dessa presso (do
mercado). Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramen
te, reivindicam uma formao universitria especfica para
os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive
que as atuais faculdades de EF no suprem as suas necessidades: Quero uma universidade do esporte para formar
tcnicos, em vez das atuais faculdades de EF (Nuzman, 1996, p. 8).
Outro elemento indicador o de que o ex-ministro extradordinrio dos Desportos, Edson Arantes do Nascimen
to (Pel), reivindicou uma linha de financiamento de pesqui
sas especfica para as Cincias do Esporte junto ao CNPq.
Alm disso, o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento do
Desporto (INDESP) dispe de dotao oramentria para pesquisas e publicaes das Cincias do Esporte.
Se, por um lado, isso indica uma autonomizao do
campo acadmico da EF em relao ao sistema esportivo - e indica no sentido do surgimento de um campo acadmico
que estaria voltado para o teorizar especificamente desta
prtica social, sem ter como vis central o pedaggico - coloca questes para a EF como a de obter, urgentemente, le
gitimidade no interior do campo pedaggico, enquanto prtica e disciplina acadmicas, sob pena de ter sua prpria existncia ameaada e isso no simplesmente no sentido da ex
tino, mas de simples substituio pelo esporte (na escola).
A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA1
Quando abordamos o tema da epistemologia da Edu
cao Fsica (EF) assalta-nos uma srie de questes que tem
aparecido muito frequentemente em nossas discusses nos
ltimos anos, afetando, inclusive, a questo da (crise de)
identidade da EF. Algumas dessas questes so:
- a EF uma cincia ou uma disciplina cientfica?
- Deve a EF almejar/pretender ser uma cincia? E essa uma
reivindicao legtima? Essa pretenso orginria do inte
rior da prpria EF ou de fora dela?
- Qual a epistme predominante na EF? E a cientfica? A
prtica cientfica ligada EF filia-se aos princpios das ci
ncias naturais ou aos das cincias sociais e humanas? Ou
ento, com qual concepo de cincia opera a EF?
- Quais so as especificidades ou peculariedades da questo
epistemolgica da EF?
- Quais so os limites e as possibilidades do paradigma cien
tfico para fundamentar a prtica do profissional da EF?
1 Este texto (Bracht, 1997) foi originalmente publicado no V. 5 de Ensaios: Educao
Fsica e Esporte, de Carvalho & Maia (p. 5-17).
FamiliaRealce
- a interdisciplinaridade cientfica uma imposio produ
o do conhecimento em EF?
claro que o conjunto das questes acima listadas no
esgota os questionamentos possveis, mas pode dar uma
idia da complexidade da questo.
Quero iniciar com a pergunta sobre se a EF uma
cincia. Essa questo assumiu importncia no debate em
torno da crise de identidade da EF, porque levantou-se a
hiptese (ou a tese) de que a superao dessa crise (que
seria de legitimidade tambm no plano acadmico universi
trio) viria com a sua afirmao como cincia, ou seja, com
a definio de objeto, mtodo e linguagem prprios.
0 campo acadmico da Educao Fsica
Para tratar dessa questo preciso resgatar um pouco
o processo de construo do campo acadmico da EF. A
chamada EF moderna filha da modernidade. Isso significa
que ela surge num quadro social em que a racionalidade
cientfica se afirma como a forma correta de ler a realidade,
em que o Estado burgus se afirma como forma legtima de
organizao do poder e a economia capitalista baseada na
indstria emerge e se consolida. A EF moderna sofre a influn
cia, desde seus primeiros passos, do pensamento cientfico.
Vale o princpio: exercitar cientificamente o corpo, ou exer
citar o corpo de acordo com o conhecimento cientfico a
respeito. Ling e Amoros esmeraram-se em construir seus
mtodos ginsticos em estreita consonncia com os conheci
mentos oriundos da fisiologia e da anatomia humana. Ling
falava inclusive, em movimento racional com economia de
esforo. Ou seja, desde logo, esta prtica, qual seja, este
conjunto sistematizado de exercitaes corporais, buscou fun
" 28 *'
damentar-se no conhecimento das disciplinas cientficas emer
gentes (como a fsica orgnica = fisiologia). Portanto, no
gratuita a presena influente da instituio mdica na EF
(ver a respeito Cachay, 1988, e Soares, 1994).
Num primeiro momento, em funo do papel atribu
do EF (na perspectiva higienista), o aporte de conhecimen
tos cientficos vinha exatamente das cincias biolgicas. O
corpo e as atividades fsicas eram estudados como fatos/
fenmenos biolgicos2. Por isso mesmo, falava-se menos em
movimento humano e mais em atividade fsica. O que
importante ressaltar que o campo da EF era marcado me
nos como um campo acadmico de produo do conheci
mento, e mais, como de aplicao do conhecimento (cient
fico). Os mtodos ginsticos eram construdos aplicando-se
os conhecimentos da anatomia, da fisiologia e da medicina
ao campo dos exerccios fsicos.
Quando a EF passou a se afirmar no mbito dos siste
mas de ensino como componente curricular, ascendendo ao
ensino superior (em alguns casos universitrio), para a for
mao de professores, j um nmero bastante grande de
disciplinas se ocupava do estudo do corpo/movimento hu
mano ou de suas objetivaes culturais como o esporte.
Alis, no esqueamos de que o esporte, como fenmeno
social, teve papel importante no reconhecimento da necessi
dade de formao de profissionais em nvel universitrio e
da necessidade da produo do conhecimento cientfico nes
se mbito. Em grande parte foi sua importncia sociopoltica
que determinou o surgimento de organizaes cientficas de Cincias do Esporte.
2 No estou desconhecendo ou ignorando a influncia grega sobre alguns filantropos,que no final do sculo XVIII e no incio do XIX buscavam legitimar a ginstica ou a exercitao corporal nas suas escolas a partir do ideal da harmonia entre corpo e
esprito. Apesar dessa influncia, vrios estudos mostram (Cachay, 1988; Krger,
1990) que as cincias naturais logo se impuseram como elemento fundamentador, como base legitimadora dessas prticas.
O que observvamos naquele momento, e aqui estou
falando basicamente das dcadas de 60 e 70 deste sculo
(em alguns pases mais cedo, em outros mais tarde), era,
por um lado, o surgimento e, por outro, a consolidao de
uma srie de subdisciplinas ligadas epistemologicamente s
tradicionais disciplinas cientficas: fisiologia do esforo, a
biomecnica (do esporte), a psicologia do esporte, a sociolo
gia do esporte, etc.
J aqui devo dizer que entendo a EF como aquela pr
tica pedaggica que trata/tematiza as manifestaes da nossa
cultura corporal e que essa prtica busca fundamentar-se em
conhecimentos cientficos, oferecidos pelas abordagens das
diferentes disciplinas. Ou seja, o campo acadmico da EF
vem se constituindo a partir da absoro e/ou incorporao
de prticas cientficas fortemente marcadas por abordagens
monodisciplinares do fenmeno do movimento humano ou
da atividade fsica3.
Ora, o fato do campo acadmico EF incorporar cada
vez mais intensamente as prticas cientficas, no s conhe
cimento cientfico (isso no Brasil se d mais intensamente na
dcada de 70), determinou a criao de entidades cientfi
cas prprias, realizao de eventos cientficos prprios, cria
o de cursos de ps-graduao, definio de programas de
apoio pesquisa, etc. No entanto, na produo do conheci
mento predomina o enfoque disciplinar ou monodisciplinar
determinado pela chamada disciplina-me. Um pouco da
crise de identidade da EF vem da, do desejo de tornar-se
cincia, e da constatao de sua dependncia de outras dis
ciplinas cientficas (a EF colonizada epistemologicamente
3 Existem indicadores de que l onde a EF desde logo obteve o status universitrio,
a incorporao das prticas cientficas ao campo processou-se mais rpida e intensamente. Em alguns pases, como a Argentina, o fato da formao de professores de
EF dar-se em cursos no-universitrios tem dificultado tal processo; por exemplo, naquele pas no existem at hoje cursos de mestrado na rea da EF.
por outras disciplinas). Assim, no processo de sua constitui
o, o campo acadmico EF fragmentou-se; as lnguas cien
tficas faladas so diferenciadas, especficas. No campo da
EF, no que diz respeito produo do conhecimento cientfi
co, surgiram os especialistas, no em EF, mas, sim, em
fisiologia do exerccio, em biomecnica, em psicologia do
esporte, em aprendizagem motora, em sociologia do espor
te, etc.4. Os professores de EF, enquanto cientistas, pas
saram a se identificar como especialistas em fisiologia, em
biomecnica, etc. e no em EF. Em funo do processo de
especializao no demorou a instalar-se no campo um di
logo de surdos. Dada a importncia e o status que a cincia
goza na sociedade e principalmente no meio acadmico, a
EF coloca como meta tornar-se ela prpria uma cincia.
Passa ento, a sofrer de certo tipo de complexo de dipo;
quer ser mas no pode ser, no consegue ser (no pode
consumar o ato). Esse complexo to grande que alguns
entenderam ter surgido, como que de dentro do campo da
EF, uma nova cincia, a Cincia da Motricidade Humana,
para alguns, ou a Cincia do Movimento Humano, para ou
tros. Se essa se concretizasse, finalmente os professores de
EF poderiam dizer-se cientistas, poderiam dizer-se perten
centes a um campo cientfico, o da Cincia da Motricidade
Humana.
Por outro lado, uma forte presso para a cientifizao
da EF vem das chamadas Cincias do Esporte. E exatamen
te quando a EF deixa de se apresentar como ginstica (m
todos ginsticos) e consolida-se o esporte enquanto seu con
tedo maior, que as chamadas Cincias do Esporte insta
lam-se no campo, inicialmente chamado de EF. Hoje, no
possvel distinguir os campos de produo do conhecimento
4 E interessante notar que anlises recentes feitas por importantes autores do campo
da pedagogia tambm identificam esse problema em seu campo (Arroyo, 1998;
Brando, 1998; Libneo, 1996).
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FamiliaNotacolonizao epistemolgica
da EF e das Cincias do Esporte. Publicam-se os mesmos
trabalhos em revistas de EF e/ou de Cincias do Esporte,
apresentam-se trabalhos em congressos de um e de outro, sem qualquer discriminao ou alterao. A EF, nesse mbi
to, costuma ser tratada como pedagogia do esporte.
Portanto, embora sejam profissionais de EF e no mais
apenas bilogos, mdicos, fisilogos, psiclogos e socilogos
que pesquisam em torno do movimento humano e suas objetivaes culturais, a situao concreta que essas pesquisas tm sua identidade epistemolgica ancorada nas cin-
cias-me e no na EF, ou seja, a EF no capaz de ofere
cer/fornecer uma identidade epistemolgica5 prpria a es
sas pesquisas. A pesquisa em fisiologia do exerccio no
cincia da EF e, sim, cincia fisiolgica, assim como histria
do esporte no Cincia do Esporte e, sim, cincia histrica.
Aqui, neste mbito, ocorreu um equvoco que reputo
influncia de uma concepo empirista ingnua de cincia. Refiro-me ao fato de confundirmos objeto cientfico com al
gum fato/fenmeno ou recorte da realidade: ou seja, o en
tendimento de que ter um objeto prprio seria o mesmo que
identificar um fenmeno do mundo concreto/emprico que seria propriedade dessa cincia ou disciplina. O movimento
humano por si s no um objeto cientfico, so antes os
problemas que lhe so colocados sob uma nova perspectiva
que podem configurar um novo campo do conhecimento. Objeto cientfico algo construdo a partir de determinada abordagem.
Defendo a idia de que a EF no uma cincia. No
entanto, est interessada na cincia, ou nas explicaes cien
tficas. A EF uma prtica de interveno e o que a carac
5 Identidade epistemolgica significa a forma prpria com que cada disciplina cientfica interroga e explica a realidade, o que determinado pelo tipo de problema que
levanta, pelos mtodos de investigao e pela linguagem que desenvolveu e utiliza.
teriza a inteno pedaggica com que trata um contedo
que configurado/retirado do universo da cultura corporal
de movimento. Ou seja, ns, da EF, interrogamos o movi-
mentar-se humano sob a tica do pedaggico.
Acredito que, influenciados exatamente pela presso
cientificista, sempre entendemos a definio de nosso obje
to como a definio de um objeto cientfico. Ora, o objeto
de uma prtica pedaggica no tem as mesmas caractersti
cas fundantes de um objeto de uma cincia. O objeto da EF
enquanto prtica pedaggica retirado do mundo da cultura
corporal/movimento, ou seja, selecionado a partir de crit
rios variveis, ou seja, dependentes de uma teoria pedaggi
ca, desse universo. Podemos chegar ao ponto de configurar
nosso objeto de forma mais abstrata e a diramos ser a
cultura corporal de movimento.
A EF est interessada nas explicaes, compreenses
e interpretaes sobre as objetivaes culturais do movimen
to humano fornecidas pela cincia, com o objetivo de funda
mentar sua prtica, e isso porque ns, da EF, estamos con
frontados com a necessidade de constantemente tomar deci
ses sobre como agir. Por exemplo: decises sobre o conte
do dos meus planos de ensino; sobre a quantidade e a inten
sidade de exerccios; sobre mtodo de ensino a adotar
para ensinar um esporte; sobre a forma de reagir de frente a
uma atitude agressiva de um aluno, etc. Com base em qual
conhecimento eu tomo essas decises? Como ter certeza
de que as decises que tomei so as corretas?
Bem, em princpio achamos que a cincia nos auxilia
ria nessa tarefa. H (ou houve) o entendimento de que a
cincia faria com que tivssemos respostas mais seguras/
verdadeiras para essas questes. Mas, o que conhecer cien
tificamente a realidade? Por que ela nos ofereceria um co
nhecimento ou uma base mais segura?
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A cincia moderna parte do pressuposto de que as
explicaes da realidade esto contidas nela mesma, ou seja,
rompendo com o pensamento mtico, entende que as expli
caes do que acontece na natureza no precisam apelar
para foras externas a ela (como a vontade divina). Existem
leis internas que determinam o movimento das coisas. A
descoberta dessas leis permite prever o comportamento dos
corpos ou das coisas de forma universal. Ou seja, a realidade
contm regularidades e possui uma ordem. A cincia est
interessada na regularidade, na rotina, no que comum na
realidade, para control-la (desvelar, desvendar a realidade,
descobrir as leis que a regem).
Por exemplo: eu posso prever o comportamento da
queda de um dardo, porque sobre qualquer corpo fsico age
uma lei universal, que a lei da gravidade. Posso prever,
com relativa preciso, a repercusso de um treinamento de
corridas contnuas em determinada intensidade sobre a con
dio aerbica de uma pessoa, porque estou de posse de
uma teoria (que expressa uma lei ou leis) construda no m
bito da fisiologia, que diz que, quando uma pessoa subme
tida a uma atividade X, o organismo reage de forma Y.
Teorias expressam leis que permitem prever o comporta
mento da realidade e assim nela intervir e/ou control-la.
Buscou-se aplicar esses mesmos princpios para o co
nhecimento cientfico da realidade social e do comporta
mento humano. Durkheim dizia que a realidade social devia
ser estudada como coisa e Comte chamava a atual socio
logia de fsica social. No entanto, movimentos acadmicos
logo questionaram a possibilidade e a validade da aplicao
desses princpios cientficos ao estudo da realidade social
e humana. Dilthey, por exemplo, entendia que as humani
dades (Geisteswissenschaften) devem operar com a catego
ria da compreenso, ao passo que as cincias naturais
(Naturwissenschaften) operam com a categoria da explica
o. Compreender (verstehen) uma operao diferente da
de explicar (erklren) e, para o caso das humanidades, o adequado o primeiro: compreender o sentido/significado subjetivo das condutas humanas.
Tem tambm leis (universais) capazes de explicar o
comportamento humano, regularidades sociais/histricas do mesmo tipo das presentes na natureza? O debate em torno de um possvel dualismo metodolgico ou epistemolgico entre as cincias naturais e as cincias sociais e humanas continua. Para ns interessa a pergunta: o estudo do movimento humano deve ser feito a partir dos princpios das cincias naturais ou das cincias sociais e humanas, ou, ainda, de ambas?6
Parece que o mais importante ter a capacidade de entender o tipo de conhecimento do movimentar-se humano que uma e outra abordagem possibilita, as possibilidades e limitaes de cada uma das abordagens. Toda abordagem cientfica pr-conceituosa, portanto, oferece explicaes/ interpretaes da realidade que so relativas (a um ponto de vista) e, por conseqncia, limitadas pelo aparato terico- metodolgico prprio daquela disciplina. Por exemplo: quando fao uso do instrumental terico-metodolgico da biomecnica para estudar o movimento humano, o conhecimento produzido falar algo do movimento humano mas se calar em relao a uma srie de aspectos desse mesmo movimento.
Assim, no faro parte desse conhecimento os aspectos ligados afetividade do sujeito que se move, os aspectos sociais ligados ao contexto em que se realiza o movimento e que o influenciam, etc. O mesmo acontece em relao s
outras disciplinas cientficas - no existe uma abordagem
global que esgote a realidade.
6 Alis, M. Srgio coloca a Cincia da Motricidade Humana no mbito das cincias
do homem, mas, em momento algum reporta-se ao que isso, epistemologicamente, significa; pelo menos no se refere ao aludido debate epistemolgico e no toma
posio a respeito, de maneira que fica-se sem saber das conseqncias (metodo
lgicas) que tal vinculao/classificao teria.
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Essa caracterstica do saber cientfico - toda abordagem ser pr-conceituosa e relativa a um ponto de vista -
impe, para o caso da EF, a questo da interdisciplinaridade. Entendo que a questo da interdisciplinaridade se impe ao campo acadmico da EF. Para a EF (para fundamentar essa prtica) no basta somar o conhecimento da biomecnica, com o da fisiologia do exerccio, com o da psicologia. H a necessidade de operar uma sntese ou snteses, o que diferente da soma das partes (ao mesmo tempo, mais que a soma das partes e menos que cada parte, como diria E. Morin, 1993); uma sntese operada a partir das necessidades e dos interesses especficos da EF, da prtica pedaggica em EF (descolonizao cientfica). O que hoje predomina so as problemticas/temticas disciplinares.
Gostaria de dar um exemplo para demonstrar a necessidade de superar as perspectivas disciplinares. Partirei de uma pergunta: qual o mtodo que devo usar nas aulas para ensinar um esporte, como o volibol? O mtodo sinttico ou o mtodo analtico? Se escuto as pesquisas da aprendizagem motora posso ter a resposta, hipottica, de que o mtodo analtico. Se escuto as pesquisas da fisiologia do exerccio, posso ter a resposta de que o mtodo sinttico (que propicia maior movimentao). Se escuto a sociologia ou a psicologia social, seria, talvez, o mtodo sinttico pela maior possibilidade de contato social. Se atento para a sociologia do currculo questionarei inclusive o prprio esporte enquanto fenmeno cultural que expressa relaes de poder, etc. Qual abordagem devo considerar para minhas decises de professor de EF? Como integrar essas distintas abordagens? E possvel decidir com base no conhecimento discipli
nar? E possvel decidir sempre no plano da racionalidade
cientfica?7
7 Interessante observar que, apesar da flagrante necessidade de mediao entre os saberes disciplinares presentes no campo da EF, os especialistas nas diferentes
subdisciplinas do nosso campo no conseguem dialogar, ou seja, a partir de sua
especialidade interagir com outra, como ficou claro no IX Congresso Brasileiro de Cincias do Esporte (Vitria/ES, Set. 95).
Consideraes finais (problematizaes)
Para finalizar este captulo gostaria de pontuar algu
mas problemticas que, considero, devem ser enfrentadas
pela reflexo espistemolgica do campo da EF.
Precisamos, por exemplo, analisar a tese da Cincia
da Motricidade Humana de M. Srgio (1989), como possvel
fornecedora do estatuto epistemolgico da EF. Adianto mi
nha posio, embora sem fazer aqui uma anlise mais exaus
tiva dessa tese: ela no apresenta uma soluo para os pro
blemas epistemolgicos da EF. Alis, em M. Srgio, a EF
aparece, em relao Cincia da Motricidade Humana, com
duas conotaes: ora como a Pr-Cincia da Motricidade
Humana, e ora como ramo pedaggico dessa cincia. A
idia ou tese de que a EF a Pr-Cincia da Motricidade
Humana sustentvel apenas medida que sob essa deno
minao esse campo acadmico se constituir; resta no en
tanto, demonstrar que esse constitui-se hoje na forma de
uma nova disciplina cientfica ou de uma nova cincia. J a
tese de que a EF8 seria o ramo pedaggico da Cincia da
Motricidade Humana me parece altamente questionvel. Em
nenhum momento, alis, os autores que referendam essa
tese explicam o que significa para a EF (ou Educao Motora)
ser o ramo pedaggico de uma tal cincia (partindo-se do
pressuposto de que tal cincia existe). Significa que essa
prtica pedaggica tematiza os conhecimento oriundos de
tal cincia? Significa que os fundamentos dessa prtica pe
daggica vm dessa mesma cincia? As outras cincias
8 O autor da tese, M. Srgio, prefere denominar a EF de educao motora, Yio que
seguido por um grupo de professores brasileiros, principalmente atuantes na Facul
dade de Educao Fsica da UNICAMP. No livro, que foi publicado como resultado de um simpsio sobre educao motora (De Marco, 1995), alguns autores, ao invs
de falar em educao motora (ex-EF) como ramo pedaggico da Cincia da Motricidade Humana, falam em ramo pedaggico da teoria da motricidade humana, sem justificar, no entanto, o porqu dessa opo por teoria, em vez de cincia.
FamiliaRealce
FamiliaNotaA interdisciplinaridade se justifica pela impossibilidade de, partir de uma "lente nica" abarcar a realidade total do objeto estudado.
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FamiliaNotaArgumento contra a cincia da motricidade humana
tambm possuem um ramo pedaggico? Por acaso o ensino
da biologia constitui-se no ramo pedaggico da biologia? O
que se ensina na biologia o conhecimento biolgico. O que
se ensinaria na EF ou educao motora? Seria o conheci
mento da Cincia da Motricidade Humana? Essas so ques
tes que esto a merecer uma resposta.
Continua me parecendo mais importante para nosso
campo acadmico interpretar a EF como prtica pedaggi
ca. Parlebas (1993) tambm entende que a EF no uma
cincia e, sim, uma pedagogia das condutas motrizes. En
tende como objeto especfico da EF as aes motrizes. J,
Gamboa (1994) situa a EF no mbito do que chama de
novos campos epistemolgicos, pois, superando a pers
pectiva de cincia aplicada, tem como caracterstica ser
uma cincia da e para a ao educativa ou uma cincia da
ao, como a pedagogia. O autor considera que o eixo da
sistematizao cientfica (p. 37) e o que lhe fornecer especifici
dade o movimento/ao do corpo humano (motricidade).
Entendo que as reflexes de Gamboa (1994) significam um
avano para a discusso da rea sobre suas questes
epistemolgicas e isso porque: primeiro, o autor afirma a
especificidade da EF no plano pedaggico e, com isso, subli
nha a dimenso de interveno imediata prpria de nosso
campo; segundo, aponta para novos elementos e a necessi
dade da interdisciplinaridade.
Mas, algumas questes precisam ser aprofundadas. Por
exemplo, sabemos quase nada sobre como realizar a
interdisciplinaridade (no dispomos de uma epistemologia
interdisciplinar). Como comenta Parlebas (1993, p. 131),
se postula que a adio de conhecimentos que provm de
distintos horizontes vo harmonizar-se numa unidade. Tal
milagre, porm, no pode produzir-se. Assim, entendo que
o teorizar especfico da EF deveria concentrar-se exatamen
te na integrao das diferentes abordagens, seria um teorizar
sintetizador de conhecimento luz das necessidades espec
ficas da prtica pedaggica. Vale lembrar que isso ocorre
tambm com a pedagogia. O que complexifica a questo
a possvel existncia de um saber prtico ou corporal que
resiste teorizao, como diz Mauro Betti (1994) em
instigante artigo. Por outro lado, no possvel ignorar o
debate em torno das limitaes da racionalidade cientfica (e
sua crise) e da polmica relao entre o saber ftico e o ti-
co-normativo, questes re-colocadas pelo ps-modernismo.
E preciso considerar os limites da prpria racionalidade
cientfica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nos
sa prtica. Como sabemos, a prtica pedaggica envolve
sempre uma dimenso tica de carter normativo, ou seja,
se a cincia se atm ao ftico, a prtica pedaggica opera
tambm no plano do contraftico (do dever-ser). Outra di
menso importante presente no mbito pedaggico a di
menso esttica. Sem me alongar no assunto, diria que o
teorizar na EF precisa ultrapassar as limitaes da racionali
dade cientfica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimen
so do tico e do esttico.
Assim, o apelo para a cientifizao da EF problem
tico porque a racionalidade cientfica (tradicional) limitada
em relao s necessidades de fundamentao de sua prti
ca - o que indica a superao do modelo tradicional de ra
cionalidade cientfica (por exemplo, com o projeto da razo
comunicativa de J. Habermas) - e sofre, ao mesmo tempo,
o abalo da nova filosofia da cincia que relativista no senti
do de no reconhecer superioridade na racionalidade cient
fica de frente s outras formas de conhecer a realidade.
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FamiliaNotaA fraqueza da racionalidade cientfica para a EF
A PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO FSICA: CONHECIMENTO
E ESPECIFICIDADE1
Parece-me que o tema remete a uma questo que
tornou-se fator de frustrao e, em alguns casos, motivo de
pesadelos para o professor de Educao Fsica (EF): a to
propalada crise de identidade da EF, que em muitos mo
mentos foi entendida como resultado da falta de definio
do seu objeto, da falta de definio clara de sua especifi
cidade (identidade no sentido de sua singularidade). Entendo
que a temtica colocada, em ltima instncia, nos remete a
essa questo.
Para adentrar ao tema e colocar minha posio desejo
fazer, inicialmente, uma demarcao.
Quando falo em objeto da EF me refiro ao saber
especfico de que trata essa prtica pedaggica. No estou
me referindo, portanto, ao objeto de uma prtica cientfica
especfica - no coloco, para responder a essa questo, as
exigncias que so feitas para definir o objeto de uma cin
cia. Essa diferenciao importante porque entendo que
1 Artigo originalmente publicado na Revista Paulista de Educao Fsica. Supl.2, 1996, p. 23-8.
parte das dificuldades na superao da crise de identidade
advm do fato de se insistir em ver na EF uma disciplina
cientfica e, mais, como uma disciplina com estatuto episte-
molgico prprio. Entendo que a especificidade da EF no
campo acadmico a de que ela se caracteriza, fundamen
talmente, como prtica pedaggica2, no que concordamos
com Lovisolo (1995). A necessidade e a reivindicao de
fundamentar cientificamente a EF que a levou a incor
porar as prtica cientificas ao seu campo acadmico (o que
muito diferente de passar a ser uma cincia com estatuto
epistemolgico prprio). Ento, quando nos referimos ao objeto
da EF, pensamos num saber especfico, numa tarefa peda
ggica especfica, cuja transmisso/tematizao e/ou reali
zao seria atribuio desse espao pedaggico que chama
mos EF.
As diferentes concepes do objeto da Educao Fsica
Feita essa demarcao, vejamos como se entendeu o
saber prprio da EF ou a sua especificidade. As expres-
ses-chave para tal identificao foram ou so:
a) atividade fsica; em alguns casos, atividades fsico-es-
portivas e recreativas;
b) movimento humano ou movimento corporal humano,
motricidade humana ou, ainda, movimento humano
consciente;
2 Gamboa (1994) entende que a EF, assim como a pedagogia, estariam situadas no
que chama de novos campos epistemolgicos, cuja caracterstica especfica seria
exatamente a dimenso da ao (que estou chamando de interveno"); para esse autor, a EF uma cincia da e para a ao.
c) cultura corporal, cultura corporal de movimento ou
cultura de movimento.
Pretendo defender, aqui, a tese/idia de que, para a
configurao do saber especfico da EF, devemos recorrer ao
conceito de cultura corporal de movimento.
importante termos claro que a definio do objeto da
EF est relacionada com a funo ou com o papel social a
ela atribudo e que define, em largos traos, o tipo de conhe
cimento buscado para sua fundamentao3. Os termos ati
vidade fsica, e exerccios fsicos so fortemente marca
dos pela idia de que o papel da EF contribuir para o
desenvolvimento da aptido fsica e pertencem claramente,
no plano do conhecimento, ao arcabouo conceituai das dis
ciplinas cientficas do mbito da biologia, das cincias biol
gicas4.
A definio clssica de EF, nessa perspectiva, a que
a considera como disciplina que, por meio das atividades
fsicas, promove a educao integral do ser humano - mas,
a conotao, na prtica, a do desenvolvimento fsico-mo-
tor ou da aptido fsica, servindo a educao integral do ser
humano para satisfazer/caracterizar o discurso pedaggico.
A absoro na EF do discurso da aprendizagem motora,
do desenvolvimento motor, da psicomotricidade e, mesmo,
em certo sentido, da antropologia filosfica, resultou numa
mudana de denominao de nosso objeto (embora nem sem-
3 Aqui estamos de frente a uma via de mo dupla: a funo atribuda EF determina
o tipo de conhecimento buscado para fundament-la e o tipo de conhecimento
predominante sobre o corpo/movimento humano determina a funo atribuda
EF. No entanto, nem um nem outro so auto-explicativos: eles precisam ser analisa
dos integradamente como componentes de um movimento mais geral e complexo
da sociedade.
4 No necessrio aqui resgatar o tipo de educao (fsica) que postulado e
acontece a partir desse entendimento. Basta lembrar que ela ficou conhecida como
uma perspectiva biologicista de EF.
FamiliaRealce
FamiliaRealce
FamiliaNotapapel social atribudo EF como definidor do conhecimento que lhe fundamenta
pre numa mudana de paradigma ou de concepo). Pas
sou-se a privilegiar os termos movimento humano (em al
guns casos, motricidade humana). Destaca-se, a partir dessa
perspectiva, a importncia do movimento para o desenvolvi
mento integral da criana e esse o papel atribudo EF.
A definio clssica, nesse caso, a de que a EF a
educao do e pelo movimento. Como exemplo paradig
mtico temos a abordagem desenvolvimentista de Tani,
Manoel, Kokubun & Proena (1988), mas, tambm, com
nuanas, a educao de corpo inteiro, de Freire (1992). A
base terica advm, fundamentalmente, da psicologia da
aprendizagem e do desenvolvimento, uma com nfase no
desenvolvimento motor e outra no desenvolvimento cognitivo.
Fala-se, nesses casos, em repercusses do movimento
sobre a cognio e a afetividade ou o domnio afetivo-social;
fala-se dos diversos arranjos e tarefas motoras para garantir
o desenvolvimento das habilidades motoras bsicas (Tani et
alii, 1988), com repercusses sobre os domnios cognitivo e
afetivo-social. Mas ambas as propostas no superam a pers
pectiva da psicologia, o que, para a questo pedaggica,
problemtico, como salienta Silva (1993a), em Descons-
truindo o Construtivismo.
A psicologizao da educao implica, necessariamen
te, a sua despolitizao. No suficiente afirmar, a ttulo de
defesa - de forma simplista -, que determinada psicologia
leva em conta os fatores sociais. O que importa, ao contr
rio, destacar a existncia de um aparato social e poltico,
como a educao institucionalizada, e as implicaes disso
(Silva, 1993a, p.5).
As duas definies, ou melhor, construes do objeto
da EF, tratadas at aqui (biologia/psicologia do desenvolvi
mento), permitem ver o objeto no como construo social e
44 C..,,.. '-- ..
histrica e, sim, como elemento natural5 e universal, portan
to, no histrico, neutro politica e ideologicamente, caracte
rsticas que marcam, tambm, a concepo de cincia onde vo sustentar suas propostas.
A outra perspectiva presente a de que o objeto da EF
a cultura corporal de movimento. importante salientar
que se, em princpio, fala-se neste caso das mesmas ativida
des humanas presentes nas concepes anteriores, as ex
presses usadas para denomin-las denunciam, alm de uma
diferena terminolgica, diferenas e conseqncias subs
tanciais no plano pedaggico6, pois, o objeto de uma prtica
pedaggica uma construo - e no uma dimenso inerte
da realidade - para a qual pressupostos tericos so fundantes
e/ou constitutivos. No possvel dissociar o fenmeno do
discurso da teoria que o constri enquanto objeto (pedaggico).
Nessa perspectiva, o movimentar-se entendido como
forma de comunicao com o mundo que constituinte e
construtora de cultura, mas, tambm, possibilitada por ela.
E uma linguagem, com especificidade, claro, mas que,
enquanto cultura habita o mundo do simblico7. A naturali
zao do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no
plano do biolgico ou do psicolgico, retira dele o carter
histrico e com isso sua marca social. Ora, o que qualifica o
movimento enquanto humano o sentido/significado do
mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que
o coloca no plano da cultura.
5 E naturalmente social.
6 Como diria Assmann (1993): no so apenas festejos diferentes de linguagem.
7 Da a importncia do artigo de Mauro Betti (1994) que remete a novos horizontes
do estudo do movimento humano ou das manifestaes da cultura corporal de movimento atravs da semitica.
FamiliaRealce
FamiliaNotaPsicologizar a educao despolitiz-la.
FamiliaRealce
FamiliaRealce
FamiliaRealce
FamiliaNotamovimentar-se humano implica seu sentido mediado simbolicamente.
No entanto, trabalhar na EF com o movimentar-se na
perspectiva da cultura (cultura corporal de movimento) no
basta para coloc-la no mbito de uma concepo progres
sista de educao, mesmo porque, o conceito de cultura
pode ser definido e operacionalizado em termos social e
politicamente conservadores. preciso portanto, articular
um conceito de cultura que se coadune com os pressupostos
sociofilosficos da educao crtica.
Para Geertz, citado por Thompson (1995, p. 176),
cultura o padro de significados incorporados nas for
mas simblicas, que inclui aes, manifestaes verbais e ob
jetos significativos de vrios tipos, em virtude dos quais os
indivduos comunicam-se entre si e partilham suas experin
cias, concepes e crenas.
Thompson aponta a insuficincia dessa concepo, di
zendo que
estas formas simblicas esto tambm inseridas em contex
tos e processos scio-histricos especficos dentro dos quais,
e por meio dos quais, so produzidas, transmitidas e recebi
das. Estes contextos e processos esto estruturados de vrias
maneiras. Podem estar caracterizados, por exemplo, por rela
es assimtricas de poder, por acesso diferenciado a recur
sos e oportunidades e por mecanismos institucionalizados de
produo, transmisso e recepo de formas simblicas (1995,
p. 181).
Dessa forma, a anlise cultural como o estudo de for
mas simblicas deve considerar os contextos e processos
especficos e socialmente estruturados dentro dos quais, e
por meio dos quais, essas formas simblicas so produzidas,
transmitidas e recebidas. Portanto, o movimentar-se e mesmo
o corpo humano precisam ser entendidos e estudados como
uma complexa estrutura social de sentido e significado, em
contextos e processos scio-histricos especficos.
Uma das razes para entendermos nosso objeto valen
do-nos do conceito de cultura diz respeito ao fato de que ela
uma categoria-chave para o empreendimento educativo
de maneira geral. A relao entre educao e cultura org
nica. Como lembra Forquin (1993),
o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo
a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a expe
rincia humana considerada como cultura (p. 13).
A cultura o contedo substancial da educao, sua fonte e
sua justificao ltima (p. 14).
Nas abordagens de EF baseadas no conceito (biolgico)
de atividade fsica e no conceito (psicolgico) da abordagem
desenvolvimentista, o corpo e o movimentar-se humano apre
sentam-se desculturalizados8.
Duas observaes ainda se fazem necessrias quanto
relao cultura-educao:
a) a educao realiza a cultura como memria viva, reativao
incessante e sempre ameaada, fio precrio e promessa
necessria da continuidade humana (Forquin, 1993, p.
14);
b) Uma teoria cultural da educao, v a educao, a peda
gogia e o currculo como campos de luta e conflito
simblicos, como arenas contestadas na busca da imposi
o de significados e de hegemonia cultural. (Silva, 1993b,
p. 122)
8 Desculturalizados no no sentido de que os movimentos, os jogos e as brincadeiras
utilizados nessas abordagens no emanem do universo cultural - por exemplo,
Freire (1992) e valoriza sobremaneira a cultura infantif- mas, sim, no sentido de que os critrios a partir dos quais so sistematizados e tratados pedagogicamente
advm, exclusivamente, de anlises do desenvolvimento infantil, descontextualizadas
social e historicamente.
FamiliaRealce
FamiliaNotaValter ressalta a importncia de articular o conceito de cultura aos pressupostos da Teoria Crtica
A especificidade pedaggica da cultura corporal de movimento
Para a construo de uma teoria da EF coloca-se aqui
uma questo central: qual a especificidade pedaggica da
cultura corporal de movimento enquanto saber escolar?9
Os saberes tradicionalmente transmitidos pela escola
provm de disciplinas cientficas ou ento, de forma mais
geral, de saberes de carter terico-conceitual. Entendo que,
diferentemente do saber conceituai, o saber de que trata a
EF (e a Educao Artstica) encerra uma ambigidade ou um
duplo carter: a) ser um saber que se traduz num saber-
fazer, num realizar corporal; b) ser um saber sobre esse
realizar corporal10.
No caso do entendimento de que o objeto da EF era a
atividade fsica ou o movimento humano, a ambigidade era
resolvida a favor da dimenso prtica ou do fazer corporal.
Esse fazer corporal que repercutia sobre a totalidade (os
diferentes domnios do comportamento) do ser humano. Nesse
caso, o debate se desenvolveu em torno da polarizao: edu
cao do ou pelo movimento, ou ambos.
J, trabalhando a partir da idia da cultura corporal de
movimento como objeto da EF, a questo do saber sobre o
movimentar-se do homem passa a ser incorporado enquanto
saber a ser transmitido (no apenas instrumento do profes
sor). Desenvolveu-se aqui, rapidamente, o pr-conceito de
9 Outras questes aderem a esta, como: o que possvel ensinar/aprender quando
trato pedagogicamente essa parcela da cultura? Quais so os critrios para selecionar e sistematizar essa dimenso da cultura?
10 Essa questo est magistralmente tratada no artigo mais instigante de nossa rea
publicado em 1994. Refiro-me ao artigo de Mauro Betti, publicado na revista Disco rpo: O que a Semitica Inspira ao Ensino da EF.
que o que se estava propondo, nesse caso, era transformar a
EF num discurso sobre o movimento, retirando o movimen-
tar-se do centro da ao pedaggica em EF.
Betti, enfocando essa questo, observa:
No estou propondo que a EF transforme-se num discurso
sobre a cultura corporal de movimento, mas numa ao pe
daggica com ela [grifo nossoj. E evidente que no estou
abrindo mo da capacidade de abstrao e teorizao da lin
guagem escrita e falada, o que seria desconsiderar o simbolis
mo que caracteriza o homem. Mas a ao pedaggica a que se
prope a EF estar sempre impregnada da corporeidade do
sentir e do relacionar-se. (1995, p. 41)
Nos parece que, no fundo, est aqui presente a ambigui
dade insupervel que radica-se no nosso estatuto corpreo.
Simultaneamente, somos e temos um corpo.
Um desdobramento ou uma vertente dessa ambigida
de refere-se relao natureza-cultura, que uma questo
que afeta o entendimento geral de ser humano e que se
agua sobremaneira quando falamos de corpo e movimento.
interessante colocar aqui o que Cullen11 chama de
encruzilhada quando buscamos situar o lugar do corpo na
cultura. Para esse filsofo argentino, o corpo, ou a existn
cia corporal do homem, fonte de certo mal-estar para a
cultura, pois seriam marcas do corpo a singularidade, ao
passo que a cultura seria o reino do comum, o remeter
imediatamente ao desejo e morte, necessitar de espao e
movimento e depender do meio ambiente. A cultura cir
cunscreve o corpo, que parece querer neg-la, ao plano da
natureza, impondo-o, assim, um vazio, ou ento f-lo reger-
se por uma idia ou modelo - o simulacro. Por isso estamos,
segundo o autor, numa encruzilhada: culturalizar o corpo e
11 Anotaes pessoais da palestra proferida por C. Cullen durante o II Congresso
Argentino de Educacin Fsica y Cincia (La Plata, outubro/1995).
torn-lo semelhante (reprimindo sua singularidade) ou descul-
turalizar o corpo e reduzi-lo diferena. O corpo naturalizado ou o corpo culturalizado? Ou, talvez o grande desafio do projeto educativo: como culturalizar sem desnaturalizar?
Como isso se expressou na EF? A EF sempre fez um discurso, baseado nas cincias naturais, de controle do corpo, de construo de um corpo saudvel e produtivo, treinvel, capaz de grandes e belos desempenhos motores. Era o corpo natural submetido ao entendimento dominante de nossa corporeidade. No h aqui espao para considerar o corpo sujeito de cultura, produtor de cultura, ele apenas sofre cultura. E interessante notar que em alguns casos ainda temos a denominao de rgos pblicos de Secreta
ria de Esportes e Cultura; cultura o que retrata artisticamente o corpo, ou ento, aquelas atividades corporais que so realizadas sob o signo da cultura (ballet, por exemplo). Outra postura aquela que enaltece o sensvel (o ldico), enquanto instncia ainda no submetida s regras do mundo racional ou social, que busca e valoriza aquelas experincias que atestam a unidade homem-mundo, uma certa unidade primordial, experincias em que somos corpo e mundo. Uma terceira postura quase que elimina a primeira natureza em favor da segunda natureza, a cultura, privilegiando nesta a racionalidade cientfica.
O movimento instalado na EF brasileira a partir da dcada de 80, ao menos em uma de suas vertentes (aquela que vai buscar fundamentao pedaggica na pedagogia histrico-crtica), situa-se na terceira perspectiva descrita, que tem pelo menos um aspecto em comum com a primeira: uma perspectiva racionalista do movimento humano. Ou seja, em vez de controlar o movimento apenas no sentido mec- nico-fisiolgico, encarando-o agora como fenmeno cultural, pretende dirigi-lo a partir da conscincia crtica
dos determinantes sociopoltico-econmicos que sobre ele recaem.
Ghiraldelli Jnior (1990) detectou essa questo e colo
cou frente a frente duas tendncias no mbito da chamada
EF progressista: a tendncia racionalista e a tendncia anti-
racionalista. Segundo o autor, as tendncias racionalistas
buscam uma sada pela janela:
Detectando no movimento, na prtica corporal, elemen
tos no desejveis, acabam por tom-los como a prpria e ex
clusiva essncia do movimento e, na sequncia, concluem que
preciso que alguma coisa de fora venha acrescentar-lhe cri-
ticidade, venha libert-lo, libertando seu praticante. Essa coi
sa exterior o discurso, que pode ter carter sociolgico, an
tropolgico, poltico, etc. [...] A aula de EF torna-se uma aula
sobre o movimento e no mais uma aula com movimento.
Ou ento, uma aula com o movimento nas condies da EF
tradicional agregada ao estudo e discurso crtico. (p. 197-8)
Por outro lado,
as correntes anti-racionalistas captam que o movimento cor
poral humano, por no ser algo que passe pela verbalizao,
pode escapar da razo e, por essa via, se aproximar da intui
o. Afinal, o movimento no algo que pode ser descrito e
explicado (positivismo e afins) nos seus ltimos detalhes, mas
algo que pode ser compreendido (historicismo e afins), vivi
do, sentido; algo do plano subjetivo e que esconde que este
plano foi construdo subjetivamente. (p. 198)12
Parece-me que aqui a EF levada a uma encruzilhada
ou mesmo um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racio
nalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimenso
das experincias/vivncias humanas passveis de serem pro
piciadas tambm pelo movimentar-se (nas mais diferentes
formas culturais) que resiste s palavras, ou, dito de outra
forma, no possvel pedagogiz-las por via da sua descri
12 Ghiraldelli Jnior (1990) entende que ambas as correntes ficam a meio caminho e
prope uma viso alternativa baseada numa leitura dialtica materialista. No nosso entendimento, a busca da contradio interna, por via da historicizao, acaba se
circunscrevendo na prpria perspectiva racionalista, no superando, portanto, o
impasse identificado pelo autor.
o cientfica; fogem ao controle, previso (da cincia);
so, de certa forma, nicas, singulares. Alis, para Nietzsche,
citado por Naffah Neto (1991, p. 23),
Nossas experincias verdadeiramente fundamentais no so,
de forma alguma, tagarelas. Elas no saberiam se comunicar,
mesmo que quisessem. que lhes falta a palavra. Aquilo para
que encontramos palavras, j ultrapassamos [...] A lngua,
parece, foi inventada somente para as coisas medocres, co
muns, comunicveis. Pela linguagem, aquele que fala se vul
gariza13.
Como tratar na EF essas experincias? Nos subordinar
ao desfrute ldico? Como construir uma prtica pedaggi
ca que, por definio, uma interveno racional/conscien
te sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivduos, de maneira a contemplar essas dimenses do movimen- tar-se humano?
A questo se complexifica porque sabemos que a educao da sensibilidade ou o afeto to importante quanto a
cognio na definio do comportamento social (poltico) dos indivduos. Por isso retomo aqui uma pergunta que formulei
em um simpsio de nossa rea14: possvel falar em movi
mento crtico? A criticidade ou a educao crtica em EF
somente pode acontecer atravs de um discurso crtico sobre o movimento? E preciso no incorrer no erro de enten
der criticidade, neste caso, apenas como um conceito da
esfera da cognio. E preciso alarg-lo abarcando a dimen
so esttica. Alis, Carlos R. Brando, no VIII Congresso
Brasileiro de Cincias do Esporte (Recife/1987), afirmou
que, para ele, crtico s poderia ser o sujeito amoroso, aquele que tem a capacidade de se sensibilizar com o drama do
mundo. preciso, valendo-me de Assmann (1993), ampliar
13 H, nessa interpretao, uma reduo das possibilidades da linguagem, o que
reconhecido por Naffah Neto (1991), que vai, na seqncia discutir, essa questo a partir de Merleau-Ponty, com seu uso criativo da linguagem.
14 Precisamente em Goinia, no ano de 1991.
....52 t ____
o conceito de linguagem a todo tipo de ativaes da
corporeidade15. Parafraseando Chau (1994), poderamos
dizer que, na filosofia e nas cincias, falamos de movimen
to e pensamento (um discurso filosfico e cientfico sobre o
movimento), mas que, na EF, deveramos falar de movimen- to-pensamento.
Por algum tempo pensei e falei (em crculos mais prximos) em uma epistemologia do movimento. Ao contrrio das conhecidas taxionomias do domnio psicomotor, tra
tava-se, pensava eu, de identificar o tipo de conhecimento
da realidade que o movimentar-se humano pode propiciar,
que tipo de leitura da realidade essa forma de comunicao
com o mundo pode propiciar e quais conhecimentos e leitu
ra da realidade determinadas formas culturais do movimen
tar-se propiciariam. Estou inclinado a complementar essa
proposta com uma fenomenologia/hermenutica do movimento, uma vez que a expresso epistemologia est excessivamente comprometida com uma postura racionalista no
sentido cognitivista, que no abre espao para a ampliao do conceito de verdade. Como pergunta Gadamer, citado
por Hekman (1990, p. 147):
correto reservar o conceito de verdade para o conheci
mento conceptual? No devemos tambm admitir que a obra
de arte possui verdade? Veremos que o reconhecimento des
tes aspectos coloca no s o fenmeno da arte, mas tambm
o da histria [e o do movimento, VB], sob uma nova luz.
15 Lembro aqui das palavras de Benedito Nunes (1994, p. 403), discorrendo sobre a
potica do pensamento. Vale a pena ouvi-lo: A poesia-canto desobjetifica a
linguagem, retira-a do mbito da viso prtica, da ao e do intercurso cotidiano, a que serve de instrumento de comunicao, para o da abertura, temporal e
histrica. Do mesmo modo que na arte a terra se torna terra, e no propriamente usada, ao contrrio do que sucede com o instrumento material, absorvido em seu
prprio emprego, a poesia usa a palavra como palavra, sem gast-la, librando o seu
poder de nomear, de fundar o ser, de desencobri-lo no poema. E o que distingue o
poeta do pensador que a nomeao naquele alcana o que excede compreen
so do ser em torno do qual o ltimo gravita: o sagrado, indizvel, estranho ao
pensamento.
Assim, uma educao crtica no mbito da EF tem
igual preocupao com a educao esttica, com a educa
o da sensibilidade, o que significa dizer, incorporao,
no por via do discurso e, sim, por via das prticas corpo
rais16 de normas e valores que orientam gostos, prefern
cias, que junto com o entendimento racional, determinam a
relao dos indivduos com o mundo. Sem me alongar na
polmica da crise da razo (iluminista) ou da racionalidade
cientfica, entendo que no se trata de subsumi-la sensibi
lidade, mas, sim, de no pretender absolutiz-la.
O desafio parece-me ser: nem movimento sem pensa
mento, nem movimento e pensamento, mas, sim, mouimen-
topensamento17.
16 Coloquei o termo entre aspas para demonstrar, por um lado, que reconheo a falta de um termo que supere o dualismo inevitavelmente presente na nossa linguagem
quando usamos a palavra corpo", mas, por outro lado, preciso reconhecer, tam
bm, que ele fruto da possibilidade que temos de reconhecer nossa existncia corporal.
17 Deixo a cargo dos prezados leitores a interpretao do porqu aglutinei a palavra
pensamento" palavra movimento e no, por exemplo, sentimento. Talvez,
ambigamente, intuitiva-racionalmente, esteja me contrapondo s posturas relativistas
que postulam uma pluralidade radical da razo, sem hierarquia de qualquer tipo.
AS CINCIAS DO ESPORTE: QUE CINCIA ESSA?1
No ano em que o Colgio Brasileiro de Cincias do
Esporte (CBCE) completou quinze anos de existncia fize
mos a pergunta: que cincia essa que fizemos nestes anos
todos?
Tomar essa questo como tema de congresso pareceu
refletir uma necessidade do colegiado e da rea. Essa orien
tao/necessidade estava j presente na temtica do VII
Congresso Brasileiro de Cincias do Esporte (CONBRACE),
realizado em Uberlndia, em 1991, e, tambm, no livro do
ano editado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvi
mento da Educao Fsica2.
Entendemos que depois de uma certa euforia e inge
nuidade cientificista dos seus primeiros anos de existncia,
com conseqente averso reflexo filosfica,