Educacao Fisica Ciencia Cenas de Um Casamento in Feliz Valter Bracht

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Sobre a relação entre EF e o paradigma científico moderno e sua posterior crise. Livro central para a compreensão do pensamento do teórico da área, Valter Bracht.

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  • C o le o E d u c a o F s ica

    T edio

    Editora Uniju Iju - Rio Grande do Sul - Brasil

    2003

    Cenas de um casamento (in)feliz

    uando falamos de teoria

    da Educao Fsica no

    insistimos na sua adjetivao

    como teoria cientfica. Isso no

    significa que tenhamos abandonado

    a pretenso de racionalidade para essa

    teoria,- muito mais, significa alertar para

    a necessidade de elucidar o conceito

    de racionalidade cientfica que

    utilizado no discurso e na prtica, bem

    como para as dificuldades de

    tal empreendimento. O debate

    epistemologia) atual parece indicar

    muito mais, por um lado, no sentido

    da superao da racionalidade cientfica

    clssica ou predominante (originada no

    plano da fsica e adotada pelas cincias

    naturais e tambm pelo positivismo

    como modelo para as cincias sociais

    e humanas), e, por outro, no sentido

    de certo relativismo que desloca

    a racionalidade cientfica do pedestal

    da racionalidade enquanto tal e a coloca

    no mesmo nvel de outras "racio

    nalidades" ou discursos acerca

    da realidade. As dificuldades e os

    movimentos aludidos parecem indicar

    prudncia no que diz respeito

    reivindicao de adjetivar uma teoria

    da Educao Fsica de cientfica,

    embora indique tambm prudncia

    quanto propenso de abandonar

    precocemente a pretenso da funda

    mentao racional da prtica. Nem

    consumar o casamento nem o divrcio.

  • 1999, Editora Uniju

    Rua do Comrcio, 1364

    Caixa Postal 560

    98700-000 - Iju - RS

    - Brasil -

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    Responsabilidade Editorial e Administrativa:

    Editora Uniju da Universidade Regional do Noroeste

    do Estado do Rio Grande do Sul (Uniju; Iju, RS, Brasil)

    Servios Grficos: Sedigraf

    Capa: Elias Ricardo Schssler

    Primeira edio: 1999

    Segunda edio: 2003

    Catalogao na Fonte

    Biblioteca Central Uniju

    B796e Bracht, Valter

    Educao fsica & cincia : cenas de um casa

    mento (in)feliz / Valter Bracht. 2.ed. - Iju: Ed. Uniju,

    2003.- 160 p. - (Coleo educao fsica).

    ISBN 85-7429-102-1

    1.Educao fsica 2.Cincia do esporte 3.Motri

    cidade humana 4.Prtica pedaggica 5.Epistemo

    logia I.Ttulo II.Srie.

    CDU: 796

    796:001

    ______________________________________001: 796____________ _

    Editora Uniju afiliada:

    A ssociao B rasile ira das E ditoras U niversitrias

    A coleo Educao Fsica um projeto editorial da Editora

    Uniju, vinculado a um conselho editorial interinstitucional, que visa

    dar publicidade a pesquisas que buscam um constante aprofundamento

    da compreenso terica desta rea que vem constituindo sua reflexo

    conceituai, bem como os trabalhos que garantam uma maior aproxi

    mao entre a pesquisa acadmica e os profissionais que encontram-

    se nos espaos de interveno. Promover este movimento sem dvi

    da o maior desafio desta coleo.

    Conselho EditorialCarmen Lucia Soares - Unicamp

    Mauro Betti - Unesp/Bauru

    Tarcisio Mauro Vago - UFMG

    Luis Osrio Cruz Portela - UFSM

    Amauri Bassoli de Oliveira - UEM

    Giovani De Lorenzi Pires - UFSC

    Valter Bracht - UFES

    Nelson Carvalho Marcellino - Unicamp

    Paulo Evaldo Fensterseifer - Uniju

    Vicente Molina Neto - UFRGS

    Elenor Kunz - UFSC

    Victor Andrade de Melo - UFRJ

    Silvana Vilodre Goellner - UFRGS

    Comit de RedaoPaulo Fensterseifer

    Fernando Gonzalez

    Maria Simone Vione Schwengber

    Leopoldo Schonardie Filho

    Joel Corso

  • SUMRIO

    INTRODUO.................................................................. 9

    PARTE I - EDUCAO FSICA E CINCIA

    A CONSTITUIO DO CAMPO ACADMICO

    DA EDUCAO FSICA............................................... 15

    As caractersticas da teorizao na Educao Fsica.. 16

    As Cincias do Esporte e a despedagogizao

    do teorizar em Educao Fsica................................. 18

    Repedagogizando o discurso acadmico no campo

    da Educao Fsica..................................................... 24

    Consideraes finais (perspectivas)............................ 25

    A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA............. 27

    O campo acadmico da Educao Fsica.................. 28

    Consideraes finais (problematizaes) ................... 37

  • A PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO FSICA: CONHECIMENTO E ESPECIFICIDADE........................41

    As diferentes concepes do objetoda Educao Fsica..................................................... 42

    A especificidade pedaggica da cultura corporal de movimento .......... .................................................. 48

    PARTE II - A(S) CINCIA(S) DO ESPORTE, A CINCIA DA MOTRICIDADE HUMANA

    AS CINCIAS DO ESPORTE: QUE CINCIA ESSA?. 57

    O conhecimento do conhecimento............................ 61

    A questo da identidade epistemolgica da rea..... 63

    O debate em tomo do objeto da Educao Fsica .. 65

    Breves olhares sobre o caso da pedagogia............. 68

    A Educao Fsica e a cientificidade...................... .70

    As Cincias do Esporte:fragmentao versus unidade................................. 71

    Consideraes finais................................................... 73

    AS CINCIAS DO ESPORTE NO BRASIL:UMA AVALIAO CRTICA......................................... 75

    Como se caracterizam as prticas cientficas no mbito das Cincias do Esporte?.......................... 76

    O esporte e as Cincias do Esporte: empreendimentos da modernidade........................... 85

    Dimenses da interdisciplinaridade nas Cincias do Esporte................................................................... 91

    A Condio ps-moderna, a crise da razo

    cientfica e as Cincias do Esporte............................ 95

    A TESE DA CINCIA DA MOTRICIDADE HUMANA,

    DE MANUEL SRGIO.................................................... 99

    Kefren Calegari dos Santos

    Sobre Manuel Srgio e a tese da Cincia

    da Motricidade Humana.......................................... 101

    Levantando questes............................................... 104

    Discutindo questes................................................. 105

    Consideraes finais................................................ 113

    Quadro da evoluo do pensamento

    de Manuel Srgio em torno da CMH...................... 114

    PARTE III - DILOGOS (IM)PERTINENTES

    A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA:

    UM DILOGO COM MAURO BETTI......................... 117

    Debatendo com M. Betti ......................................... 119

    Consideraes finais................................................ 128

    EPISTEMOLOGIA E POLTICA NA EDUCAO

    FSICA BRASILEIRA..................................................... 129

    Delineando as posies presentes na Educao

    Fsica brasileira e no CBCE...................................... 132

    Consideraes finais................................................ 139

    CONSIDERAES FINAIS ...................................... 143

    BIBLIOGRAFIA 149

  • INTRODUO

    O pior casamento o que d certo.

    (Millr Fernandes, 1994)

    Os escritos aqui reunidos discutem uma relao que,

    guardadas as limitaes de uma metfora, apresenta algu

    mas caractersticas presentes nas relaes conjugais.

    No h aqui, obviamente, um julgamento de valor acerca

    do prprio casamento, entendido no seu sentido tradicional

    de unio de dois seres humanos, embora o texto em epgrafe

    assim o sugira. Muito mais, pretende discutir a possibilidade

    de que uma relao bem-sucedida, neste caso, pode trazer

    antes um resultado negativo do que positivo. Assim como

    podemos questionar ser o casamento condio indispensvel

    para a felicidade humana, tambm podemos colocar em

    dvida a positividade da relao da Educao Fsica (EF)

    com a cincia, ou mesmo a transformao da Educao Fsi

    ca em cincia.

    De qualquer forma uma relao de risco (menos para

    a cincia do que para a Educao Fsica). Eliminar a identi

    dade de um dos plos desta relao (do casamento), trans-

  • formando um no outro, confundindo os dois, ou subordinan

    do uma identidade outra (no caso a EF cincia), pode,

    assim como no casamento, ter resultados desastrosos.

    Se ilidirmos o fato de que a EF , em certo sentido,

    filha da cincia moderna (o que significaria em caso de casa

    mento uma relao incestuosa), o casamento entre a EF e a

    cincia sempre foi almejada, mesmo porque, at h bem

    pouco tempo a cincia era um grande partido. Um tal

    casamento poderia trazer EF (ao noivo ou noiva, como

    se queira) prestgio e status social (o dote da cincia seria

    enorme) e, por extenso, a todos que a sustentam e a fa

    zem.

    Embora hoje a cincia continue a ser um grande par

    tido, ela perdeu muito de seu glamour; a imagem da

    racionalidade cientfica est muito mais arranhada hoje do

    que estava h vinte anos. Muitas vozes, em funo deste

    questionamento, hoje falam na necessidade do divrcio ou

    no rompimento do noivado.

    O esporte, a partir de sua crescente importncia no

    contexto da cultura corporal de movimento, entra em cena e

    vai constituir com a EF e a cincia um tringulo amoroso.

    Assumiu o lugar do noivo ou da noiva (EF); falou em seu

    nome e ofereceu-se para contrair o matrimnio (ou patrim

    nio) com a cincia. A reivindicao por cincia pelo fenme

    no esportivo redundou na tentativa de se instituir as chama

    das Cincias do Esporte e nestas a EF foi renomeada de rea pedaggica.

    A crise de identidade da EF foi entendida ento como

    resultado da incapacidade da EF concretizar o casamento.

    Hoje, ao contrrio, alguns entendem que sua ligao com a

    cincia j foi forte/longe demais e que seria preciso resgatar

    outros valores que lhe so prprios para que possa superar

    sua crise de identidade. Nessa tica, um tal casamento no

    s no superaria a crise da Educao Fsica, como desvirtua

    ria suas caractersticas mais importantes.

    Outros, como o nosso caso, advogam para a EF uma

    relao com a cincia que ao mesmo tempo de proximida

    de e de distanciamento. Isto significa que as identidades dos

    parceiros no se confundem. S com esta condio a rela

    o parece ser produtiva. Isto significa refletir sobre as pos

    sibilidades, mas tambm, sobre as limitaes da cincia,

    exatamente para no tom-la como um dogma.

    Os textos aqui reunidos foram escritos em diferentes

    momentos da discusso que vem-se travando nos ltimos

    anos, na nossa rea. Assim, minhas posies aparecem no

    seu processo de desenvolvimento.

    E sempre muito difcil organizar textos escritos de for

    ma esparsa numa ordem lgica. A forma encontrada e que

    pareceu menos problemtica foi a de organiz-los em trs

    partes: I - Educao Fsica e Cincia, discute a constitui

    o do campo acadmico da EF, as questes epistemolgicas

    que se colocam a partir da EF e a especificidade do conheci

    mento tratado pela EF; II - A(s) Cincia(s) do Esporte, a

    Cincia da Motricidade Humana, rene os textos que

    enfocam especificamente as tentativas de se constituirem as

    Cincias do Esporte e a Cincia da Motricidade Humana,

    bem como uma avaliao crtica da sua produo. Nesse

    ponto tivemos a colaborao de um jovem e tale ato : o pro

    fessor de Educao Fsica, Kefren Calegari dos Santos, que

    levanta pontos importantes para a discusso da tese de Ma

    nuel Srgio; III - Dilogos (im)pertinentes, rene os textos

    que debatem com posies expressas por outros pesquisa

    dores da rea que se ocupam com essa questo, num caso

    identificando o interlocutor, Mauro Betti, e em outro dialo

    gando com posies presentes na rea.

  • Cabe neste momento agradecer s vrias instituies e

    aos colegas que foram fundamentais para o desenvolvimen

    to destas reflexes; Ao Conselho Nacional de Desenvolvi

    mento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), que por algum tem

    po colaborou mediante a concesso de uma bolsa de pesqui

    sa; UFES, que me acolheu como docente; aos colegas de

    trabalho do LESEF; aos colegas de dilogo que no nomino

    para no cometer injustias esquecendo algum.

  • A CONSTITUIO DO CAMPO ACADMICO

    DA EDUCAO FSICA1stssss*'** v" '

    Neste captulo tomamos como foco de ateno a cons

    truo do campo acadmico da EF no Brasil, com especial ateno para o perodo que vai do final da dcada de 60 at nossos dias.

    E importante desde logo ressaltar que nossa ateno

    recai sobre a produo acadmica da rea, vale dizer, a

    teorizao que envolve e acompanha esta prtica social que

    convencionamos chamar de Educao Fsica, ou seja, um

    estudo sobre o pensamento da EF brasileira e sobre como

    ela vem-se pensando. Especificamente, perseguimos a ques

    to de como foram pensados os limites/contornos deste cam

    po, quem dele participa legitimamente, quais problemticas

    so privilegiadas e reconhecidas como pertencentes ao cam

    po, ou seja, como a partir deste conjunto de prticas forja-se o prprio campo.

    Outro aspecto que considero necessrio aclarar desde

    logo, dadas as posies que venho defendendo em relao

    ao uso do termo EF (Bracht, 1992 e 1995), de que enten-

    1 Este texto foi inicialmente apresentado no IV Encontro Nacional de Histria do Esporte, Lazer e Educao Fsica (Belo Horizonte/MG, 1996).

  • do esta, fundamentalmente, como uma prtica que tematiza

    com a inteno pedaggica as manifestaes da cultura cor

    poral de movimento. Esse entendimento, sabemos, est lon

    ge de ser unanimidade. Ele convive com vrios outros que

    estendem o significado do termo para, por exemplo, todas

    as manifestaes da cultura corporal de movimento, ou en

    to, como mais comum, para todos os campos de atuao

    do profissional de EF. E ntido que ao longo do desenvolvi

    mento do campo acadmico da EF2nem sempre foi esse o

    entendimento, muito ao contrrio, os limites deste campo

    sempre estiveram difusos (e confusos). Assim, embora parta

    da posio acima aclarada, ser preciso, para analisar a

    construo do campo acadmico EF, adentrar e enfocar as

    produes que se colocam como pertencentes ao campo,

    mas que partem de uma outra viso de quais so seus con

    tornos.

    As caractersticas da teorizao na Educao Fsica

    O surgimento ou a incorporao de prticas corporais

    nos currculos escolares na Europa no sculo XVIII e princi

    palmente XIX foi precedida e portanto resultou de uma srie

    de mudanas e desenvolvimentos no mbito da medicina e

    da prpria pedagogia3. Na medicina, os avanos provoca

    ram uma valorizao da atividade fsica, como elemento

    fomentador e garantidor de sade, e, na pedagogia, a acei

    tao crescente de uma viso de homem calcada na cincia,

    2 Coloco aspas exatamente para chamar a ateno de que uma denominao

    provisria, porque concorrente com denominaes (e propostas) como as de Cin

    cias do Esporte, Cincia do Movimento Humano ou Cincia da Motricidade

    Humana.

    3 Essas mudanas esto ancoradas no complexo processo de mudanas societrias

    mais amplas, mas que aqui no sero discutidas.

    basicamente nas cincias naturais, levou a se fundamentar a

    propriedade das prticas corporais pertencerem ao currculo

    escolar (Cachay, 1988). O sculo XIX vai ser o sculo da

    sistematizao dos chamados mtodos ginsticos cujo dis

    curso cientfico fundamentador era predominantemente de

    rivado das cincias biolgicas, sendo os intelectuais que cons

    truram esse discurso do campo mdico e tambm pedag

    gico, sendo, neste ltimo caso, a fundamentao tambm

    fortemente marcada por pressupostos biolgicos. Outra ins

    tituio importante e que foi cadinho da elaborao terica da EF a militar.

    Assim, as estruturas de pensamento, com seus pressu

    postos cientficos e filosficos, estavam ancoradas tanto na

    instituio mdica quanto na militar, mas tambm na pr

    pria pedagogia. Neste sentido interessante a hiptese le

    vantada por Ferreira Neto (1999), de que, no caso brasileiro,

    a instituio militar construiu, nas dcadas de 30 e 40 deste

    sculo, um projeto de EF para o pas, articulado com um

    projeto para a educao brasileira como um todo.

    Sem adentrar aos detalhes dessa produo de forma

    diferenciada, como alis seria necessrio, gostaria apenas

    de destacar uma sua caracterstica que julgo ser possvel

    identificar. Refiro-me ao fato de que a teorizao da ginsti

    ca escolar era realizada a partir de um olhar pedaggico

    (mdico-pedaggico, moral-pedaggico), ou seja, as prti

    cas corporais eram construdas e vistas como instrumentos

    para a educao para a sade e para a educao moral.

    Teorizar4 era fundamentar uma prtica pedaggica envol

    vendo prticas corporais, embora com base em um arcabouo

    4 E importante ressalvar que os intelectuais ativos no mbito da ginstica escolar ou EF trabalhavam mais na perspectiva da recepo dos mtodos ginsticos do que na

    construo fundamentada destes. Quem sabe a nica iniciativa neste sentido na poca tenha sido o concurso promovido em 1942 para a elaborao de um mtodo nacional de EF (Ministrio da Educao e da Sade, 1952).

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  • terico-metodolgico marcadamente biolgico. Outra carac

    terstica a de que essa teorizao era realizada, necessaria

    mente, por intelectuais de outros campos (medicina, foras

    armadas, pedagogia, cincias polticas), uma vez que o campo

    acadmico EF (ou ginstica escolar) no havia ainda se

    constitudo. Isto passa a se realizar com a formao em nvel

    de terceiro grau, de profissionais civis de EF, bem como com

    a afirmao da EF enquanto curso de formao de professo

    res, nas instituies superiores de ensino.

    As caractersticas da formao de instrutores de gins

    tica, inicialmente, e de professores de EF, mais recentemen

    te, fortemente marcada pela idia de treinamento atravs

    da execuo de movimentos, fizeram retardar o apareci

    mento do intelectual da EF. No me refiro aqui ao intelectual

    no singular, mas, sim, ao agente social pertencente a um

    campo acadmico capaz e instrumentalizado para construir

    teoria que fundamente a prtica pedaggica em EF. Exis

    tem indicadores de que os intelectuais que pensaram a EF

    brasileira, neste perodo, trouxeram/adquiriram o instrumental

    para tanto em outros campos, ou seja, o campo da EF no

    dispunha dos meios para teorizar sua prtica. De qualquer

    forma o discurso, a teorizao neste campo emergente, era,

    at a dcada de 60, marcadamente de carter pedaggico.

    As Cincias do Esporte e a despedagogizao do teorizar em Educao Fsica

    Se nas suas origens, no Brasil, e at aproximadamente

    a dcada de 60 o discurso no mbito da EF era marcado

    pelo vis pedaggico (de tom muitas vezes fortemente

    normativo), a partir de ento passa a ganhar espao um

    teorizar cientificista. Logo levantou-se a questo se a EF

    '"' 8 l ,,.

    era uma cincia ou uma disciplina acadmica ou cientfica.

    Questo levantada muito em funo de uma presso exter

    na para que a EF se legitimasse no campo cientfico, que

    tem nas universidades seu locus privilegiado.

    Fator determinante para essa nova onda cientificista

    na EF, no entanto, foi o enorme desenvolvimento que so

    freu, aps a II Guerra Mundial, o fenmeno esportivo e como

    ele foi absorvido ou se imps EF.

    As dcadas de 60 e 70 so cruciais para o campo

    acadmico da EF e isto no somente no caso do Brasil.

    Alis, no Brasil, esse movimento apresenta um atraso de

    quase uma dcada em relao aos pases capitalistas desen

    volvidos. Whitson e Macintosh (1990), retratam como, no

    Canad, nas dcadas de 60 e 70, o discurso humanista da

    EF foi substitudo por um outro, de tipo cientificista, com

    base nas Cincias do Esporte (CE) ou Cincias do Movimen

    to Humano, sob a influncia dos EUA. Willimczik (1987),

    por outro lado, analisando o desenvolvimento da Cincia

    Desportiva (Sportwissenschaft) na Alemanha, afirma que a

    discusso terico-cientfica naquele pas sobre a questo do

    objeto desta rea, centrou-se no perodo de 1935 a 1970,

    na contraposio entre teoria da EF (Leibeserziehung) e te

    oria dos exerccios corporais (Leibesbungen). Mas, em pri

    meiro plano, o objeto era visto como um objeto pedaggico.

    No final dos anos 60 se imps a denominao Cincia

    Desportiva e isso, segundo o autor, em funo da tendncia

    internacional nesse sentido, bem como do fato de que o

    esporte tornou-se o fenmeno dominante nesta rea. Dietrich

    e Landau (1987, p. 384s.) vo alm, afirmando que o con

    ceito de pedagogia desportiva (Sportpdagogik) determinou

    o fim da poca do conceito de teoria da EF (Leibeserziehung)

    com suas concepes orientadas nas teorias da educao.

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  • Alm disso, tambm a pedagogia desportiva, como outras

    subdisciplinas da Cincia Desportiva, vo ser funcionalizadas

    a partir dos interesses da instituio desportiva.

    Podemos perceber ento pelas anlises de Greendorfer

    (1987), Whitson e Macintosh (1990), Willimczik (1987) e

    Dietrich e Landau (1987), que tanto na Alemanha como no

    Canad e nos EUA, nas dcadas de 60 e 70, a EF esteve

    orientada para a melhoria do desempenho esportivo no pas5.

    O Diagnstico da EF/Desportos no Brasil (Costa, 1971)

    apontou uma deficincia no mbito da medicina desportiva,

    considerada uma das razes da deficincia da rea. A partir

    da investimentos foram orientados para melhorar o nvel de

    desenvolvimento cientfica da rea, como o incentivo

    ps-graduao e os investimentos em laboratrios de fisiolo

    gia do exerccio. Nesse contexto fundada, no final dos

    anos 70, uma nova entidade cientfica, o Colgio Brasileiro

    de Cincias do Esporte (CBCE).

    A produo acadmica volta-se para o fenmeno es

    portivo. a importncia social e poltica desse fenmeno

    que faz parecer legtimo o investimento em cincia neste

    campo. Por sua vez, aqueles que atuam no campo ou tem

    interfaces com ele privilegiam o tema do esporte porque

    ele que oferece as melhores possibilidades de acumulao

    de capital simblico por via de seu tratamento cientfico.

    So pesquisas que dele se ocupam que tm maiores chances

    de serem reconhecidas no campo e fora dele6. Ou seja, a

    importncia poltica e social do fenmeno esportivo (ou do

    5 Evidncias disso podem ser encontradas nos documentos: Diagnstico da EF e dos

    Desportos no Brasil (Costa, 1971); Plano Nacional de EF e Desportos 1976-1979

    (Brasil, 1976) e era Gonalves, J. A. P. Subsdios para implantao de uma poltica

    nacional de desportos. Braslia, 1971, entre outros.

    6 Como lembra Bourdieu (1983, p. 124), intil distinguir entre determinaes'propriamente cientficas e as determinaes propriamente sociais das prticas es

    sencialmente sobredeterminadas.

    desempenho esportivo do pas em nvel internacional) que

    confere legitimidade ao prprio campo acadmico da EF ou

    das Cincias do Esporte7 ou EF e Cincias do Esporte (EF & CE).

    E nesse contexto que se permite afirmar a EF nas

    universidades, que se permite um discurso cientfico na rea,

    com reivindicao conseqente de cursos de ps-graduao,

    simpsios cientficos, entidades cientficas, financiamento de

    pesquisas cientficas, estruturao de laboratrios de pesqui

    sa, etc., que forjado um novo agente social, o intelectual

    da EF, ou seja, intelectual com formao original em EF e

    que agora almeja tambm a prtica cientfica, isto , reivin

    dica e se lana prtica de teorizar (cientificamente) so

    bre... Bem, qual o objeto deste teorizar? Em princpio o

    objeto construdo ou ganho enfocando o fenmeno esporti

    vo e a problemtica central a melhoria da performance esportiva.

    A partir de 1970 a EF colocada explicitamente e

    planejadamente a servio do sistema esportivo, desempe

    nhando o papel de base da pirmide, sistema esse que pos

    sua como culminncia a alta performance esportiva. Plane

    jou-se constituir a EF como elemento do sistema esportivo.

    EF e esporte ou EF/esporte deveriam elevar o nvel de apti

    do fsica da populao.

    O campo da EF/CE permeado, nas dcadas de 70 e

    80, por profissionais de diferentes disciplinas. Ele

    pluridisciplinar: mdicos, psiclogos, socilogos, professores

    de EF, etc. .importante destacar, no entanto, que o teorizar

    7 Segundo Paiva (1994), a iniciativa de elevar a profisso de EF condio de

    Cincias do Esporte tem seu pice na publicao do editorial da RBCE 2(2), onde

    se l: o professor de EF no pode mais ser representado como um homem forte e

    de boa vontade [...]: em resumo, ele hoje no mais o professor de ginstica, maso mestre em cincias do esporte.

    nr-

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  • de carter cientificista vai-se dar fundamentalmente a partir

    das cincias-me, como a fisiologia, a psicologia, etc. como

    ainda hoje diagnosticam Gaya (1994), Greendorfer (1987) e

    Willimczik (1987), com tendncias especializao a partir

    de subdisciplinas. Ora, o profissional de EF, num primeiro

    momento, premido pela busca de reconhecimento no e para

    o campo, vincula-se a uma especialidade ou a uma

    subdisciplina das Cincias do Esporte (ou da EF ou ainda da

    Cincia do Movimento Humano) e torna-se um cientista

    no mbito da fisiologia do exerccio, da biomecnica, da

    sociologia do esporte e no um cientista da EF. fcil perce

    ber que a EF enquanto prtica pedaggica quase que desa

    parece do horizonte de preocupaes deste teorizar, com

    exceo das preocupaes como as que buscavam identifi

    car o mtodo mais eficiente para ensinar determinada des

    treza (esportiva).

    O discurso pedaggico que havia caracterizado este

    campo em construo, at mais ou menos a dcada de 60,

    deslocado para um plano secundrio - s no final da dca

    da de 80 que as pesquisas mostram que h um aumento

    crescente das pesquisas na rea que vai ser denominada, no

    interior das Cincias do Esporte, de pedaggica (Matsudo,

    1983; Gaya, 1994).

    Isso acontece porque o sistema esportivo somente apela

    para a categoria educao como forma de buscar legitimida

    de social. Estando, no entanto, orientado por outros princ

    pios, permanece a questo educacional apenas como recur

    so retrico. O que importa mesmo a medalha! Isso no

    significa que ele no tenha efeito educativo, ao contrrio.

    Significa, isto sim, que a lgica que define as aes no cam

    po esportivo (que determina o que est em jogo no campo)

    ignora e no influenciada pelo resultado educativo o

    campo ou o sistema esportivo indiferente ao resultado que

    produz em termos educacionais. As aes no sistema espor

    tivo no sero redefinidas em funo de um melhor ou pior

    resultado educacional e, sim, em funo de um melhor ou pior resultado esportivo8.

    Assim, o esporte se imps EF, como contedo e

    como sentido da prpria EF (Bracht, 1992). O esporte

    que legitima a EF porque faz coincidir seu discurso com o

    daquela no que diz respeito ao seu papel nos planos

    educativo e da sade - o esporte se imps tambm enquan

    to tema e orientador da teorizao neste campo acadmico

    em construo. Em suma, o discurso pedaggico na EF foi

    quase que sufocado pelo discurso da performance esportiva;

    literalmente afogado pela importncia sociopoltica das me

    dalhas olmpicas, ou pelo desejo, tornado pblico, por medalhas.

    Chegou-se aqui a uma situao que, na esteira de

    Bourdieu (1996), poderamos denominar de subordinao

    estrutural, com o campo acadmico da EF/CE usufruindo

    de quase nenhuma autonomia para determinar a problem

    tica terica a ser privilegiada no campo. Essa tendncia

    funcionalizao deste campo acadmico a partir dos interes

    ses da instituio esportiva tambm foi detectada por Whitson

    e Macintosh (1990) e Dietrich e Landau (1987) para os ca

    sos do Canad e Alemanha, respectivamente.

    8 Aos poucos o sistema esportivo vai sentindo-se forte o suficiente para abandonar o discurso da promoo da educao e da sade. O presidente da Confederao

    Brasileira de Natao, Coaracy Nunes Filho, afirmou, em entrevista revista Veja, que educao no tem nada a ver com esporte, mesmo que esporte tambm seja educao (Nunes Filho, 1995, p.8).

    ....n r *

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    FamiliaNotaBusca por reconhecimento no mbito cientfico. Esvaziamento do teorizar sobre a prtica pedaggica.

    FamiliaRealce

    FamiliaNota"subordinao estrutural"

  • Repedagogizando o discurso acadmico no campo da Educao Fsica

    No mesmo processo de busca de reconhecimento aca

    dmico da EF e dos seus profissionais no mbito universit

    rio, alguns destes freqentaram cursos de ps-graduao

    (mestrado) em programas da rea da Educao (filosofia da

    educao, principalmente)9.

    a partir do contato, no com as Cincias do Esporte,

    e sim com o debate pedaggico brasileiro das dcadas de 70

    e 80, que profissionais do campo da EF passam a construir

    objetos de estudo a partir do vis pedaggico. Independen

    temente da matriz terica que esses profissionais vo ado

    tar, o que caracteriza suas reflexes que esto orientadas

    pelas cincias humanas e sociais e isso por via do discurso

    pedaggico10.

    Essa vertente vai representar no s um plo de resis

    tncia poltica no campo, defendendo interesses no-domi-

    nantes, interesses alis ligados aos do sistema esportivo, mas,

    tambm, resistncia acadmica ao cientificismo das Cin

    cias do Esporte. Mais recentemente alguns autores (Coletivo

    de Autores, 1992; Bracht, 1992; Betti, 1992) vm refor

    ando a necessidade de construo de uma teoria da EF,

    entendida esta como uma prtica pedaggica, ou seja, uma

    repedagogizao do teorizar na EF, uma vez que essa prti

    ca pedaggica foi quase que alijada do campo enquanto

    objeto. A construo de um corpo terico com base num

    discurso pedaggico, que possa filtrar e reconverter, luz da

    lgica desse campo, a influncia externa do sistema es

    9 Alguns dos mais influentes na rea: Vtor Marinho de Oliveira, Joo Paulo Subir

    Medina, Apolnio Abadio do Carmo, Lino Castellani Filho e Carmen Lcia Soares.

    10 Isso tambm vai redundar numa certa fragilidade terica dessa produo.

    portivo, elemento importante para a construo da auto

    nomia (pedaggica) da EF. claro que, no momento em que

    a educao e o magistrio esto numa situao catica em

    nosso pas, s mesmo pensando na perspectiva da resistn

    cia possvel alimentar essa necessidade.

    Consideraes finais (perspectivas)

    O campo acadmico da EF ou da EF/CE11, como

    convencionou-se cham-la no interior do CBCE, hoje cru

    zado e recortado por basicamente trs perspectivas diferen

    tes de caracterizao ou de delimitao: a) tentativa de deli

    mitao de um campo acadmico que teorize a prtica pe

    daggica que tematiza manifestaes da cultura corporal de

    movimento, ou seja, o teorizar a estaria voltado para a cons

    truo de uma teoria da EF, entendida enquanto uma prti

    ca pedaggica; b) tentativa de construir um campo interdis-

    ciplinar a partir das Cincias do Esporte, que, em alguns

    casos (Gaya, 1994), reivindica uma Cincia do Esporte vol

    tada para as necessidades da prtica esportiva; c) a tentati

    va de construo de uma nova cincia, a Cincia da Motri

    cidade Humana (Srgio, 1989; Tojal, 1994; Cavalcanti,

    1994). O que importante e interessante ressaltar que

    todas essas perspectivas vo buscar a tradio e as institui

    es da original EF (ginstica escolar) - se colocam como herdeiras desta.

    Existe uma forte presso, j que a total instrumentali

    zao da EF no foi possvel em funo de uma resistncia

    interna (com desdobramentos acadmico-cientficos e polti-

    11 No CNPq a rea tratada como a subrea EF e faz parte das cincias da sade. Na Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC) a rea denominada de

    Cincias do Esporte/Motricidade Humana e faz parte das cincias aplicadas.

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaDuas frentes:resistncia poltica; resistncia acadmica ao cientificismo.

  • cos), no sentido da construo de um campo acadmico liga

    do/voltado ao esporte. Existem sinais de que se est cons

    truindo um discurso para justificar o surgimento de um cam

    po acadmico autnomo ligado ao esporte - que no estaria

    subordinado aos cdigos da pedagogia como o caso da EF. A reivindicao de uma cincia do esporte tem como base a

    importncia sociopoltica (e econmica) do esporte e a contribuio da cincia para o seu progresso.

    Parece-nos claro, por exemplo, que os cursos de bacharelado em esporte sejam j o resultado dessa presso (do

    mercado). Os dirigentes esportivos, cada vez mais claramen

    te, reivindicam uma formao universitria especfica para

    os profissionais do campo esportivo, argumentando inclusive

    que as atuais faculdades de EF no suprem as suas necessidades: Quero uma universidade do esporte para formar

    tcnicos, em vez das atuais faculdades de EF (Nuzman, 1996, p. 8).

    Outro elemento indicador o de que o ex-ministro extradordinrio dos Desportos, Edson Arantes do Nascimen

    to (Pel), reivindicou uma linha de financiamento de pesqui

    sas especfica para as Cincias do Esporte junto ao CNPq.

    Alm disso, o Instituto Brasileiro do Desenvolvimento do

    Desporto (INDESP) dispe de dotao oramentria para pesquisas e publicaes das Cincias do Esporte.

    Se, por um lado, isso indica uma autonomizao do

    campo acadmico da EF em relao ao sistema esportivo - e indica no sentido do surgimento de um campo acadmico

    que estaria voltado para o teorizar especificamente desta

    prtica social, sem ter como vis central o pedaggico - coloca questes para a EF como a de obter, urgentemente, le

    gitimidade no interior do campo pedaggico, enquanto prtica e disciplina acadmicas, sob pena de ter sua prpria existncia ameaada e isso no simplesmente no sentido da ex

    tino, mas de simples substituio pelo esporte (na escola).

    A EPISTEMOLOGIA DA EDUCAO FSICA1

    Quando abordamos o tema da epistemologia da Edu

    cao Fsica (EF) assalta-nos uma srie de questes que tem

    aparecido muito frequentemente em nossas discusses nos

    ltimos anos, afetando, inclusive, a questo da (crise de)

    identidade da EF. Algumas dessas questes so:

    - a EF uma cincia ou uma disciplina cientfica?

    - Deve a EF almejar/pretender ser uma cincia? E essa uma

    reivindicao legtima? Essa pretenso orginria do inte

    rior da prpria EF ou de fora dela?

    - Qual a epistme predominante na EF? E a cientfica? A

    prtica cientfica ligada EF filia-se aos princpios das ci

    ncias naturais ou aos das cincias sociais e humanas? Ou

    ento, com qual concepo de cincia opera a EF?

    - Quais so as especificidades ou peculariedades da questo

    epistemolgica da EF?

    - Quais so os limites e as possibilidades do paradigma cien

    tfico para fundamentar a prtica do profissional da EF?

    1 Este texto (Bracht, 1997) foi originalmente publicado no V. 5 de Ensaios: Educao

    Fsica e Esporte, de Carvalho & Maia (p. 5-17).

    FamiliaRealce

  • - a interdisciplinaridade cientfica uma imposio produ

    o do conhecimento em EF?

    claro que o conjunto das questes acima listadas no

    esgota os questionamentos possveis, mas pode dar uma

    idia da complexidade da questo.

    Quero iniciar com a pergunta sobre se a EF uma

    cincia. Essa questo assumiu importncia no debate em

    torno da crise de identidade da EF, porque levantou-se a

    hiptese (ou a tese) de que a superao dessa crise (que

    seria de legitimidade tambm no plano acadmico universi

    trio) viria com a sua afirmao como cincia, ou seja, com

    a definio de objeto, mtodo e linguagem prprios.

    0 campo acadmico da Educao Fsica

    Para tratar dessa questo preciso resgatar um pouco

    o processo de construo do campo acadmico da EF. A

    chamada EF moderna filha da modernidade. Isso significa

    que ela surge num quadro social em que a racionalidade

    cientfica se afirma como a forma correta de ler a realidade,

    em que o Estado burgus se afirma como forma legtima de

    organizao do poder e a economia capitalista baseada na

    indstria emerge e se consolida. A EF moderna sofre a influn

    cia, desde seus primeiros passos, do pensamento cientfico.

    Vale o princpio: exercitar cientificamente o corpo, ou exer

    citar o corpo de acordo com o conhecimento cientfico a

    respeito. Ling e Amoros esmeraram-se em construir seus

    mtodos ginsticos em estreita consonncia com os conheci

    mentos oriundos da fisiologia e da anatomia humana. Ling

    falava inclusive, em movimento racional com economia de

    esforo. Ou seja, desde logo, esta prtica, qual seja, este

    conjunto sistematizado de exercitaes corporais, buscou fun

    " 28 *'

    damentar-se no conhecimento das disciplinas cientficas emer

    gentes (como a fsica orgnica = fisiologia). Portanto, no

    gratuita a presena influente da instituio mdica na EF

    (ver a respeito Cachay, 1988, e Soares, 1994).

    Num primeiro momento, em funo do papel atribu

    do EF (na perspectiva higienista), o aporte de conhecimen

    tos cientficos vinha exatamente das cincias biolgicas. O

    corpo e as atividades fsicas eram estudados como fatos/

    fenmenos biolgicos2. Por isso mesmo, falava-se menos em

    movimento humano e mais em atividade fsica. O que

    importante ressaltar que o campo da EF era marcado me

    nos como um campo acadmico de produo do conheci

    mento, e mais, como de aplicao do conhecimento (cient

    fico). Os mtodos ginsticos eram construdos aplicando-se

    os conhecimentos da anatomia, da fisiologia e da medicina

    ao campo dos exerccios fsicos.

    Quando a EF passou a se afirmar no mbito dos siste

    mas de ensino como componente curricular, ascendendo ao

    ensino superior (em alguns casos universitrio), para a for

    mao de professores, j um nmero bastante grande de

    disciplinas se ocupava do estudo do corpo/movimento hu

    mano ou de suas objetivaes culturais como o esporte.

    Alis, no esqueamos de que o esporte, como fenmeno

    social, teve papel importante no reconhecimento da necessi

    dade de formao de profissionais em nvel universitrio e

    da necessidade da produo do conhecimento cientfico nes

    se mbito. Em grande parte foi sua importncia sociopoltica

    que determinou o surgimento de organizaes cientficas de Cincias do Esporte.

    2 No estou desconhecendo ou ignorando a influncia grega sobre alguns filantropos,que no final do sculo XVIII e no incio do XIX buscavam legitimar a ginstica ou a exercitao corporal nas suas escolas a partir do ideal da harmonia entre corpo e

    esprito. Apesar dessa influncia, vrios estudos mostram (Cachay, 1988; Krger,

    1990) que as cincias naturais logo se impuseram como elemento fundamentador, como base legitimadora dessas prticas.

  • O que observvamos naquele momento, e aqui estou

    falando basicamente das dcadas de 60 e 70 deste sculo

    (em alguns pases mais cedo, em outros mais tarde), era,

    por um lado, o surgimento e, por outro, a consolidao de

    uma srie de subdisciplinas ligadas epistemologicamente s

    tradicionais disciplinas cientficas: fisiologia do esforo, a

    biomecnica (do esporte), a psicologia do esporte, a sociolo

    gia do esporte, etc.

    J aqui devo dizer que entendo a EF como aquela pr

    tica pedaggica que trata/tematiza as manifestaes da nossa

    cultura corporal e que essa prtica busca fundamentar-se em

    conhecimentos cientficos, oferecidos pelas abordagens das

    diferentes disciplinas. Ou seja, o campo acadmico da EF

    vem se constituindo a partir da absoro e/ou incorporao

    de prticas cientficas fortemente marcadas por abordagens

    monodisciplinares do fenmeno do movimento humano ou

    da atividade fsica3.

    Ora, o fato do campo acadmico EF incorporar cada

    vez mais intensamente as prticas cientficas, no s conhe

    cimento cientfico (isso no Brasil se d mais intensamente na

    dcada de 70), determinou a criao de entidades cientfi

    cas prprias, realizao de eventos cientficos prprios, cria

    o de cursos de ps-graduao, definio de programas de

    apoio pesquisa, etc. No entanto, na produo do conheci

    mento predomina o enfoque disciplinar ou monodisciplinar

    determinado pela chamada disciplina-me. Um pouco da

    crise de identidade da EF vem da, do desejo de tornar-se

    cincia, e da constatao de sua dependncia de outras dis

    ciplinas cientficas (a EF colonizada epistemologicamente

    3 Existem indicadores de que l onde a EF desde logo obteve o status universitrio,

    a incorporao das prticas cientficas ao campo processou-se mais rpida e intensamente. Em alguns pases, como a Argentina, o fato da formao de professores de

    EF dar-se em cursos no-universitrios tem dificultado tal processo; por exemplo, naquele pas no existem at hoje cursos de mestrado na rea da EF.

    por outras disciplinas). Assim, no processo de sua constitui

    o, o campo acadmico EF fragmentou-se; as lnguas cien

    tficas faladas so diferenciadas, especficas. No campo da

    EF, no que diz respeito produo do conhecimento cientfi

    co, surgiram os especialistas, no em EF, mas, sim, em

    fisiologia do exerccio, em biomecnica, em psicologia do

    esporte, em aprendizagem motora, em sociologia do espor

    te, etc.4. Os professores de EF, enquanto cientistas, pas

    saram a se identificar como especialistas em fisiologia, em

    biomecnica, etc. e no em EF. Em funo do processo de

    especializao no demorou a instalar-se no campo um di

    logo de surdos. Dada a importncia e o status que a cincia

    goza na sociedade e principalmente no meio acadmico, a

    EF coloca como meta tornar-se ela prpria uma cincia.

    Passa ento, a sofrer de certo tipo de complexo de dipo;

    quer ser mas no pode ser, no consegue ser (no pode

    consumar o ato). Esse complexo to grande que alguns

    entenderam ter surgido, como que de dentro do campo da

    EF, uma nova cincia, a Cincia da Motricidade Humana,

    para alguns, ou a Cincia do Movimento Humano, para ou

    tros. Se essa se concretizasse, finalmente os professores de

    EF poderiam dizer-se cientistas, poderiam dizer-se perten

    centes a um campo cientfico, o da Cincia da Motricidade

    Humana.

    Por outro lado, uma forte presso para a cientifizao

    da EF vem das chamadas Cincias do Esporte. E exatamen

    te quando a EF deixa de se apresentar como ginstica (m

    todos ginsticos) e consolida-se o esporte enquanto seu con

    tedo maior, que as chamadas Cincias do Esporte insta

    lam-se no campo, inicialmente chamado de EF. Hoje, no

    possvel distinguir os campos de produo do conhecimento

    4 E interessante notar que anlises recentes feitas por importantes autores do campo

    da pedagogia tambm identificam esse problema em seu campo (Arroyo, 1998;

    Brando, 1998; Libneo, 1996).

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    FamiliaNotacolonizao epistemolgica

  • da EF e das Cincias do Esporte. Publicam-se os mesmos

    trabalhos em revistas de EF e/ou de Cincias do Esporte,

    apresentam-se trabalhos em congressos de um e de outro, sem qualquer discriminao ou alterao. A EF, nesse mbi

    to, costuma ser tratada como pedagogia do esporte.

    Portanto, embora sejam profissionais de EF e no mais

    apenas bilogos, mdicos, fisilogos, psiclogos e socilogos

    que pesquisam em torno do movimento humano e suas objetivaes culturais, a situao concreta que essas pesquisas tm sua identidade epistemolgica ancorada nas cin-

    cias-me e no na EF, ou seja, a EF no capaz de ofere

    cer/fornecer uma identidade epistemolgica5 prpria a es

    sas pesquisas. A pesquisa em fisiologia do exerccio no

    cincia da EF e, sim, cincia fisiolgica, assim como histria

    do esporte no Cincia do Esporte e, sim, cincia histrica.

    Aqui, neste mbito, ocorreu um equvoco que reputo

    influncia de uma concepo empirista ingnua de cincia. Refiro-me ao fato de confundirmos objeto cientfico com al

    gum fato/fenmeno ou recorte da realidade: ou seja, o en

    tendimento de que ter um objeto prprio seria o mesmo que

    identificar um fenmeno do mundo concreto/emprico que seria propriedade dessa cincia ou disciplina. O movimento

    humano por si s no um objeto cientfico, so antes os

    problemas que lhe so colocados sob uma nova perspectiva

    que podem configurar um novo campo do conhecimento. Objeto cientfico algo construdo a partir de determinada abordagem.

    Defendo a idia de que a EF no uma cincia. No

    entanto, est interessada na cincia, ou nas explicaes cien

    tficas. A EF uma prtica de interveno e o que a carac

    5 Identidade epistemolgica significa a forma prpria com que cada disciplina cientfica interroga e explica a realidade, o que determinado pelo tipo de problema que

    levanta, pelos mtodos de investigao e pela linguagem que desenvolveu e utiliza.

    teriza a inteno pedaggica com que trata um contedo

    que configurado/retirado do universo da cultura corporal

    de movimento. Ou seja, ns, da EF, interrogamos o movi-

    mentar-se humano sob a tica do pedaggico.

    Acredito que, influenciados exatamente pela presso

    cientificista, sempre entendemos a definio de nosso obje

    to como a definio de um objeto cientfico. Ora, o objeto

    de uma prtica pedaggica no tem as mesmas caractersti

    cas fundantes de um objeto de uma cincia. O objeto da EF

    enquanto prtica pedaggica retirado do mundo da cultura

    corporal/movimento, ou seja, selecionado a partir de crit

    rios variveis, ou seja, dependentes de uma teoria pedaggi

    ca, desse universo. Podemos chegar ao ponto de configurar

    nosso objeto de forma mais abstrata e a diramos ser a

    cultura corporal de movimento.

    A EF est interessada nas explicaes, compreenses

    e interpretaes sobre as objetivaes culturais do movimen

    to humano fornecidas pela cincia, com o objetivo de funda

    mentar sua prtica, e isso porque ns, da EF, estamos con

    frontados com a necessidade de constantemente tomar deci

    ses sobre como agir. Por exemplo: decises sobre o conte

    do dos meus planos de ensino; sobre a quantidade e a inten

    sidade de exerccios; sobre mtodo de ensino a adotar

    para ensinar um esporte; sobre a forma de reagir de frente a

    uma atitude agressiva de um aluno, etc. Com base em qual

    conhecimento eu tomo essas decises? Como ter certeza

    de que as decises que tomei so as corretas?

    Bem, em princpio achamos que a cincia nos auxilia

    ria nessa tarefa. H (ou houve) o entendimento de que a

    cincia faria com que tivssemos respostas mais seguras/

    verdadeiras para essas questes. Mas, o que conhecer cien

    tificamente a realidade? Por que ela nos ofereceria um co

    nhecimento ou uma base mais segura?

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  • A cincia moderna parte do pressuposto de que as

    explicaes da realidade esto contidas nela mesma, ou seja,

    rompendo com o pensamento mtico, entende que as expli

    caes do que acontece na natureza no precisam apelar

    para foras externas a ela (como a vontade divina). Existem

    leis internas que determinam o movimento das coisas. A

    descoberta dessas leis permite prever o comportamento dos

    corpos ou das coisas de forma universal. Ou seja, a realidade

    contm regularidades e possui uma ordem. A cincia est

    interessada na regularidade, na rotina, no que comum na

    realidade, para control-la (desvelar, desvendar a realidade,

    descobrir as leis que a regem).

    Por exemplo: eu posso prever o comportamento da

    queda de um dardo, porque sobre qualquer corpo fsico age

    uma lei universal, que a lei da gravidade. Posso prever,

    com relativa preciso, a repercusso de um treinamento de

    corridas contnuas em determinada intensidade sobre a con

    dio aerbica de uma pessoa, porque estou de posse de

    uma teoria (que expressa uma lei ou leis) construda no m

    bito da fisiologia, que diz que, quando uma pessoa subme

    tida a uma atividade X, o organismo reage de forma Y.

    Teorias expressam leis que permitem prever o comporta

    mento da realidade e assim nela intervir e/ou control-la.

    Buscou-se aplicar esses mesmos princpios para o co

    nhecimento cientfico da realidade social e do comporta

    mento humano. Durkheim dizia que a realidade social devia

    ser estudada como coisa e Comte chamava a atual socio

    logia de fsica social. No entanto, movimentos acadmicos

    logo questionaram a possibilidade e a validade da aplicao

    desses princpios cientficos ao estudo da realidade social

    e humana. Dilthey, por exemplo, entendia que as humani

    dades (Geisteswissenschaften) devem operar com a catego

    ria da compreenso, ao passo que as cincias naturais

    (Naturwissenschaften) operam com a categoria da explica

    o. Compreender (verstehen) uma operao diferente da

    de explicar (erklren) e, para o caso das humanidades, o adequado o primeiro: compreender o sentido/significado subjetivo das condutas humanas.

    Tem tambm leis (universais) capazes de explicar o

    comportamento humano, regularidades sociais/histricas do mesmo tipo das presentes na natureza? O debate em torno de um possvel dualismo metodolgico ou epistemolgico entre as cincias naturais e as cincias sociais e humanas continua. Para ns interessa a pergunta: o estudo do movimento humano deve ser feito a partir dos princpios das cincias naturais ou das cincias sociais e humanas, ou, ainda, de ambas?6

    Parece que o mais importante ter a capacidade de entender o tipo de conhecimento do movimentar-se humano que uma e outra abordagem possibilita, as possibilidades e limitaes de cada uma das abordagens. Toda abordagem cientfica pr-conceituosa, portanto, oferece explicaes/ interpretaes da realidade que so relativas (a um ponto de vista) e, por conseqncia, limitadas pelo aparato terico- metodolgico prprio daquela disciplina. Por exemplo: quando fao uso do instrumental terico-metodolgico da biomecnica para estudar o movimento humano, o conhecimento produzido falar algo do movimento humano mas se calar em relao a uma srie de aspectos desse mesmo movimento.

    Assim, no faro parte desse conhecimento os aspectos ligados afetividade do sujeito que se move, os aspectos sociais ligados ao contexto em que se realiza o movimento e que o influenciam, etc. O mesmo acontece em relao s

    outras disciplinas cientficas - no existe uma abordagem

    global que esgote a realidade.

    6 Alis, M. Srgio coloca a Cincia da Motricidade Humana no mbito das cincias

    do homem, mas, em momento algum reporta-se ao que isso, epistemologicamente, significa; pelo menos no se refere ao aludido debate epistemolgico e no toma

    posio a respeito, de maneira que fica-se sem saber das conseqncias (metodo

    lgicas) que tal vinculao/classificao teria.

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

  • Essa caracterstica do saber cientfico - toda abordagem ser pr-conceituosa e relativa a um ponto de vista -

    impe, para o caso da EF, a questo da interdisciplinaridade. Entendo que a questo da interdisciplinaridade se impe ao campo acadmico da EF. Para a EF (para fundamentar essa prtica) no basta somar o conhecimento da biomecnica, com o da fisiologia do exerccio, com o da psicologia. H a necessidade de operar uma sntese ou snteses, o que diferente da soma das partes (ao mesmo tempo, mais que a soma das partes e menos que cada parte, como diria E. Morin, 1993); uma sntese operada a partir das necessidades e dos interesses especficos da EF, da prtica pedaggica em EF (descolonizao cientfica). O que hoje predomina so as problemticas/temticas disciplinares.

    Gostaria de dar um exemplo para demonstrar a necessidade de superar as perspectivas disciplinares. Partirei de uma pergunta: qual o mtodo que devo usar nas aulas para ensinar um esporte, como o volibol? O mtodo sinttico ou o mtodo analtico? Se escuto as pesquisas da aprendizagem motora posso ter a resposta, hipottica, de que o mtodo analtico. Se escuto as pesquisas da fisiologia do exerccio, posso ter a resposta de que o mtodo sinttico (que propicia maior movimentao). Se escuto a sociologia ou a psicologia social, seria, talvez, o mtodo sinttico pela maior possibilidade de contato social. Se atento para a sociologia do currculo questionarei inclusive o prprio esporte enquanto fenmeno cultural que expressa relaes de poder, etc. Qual abordagem devo considerar para minhas decises de professor de EF? Como integrar essas distintas abordagens? E possvel decidir com base no conhecimento discipli

    nar? E possvel decidir sempre no plano da racionalidade

    cientfica?7

    7 Interessante observar que, apesar da flagrante necessidade de mediao entre os saberes disciplinares presentes no campo da EF, os especialistas nas diferentes

    subdisciplinas do nosso campo no conseguem dialogar, ou seja, a partir de sua

    especialidade interagir com outra, como ficou claro no IX Congresso Brasileiro de Cincias do Esporte (Vitria/ES, Set. 95).

    Consideraes finais (problematizaes)

    Para finalizar este captulo gostaria de pontuar algu

    mas problemticas que, considero, devem ser enfrentadas

    pela reflexo espistemolgica do campo da EF.

    Precisamos, por exemplo, analisar a tese da Cincia

    da Motricidade Humana de M. Srgio (1989), como possvel

    fornecedora do estatuto epistemolgico da EF. Adianto mi

    nha posio, embora sem fazer aqui uma anlise mais exaus

    tiva dessa tese: ela no apresenta uma soluo para os pro

    blemas epistemolgicos da EF. Alis, em M. Srgio, a EF

    aparece, em relao Cincia da Motricidade Humana, com

    duas conotaes: ora como a Pr-Cincia da Motricidade

    Humana, e ora como ramo pedaggico dessa cincia. A

    idia ou tese de que a EF a Pr-Cincia da Motricidade

    Humana sustentvel apenas medida que sob essa deno

    minao esse campo acadmico se constituir; resta no en

    tanto, demonstrar que esse constitui-se hoje na forma de

    uma nova disciplina cientfica ou de uma nova cincia. J a

    tese de que a EF8 seria o ramo pedaggico da Cincia da

    Motricidade Humana me parece altamente questionvel. Em

    nenhum momento, alis, os autores que referendam essa

    tese explicam o que significa para a EF (ou Educao Motora)

    ser o ramo pedaggico de uma tal cincia (partindo-se do

    pressuposto de que tal cincia existe). Significa que essa

    prtica pedaggica tematiza os conhecimento oriundos de

    tal cincia? Significa que os fundamentos dessa prtica pe

    daggica vm dessa mesma cincia? As outras cincias

    8 O autor da tese, M. Srgio, prefere denominar a EF de educao motora, Yio que

    seguido por um grupo de professores brasileiros, principalmente atuantes na Facul

    dade de Educao Fsica da UNICAMP. No livro, que foi publicado como resultado de um simpsio sobre educao motora (De Marco, 1995), alguns autores, ao invs

    de falar em educao motora (ex-EF) como ramo pedaggico da Cincia da Motricidade Humana, falam em ramo pedaggico da teoria da motricidade humana, sem justificar, no entanto, o porqu dessa opo por teoria, em vez de cincia.

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaA interdisciplinaridade se justifica pela impossibilidade de, partir de uma "lente nica" abarcar a realidade total do objeto estudado.

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaArgumento contra a cincia da motricidade humana

  • tambm possuem um ramo pedaggico? Por acaso o ensino

    da biologia constitui-se no ramo pedaggico da biologia? O

    que se ensina na biologia o conhecimento biolgico. O que

    se ensinaria na EF ou educao motora? Seria o conheci

    mento da Cincia da Motricidade Humana? Essas so ques

    tes que esto a merecer uma resposta.

    Continua me parecendo mais importante para nosso

    campo acadmico interpretar a EF como prtica pedaggi

    ca. Parlebas (1993) tambm entende que a EF no uma

    cincia e, sim, uma pedagogia das condutas motrizes. En

    tende como objeto especfico da EF as aes motrizes. J,

    Gamboa (1994) situa a EF no mbito do que chama de

    novos campos epistemolgicos, pois, superando a pers

    pectiva de cincia aplicada, tem como caracterstica ser

    uma cincia da e para a ao educativa ou uma cincia da

    ao, como a pedagogia. O autor considera que o eixo da

    sistematizao cientfica (p. 37) e o que lhe fornecer especifici

    dade o movimento/ao do corpo humano (motricidade).

    Entendo que as reflexes de Gamboa (1994) significam um

    avano para a discusso da rea sobre suas questes

    epistemolgicas e isso porque: primeiro, o autor afirma a

    especificidade da EF no plano pedaggico e, com isso, subli

    nha a dimenso de interveno imediata prpria de nosso

    campo; segundo, aponta para novos elementos e a necessi

    dade da interdisciplinaridade.

    Mas, algumas questes precisam ser aprofundadas. Por

    exemplo, sabemos quase nada sobre como realizar a

    interdisciplinaridade (no dispomos de uma epistemologia

    interdisciplinar). Como comenta Parlebas (1993, p. 131),

    se postula que a adio de conhecimentos que provm de

    distintos horizontes vo harmonizar-se numa unidade. Tal

    milagre, porm, no pode produzir-se. Assim, entendo que

    o teorizar especfico da EF deveria concentrar-se exatamen

    te na integrao das diferentes abordagens, seria um teorizar

    sintetizador de conhecimento luz das necessidades espec

    ficas da prtica pedaggica. Vale lembrar que isso ocorre

    tambm com a pedagogia. O que complexifica a questo

    a possvel existncia de um saber prtico ou corporal que

    resiste teorizao, como diz Mauro Betti (1994) em

    instigante artigo. Por outro lado, no possvel ignorar o

    debate em torno das limitaes da racionalidade cientfica (e

    sua crise) e da polmica relao entre o saber ftico e o ti-

    co-normativo, questes re-colocadas pelo ps-modernismo.

    E preciso considerar os limites da prpria racionalidade

    cientfica, quanto ao fornecimento dos fundamentos de nos

    sa prtica. Como sabemos, a prtica pedaggica envolve

    sempre uma dimenso tica de carter normativo, ou seja,

    se a cincia se atm ao ftico, a prtica pedaggica opera

    tambm no plano do contraftico (do dever-ser). Outra di

    menso importante presente no mbito pedaggico a di

    menso esttica. Sem me alongar no assunto, diria que o

    teorizar na EF precisa ultrapassar as limitaes da racionali

    dade cientfica, para integrar no seu teorizar/fazer a dimen

    so do tico e do esttico.

    Assim, o apelo para a cientifizao da EF problem

    tico porque a racionalidade cientfica (tradicional) limitada

    em relao s necessidades de fundamentao de sua prti

    ca - o que indica a superao do modelo tradicional de ra

    cionalidade cientfica (por exemplo, com o projeto da razo

    comunicativa de J. Habermas) - e sofre, ao mesmo tempo,

    o abalo da nova filosofia da cincia que relativista no senti

    do de no reconhecer superioridade na racionalidade cient

    fica de frente s outras formas de conhecer a realidade.

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaA fraqueza da racionalidade cientfica para a EF

  • A PRTICA PEDAGGICA DA EDUCAO FSICA: CONHECIMENTO

    E ESPECIFICIDADE1

    Parece-me que o tema remete a uma questo que

    tornou-se fator de frustrao e, em alguns casos, motivo de

    pesadelos para o professor de Educao Fsica (EF): a to

    propalada crise de identidade da EF, que em muitos mo

    mentos foi entendida como resultado da falta de definio

    do seu objeto, da falta de definio clara de sua especifi

    cidade (identidade no sentido de sua singularidade). Entendo

    que a temtica colocada, em ltima instncia, nos remete a

    essa questo.

    Para adentrar ao tema e colocar minha posio desejo

    fazer, inicialmente, uma demarcao.

    Quando falo em objeto da EF me refiro ao saber

    especfico de que trata essa prtica pedaggica. No estou

    me referindo, portanto, ao objeto de uma prtica cientfica

    especfica - no coloco, para responder a essa questo, as

    exigncias que so feitas para definir o objeto de uma cin

    cia. Essa diferenciao importante porque entendo que

    1 Artigo originalmente publicado na Revista Paulista de Educao Fsica. Supl.2, 1996, p. 23-8.

  • parte das dificuldades na superao da crise de identidade

    advm do fato de se insistir em ver na EF uma disciplina

    cientfica e, mais, como uma disciplina com estatuto episte-

    molgico prprio. Entendo que a especificidade da EF no

    campo acadmico a de que ela se caracteriza, fundamen

    talmente, como prtica pedaggica2, no que concordamos

    com Lovisolo (1995). A necessidade e a reivindicao de

    fundamentar cientificamente a EF que a levou a incor

    porar as prtica cientificas ao seu campo acadmico (o que

    muito diferente de passar a ser uma cincia com estatuto

    epistemolgico prprio). Ento, quando nos referimos ao objeto

    da EF, pensamos num saber especfico, numa tarefa peda

    ggica especfica, cuja transmisso/tematizao e/ou reali

    zao seria atribuio desse espao pedaggico que chama

    mos EF.

    As diferentes concepes do objeto da Educao Fsica

    Feita essa demarcao, vejamos como se entendeu o

    saber prprio da EF ou a sua especificidade. As expres-

    ses-chave para tal identificao foram ou so:

    a) atividade fsica; em alguns casos, atividades fsico-es-

    portivas e recreativas;

    b) movimento humano ou movimento corporal humano,

    motricidade humana ou, ainda, movimento humano

    consciente;

    2 Gamboa (1994) entende que a EF, assim como a pedagogia, estariam situadas no

    que chama de novos campos epistemolgicos, cuja caracterstica especfica seria

    exatamente a dimenso da ao (que estou chamando de interveno"); para esse autor, a EF uma cincia da e para a ao.

    c) cultura corporal, cultura corporal de movimento ou

    cultura de movimento.

    Pretendo defender, aqui, a tese/idia de que, para a

    configurao do saber especfico da EF, devemos recorrer ao

    conceito de cultura corporal de movimento.

    importante termos claro que a definio do objeto da

    EF est relacionada com a funo ou com o papel social a

    ela atribudo e que define, em largos traos, o tipo de conhe

    cimento buscado para sua fundamentao3. Os termos ati

    vidade fsica, e exerccios fsicos so fortemente marca

    dos pela idia de que o papel da EF contribuir para o

    desenvolvimento da aptido fsica e pertencem claramente,

    no plano do conhecimento, ao arcabouo conceituai das dis

    ciplinas cientficas do mbito da biologia, das cincias biol

    gicas4.

    A definio clssica de EF, nessa perspectiva, a que

    a considera como disciplina que, por meio das atividades

    fsicas, promove a educao integral do ser humano - mas,

    a conotao, na prtica, a do desenvolvimento fsico-mo-

    tor ou da aptido fsica, servindo a educao integral do ser

    humano para satisfazer/caracterizar o discurso pedaggico.

    A absoro na EF do discurso da aprendizagem motora,

    do desenvolvimento motor, da psicomotricidade e, mesmo,

    em certo sentido, da antropologia filosfica, resultou numa

    mudana de denominao de nosso objeto (embora nem sem-

    3 Aqui estamos de frente a uma via de mo dupla: a funo atribuda EF determina

    o tipo de conhecimento buscado para fundament-la e o tipo de conhecimento

    predominante sobre o corpo/movimento humano determina a funo atribuda

    EF. No entanto, nem um nem outro so auto-explicativos: eles precisam ser analisa

    dos integradamente como componentes de um movimento mais geral e complexo

    da sociedade.

    4 No necessrio aqui resgatar o tipo de educao (fsica) que postulado e

    acontece a partir desse entendimento. Basta lembrar que ela ficou conhecida como

    uma perspectiva biologicista de EF.

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaNotapapel social atribudo EF como definidor do conhecimento que lhe fundamenta

  • pre numa mudana de paradigma ou de concepo). Pas

    sou-se a privilegiar os termos movimento humano (em al

    guns casos, motricidade humana). Destaca-se, a partir dessa

    perspectiva, a importncia do movimento para o desenvolvi

    mento integral da criana e esse o papel atribudo EF.

    A definio clssica, nesse caso, a de que a EF a

    educao do e pelo movimento. Como exemplo paradig

    mtico temos a abordagem desenvolvimentista de Tani,

    Manoel, Kokubun & Proena (1988), mas, tambm, com

    nuanas, a educao de corpo inteiro, de Freire (1992). A

    base terica advm, fundamentalmente, da psicologia da

    aprendizagem e do desenvolvimento, uma com nfase no

    desenvolvimento motor e outra no desenvolvimento cognitivo.

    Fala-se, nesses casos, em repercusses do movimento

    sobre a cognio e a afetividade ou o domnio afetivo-social;

    fala-se dos diversos arranjos e tarefas motoras para garantir

    o desenvolvimento das habilidades motoras bsicas (Tani et

    alii, 1988), com repercusses sobre os domnios cognitivo e

    afetivo-social. Mas ambas as propostas no superam a pers

    pectiva da psicologia, o que, para a questo pedaggica,

    problemtico, como salienta Silva (1993a), em Descons-

    truindo o Construtivismo.

    A psicologizao da educao implica, necessariamen

    te, a sua despolitizao. No suficiente afirmar, a ttulo de

    defesa - de forma simplista -, que determinada psicologia

    leva em conta os fatores sociais. O que importa, ao contr

    rio, destacar a existncia de um aparato social e poltico,

    como a educao institucionalizada, e as implicaes disso

    (Silva, 1993a, p.5).

    As duas definies, ou melhor, construes do objeto

    da EF, tratadas at aqui (biologia/psicologia do desenvolvi

    mento), permitem ver o objeto no como construo social e

    44 C..,,.. '-- ..

    histrica e, sim, como elemento natural5 e universal, portan

    to, no histrico, neutro politica e ideologicamente, caracte

    rsticas que marcam, tambm, a concepo de cincia onde vo sustentar suas propostas.

    A outra perspectiva presente a de que o objeto da EF

    a cultura corporal de movimento. importante salientar

    que se, em princpio, fala-se neste caso das mesmas ativida

    des humanas presentes nas concepes anteriores, as ex

    presses usadas para denomin-las denunciam, alm de uma

    diferena terminolgica, diferenas e conseqncias subs

    tanciais no plano pedaggico6, pois, o objeto de uma prtica

    pedaggica uma construo - e no uma dimenso inerte

    da realidade - para a qual pressupostos tericos so fundantes

    e/ou constitutivos. No possvel dissociar o fenmeno do

    discurso da teoria que o constri enquanto objeto (pedaggico).

    Nessa perspectiva, o movimentar-se entendido como

    forma de comunicao com o mundo que constituinte e

    construtora de cultura, mas, tambm, possibilitada por ela.

    E uma linguagem, com especificidade, claro, mas que,

    enquanto cultura habita o mundo do simblico7. A naturali

    zao do objeto da EF, por outro lado, seja alocando-o no

    plano do biolgico ou do psicolgico, retira dele o carter

    histrico e com isso sua marca social. Ora, o que qualifica o

    movimento enquanto humano o sentido/significado do

    mover-se, sentido/significado mediado simbolicamente e que

    o coloca no plano da cultura.

    5 E naturalmente social.

    6 Como diria Assmann (1993): no so apenas festejos diferentes de linguagem.

    7 Da a importncia do artigo de Mauro Betti (1994) que remete a novos horizontes

    do estudo do movimento humano ou das manifestaes da cultura corporal de movimento atravs da semitica.

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaPsicologizar a educao despolitiz-la.

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaRealce

    FamiliaNotamovimentar-se humano implica seu sentido mediado simbolicamente.

  • No entanto, trabalhar na EF com o movimentar-se na

    perspectiva da cultura (cultura corporal de movimento) no

    basta para coloc-la no mbito de uma concepo progres

    sista de educao, mesmo porque, o conceito de cultura

    pode ser definido e operacionalizado em termos social e

    politicamente conservadores. preciso portanto, articular

    um conceito de cultura que se coadune com os pressupostos

    sociofilosficos da educao crtica.

    Para Geertz, citado por Thompson (1995, p. 176),

    cultura o padro de significados incorporados nas for

    mas simblicas, que inclui aes, manifestaes verbais e ob

    jetos significativos de vrios tipos, em virtude dos quais os

    indivduos comunicam-se entre si e partilham suas experin

    cias, concepes e crenas.

    Thompson aponta a insuficincia dessa concepo, di

    zendo que

    estas formas simblicas esto tambm inseridas em contex

    tos e processos scio-histricos especficos dentro dos quais,

    e por meio dos quais, so produzidas, transmitidas e recebi

    das. Estes contextos e processos esto estruturados de vrias

    maneiras. Podem estar caracterizados, por exemplo, por rela

    es assimtricas de poder, por acesso diferenciado a recur

    sos e oportunidades e por mecanismos institucionalizados de

    produo, transmisso e recepo de formas simblicas (1995,

    p. 181).

    Dessa forma, a anlise cultural como o estudo de for

    mas simblicas deve considerar os contextos e processos

    especficos e socialmente estruturados dentro dos quais, e

    por meio dos quais, essas formas simblicas so produzidas,

    transmitidas e recebidas. Portanto, o movimentar-se e mesmo

    o corpo humano precisam ser entendidos e estudados como

    uma complexa estrutura social de sentido e significado, em

    contextos e processos scio-histricos especficos.

    Uma das razes para entendermos nosso objeto valen

    do-nos do conceito de cultura diz respeito ao fato de que ela

    uma categoria-chave para o empreendimento educativo

    de maneira geral. A relao entre educao e cultura org

    nica. Como lembra Forquin (1993),

    o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo

    a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a expe

    rincia humana considerada como cultura (p. 13).

    A cultura o contedo substancial da educao, sua fonte e

    sua justificao ltima (p. 14).

    Nas abordagens de EF baseadas no conceito (biolgico)

    de atividade fsica e no conceito (psicolgico) da abordagem

    desenvolvimentista, o corpo e o movimentar-se humano apre

    sentam-se desculturalizados8.

    Duas observaes ainda se fazem necessrias quanto

    relao cultura-educao:

    a) a educao realiza a cultura como memria viva, reativao

    incessante e sempre ameaada, fio precrio e promessa

    necessria da continuidade humana (Forquin, 1993, p.

    14);

    b) Uma teoria cultural da educao, v a educao, a peda

    gogia e o currculo como campos de luta e conflito

    simblicos, como arenas contestadas na busca da imposi

    o de significados e de hegemonia cultural. (Silva, 1993b,

    p. 122)

    8 Desculturalizados no no sentido de que os movimentos, os jogos e as brincadeiras

    utilizados nessas abordagens no emanem do universo cultural - por exemplo,

    Freire (1992) e valoriza sobremaneira a cultura infantif- mas, sim, no sentido de que os critrios a partir dos quais so sistematizados e tratados pedagogicamente

    advm, exclusivamente, de anlises do desenvolvimento infantil, descontextualizadas

    social e historicamente.

    FamiliaRealce

    FamiliaNotaValter ressalta a importncia de articular o conceito de cultura aos pressupostos da Teoria Crtica

  • A especificidade pedaggica da cultura corporal de movimento

    Para a construo de uma teoria da EF coloca-se aqui

    uma questo central: qual a especificidade pedaggica da

    cultura corporal de movimento enquanto saber escolar?9

    Os saberes tradicionalmente transmitidos pela escola

    provm de disciplinas cientficas ou ento, de forma mais

    geral, de saberes de carter terico-conceitual. Entendo que,

    diferentemente do saber conceituai, o saber de que trata a

    EF (e a Educao Artstica) encerra uma ambigidade ou um

    duplo carter: a) ser um saber que se traduz num saber-

    fazer, num realizar corporal; b) ser um saber sobre esse

    realizar corporal10.

    No caso do entendimento de que o objeto da EF era a

    atividade fsica ou o movimento humano, a ambigidade era

    resolvida a favor da dimenso prtica ou do fazer corporal.

    Esse fazer corporal que repercutia sobre a totalidade (os

    diferentes domnios do comportamento) do ser humano. Nesse

    caso, o debate se desenvolveu em torno da polarizao: edu

    cao do ou pelo movimento, ou ambos.

    J, trabalhando a partir da idia da cultura corporal de

    movimento como objeto da EF, a questo do saber sobre o

    movimentar-se do homem passa a ser incorporado enquanto

    saber a ser transmitido (no apenas instrumento do profes

    sor). Desenvolveu-se aqui, rapidamente, o pr-conceito de

    9 Outras questes aderem a esta, como: o que possvel ensinar/aprender quando

    trato pedagogicamente essa parcela da cultura? Quais so os critrios para selecionar e sistematizar essa dimenso da cultura?

    10 Essa questo est magistralmente tratada no artigo mais instigante de nossa rea

    publicado em 1994. Refiro-me ao artigo de Mauro Betti, publicado na revista Disco rpo: O que a Semitica Inspira ao Ensino da EF.

    que o que se estava propondo, nesse caso, era transformar a

    EF num discurso sobre o movimento, retirando o movimen-

    tar-se do centro da ao pedaggica em EF.

    Betti, enfocando essa questo, observa:

    No estou propondo que a EF transforme-se num discurso

    sobre a cultura corporal de movimento, mas numa ao pe

    daggica com ela [grifo nossoj. E evidente que no estou

    abrindo mo da capacidade de abstrao e teorizao da lin

    guagem escrita e falada, o que seria desconsiderar o simbolis

    mo que caracteriza o homem. Mas a ao pedaggica a que se

    prope a EF estar sempre impregnada da corporeidade do

    sentir e do relacionar-se. (1995, p. 41)

    Nos parece que, no fundo, est aqui presente a ambigui

    dade insupervel que radica-se no nosso estatuto corpreo.

    Simultaneamente, somos e temos um corpo.

    Um desdobramento ou uma vertente dessa ambigida

    de refere-se relao natureza-cultura, que uma questo

    que afeta o entendimento geral de ser humano e que se

    agua sobremaneira quando falamos de corpo e movimento.

    interessante colocar aqui o que Cullen11 chama de

    encruzilhada quando buscamos situar o lugar do corpo na

    cultura. Para esse filsofo argentino, o corpo, ou a existn

    cia corporal do homem, fonte de certo mal-estar para a

    cultura, pois seriam marcas do corpo a singularidade, ao

    passo que a cultura seria o reino do comum, o remeter

    imediatamente ao desejo e morte, necessitar de espao e

    movimento e depender do meio ambiente. A cultura cir

    cunscreve o corpo, que parece querer neg-la, ao plano da

    natureza, impondo-o, assim, um vazio, ou ento f-lo reger-

    se por uma idia ou modelo - o simulacro. Por isso estamos,

    segundo o autor, numa encruzilhada: culturalizar o corpo e

    11 Anotaes pessoais da palestra proferida por C. Cullen durante o II Congresso

    Argentino de Educacin Fsica y Cincia (La Plata, outubro/1995).

  • torn-lo semelhante (reprimindo sua singularidade) ou descul-

    turalizar o corpo e reduzi-lo diferena. O corpo naturalizado ou o corpo culturalizado? Ou, talvez o grande desafio do projeto educativo: como culturalizar sem desnaturalizar?

    Como isso se expressou na EF? A EF sempre fez um discurso, baseado nas cincias naturais, de controle do corpo, de construo de um corpo saudvel e produtivo, treinvel, capaz de grandes e belos desempenhos motores. Era o corpo natural submetido ao entendimento dominante de nossa corporeidade. No h aqui espao para considerar o corpo sujeito de cultura, produtor de cultura, ele apenas sofre cultura. E interessante notar que em alguns casos ainda temos a denominao de rgos pblicos de Secreta

    ria de Esportes e Cultura; cultura o que retrata artisticamente o corpo, ou ento, aquelas atividades corporais que so realizadas sob o signo da cultura (ballet, por exemplo). Outra postura aquela que enaltece o sensvel (o ldico), enquanto instncia ainda no submetida s regras do mundo racional ou social, que busca e valoriza aquelas experincias que atestam a unidade homem-mundo, uma certa unidade primordial, experincias em que somos corpo e mundo. Uma terceira postura quase que elimina a primeira natureza em favor da segunda natureza, a cultura, privilegiando nesta a racionalidade cientfica.

    O movimento instalado na EF brasileira a partir da dcada de 80, ao menos em uma de suas vertentes (aquela que vai buscar fundamentao pedaggica na pedagogia histrico-crtica), situa-se na terceira perspectiva descrita, que tem pelo menos um aspecto em comum com a primeira: uma perspectiva racionalista do movimento humano. Ou seja, em vez de controlar o movimento apenas no sentido mec- nico-fisiolgico, encarando-o agora como fenmeno cultural, pretende dirigi-lo a partir da conscincia crtica

    dos determinantes sociopoltico-econmicos que sobre ele recaem.

    Ghiraldelli Jnior (1990) detectou essa questo e colo

    cou frente a frente duas tendncias no mbito da chamada

    EF progressista: a tendncia racionalista e a tendncia anti-

    racionalista. Segundo o autor, as tendncias racionalistas

    buscam uma sada pela janela:

    Detectando no movimento, na prtica corporal, elemen

    tos no desejveis, acabam por tom-los como a prpria e ex

    clusiva essncia do movimento e, na sequncia, concluem que

    preciso que alguma coisa de fora venha acrescentar-lhe cri-

    ticidade, venha libert-lo, libertando seu praticante. Essa coi

    sa exterior o discurso, que pode ter carter sociolgico, an

    tropolgico, poltico, etc. [...] A aula de EF torna-se uma aula

    sobre o movimento e no mais uma aula com movimento.

    Ou ento, uma aula com o movimento nas condies da EF

    tradicional agregada ao estudo e discurso crtico. (p. 197-8)

    Por outro lado,

    as correntes anti-racionalistas captam que o movimento cor

    poral humano, por no ser algo que passe pela verbalizao,

    pode escapar da razo e, por essa via, se aproximar da intui

    o. Afinal, o movimento no algo que pode ser descrito e

    explicado (positivismo e afins) nos seus ltimos detalhes, mas

    algo que pode ser compreendido (historicismo e afins), vivi

    do, sentido; algo do plano subjetivo e que esconde que este

    plano foi construdo subjetivamente. (p. 198)12

    Parece-me que aqui a EF levada a uma encruzilhada

    ou mesmo um paradoxo: racionalizar algo que, ao ser racio

    nalizado, se descaracteriza. Ou seja, existiria uma dimenso

    das experincias/vivncias humanas passveis de serem pro

    piciadas tambm pelo movimentar-se (nas mais diferentes

    formas culturais) que resiste s palavras, ou, dito de outra

    forma, no possvel pedagogiz-las por via da sua descri

    12 Ghiraldelli Jnior (1990) entende que ambas as correntes ficam a meio caminho e

    prope uma viso alternativa baseada numa leitura dialtica materialista. No nosso entendimento, a busca da contradio interna, por via da historicizao, acaba se

    circunscrevendo na prpria perspectiva racionalista, no superando, portanto, o

    impasse identificado pelo autor.

  • o cientfica; fogem ao controle, previso (da cincia);

    so, de certa forma, nicas, singulares. Alis, para Nietzsche,

    citado por Naffah Neto (1991, p. 23),

    Nossas experincias verdadeiramente fundamentais no so,

    de forma alguma, tagarelas. Elas no saberiam se comunicar,

    mesmo que quisessem. que lhes falta a palavra. Aquilo para

    que encontramos palavras, j ultrapassamos [...] A lngua,

    parece, foi inventada somente para as coisas medocres, co

    muns, comunicveis. Pela linguagem, aquele que fala se vul

    gariza13.

    Como tratar na EF essas experincias? Nos subordinar

    ao desfrute ldico? Como construir uma prtica pedaggi

    ca que, por definio, uma interveno racional/conscien

    te sobre o desenvolvimento da personalidade dos indivduos, de maneira a contemplar essas dimenses do movimen- tar-se humano?

    A questo se complexifica porque sabemos que a educao da sensibilidade ou o afeto to importante quanto a

    cognio na definio do comportamento social (poltico) dos indivduos. Por isso retomo aqui uma pergunta que formulei

    em um simpsio de nossa rea14: possvel falar em movi

    mento crtico? A criticidade ou a educao crtica em EF

    somente pode acontecer atravs de um discurso crtico sobre o movimento? E preciso no incorrer no erro de enten

    der criticidade, neste caso, apenas como um conceito da

    esfera da cognio. E preciso alarg-lo abarcando a dimen

    so esttica. Alis, Carlos R. Brando, no VIII Congresso

    Brasileiro de Cincias do Esporte (Recife/1987), afirmou

    que, para ele, crtico s poderia ser o sujeito amoroso, aquele que tem a capacidade de se sensibilizar com o drama do

    mundo. preciso, valendo-me de Assmann (1993), ampliar

    13 H, nessa interpretao, uma reduo das possibilidades da linguagem, o que

    reconhecido por Naffah Neto (1991), que vai, na seqncia discutir, essa questo a partir de Merleau-Ponty, com seu uso criativo da linguagem.

    14 Precisamente em Goinia, no ano de 1991.

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    o conceito de linguagem a todo tipo de ativaes da

    corporeidade15. Parafraseando Chau (1994), poderamos

    dizer que, na filosofia e nas cincias, falamos de movimen

    to e pensamento (um discurso filosfico e cientfico sobre o

    movimento), mas que, na EF, deveramos falar de movimen- to-pensamento.

    Por algum tempo pensei e falei (em crculos mais prximos) em uma epistemologia do movimento. Ao contrrio das conhecidas taxionomias do domnio psicomotor, tra

    tava-se, pensava eu, de identificar o tipo de conhecimento

    da realidade que o movimentar-se humano pode propiciar,

    que tipo de leitura da realidade essa forma de comunicao

    com o mundo pode propiciar e quais conhecimentos e leitu

    ra da realidade determinadas formas culturais do movimen

    tar-se propiciariam. Estou inclinado a complementar essa

    proposta com uma fenomenologia/hermenutica do movimento, uma vez que a expresso epistemologia est excessivamente comprometida com uma postura racionalista no

    sentido cognitivista, que no abre espao para a ampliao do conceito de verdade. Como pergunta Gadamer, citado

    por Hekman (1990, p. 147):

    correto reservar o conceito de verdade para o conheci

    mento conceptual? No devemos tambm admitir que a obra

    de arte possui verdade? Veremos que o reconhecimento des

    tes aspectos coloca no s o fenmeno da arte, mas tambm

    o da histria [e o do movimento, VB], sob uma nova luz.

    15 Lembro aqui das palavras de Benedito Nunes (1994, p. 403), discorrendo sobre a

    potica do pensamento. Vale a pena ouvi-lo: A poesia-canto desobjetifica a

    linguagem, retira-a do mbito da viso prtica, da ao e do intercurso cotidiano, a que serve de instrumento de comunicao, para o da abertura, temporal e

    histrica. Do mesmo modo que na arte a terra se torna terra, e no propriamente usada, ao contrrio do que sucede com o instrumento material, absorvido em seu

    prprio emprego, a poesia usa a palavra como palavra, sem gast-la, librando o seu

    poder de nomear, de fundar o ser, de desencobri-lo no poema. E o que distingue o

    poeta do pensador que a nomeao naquele alcana o que excede compreen

    so do ser em torno do qual o ltimo gravita: o sagrado, indizvel, estranho ao

    pensamento.

  • Assim, uma educao crtica no mbito da EF tem

    igual preocupao com a educao esttica, com a educa

    o da sensibilidade, o que significa dizer, incorporao,

    no por via do discurso e, sim, por via das prticas corpo

    rais16 de normas e valores que orientam gostos, prefern

    cias, que junto com o entendimento racional, determinam a

    relao dos indivduos com o mundo. Sem me alongar na

    polmica da crise da razo (iluminista) ou da racionalidade

    cientfica, entendo que no se trata de subsumi-la sensibi

    lidade, mas, sim, de no pretender absolutiz-la.

    O desafio parece-me ser: nem movimento sem pensa

    mento, nem movimento e pensamento, mas, sim, mouimen-

    topensamento17.

    16 Coloquei o termo entre aspas para demonstrar, por um lado, que reconheo a falta de um termo que supere o dualismo inevitavelmente presente na nossa linguagem

    quando usamos a palavra corpo", mas, por outro lado, preciso reconhecer, tam

    bm, que ele fruto da possibilidade que temos de reconhecer nossa existncia corporal.

    17 Deixo a cargo dos prezados leitores a interpretao do porqu aglutinei a palavra

    pensamento" palavra movimento e no, por exemplo, sentimento. Talvez,

    ambigamente, intuitiva-racionalmente, esteja me contrapondo s posturas relativistas

    que postulam uma pluralidade radical da razo, sem hierarquia de qualquer tipo.

  • AS CINCIAS DO ESPORTE: QUE CINCIA ESSA?1

    No ano em que o Colgio Brasileiro de Cincias do

    Esporte (CBCE) completou quinze anos de existncia fize

    mos a pergunta: que cincia essa que fizemos nestes anos

    todos?

    Tomar essa questo como tema de congresso pareceu

    refletir uma necessidade do colegiado e da rea. Essa orien

    tao/necessidade estava j presente na temtica do VII

    Congresso Brasileiro de Cincias do Esporte (CONBRACE),

    realizado em Uberlndia, em 1991, e, tambm, no livro do

    ano editado pela Sociedade Brasileira para o Desenvolvi

    mento da Educao Fsica2.

    Entendemos que depois de uma certa euforia e inge

    nuidade cientificista dos seus primeiros anos de existncia,

    com conseqente averso reflexo filosfica,