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Enchente na fronteira? Noticiabilidade e cobertura ao vivo
Ada Cristina Machado da Silveira 232
Clarissa Schwartz233
Resumo: O artigo faz uma análise dos critérios de noticiabilidade utilizados na cobertura
televisiva ao vivo de uma calamidade climática ocorrida nas cidades limítrofes entre Brasil e
Argentina, no inverno de 2014. O referencial teórico ocupa-se ainda da caracterização da
narrativa de proximidade e da narrativa de reconstituição. O corpus de análise foi selecionado
após a identificação das reportagens sobre enchentes exibidas no telejornal gaúcho RBS
Notícias no mês de julho. A ênfase na estratégia de localização, com a finalidade de obter efeito
de proximidade da região fronteiriça, e a utilização da cobertura ao vivo predominantemente
como narrativa de reconstituição foram as mais exploradas discursivamente. Em que pese sua
capacidade técnica, a cobertura limitou-se a abordar a enchente em solo brasileiro, a despeito de
que consequências semelhantes ocorriam na Argentina, demonstrando a compreensão editorial
do telejornal quanto à dimensão de proximidade para constituição dos critérios de
noticiabilidade adotados.
Palavras-chave: cobertura ao vivo; noticiabilidade; televisão; fronteira; ambiente.
1. Introdução
O artigo analisa a cobertura televisiva ao vivo da enchente do inverno de 2014
no Rio Grande do Sul exibida pelo telejornal RBS Notícias. Trata-se de um telejornal
produzido e veiculado em rede regional pela RBS TV no Estado (afiliada da Rede
Globo) que apresenta um resumo dos principais fatos do dia. É exibido de segunda-feira
a sábado por volta das 19 horas com dois apresentadores que chamam do estúdio
reportagens produzidas pela rede de emissoras televisivas da capital e do interior, bem
como as entradas ao vivo dos repórteres da rede.
232 Doutora em Jornalismo pela Universitat Autònoma de Barcelona com estágio pós-doutoral pela
Universidad Nacional de Quilmes. Pesquisadora do CNPq. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: adac.machadosilveira@gmail.com 233 Doutora em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria. Professora colaboradora e
bolsista de estágio pós-doutoral PNPD Institucional Capes do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: clarissaschwartz@yahoo.com.br
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A cheia do rio Uruguai em julho de 2014 deixou mais de 20 mil pessoas
desabrigadas, atingiu 163 municípios gaúchos (DEFESA CIVIL RS, 2014) e em muitos
lugares foi considerada a maior enchente dos últimos trinta anos (ELY, 2014). A
análise detém-se nas notícias elaboradas sobre os municípios gaúchos de São Borja,
Itaqui e Uruguaiana na fronteira com a Argentina, onde se concentrou o maior número
de desabrigados do Estado. As três cidades limitam-se com os municípios argentinos de
Santo Tomé, Alvear e Paso de Los Libres, respectivamente.
Estudos sobre a cobertura nacional das fronteiras internacionais produzida pela
mídia de referência e sua repercussão sobre o noticiário produzido localmente indicam
que a mídia alimenta um imaginário de cidade dividida como uma forma de prevenir a
contaminação pelo que é estranho (SILVEIRA, 2012). Observamos que a cobertura da
enchente realizada pelo telejornal se concentrou na captação de notícias referentes a
acontecimentos ocorridos no Brasil. É neste aspecto que foi detectado um silêncio na
cobertura que caracteriza elementos da linha editorial do telejornal e um entendimento
dos critérios de noticiabilidade. Para compreender tais processos, elaboramos as
seguintes questões: Como se desenvolveram as narrativas resultantes da cobertura ao
vivo? Como foi explorada a dimensão de proximidade na enchente de 2014?
Acreditamos que, com tais perguntas, teremos elementos narrativos que podem apontar
para os critérios de noticiabilidade adotados.
2. Análise de uma cobertura ao vivo de telejornal
Fechine (2008, p. 26) lembra que “a transmissão direta é, antes de mais nada, um
fato técnico” porque permite simultaneidade entre produção, transmissão e recepção.
Com alto custo tecnológico e de pessoal, os “vivos”, como se denominam tecnicamente
as entradas ao vivo dos repórteres durante a programação, constituem-se em forma de
privilegiar determinados fatos na cobertura jornalística, segundo a autora.
O corpus de pesquisa foi selecionado após a identificação das inserções sobre o
tema enchente exibidas no telejornal RBS Notícias durante o mês de julho de 2014 e
postadas no site de notícias G1 RS, conforme se expõe a seguir:
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Tabela 1 – Assunto enchente no telejornal RBS Notícias no mês de julho/2014
No. Edições 27
Presença do tema
enchente
21
Inserções do tema
enchente
Notas
cobertas
Notas ao vivo com
imagens
Reportagens
gravadas
Reportagens ao
vivo
45 6 8 14 17
Fonte: elaboração das autoras
Os quatro formatos identificados são descritos por Maciel (1995), Siqueira e
Vizeu (2014) e Curado (2002) nos seguintes termos: a) nota coberta: composta por uma
cabeça234 lida pelo apresentador ao vivo e um texto gravado em off coberto por imagens;
b) nota ao vivo com imagens: composta por cabeça lida pelo apresentador ao vivo e um
texto lido também ao vivo coberto por imagens; c) reportagem gravada: registro de
imagens e entrevistas que são posteriormente editados e d) reportagem ao vivo:
simultaneidade entre fato e transmissão.
Cada reportagem ao vivo foi analisada segundo cinco características:
1) estrutura: entrada ao vivo seguida de reportagem gravada, entrada ao vivo com
inserção de imagens gravadas (ilustração), entrada ao vivo com entrevista, entrada ao
vivo apenas com a imagem do repórter;
2) ambiente: vivo transmitido ou não do local do acontecimento;
3) duração: até 30”, entre 30” e 1’; entre 1’ e 2’, mais de 2’;
4) tempo relatado: tempo real ou tempo atual e
5) visão da espacialidade: modo de identificar a fronteira.
Posteriormente, partimos para a análise das características discursivas dos textos
audiovisuais.
234 Texto lido pelo apresentador que serve de introdução dos assuntos.
413
3. Acontecimentos, linha editorial e noticiabilidade
Charaudeau (2013) discute a questão da hierarquia dos acontecimentos a partir
de dois tipos de critérios adotados pela mídia: externos e internos. Os externos referem-
se à forma de surgimento dos acontecimentos: inesperados, programados ou provocados
e os internos englobam as escolhas que a mídia faz, para despertar interesse ou provocar
emoções no público que podem até se sobressair aos critérios de proximidade temporal
ou espacial e, muitas vezes, resultam em contradição: “O acontecimento é selecionado
em função de seu potencial de saliência, que reside ora no notável, no inesperado, ora na
desordem” (CHARAUDEAU, 2013, p. 141).
Buscando sistematizar os estudos sobre a noticiabilidade, apresentamos o
Quadro 1:
Atualidade Proximidade Importância e
interesse
Ruptura Anormalidade
Charaudeau
orienta
escolhas
temáticas
feitas pela
mídia
notícia adquire
interesse
diferenciado
quando ocorre
no mesmo
espaço da
instância da
recepção
mais do que a
localização
geográfica,
forma de tratar a
notícia resulta
em aproximação
ou
distanciamento
com o lugar do
acontecimento
mídia utiliza
critérios
internos para
escolher
assuntos que
despertem
interesse ou
provoquem
emoções no
público
notícia
precisa
sempre de
um elemento
recente e
também
inesperado
para evitar a
saturação
potencial de
“imprevisibili-
dade”, a
instância
midiática
evidencia o
extraordinário,
o estranho
414
Wolf traz a
contribuição
de Golding e
Elliot (1979)
de que notícias
escolhidas
devem fazer
referência aos
aconteci-
mentos
próximos ao
momento dos
noticiários
proximidade
não se limita à
questão
geográfica,
abrange também
a semelhança
cultural
nível
hierárquico dos
envolvidos,
impacto sobre o
país, número de
pessoas
envolvidas e
significado do
acontecimento
em relação à
situações futuras
interferem na
importância da
notícia
interesse da
história ligado à
imagem que
jornalista faz do
público
trabalho
jornalístico
seria
dirigido para
captar fatos
pontuais
a notícia é o
que altera a
rotina
Franciscato
pondera que a
noticiabilidade
de um
acontecimento
não pode estar
somente
ligada ao polo
do
imediatismo.
local onde o
meio de
comunicação
circula define os
valores
noticiosos que
serão adotados
importância
refere-se
àquelas
informações que
as pessoas
necessitam
saber na vida
pública e
privada e a
dimensão do
interesse teria
um significado
mais leve.
notícias
movem-se
entre os
polos de
continuidade
e ruptura.
bastante
semelhante ao
anterior,
restringindo-se
às rupturas com
padrões de
comportamento,
de objetos e
também de
situações
consideradas
normais.
QUADRO 1 – Critérios de noticiabilidade Fonte: elaboração das autoras a partir de Charaudeau (2013), Wolf (2001) e Franciscato (2014).
4. A transmissão direta
Calamidades climáticas enquadram-se em transmissões sem planejamento
prévio. “As próprias equipes de TV não têm como prever o que poderão mostrar quando
sua participação é levada ao ar” (FECHINE, 2008, p. 69-70). A autora comenta as
marcas de continuidade que enfatizam a atualidade e a autenticidade das transmissões e
salienta que reduzir o tempo entre a ocorrência dos fatos e sua divulgação é um dos
principais desafios dos telejornais. Nesse sentido, Fechine (2008) lembra que a
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transmissão direta é uma estratégia utilizada pelos editores para buscar essa
proximidade, mesmo quando o tempo relatado não é o tempo real, ou seja, quando o
momento do acontecimento é diferente do momento de sua narração.
Charaudeau (2013, p. 133) destaca que a “cotemporalidade enunciativa” entre o
acontecimento e sua divulgação é uma das principais tarefas da mídia. Abordando as
características da narrativa midiática, ele cita a narrativa de simultaneidade (quando o
acontecimento e a narrativa são simultâneos) e a narrativa de reconstituição (quando o
acontecimento é anterior à narrativa). Comparando a cobertura realizada pela rádio
francesa France-Info e os canais de televisão LCI e CNN, o autor avalia que a televisão
ainda tem dificuldades para combinar os tempos do acontecimento, da enunciação e da
transmissão, estando atrás das rádios neste aspecto.
5. A caracterização da cobertura ao vivo
No período da pesquisa, o telejornal foi apresentado por Elói Zorzetto e Simone
Lazzari e contou com a participação do repórter André Azeredo, também de Porto
Alegre, que fez as entradas ao vivo de Itaqui, além da equipe da RBS TV Uruguaiana,
especialmente da repórter Josiane Pimentel, responsável pelas entradas ao vivo de
Uruguaiana. A análise das participações ao vivo pode ser visualizada no Quadro 2:
Nº Dia Estrutura Ambiente Dura-
ção
Assunto
principal
Tempo Visão da
espacialidade
1 3 Vivo com
entrevista,
inserção de arte e
seguido de
reportagem
gravada
Local do
acontecimento
(Itaqui)
+ 2’ Casas volantes Real e
atual
Fronteira oeste
2 3
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
1 a 2’ Rio Uruguai
sobe em
Uruguaiana
Atual Prefeitura naval
da Argentina
3 3
*
Cidade do
acontecimento
(Brasília)
30” a
1’
Governo vai
fazer pedido
coletivo de
ajuda
Atual -
4 3
*
Local do
acontecimento
(Itaqui)
1’a 2’ Situação da
enchente em
quatro regiões
Real e
atual
Fronteira oeste
5 4 Cidade do 1’a 2’ Prefeitura Atual -
416
* acontecimento
(Uruguaiana)
decreta situação
de emergência
6 4 Vivo seguido de
reportagem
gravada
Local do
acontecimento
(Itaqui)
1’a 2’ Moradores
fazem vigília
para evitar
saques
Real e
atual
Fronteira Oeste
País vizinho
Cidade de Alvear
7 5
*
Local do
acontecimento
(Itaqui)
30” a
1’
Nível do rio
Uruguai baixa
Real e
atual
Fronteira oeste
8 5
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Nível do rio
Uruguai sobe
Atual Ponte Intern.
9 7 Vivo seguido de
reportagem
gravada
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Retorno para
casa
Atual Fronteira Oeste
10 7 Vivo apenas com
imagem do
repórter
Local do
acontecimento
(Porto Alegre)
Até
30”
Artistas fazem
show solidário
Real e
atual
-
11 7 Vivo seguido de
reportagem
gravada
Cidade do
acontecimento
(Porto Alegre)
Até
30s
Solidariedade
dos gaúchos
Atual -
12 8
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
1’a 2’ Rio Uruguai
baixa
Atual Fronteira oeste
13 9
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Rio Uruguai
baixa
Atual Fronteira Oeste
14 10
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Rio Uruguai
baixa
Atual -
15 17
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Chuva volta a
preocupar
Real e
Atual
Fronteira Oeste
16 23
*
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Prefeitos
discutem
prioridades
Atual Fronteira Oeste
17 25 * seguido de
reportagem
gravada
Cidade do
acontecimento
(Uruguaiana)
30” a
1’
Prejuízos do frio Real e
Atual
Fronteira Oeste
* vivo com ilustração
QUADRO 2 – Análise das entradas ao vivo da cobertura no telejornal
Fonte: elaboração das autoras
5.1 Vivos: uma transmissão de simultaneidade ou uma reconstituição?
A análise identificou a predominância de entradas ao vivo com inserção de
imagens gravadas (ilustração). Dos 17 vivos analisados, 11 seguiram a referida
estrutura, três foram seguidos de reportagem gravada, um foi realizado apenas com a
imagem do repórter, um reuniu duas estruturas: vivo com inserção de imagens gravadas
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seguido de reportagem gravada e outro reuniu três estruturas: entrevista, inserção de
imagens gravadas e ainda reportagem gravada.
Quanto ao ambiente, mais da metade dos vivos (12 entradas) foram transmitidos
da cidade do acontecimento em cenário sem identificação direta com o fato. A
localização dos vivos nos auxilia a compreender o uso intenso da inserção de imagens
gravadas: como o repórter, na maior parte dos casos, não estava posicionado no local do
acontecimento, foi necessário inserir imagens para ilustrar o texto narrado. Cinco vivos
foram transmitidos direto do local do acontecimento (Fig. 1). Nessas entradas,
predominou a narrativa de simultaneidade, com o repórter descrevendo fatos que
estavam acontecendo no momento da enunciação, demonstrando que o telejornal tinha
condições técnicas de realizar uma cobertura em tempo real da enchente,
complementadas por imagens gravadas de um helicóptero que mostravam as áreas
ilhadas.
Figura 1 – Entrada ao vivo direto do local do acontecimento Fonte: Reprodução RBS Notícias 03/07/2014
Como a maior parte dos vivos utilizou a narrativa de reconstituição, o relato do
tempo atual prevaleceu sobre o tempo real. Em dez inserções foi identificado apenas o
tempo atual e em sete entradas foram encontradas algumas marcas de continuidade de
tempo real como informações sobre o clima e a temperatura. No entanto, nenhum vivo
relatou apenas o tempo real.
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O tempo dos vivos concentrou-se entre 30 segundos e um minuto (nove
entradas) e entre um e dois minutos (cinco entradas). Dois vivos tiveram até 30
segundos e um deles teve mais de dois minutos.
Quanto à visão da espacialidade, nove entradas usaram apenas “fronteira oeste”
e cinco não fizeram nenhuma referência à fronteira. Termos como prefeitura naval da
Argentina, país vizinho, cidade argentina de Alvear e ponte internacional foram
encontrados em três inserções.
5.2 Unilateralidade da visão de fronteira
A análise das entradas ao vivo permitiu identificar que a proximidade e a
atualidade estabeleceram-se como os principais critérios de noticiabilidade adotados
durante a cobertura da cheia na fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Verificamos, no
entanto, que as dimensões de importância e interesse, ruptura e anormalidade também
pautaram as inserções de forma complementar. A descrição está a seguir.
O RBS Notícias de três de julho concentrou sua cobertura na enchente. Das oito
reportagens postadas no site G1, cinco tinham relação com a cheia, além da previsão do
tempo. Esse dia também deu início à cobertura ao vivo na fronteira oeste (entrada ao
vivo nº1). Uma cabeça dividida entre os apresentadores anunciou a transmissão:
Já são 110 municípios atingidos pelas enchentes no estado, 58 estão
em situação de emergência e dois decretaram estado de calamidade
pública. E a situação mais grave agora é na fronteira oeste. Só em
Itaqui são quase dez mil pessoas fora de casa. É pra lá que a gente vai
ao vivo conversar com o repórter André Azeredo. André, como é que
essas famílias todas estão acomodadas? Boa noite! (RBS Notícias,
03/07/2014)
O repórter relatou que a maioria dos desabrigados foi para a casa de parentes e
que foram disponibilizados ginásios para os atingidos. Em seguida, descreveu o cenário
onde estava destacando a dimensão do interesse:
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A gente está num local onde tem a questão mais curiosa em relação à
Itaqui, que são essas casas chamadas volantes. São aproximadamente
300 casas, Simone [referindo-se à apresentadora do telejornal], que
são casas que podem ser transportadas. Elas ficam normalmente do
lado de lá do rio que a gente não tem como mostrar porque está muito
escuro. A energia elétrica foi devidamente cortada por causa do risco e
elas estão aqui, foram trazidas com o auxílio de tratores, correntes,
elas que são montadas em cima de troncos de árvores, justamente por
já estarem acostumados com níveis de cheia, não tão altos como esse
agora. (RBS Notícias, 03/07/2014)
O repórter relatou que continuava a chover forte e entrevistou moradores que
reclamaram da situação. Depois, o jornalista explicou, com o apoio de uma ilustração,
que o leito do rio é mais raso naquela região e, por isso, a gravidade da cheia é maior.
Em seguida, chamou uma reportagem gravada que, utilizando imagens áreas, buscou
dimensionar a enchente.
A mesma edição apresentou um vivo de Uruguaiana (nº 2). O local em que a
repórter estava posicionada não foi identificado, mas não tinha relação direta com a
enchente. Ela estava em uma calçada e o cenário, escuro em função da noite, mostrava
um prédio, um carro estacionado e uma rua. A repórter relatou que o rio continuava a
subir e mil pessoas tinham abandonado as casas. Ela usou a prefeitura naval da
Argentina como fonte para atualizar o nível do rio em São Borja, mas não trouxe
informações sobre a cheia no país vizinho. Ao resumir fatos do dia relacionados à
enchente, a entrada ao vivo destacou a dimensão da atualidade.
O mesmo telejornal apresentou nova entrada ao vivo de Itaqui (nº 4). O repórter
disse que alguns desabrigados faziam vigília em frente às casas com medo de saques.
Nesse momento, a câmera mostrou um morador em frente a uma residência. Depois, o
repórter trouxe informações relacionadas com a chuva em outros pontos do estado. A
segunda inserção ao vivo de Itaqui pouco acrescentou informações sobre a cheia na
região. Serviu para o repórter narrar fatos de outras regiões, reunidos por critérios de
proximidade e atualidade por abordarem o mesmo assunto naquele dia.
Na edição seguinte foi feita nova entrada ao vivo de Uruguaiana (nº 5). A cabeça
destacou que o município havia decretado situação de emergência. A repórter atualizou
o número de desabrigados em Uruguaiana, trouxe dados de uma ponte interrompida e
420
continuou com informações de São Borja: “o rio Uruguai já baixou dois metros. Mesmo
assim, a orientação é de que os três mil moradores atingidos ainda não voltem para casa
porque é preciso verificar a segurança das estruturas e da rede elétrica”. Apesar de não
ter citado a fonte da orientação, esse vivo destacou a dimensão da importância ao
repassar uma informação relevante para a proteção das famílias atingidas.
Na mesma edição, a situação de Itaqui foi atualizada (vivo nº 6). Posicionado em
frente a várias casas alagadas, o repórter descreveu o local valorizando um critério de
anormalidade. “A gente tá bem no centro E. [apresentador do programa] nesse momento
justamente pra mostrar que é a área da cidade que também tá alagada, viu? Não é só na
questão ribeirinha”. O repórter continuou mostrando um churrasco dos moradores: “A
gente pensa assim, tá um clima tranquilo, o pessoal fazendo um churrasco, a casa toda
debaixo d’água, mas não é bem por aí, não é seu Henrique?” Os moradores
responderam que passavam as noites em vigília para evitar os saques nas residências.
No dia em o Brasil venceu a Colômbia em jogo da Copa do Mundo, o repórter ainda
perguntou aos moradores: “Tem como ter clima de copa num momento como esse?
Chegaram a acompanhar o jogo do Brasil ou não?” Com essa pergunta, que teve uma
resposta negativa, o repórter buscou explorar o afastamento midiático que a enchente
provocou naquela comunidade. Uma reportagem gravada mostrou o exército auxiliando
os moradores a desocupar as casas e abrigos lotados. A passagem da reportagem foi
feita de um prédio em Itaqui.
Do alto deste prédio é possível ter um panorama de como está a
situação no centro de Itaqui, uma região bem atingida pela cheia do
rio Uruguai. Muitas casas e ruas debaixo d’água. Lá atrás a gente vê o
rio Uruguai, correndo naquela direção. Do outro lado da margem,
aquela construção branca que aparece no fundo, já é a cidade
argentina de Alvear, ali é o porto e a gente pode perceber que no país
vizinho também tem alagamento. (RBS Notícias, 04/07/2014).
Esse foi o único registro de referência à enchente no país vizinho encontrado
pela pesquisa. Apesar da proximidade espacial, algumas marcas do discurso (“lá”, “do
421
outro lado da margem”, “aquela”) indicaram um distanciamento com a cheia do outro
lado da fronteira.
A cobertura ao vivo em Itaqui terminou no dia 5 de julho (nº7). A pergunta do
apresentador sugeriu uma mudança no fluxo da cobertura: o rio começava a baixar na
cidade mais atingida pela enchente.
O volume de chuva aumentou na fronteira oeste. Já são 19 mil e 600
pessoas desabrigadas ou desalojadas em 117 municípios. A situação
mais crítica segue em Itaqui e é para lá que a gente vai ao vivo onde
está o repórter André Azeredo. O nível do rio baixou por aí André?
Boa noite! (RBS Notícias, 05/07/2014)
Posicionado em frente a uma rua alagada, o repórter informou que o rio baixou
sete centímetros. Também forneceu dados sobre a situação do tempo e resumiu
ocorrências do dia relacionadas à enchente como distribuição de remédios e de
alimentos. No mesmo dia foi feito um vivo de Uruguaiana (nº 8) em que o critério
predominante foi a atualidade. A repórter relatou que o número de desabrigados havia
triplicado.
Na semana seguinte, os vivos passaram a ser ancorados exclusivamente de
Uruguaiana. O assunto principal passou a ser a volta para casa dos desabrigados,
indicando nova ruptura na cobertura (nº 9). A repórter atualizou informações sobre o
nível do rio em Uruguaiana. Após o vivo, foi exibida uma reportagem que atualizou a
situação da enchente também em São Borja e Itaqui. Mapas foram usados para localizar
as três cidades, mas o texto não fez referências à fronteira e a arte se restringiu ao
território brasileiro (Fig. 2).
422
Figura 2 – Mapa inserido sobre imagem da Ponte Internacional Fonte: Reprodução RBS Notícias 07/07/2014
A entrada ao vivo de nº 12 valorizou mais uma vez a dimensão do interesse (Fig.
3). “Em São Borja, o rio Uruguai baixou 7 metros [...] e lá a carcaça de uma vaca foi
encontrada em cima de um poste de energia elétrica”.
Figura 3 – Carcaça de vaca é encontrada em poste de luz Fonte: Reprodução RBS Notícias 08/07/2014
Os vivos nº 13 e nº 14 forneceram dados sobre a quantidade de desabrigados e o
nível do rio. Nas edições seguintes, houve uma redução na cobertura da enchente que
passou a ser feita principalmente por notas cobertas.
Uma semana depois, houve nova entrada ao vivo (nº 15) que destacou a
dimensão da ruptura: “A chuva que voltou a cair no estado colocou em alerta a Defesa
Civil gaúcha. Vamos até Uruguaiana, na fronteira oeste, que ainda tem moradores fora
423
de casa. Josiane Pimentel, a chuva voltou aí? Boa noite!”, destacou o apresentador. A
repórter relatou como estavam as condições do tempo e esse foi o primeiro registro de
tempo real verificado nas participações ao vivo de Uruguaiana. “Boa noite Elói. Agora a
chuva parou, mas durante toda a quinta-feira o tempo ficou bastante instável por aqui”.
O vivo nº 16 aconteceu na semana seguinte e abordou uma reunião de prefeitos
para discutir as prioridades de investimento de verbas de auxílio do governo federal.
A última inserção sobre a enchente no mês de julho aconteceu no dia 25 e teve o
frio como o assunto principal. A repórter fez o segundo registro de tempo real dos vivos
de Uruguaiana, ao descrever as condições do tempo no momento da enunciação: “E
agora a temperatura à noite vai caindo, o frio vai se intensificando, o que fica mais
difícil ainda pra essas pessoas que perderam quase tudo”. A entrada ao vivo foi seguida
de uma reportagem gravada sobre os prejuízos que o frio trouxe para as cerca de duas
mil pessoas que seguiam desabrigadas.
6. Narrativas de reconstituição e proximidade restringida
Apesar de se estender por um mês, a cobertura não avançou no sentido de trazer
informações sobre a cheia no país vizinho. Sendo assim, interpretamos que a divulgação
da enchente apenas do lado brasileiro estabeleceu a dimensão da proximidade com um
dos principais critérios de noticiabilidade adotados, tornando o outro lado da fronteira
um lugar distante e sem conexão com a realidade abordada, reforçando o imaginário de
cidade dividida.
Outro critério de noticiabilidade verificado de forma recorrente em nossa análise
foi a atualidade. Até mesmo por ser um telejornal noturno que apresenta um resumo dos
principais fatos do dia, as notícias relacionadas à enchente eram factuais. No entanto, a
cobertura ao vivo, especialmente de Uruguaiana, ficou bastante restrita às informações
de órgãos oficiais, como número de desabrigados, nível do rio e distribuição de
donativos para as famílias atingidas, uma escolha editorial que pode conduzir a
cobertura para a saturação. Mesmo assim, consideramos que as entradas ao vivo foram
válidas, uma vez que privilegiaram o tema na cobertura jornalística, marcando a
424
presença dos repórteres e do telejornal no fato, apesar das limitações de tempo impostas
em função da cobertura já prevista e planejada da Copa do Mundo.
7. Considerações finais
Os resultados encontrados após a análise da cobertura ao vivo realizada durante
um mês apontam que a ênfase na estratégia de localização com a finalidade de obter
efeito de proximidade da região fronteiriça e a utilização da cobertura ao vivo
predominantemente como narrativa de reconstituição foram as mais exploradas
discursivamente.
Sobre a questão da narrativa, não acreditamos que a televisão brasileira tenha
dificuldades de combinar os tempos do acontecimento, da enunciação e da transmissão
como o caso descrito por Charaudeau (2013). As entradas ao vivo diretamente do local
do acontecimento são cada vez mais comuns nos telejornais brasileiros, principalmente
a partir dos avanços tecnológicos que permitem o envio de imagens ao vivo por
dispositivos móveis.
O período analisado coincidiu com a realização da Copa do Mundo no Brasil.
Um acontecimento mobilizador de toda a energia midiática e que, nas fronteiras, prova
as mais básicas regras de convivência frente à paixão futebolística, convertendo-se em
capital simbólico de uma cobertura, como o caso da rivalidade no futebol.
Especialmente a situação da cidade de Uruguaiana foi explorada em reportagens sobre a
tradicional rivalidade entre Brasil e Argentina. Em que pese a presença desse elemento,
em todas as edições do telejornal analisadas, apenas uma reportagem fez referência à
cheia no país vizinho (nº 6).
Talvez a dificuldade decorra de uma especial relação com a Argentina, dado que
a fronteira Brasil-Uruguai apresenta maior convivialidade. Reportagem exibida em 24
de julho relatou que comerciantes uruguaios de Rio Branco estavam com suas lojas
ameaçadas pela cheia do rio Jaguarão. Vale a pena trazer a reflexão de um de nossos
autores e sua experiência no Hemisfério Norte:
425
Mas essa questão do aqui e do fora daqui é relativa, pois também tem
a ver com o imaginário. Quando existiam os chamados países da
“cortina de ferro”, a Iugoslávia, para os ocidentais, era tão longínqua ,
no imaginário, quanto a Chechênia. A partir do conflito na ex-
Iugoslávia, esses países estão situados na Europa, “às portas de Paris”,
como destacaram alguns jornais em suas manchetes [...]
(CHARAUDEAU, 2013, p. 136).
Quanto às coberturas televisivas ao vivo, em que pese seu custo, elas ainda
oferecem e demandam grande autonomia dos repórteres. Elas podem ser um espaço
apropriado para propor mudanças nos critérios de noticiabilidade ainda restritos à noção
de fronteira da Guerra Fria.
Referências
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