Post on 01-Nov-2020
FACULADE DE SÃO BENTO
FILOSOFIA
RICARDO MENDES MACHADO
FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA
FUNDAMENTAL HEIDEGGERIANA
São Paulo
2012
RICARDO MENDES MACHADO
FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA
FUNDAMENTAL HEIDEGGERIANA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
da Faculdade de Filosofia de São Bento, como requisito
para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia.
Orientação: Prof. Dr. José Carlos Bruni
São Paulo
2012
RICARDO MENDES MACHADO
FORMULAÇÃO DA PROPOSTA ONTOLÓGICA FUNDAMENTAL
HEIDEGGERIANA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação da Faculdade de Filosofia de São Bento,
como requisito para a obtenção do grau de Mestre
em Filosofia.
Aprovado em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Carlos Bruni – Orientador
Faculdade de São Bento
Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva
Universidade de São Paulo
Prof. Dr. Paulo Roberto Monteiro de Araujo
Universidade Presbiteriana Mackenzie
A amada Jussara.
Agradeço aos meus pais, Aparecida e Galdino, que sabiamente priorizaram, desde
sempre, minha educação e temor à Deus e a meus irmãos, Cristina e Eduardo, pelo
exemplo da eficiência dessa criação, perpetuada hoje em nossas crianças.
Com especial carinho ao amigo e Professor Doutor Paulo Roberto Monteiro de Araújo
da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que com sensibilidade me apresentou a
ontologia em toda sua beleza e força.
Aos meus pares, Carlos Augusto de Abreu Campos, amigo dedicado e possibilitador
financeiro e Ricardo Ferreira, pelos revigorantes cafés e profícuos diálogos.
Quanto ao filósofo, é à forma do ser que se
dirigem perpetuamente seus raciocínios, e é
graças ao resplendor dessa região que ele não
é, também, de todo fácil de se ver. Pois os olhos
da alma vulgar não suportam, com persistência,
a contemplação das coisas divinas.
Platão in Sofista.
Resumo
Esta dissertação consiste no estudo da formulação da proposta ontológica
fundamental de Heidegger. Buscamos compreender o contexto histórico/intelectual no
qual a proposta fora desenvolvida. Em seguida fizemos uma análise da metodologia
utilizada pelo autor, a fenomenológica, para então investigar a proposta propriamente
dita. Para realizar o proposto, adentramos numa direcionada e objetiva incursão no
universo terminológico de Heidegger. Partindo da análise do ente Dasein, tendo como
fio condutor a disposição fundamental da angústia, a abertura privilegiada para suas
possibilidades mais próprias, abordamos conceitos como possibilidade,
impessoalidade, decadência, temporalidade, morte e cuidado, objetivando a
compreensão do tema que pauta nosso trabalho, “a formulação e possibilidade de
uma ontologia epistemológica”.
Palavras-chave: Ontologia; Fenômeno; Angústia; Morte; Cuidado.
Abstract
This dissertation is the study of the proposed formulation of Heidegger's fundamental
ontology. First we seek to understand the historical / intellectual context in which the
proposal had been developed. Then we make an analysis of the methodology used by
the author, the phenomenological. Then move forward in the study of the proposal
itself. To achieve the proposed objective, we move forward in a direct and objective
foray into Heidegger's terminology universe. Based on the analysis of the existent
Dasein, having to guiding the fundamental disposition of anguish (anxiety), the
privileged opening to your themselves possibilities, we discuss concepts like
possibility, impersonality, decay, temporality, death and care, aiming in this way, to
understand the theme that guide our work, “the formulation and the possibility of an
epistemological ontology”.
Keywords: Ontology; Phenomenon; Anguish (Anxiety); Death; Care.
Sumário
INTRODUÇÃO................................................................................................9
1. A destruição da ontologia tradicional...................................................12
1.1 A questão do ser...........................................................................12
1.2 A questão do ser no desdobramento da história da filosofia.......19
1.3 A recolocação da questão do ser..................................................30
1.4. O método fenomenológico...........................................................41
2. A hermenêutica da faticidade…..…........……........................................49
2.1 O método fenomenológico heideggeriano....................................49
2.2 A compreensão fática do Dasein, o das-Man...............................58
3. A analítica existencial…..........................................................................67
3.1 A disposição fundamental da angústia.........................................67
3.2 A decadência do Dasein...............................................................72
3.3 A abertura......................................................................................78
3.4 O cuidado......................................................................................83
CONCLUSÃO…….............….……………….................................................91
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS............................................................94
9
Introdução
É por certo que a ontologia heideggeriana, com suas características conceituais
inovadoras, possui as suas dificuldades de compreensão no âmbito do pensamento
filosófico. Por outro lado, cabe ressaltar que tal ontologia nos possibilita interpretar
as práticas humanas em suas diversas dimensões em nossa vivência existencial
contemporânea.
O que Heidegger procura, ao elaborar uma linguagem conceitual própria, é criar
condições de possibilidades para retomar a questão do ser, por ele tão proclamado
em Ser e Tempo. O projeto heideggeriano é, então, a retomada da problemática da
questão do ser a partir do viés fenomenológico do seu mestre Edmund Husserl.
Ser e Tempo, apontado como o trabalho capital de Heidegger, representa a
iniciativa do autor em determinar e fundamentar, pautando-se na metodologia
fenomenológica, pontos chave e indiscutíveis para uma interpretação segura e
eficiente do ser, que em sua filosofia é o fundamento de tudo o que há.
Nosso objetivo foi investigar a ontologia desenvolvida no chamado “primeiro”
momento do autor, se ainda não declaradamente preocupado com as questões
acerca da essência, já - o que nunca deixaria de ser - ontológico. Veremos que esse
primeiro Heidegger analisa um ser cujo existir constitui sua própria essência.
Estruturalmente nossa pesquisa está dividida e se apresenta na seguinte forma:
capítulo um, intitulado A destruição da ontologia tradicional, em que discutimos o
desdobramento e a contextualização histórica da filosofia de Ser e Tempo. Neste
capítulo procuramos fazer compreender o que motivou Heidegger a fazer uma nova
ontologia. O que fez com que ele logo apontasse a necessidade de destruir,
“reconstruindo”, os fundamentos que até então sustentavam a proposta ontológica
exercitada à sua época. Deste momento procuramos abordar os capítulos iniciais de
Ser e Tempo para em seguida, capítulo dois A hermenêutica da faticidade, atentar à
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questão do desdobramento que a visão moderna construiu e, à sua maneira,
legitimou a premência existencial da pós-modernidade.
Procuramos deixar evidente qual fora a leitura que Heidegger fizera dos trabalhos
filosóficos anteriores, principalmente no sentido de mostrar a evidência que a
epistemologia conquistara na Modernidade em detrimento do campo de estudo por
ele tomado como primordial. Buscamos contextualizar nosso texto objetivando expor
as influências que o pensamento de sua época exerceu em seu trabalho, no que diz
respeito à crise sofrida pela ideia de “sujeito” ocorrida nos últimos momentos da
Modernidade.
Buscamos abordar o fato de que Heidegger, em sua proposta ontológica, fez uso da
metodologia de seu mestre Husserl, neste momento em nosso trabalho começamos
a fundamentar a possibilidade que mais a frente será exposta, a saber, se houve um
motivo para a incompletude da sua ontologia fundamental, foi devido ao método,
tendo ele permanecido, mesmo que modificando, no preconizado por essa nova
hermenêutica da consciência.
No terceiro e último capítulo A analítica existencial, aprofundamos a discussão dos
pontos mais específicos de Ser e Tempo, onde Heidegger expõe definitivamente
sua proposta ontológica fundamental, diferenciada - enquanto caminhando para uma
meta-ontologia - das demais propostas até sua época.
A ideia de tratar o projeto ontológico heideggeriano como “proposta” tem por objetivo
trazer e tornar clara a interpretação da ontologia de Ser e Tempo como um trabalho
inacabado, não concluso. Como aludido, tomamos esse ponto ao final de nosso
texto, quando da abordagem da análise existencial, desenvolvido minuciosamente
por toda a obra Ser e Tempo - nesse momento nos apoiamos num texto profícuo de
Alexandre Franco de Sá, escrito em 2008 intitulado “Da Destruição Fenomenológica
à Confrontação: Heidegger e a Incompletude da Ontologia Fundamental”, texto
publicado em Covilhã, Portugal, pela editora LusoSofia da Universidade da Beira
Interior.
Sobre o segundo conceito, “ontológica”, que sabemos ser o escopo de Ser e
Tempo, e a partir do qual iniciamos propriamente nosso estudo no primeiro capítulo,
buscamos compreender que tipo de ontologia Heidegger se propõe a fazer, pois,
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inserido cronológica e contextualmente num momento acadêmico onde os esforços
intelectuais vigentes giravam em torno das pesquisas sobre as possibilidades e
formas do conhecimento, a epistemologia, vemos que não é por acaso que o autor
retoma o estudo do ser aplicando a metodologia fenomenológica, herdada de
Edmund Husserl, só que - como é comum dizer - uma fenomenologia extremada,
levada às últimas consequências. O ponto a cerca das diferenças entre a
fenomenologia husserliana e a heideggeriana merece uma atenção especial e
tomamos o cuidado de desenvolver.
A ideia de “fundamental” refere-se ao fato de que a obra Ser e Tempo diz respeito
ao momento do autor chamado primeiro Heidegger, ou primeira fase e termos
conexos. O “segundo” Heidegger, mais velho e experiente, continuará seu projeto
ontológico, mas lançará mão de outros pressupostos, como a arte e as questões da
linguagem, da origem e da verdade.
Dois pontos estruturais da construção de nosso texto passíveis de atenção: Todas
as vezes que nos referirmos no texto a “ser” no sentido do “todo estrutural”,
“transcendental”, temos que atentar para não confundir com o transcendentalismo no
sentido kantiano1; e todas as vezes que soubemos por bem utilizar a terminologia
em sua língua original, alemão, ou quando da utilização de algum outro vernáculo
que não o português, tomamos o cuidado de no corpo do texto ou em notas de
rodapé disponibilizar a tradução, buscando dessa forma fazer com que o presente
trabalho atinja o propósito para o qual se propôs ser.
1 Ao invés de tomar o eu como uma das várias entidades existentes no mundo, o
transcendentalismo kantiano prevê no ser pensante um “que” do “criador do mundo”. Essa suposição
de Kant leva a ideia de que todos os “eus” assemelham-se uns aos outros em sua compleição
cognitiva, estruturada na tríade: razão, compreensão, sensibilidade, e segundo seus críticos essa
compreensão de sujeito transcendental não teria garantia alguma de validade e poderia resultar em
abusos para se provar o que se supõe. Nessa forma kantiana, o sujeito transcendental não seria o
homem individual, empírico, dotado de psicologia, ao contrário, seria uma instância
caracteristicamente filosófica, universal que adota o funcionamento do homem caso este venha a
exercer sua racionalidade de modo pleno e autônomo (GRENZ, 1997, p.122).
12
1. A destruição da ontologia tradicional
1.1 A questão do ser
Ser e Tempo foi escrito e apresentado como um primeiro volume de uma proposta
que seria composta por dois tomos, porém o segundo volume nunca foi concluído. A
obra não fora relegada somente ao círculo dos leitores de textos filosóficos, seu
alcance foi muito maior, sendo que muitos viam nela a radical tentativa do homem de
se posicionar absoluta e unicamente sobre si mesmos; por outro lado muitos viam
nela a possibilidade de se pensar e discutir de uma nova forma sobre Deus. Muitos
ainda tomaram-na como guia apontador do rumo a “intransferível experiência da
morte”, e com ela buscaram conduzir de forma coerente suas vidas. (PÖGGELER,
2001 p. 13).
Heidegger que a contragosto foi considerado um dos pais do existencialismo -
contragosto este que o levou a fixar no texto Carta sobre o Humanismo as
diferenças que o separavam do existencialismo propriamente dito - deixa claro em
Ser e Tempo que seu objetivo foi o de elaborar uma analítica existencial, onde o
escopo - diferentemente do existencialismo, como se faria conhecer por seus
representantes posteriores - seria o de abordar a questão do ser enquanto
representação das noções universais, não individuais, o ser pertencente a noção
evidente por si mesma, tomada por indefinível.
Heidegger em sua proposta de Ser e Tempo não discute metafísica, porém seu
trabalho é método para um seguro estudo por esses caminhos complexos e
fenomenologicamente não apreensíveis (ONATE, 2000, p. 11). O que importa para
o autor é o limiar em que podemos chegar com a nossa estrutura cognitiva do
momento que divide o imanente do transcendente2.
2 No texto Sobre a essência do fundamento de 1928, Heidegger expõe sua
compreensão sobre “transcendência”: “Transcendência significa ultrapassagem. Transcendente
13
A questão sobre o significado do ser, Ser e Tempo não deu uma resposta simples e
objetiva. Para Heidegger ser é tempo. “À questão relativa ao significado do ser ele
deu a resposta provisória, em si mesma ininteligível, de que o significado do ser é a
temporalidade” (ARENDT, 1993, p. 28).
Quanto ao conceito de “tempo” da tradição metafísica, seu significado não foi
suficientemente exprimido. O ser do ente fenomenológico era pensado a partir da
presencialidade e do presente, o horizonte de tempo que ficou para trás no passado
e que se encontra a diante, no provável futuro, não fora devidamente considerado.
Contrariamente, o tempo era compreendido a partir da presencialidade e presente e,
desse modo, pensado como uma sequência de momentos-agora presentes e atuais
ou não presentes e não atuais.
Um dos êxtases do tempo, o presente, recebeu um sobreposto em relação
aos outros êxtases e foi estabelecido como um dos traços fundamentais do
tempo; a partir dele, foram também pensados os outros êxtases. Heidegger
busca romper com este predomínio do presente: ele pensa o tempo como a
temporalidade simultânea de passado, presente e futuro ou, como ele
também diz, de passado, presencialidade e pré-sente (Sp, 213).
Temporalidade é o entretecer recíproco de três dimensões do tempo: o
entretecer recíproco é algo assim como uma quarta dimensão, a qual – se
aqui pudéssemos de todo enumerar – é, na verdade, a primeira e inicial, da
qual as outras tem origem (PÖGGELER, 2001, p. 239).
Considerando essa problemática de conceituação e interpretação, podemos dizer
que sua proposta é uma resposta à posição tomada pela filosofia à questão
ontológica desde o pensamento pré-socrático. Sua ontologia, assim, é uma (transcendendo) é aquilo que realiza a ultrapassagem que se demora no ultrapassar. Este é, como
acontecer, peculiar a um ente. Formalmente a ultrapassagem pode ser compreendida como uma
“relação” que se estende “de” algo “para” algo. Da ultrapassagem faz, então, parte algo tal como o
horizonte em direção do qual se realiza a ultrapassagem; isto é designado, o mais das vezes,
inexatamente de “transcendente”. E finalmente, em cada ultrapassagem algo é transcendido. Estes
momentos são tomados de um acontecer “espacial”; e a este que a expressão primeiramente visa”
(HEIDEGGER, 1979, p.104). Ainda, no §28 Verdade ôntica e ontológica. Verdade e transcendência
do ser-aí, das preleções do semestre de inverno de 1928-1929, o autor faz uma longa exposição do
conceito, do que citamos: “Transcendência é a possibilitação daquele conhecimento que não
transpõe de modo ilegítimo a experiência por meio do vôo que conduz além, ou seja, que não é
‘transcendente’, mas é possibilitador da experiência mesma. O transcendental certamente fornece a
definição restritiva. No entanto, por meio da própria restrição surge ao mesmo tempo a definição
positiva da essência do conhecimento não transcendente, isto é, do conhecimento ôntico possível
como tal (HEIDEGGER, 2009, p. 223).
14
concepção, em que o ser deixa de ser analisado como inescrutável e passa a ser
matéria palpável, conquanto manifesto por meio de suas evidências
fenomenológicas (ARENDT, 1993, p. 29).
A fenomenologia, tema que abordamos mais detalhadamente à frente, é a via de
acesso e o modo de comprovação para se determinar o que deve constituir tema da
ontologia. Ontologia por sua vez só é possível como fenomenologia. O conceito
fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu
sentido, suas modificações e derivados (HEIDEGGER, 2008, p. 75).
A exemplo de seu mestre Husserl, a ocupação de Heidegger não é especificamente
perguntar o quê é o ser, e sim seu significado. Heidegger não toma o ser como um
ser particular, também não como a união dos seres particulares. Mostra-nos em
contrapartida que o ser é aquilo que faz com que o mundo seja, e que assim se
manifesta ao homem. Ele busca abordar o fundamento de tudo o que existe.
Identificamos no texto de Heidegger que ser não é passível de ser definido, o
método então será estudá-lo na forma como ele se mostra (LEYTE, 2005, p. 167-
168).
Para definir essa forma do ser é necessário tomá-lo como um ente, isto é, em
alguma coisa concreta, determinada, passível de ser analisada à luz de nossa
cognição. Para isso retira-se o caráter universal do ser. A dificuldade dessa questão
remonta uma solução proposta na Idade Média que é a de compreender que o ente
só é por que o ser faz com que ele seja. Antes disso não se atentava para a
diferenciação entre os dois termos.
Para Heidegger o problema do ente é diferente do problema do ser. Essa
problematização sistemática da questão do ente desviou a atenção para a origem do
ponto que deve ser examinado, o ser. Separando-os existe o que a filosofia do autor
chama de diferença ontológica. Porém, mesmo que o tendo como subordinado, o ser
explicita-se no ente (HEIDEGGER, 2008, p. 49).
Esse ente concreto, manifesto, colocado no tempo, aí, é o Dasein, que traduzido do
alemão seria exatamente isso: o ser-aí. Uma existência dotada de presença no
tempo e no mundo. A partir da definição que o Dasein, o ser-aí, é o ser vivendo a
temporalidade, dando-se no mundo material e participando do que este mundo
15
apresenta como realidade, que Heidegger consequentemente lançará mão de outro
conceito para caracterizar o ser: das-Man3, traduzindo como “impessoal” (“a gente”).
Esse conceito das-Man constitui a base da inautenticidade experimentada pelo
Dasein no âmbito social, é a vida imprópria que o ente experimenta nessa
inautenticidade determinada pelo mundo a sua volta (BOUTOT, 1991, p. 34).
Angustiado o das-Man acomoda-se na impessoalidade ou procura libertar-se,
conhecer-se. Nessa busca, o ente ôntico busca o fim do ontológico, o ser.
A inautenticidade do Dasein Heidegger sintetiza a formas de se viver, impessoal, em
que o Dasein espelha e comporta-se de acordo com o que o meio espera dele e em
função e compromissado com o que “dizem” dele, o das-Man; ele é envolvido
comprometendo sua autenticidade pelo mundo de valores que cria. (BOUTOT, 1991,
p. 34).
A angústia é a consequente sensação experimentada nessa mundaneidade, a
experiência cotidiana do homem, que em sua temporalidade - característica
fundamental de sua realização - anela, anseia, por um significado superior que dê
resposta e sentido à sua vida.
Existirá tal resposta a essa questão ontológica? Sim, para Heidegger é exatamente
quando o homem questiona sua existencialidade e se vê finito, conscientizando-se
de sua falência na morte, de ser exatamente um ser-para-a-morte - na definição do
autor - que ele se abre para sua realidade mais íntima, a existência idealizada pelo
Dasein, longe de ser simples medo ou o que possa até então ter experimentado e
desconfigurado seu ser íntimo.
O medo tem assento no ente de que se cuida dentro do mundo. A angústia,
porém, brota do próprio ser-aí. O medo chega repentino do intramundano. A
3 O alemão “da” não diz nem aí, nem lá, nem cá. O “da” é etimologicamente palavra de
intensificação, tendo a função primária de avivar, marcar, ressaltar, não possuindo propriamente
nenhuma determinação especial. Importância deve ser dada ao fato de Heidegger ter desenvolvido
uma terminologia propriamente particular para restabelecer uma ontologia frente àquela encontrada
na filosofia tradicional, pois de outra forma, se não desta, talvez pela própria carga de significado
impregnada no uso convencional dos termos convencionais, não seria possível alcançar o objetivo
que é o de propriamente reler conceitos. Essa peculiaridade o colocou em destaque em relação aos
demais autores contemporâneos, no sentido de ser um autor que “revolucionou” o pensamento
filosófico. (N.E.) (HEIDEGGER, 2008, p. 19)
16
angústia ergue-se do ser-no-mundo enquanto lançado ser-para-a-morte.
(HEIDEGGER, 2008, p. 201)
O homem, limitado e incomodado, procurando o sentido real e autêntico, livra-se - a
seu modo - do que não faz sentido. Essa busca se dá, como ser temporal.
(HEIDEGGER, 2008, p. 89).
Para sanar e auxiliar na compreensão da ontologia fundamental de Ser e Tempo,
Heidegger nos mostra que o homem - diferentemente da proposta até então
apresentada pelo pensamento ocidental ao qual questiona - não pode simplesmente
ser analisado nos mesmos moldes e utilizando-se os mesmos termos destinados
aos objetos materiais em geral (HEIDEGGER, 2008, p. 89). Ele denomina os
caracteres ontológicos do Dasein de existenciais, que é o diferenciado caráter
ontológico privilegiado do ser realizado no devir, que é capaz de idealizar sua
existência. Diferente dos demais entes dados - pedra, boi, pen-drive - aos quais ele
denomina seus caracteres ontológicos de categorias.
O Dasein só se apropria em sua carência na angústia de ser-aqui no mundo -
angústia que tem seu ápice na conscientização da morte - é definida pelo autor
como cuidado. Porém, a ideia da morte associado às questões da inautenticidade,
pode também em contrapartida, quando tomada negativamente, jogá-lo
definitivamente na tentativa de fuga numa existência supostamente fácil da
subjetividade confortante e impessoal.
Heidegger, lembremos, não se propõe a fazer metafísica, e sim, compreender o
significado do ser e, para isso, é necessário identificar o fenômeno em que ele é
manifesto.
A via que Heidegger procura seguir é uma via da proximidade do ser. O ser
é o tema da forma clássica do pensamento ocidental, da metafísica. O
pensamento de Heidegger, como via na proximidade do ser, não quer ser
outra coisa senão a tentativa de percorrer a via do pensamento ocidental,
Ao percorrer essa via, Heidegger julga dever saber que a metafísica
ocidental nunca resolveu a sua questão, a questão do ser, que o
pensamento ocidental também nunca atingiu o seu fundamento. É legitimo
buscar esse fundamento, e pressentir, achar e desbravar assim um campo,
o qual devido ao predomínio da metafísica deveria permanecer incógnito
(Hw, 194 e seg.). A via, pela qual o pensamento ocidental se supera, é a via
17
de regresso ao seu fundamento impensado. A via que Heidegger segue
alcança a sua obrigatoriedade por não querer outra coisa senão exprimir de
modo comprovável os pressupostos impensados do pensamento rotineiro
(PÖGGELER, 2001, p. 15).
A proposta de Heidegger também não era dar respostas às questões relativas ao
saber e à fé, apesar de seu pensamento ser marcado por decisões finais e
transformações que lentamente despertam e por repentinas reviravoltas
(PÖGGELER, 2001, p. 18).
Observando a obra em relação a um suposto traço gnóstico, ou a ideia de ser ela
uma proposta de um tardio retorno a um primórdio em que “mundo” ainda poderia
ser tomado romanticamente como um “lar”, onde mito e poesia se encontrariam, ou
ainda da relação de Heidegger com manifestações contemporâneas, com a teologia
dialética ou com a filosofia existencialista, teremos sempre a tendência de relacionar
sua investigação da questão do ser com algum outro elemento, o que levará ao
equivoco de procurar em Ser e Tempo uma resposta às ultimas questões do
pensamento ou da fé, desviando-se do real escopo do texto (PÖGGELER, 2001, p.
19).
No que diz respeito às últimas questões do saber ou da fé, Heidegger
protege-se expressamente de que o pensamento seja subordinado à
“pretensão superior” de “saber a solução do enigma e de trazer felicidade”.
Ele mesmo só quer, “como aprendiz contínuo”, testar o pensamento até hoje
existente no que ele há de impensado, para assim, talvez, poder descobrir a
seu modo a localização da verdade do ser como a localização de um futuro
construir e habitar. “Porém, nós só podemos, por meio de um construir,
preparar o habitar nesse local. Um tal construir já quase não se poderá
concentrar no edificar da casa para Deus, ou nas habitações para os
mortais. Deverá contentar-se em construir pelo caminho...” (Zur Seinsfrage,
26 41 e segs.) (Sobre a Questão do Ser) (PÖGGELER, 2001, p. 19).
Sendo assim, o que cabe frisar é que Ser e Tempo é a tentativa de retomar
pensativamente o que ficou impensado, o fundamento esquecido da metafísica,
sobre o qual se baseia todo o ser pensado.
A questão do ser visa portanto às condições a priori de possibilidade não
apenas das ciências que pesquisam os entes em suas entidades e que, ao
fazê-lo, sempre já se movem numa compreensão de ser. A questão do ser
18
visa às condições de possibilidades das próprias ontologias que antecedem
e fundam as ciências ônticas (empíricas). Por mais rico e estruturado que
possa ser o seu sistema de categorias, toda ontologia permanece, no fundo,
cega e uma distorção do seu propósito mais autêntico se, previamente, não
houver esclarecido, de maneira suficiente, o sentido de ser e não tiver
compreendido esse esclarecimento como sua tarefa fundamental
(HEIDEGGER, 2008, p. 47).
A questão sobre o sentido do ser deverá ser repetida por pertencer a um
fundamento da metafísica que foi relegado. Heidegger inicia sua investigação em
Ser e Tempo retomando esse questionamento, e assim desenvolve sua ontologia,
que nada mais é que a indagação pelo ser do ente.
Lembremos sempre que a filosofia de Heidegger é um reafirmar do caráter
primordial da ontologia. Heidegger parte do ente fenomenológico em suas múltiplas
possibilidades temporais para buscar a compreensão do ser realizado no tempo. O
autor começa o desenvolvimento de sua proposta investigando e discutindo a
problemática do desenvolvimento histórico da questão do ser na filosofia ocidental,
propondo então uma retomada em outros moldes desse questionamento.
19
1.2 A questão do ser no desdobramento da história da filosofia
Heidegger inicia sua investigação perguntando os motivos que levaram ao
esquecimento da questão do ser ao longo da história da filosofia. Deste modo, ele
salienta que a questão do ser não é uma questão qualquer; pois, segundo o próprio
autor, foi tal questão que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles
(HEIDEGGER, 2008, p.37). A partir da retomada da referida questão, o filósofo de
Freiburg começa então a delimitar os pressupostos que determinaram a sua
investigação a respeito da problemática das determinações conceituais do ser.
No primeiro parágrafo de Ser e Tempo, intitulado Necessidade de uma retomada
explícita da questão do ser, o filósofo diz:
Embora nosso tempo se arrogue o progresso de afirmar novamente a
“metafísica”, a questão aqui colocada caiu no esquecimento. E, não
obstante, nós nos consideramos dispensados dos esforços para
desenvolver novamente uma γιγαντομαχία περι της ούσίας (gigantomaquia
sobre o mérito). A questão referida não é na verdade, uma questão
qualquer. Foi ela que deu fôlego às pesquisas de Platão e Aristóteles para
depois emudecer como questão temática de uma real investigação. O que
ambos conquistaram manteve-se, em muitas distorções e recauchutagens,
até a Lógica de Hegel. E o que outrora se arrancou, num supremo esforço
de pensamento, ainda que de modo fragmentado e tateante aos
fenômenos, encontra-se, de há muito, trivializado (HEIDEGGER, 2008, p.
37).
Em seu viés interpretativo, Heidegger nos chama atenção para as preocupações de
Platão e Aristóteles em relação à estrutura conceitual que determinava e ao mesmo
tempo possibilitava a compreensão do ser. A saber, tomava-se o ser como um
conceito não passível de definição, no sentido de caracterizá-lo como simples ente,
em suas diversas facetas de gênero e qualidades. No entanto, apesar dessa clareza
inicial sobre a problemática do ser, Heidegger vê após esse esforço de pensamento
grego uma derrocada nas investigações sobre a questão do ser. É a partir dessa
derrocada que a questão entrou em um processo de equívocos que gradativamente
20
levou ao desvio que em seus primórdios mostrava-se decisivo no processo histórico
da investigação ontológica. Para Heidegger, o conceito de ser “mais universal e, por
isso indefinível” (HEIDEGGER, 2008, p. 37), prescindia de uma definição eficiente.
No solo da arrancada grega para interpretar o ser, formou-se um dogma que
não apenas declara supérflua sobre o sentido de ser, como lhe sanciona a
falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais vazio. Como tal,
resiste a toda tentativa de definição (HEIDEGGER, 2008, p. 37).
A preocupação de Heidegger com a questão do ser está expressamente indicada no
início de sua investigação da citação das palavras de Platão encontradas no diálogo
Sofista – diálogo platônico que estudou quando professor em Marburgo: “O que se
quer dizer com a palavra ser?” (LEYTE, 2005, p. 56). Seu questionamento sobre o
ser surgiria no horizonte dos problemas da filosofia contemporânea, porém, estaria
diretamente ligado à questão nuclear que define classicamente a filosofia como um
todo. Temos no Sofista de Platão:
ESTRANGEIRO: Quando algum deles levanta a voz para dizer que o ser é,
que foi, que se torna múltiplo ou uno ou duplo; e quando outro nos conta a
mistura quente ao frio depois de haver afirmado o princípio das associações
e dissociações, pelos deuses, Teeteto, compreendes alguma coisa do que
dizem, um ou outro? Quanto a mim, quando jovem, eu acreditava, todas as
vezes que se falava deste objeto que ora nos põe em dificuldade, o não-ser,
compreendê-lo exatamente. E agora, tu vês que dificuldades ainda
encontramos a seu respeito.
TEETETO: Sim, vejo.
ESTRANGEIRO: Ora, bem pode acontecer que, com relação ao ser, a
nossa alma se encontre em igual confusão; e que nós que acreditamos tudo
compreender, sem dificuldade, quando dele ouvimos falar, e nada
compreender a propósito do outro termo, na realidade estejamos na mesma
situação no que concerne a um e outro (PLATÃO, 1972, p. 170).
Na ótica de Heidegger o ser vinha então ocupando um papel secundário na história
da filosofia. Por filosofia entendamos o iniciado pelos primeiros gregos
(Anaximandro, Heráclito e Parmênides), a Grécia clássica (Platão e Aristóteles) e
toda a filosofia moderna que começa com Descartes e culmina em Nietzsche
(LEYTE, 2005, p. 56-57). Para Heidegger, desenvolveu-se no processo histórico da
21
filosofia o obscurecimento do tema, onde o ser passaria então a ser tomado como
algo supostamente conhecido, porém ainda carente de uma definição satisfatória. 4
Todo mundo o emprega constantemente e também compreende o que ele,
cada vez, pretende designar. Assim o que, encoberto, inquietava o filosofar
antigo e se mantinha inquietante, transformou-se em evidência meridiana, a
ponto de acusar quem ainda levantasse a questão de cometer um erro
metodológico (HEIDEGGER, 2008, p. 37).
Se para Platão sua apreensão puramente transcendental privava, de saída, a
ontologia da compreensão de seu objetivo, a forma categorial aristotélica de
determinar o ser - como que tratando de um ente - confundia, tendo, dessa forma,
colocado consequentemente o filósofo estagirita em um caminho equivocado.
Para o filósofo de Freiburg, essas interpretações desenvolvidas nesse período foram
determinantes para a consolidação equivocada da conceitualização de ser, e,
consequentemente, do próprio abandono do questionamento sobre seu sentido no
desdobramento histórico da filosofia.
Mostrou-se, na introdução, que a questão sobre o sentido do ser não
somente ainda não foi resolvida ou mesmo colocada de modo suficiente,
como também caiu no esquecimento, apesar de todo o interesse pela
“metafísica”. A ontologia grega e sua história, que ainda hoje determina o
aparato conceitual da filosofia, através de muitas filiações e distorções, é
uma prova de que o ser-aí se compreende a si mesmo e o ser em geral a
partir do “mundo” (HEIDEGGER, 2008, p. 60).
Heidegger, entretanto, leitor de Dilthey e de seu amigo, o conde Paul Yorck
(HEIDEGGER, 2008, p. 496), não nega nem tampouco refuta a tradição histórica.
Sua concepção de releitura da tradição não pode ser interpretada como a
aniquilação dos pressupostos herdados. Retomar a questão do ser significa para o
autor, primeira e fundamentalmente, elaborar de maneira suficiente e eficiente a
forma como é feito esse questionamento. “O presente tratado visa, em princípio
elaborar a questão do ser. Dentro desse quadro, a destruição da história da
ontologia, essencialmente ligada à colocação da questão e apenas possível dentro
4 Em caráter ilustrativo podemos parafrasear Cecília Meireles a respeito da liberdade -
"...Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta e que não há ninguém que explique e
ninguém que não entenda..." (MEIRELES, 2008, p. 89).
22
dessa história, só poderá ser conduzida no que diz respeito às estações decisivas e
fundamentais da história” (HEIDEGGER, 2008, p. 61).
O que Heidegger faz nos primeiros momentos de Ser e Tempo é apontar a
dogmatização nas propostas de abordagem do ser, demonstrando a necessidade da
retomada explícita da questão. Nesse momento ele atenta para três preconceitos5
originados nas raízes da filosofia antiga, os quais, equivocadamente, dariam
margem à dispensa do questionamento sobre o ser. Sua abordagem sobre esses
referidos preconceitos está no intuito de clarificar a necessidade de se repetir a
questão sobre o sentido do ser (HEIDEGGER, 2008, p. 38).
Heidegger aponta primeiramente como um dos entraves para a investigação sobre o
ser a ideia de tratá-lo como um conceito universal, como que se a compreensão do
ser já estivesse sempre incluída em tudo o que se apreende do ente (HEIDEGGER,
2008, p. 38). O filósofo diz que a “universalidade” de ser não é a do gênero
(HEIDEGGER, 2008, p. 38). A universalidade do ser “transcende” toda
universalidade genérica. Segundo a terminologia da ontologia medieval, “ser” seria
um “transcendens”. Esta unidade “universal” transcendental frente à multiplicidade
dos conceitos reais mais elevados de gênero teria sido entendida por Aristóteles
como unidade de analogia (HEIDEGGER, 2008, p. 38).
Na forma aristotélica de compreensão do ser, a manifestação imanente do ente,
interpretado através da sua teoria das categorias, seria o reflexo de um ser
transcendental. Essa teorização, apesar de apresentar-se como novidade, mostrava-
se ainda dependente do - já conhecido - questionamento ontológico transcendental
de Platão (HEIDEGGER, 2008, p. 38).
A teoria das categorias assume a tarefa de delimitar as diversas áreas
objectuais em territórios categorialmente sobrepostos irredutíveis entre si, e
de relacionar depois os territórios desfeitos com a última esfera categorial
do objectual (as transcendências) e de assim os unir (PÖGGELER, 2001, p.
24).
5 Optamos por manter o termo conforme traduzido e constante na edição de Ser e
Tempo de 2008, página 38.
23
Heidegger desenvolve a leitura histórica desse “preconceito” dizendo que na
ontologia medieval a problemática aristotélica sobre o ser, como possível unidade
transcendental da variedade categorial dos objetos, já fora discutida, sobretudo nas
escolas tomistas e escotistas, sem se chegar entretanto, a uma clareza e princípio
(HEIDEGGER, 2008, p. 38).
Mais à frente Hegel, nas explicações categoriais de sua Lógica, seguindo o
preconizado por Aristóteles, determinaria o ser como o “imediato indeterminado”.
Dessa forma, historicamente já próximo a nós, Hegel permaneceu na mesma
direção da antiga ontologia com a diferença de que abandonou o problema apontado
por Aristóteles da unidade do ser face à multiplicidade das “categorias” reais
(HEIDEGGER, 2008, p. 38).
Hegel assume o termo “ser” (Sein) em três diferentes extensões do
significado: 1) como início do processo lógico (tese da primeira tríade), 2)
como título do primeiro capítulo da categoria de qualidade, 3) como objeto
de todo o primeiro livro da Lógica, que se divide em lógica do ser, da
essência e do conceito (ROVIGHI, 1999, p. 730).
Para Heidegger, dizer que ser é o conceito mais universal, ou ainda, um “imediato
indeterminado”, não poderia significar clareza, dispensando um significado ulterior,
ao contrário, dessa forma assegurava-se apenas o obscurecimento do ser, carente
ainda de uma definição (HEIDEGGER, 2008, p. 38).
No seguinte preconceito, exposto na máxima “o conceito de ser é indefinível”,
Heidegger diz que uma vez partindo desse postulado na investigação sobre o ser,
corre-se o risco de acabar por confundi-lo com o “ente”. Ser não pode ser
simplesmente tomado como um “ente”. De acordo com o autor, o modo de
determinação do ente, como definição da lógica tradicional que remonta em seus
fundamentos a antiga ontologia, não pode ser aplicada ao ser. Dessa forma, a
indefinibilidade de ser não dispensa a questão de seu sentido, pelo contrário,
justamente por isso novamente a exige (HEIDEGGER, 2008, p. 39).
O terceiro preconceito que daria margem a uma equivocada dispensa do
questionamento poderia ser sintetizado como: “O ser é o conceito evidente por si
mesmo”. Para o autor em todo conhecimento, enunciado ou relacionamento com os
entes e em todo relacionar-se consigo mesmo, faz-se uso de “ser” e, nesse uso
24
comum, compreender-se-ia a palavra “sem mais”. Para Heidegger essa suposta
redundante compreensibilidade comum demonstraria apenas a incompreensão:
Todo mundo compreende: “o céu é azul”, “eu sou feliz”, etc. Mas essa
compreensibilidade comum demonstra apenas a incompreensão. Revela
que um enigma já esta sempre inserido a priori em todo ater-se e ser para o
ente como ente. Por vivermos sempre numa compreensão de ser e o
sentido de ser estar, ao mesmo tempo, envolto em obscuridade, demonstra-
se a necessidade de princípio de se retomar a questão sobre o sentido de
“ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 39).
Assim, na citação acima, temos Heidegger atentando que, no âmbito dos conceitos
fundamentais da filosofia, é duvidoso recorrer à evidência, sendo que o “evidente”
deve ser e permanecer o tema explícito da analítica (“o ofício dos filósofos”).
O exame desses três preconceitos elencados por Heidegger foi no intuito de deixar
claro a obscuridade e a falta de resposta para o problema do ser, que mostrava-se,
mais do que nunca, carente de uma solução (HEIDEGGER, 2008, p. 39). Solução
proposta em Ser e Tempo.
Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da
questão fundamental, seu sentido precisa, portanto, adquirir a devida
transparência. Daí a necessidade de se discutir brevemente o que pertence
a uma questão para, a partir daí, poder-se mostrar a questão do ser como
uma questão privilegiada (HEIDEGGER, 2008, p. 40).
Heidegger, na síntese histórica de Ser e Tempo, mostra em seguida que Kant,
assumindo a posição ontológica de Descartes - esse por sua vez “dependente” da
escolástica medieval (HEIDEGGER, 2008, p. 63) - viria a omitir algo essencial, a
saber, uma ontologia do Dasein, do fenomenológico ser-aí (HEIDEGGER, 2008, p.
62).
De acordo com o filósofo, no “cogito sum”, Descartes pretendia dar à filosofia um
fundamento novo e sólido, porém, acabou por deixar indeterminado, nesse seu
princípio radical, o modo de ser da res cogitans, ou mais precisamente, o próprio
sentido do ser do sum (HEIDEGGER, 2008, p. 63).
René Descartes lançou as bases filosóficas do edifício moderno ao
privilegiar o papel da dúvida, concluindo daí que a existência do ser
25
pensante é a primeira verdade que não pode ser negada pela dúvida – um
princípio formulado por meio de sua apropriação da máxima de Agostinho
Cogito ergo sum (Penso, logo existo). Descartes, portanto, definiu a
natureza humana como uma substância pensante e a pessoa humana como
um sujeito racional autônomo. Posteriormente, Isaac Newton deu à
modernidade seu arcabouço científico ao descrever o mundo físico como
uma máquina cujas leis e regularidade podiam ser apreendidas pela mente
humana. O ser humano moderno pode muito bem ser descrito a substância
autônoma e racional de Descartes, cujo hábitat é o mundo mecanicista de
Newton (GRENZ, 1997, p. 18).
Para o filósofo de Freiburg essa elaboração dos fundamentos ontológicos implícitos
no “cogito sum”, depois dos preconceitos já elencados, constitui o ponto de parada
na segunda estação a caminho de um retorno destruidor à história da ontologia
(HEIDEGGER, 2008, p. 63). Heidegger diz que a interpretação comprova que
Descartes, por ter supostamente descoberto uma certeza absoluta, omitiu a questão
do ser como também se mostrou dispensado da própria tarefa do questionar.
Embora Descartes houvesse posto a duvida na base de seu filosofar, ele
não teria sabido levá-la a bom termo. Assim, radicalizar a dúvida
cartesiana, ir além do horizonte deixado pelo cogito, do qual também Kant
não teria se desvencilhado, seria efetuar enfim a crítica peremptória da
metafísica, pois: “Se ‘há apenas um ser, o Eu’, e se todos os outros ‘seres’
(Seienden) são feitos à sua imagem, - se afinal a crença do ‘Eu’ coincide
com a crença na lógica, isto é, na verdade metafísica das categorias da
razão: se, de outra parte, o próprio eu se revela como vindo-a-ser
(Werdendes): então:...” (XII, & (55)). Reconhecer naquilo que se chamou
espírito, alma, ou sujeito apenas um processo de tornar-se, de vir-a-ser
significaria questionar radicalmente os referenciais possibilitadores da
tradição metafísica. A derrocada do eu enquanto Sein, Substanz, seria
acompanhada pela ruína da noção de mundo verdadeiro, seiende Welt
(ONATE, 2000, p. 17).
Ser e Tempo fora escrito à época em que os filósofos - herdeiros de Descartes -
enfrentavam a metafísica questão do universal e dos particulares com um aparato
metodológico variado em suas características, mas abarcados todos na corrente de
pensamento caracterizada como “teorias do conhecimento” ou epistemologia. A
epistemologia compreende o estudo sistemático da natureza. Ela pergunta pela
forma e capacidade de apreensão do conhecimento e do mundo. As respostas
26
revelam dois tipos de teorias de conhecimento, que podem ser agrupadas com
relação ao seu grau de ênfase na subjetividade ou objetividade do conhecimento
(HUNNEX, 2001, p. 13). A epistemologia pergunta: “Nós conhecemos um mundo
independente ou simplesmente a nossa experiência”?
As teorias subjetivas do conhecimento respondem: “Não, nós não
conhecemos um independente como a causa de nossas idéias. Nós não
podemos ir além da nossa experiência ou das nossas idéias, e não
podemos falar de um conhecedor que as experimenta”. As teorias
objetivistas do conhecimento respondem: Sim, nós conhecemos um mundo
independente de objetos materiais (algumas formas de materialismo e
realismo) ou de idéias transcendentes (idealismo platônico) (HUNNEX,
2001, p. 13).
As teorias de conhecimento se dividiam natural, teórica e historicamente nas duas
escolas do racionalismo e do empirismo. Para Heidegger, como vimos, o rumo que a
epistemológica abordagem metafísica do ser tomou na filosofia moderna,
independente da escola e forma de investigação, acabou por fim assegurando a
“indefinição” ontológica da questão (HEIDEGGER, 2008, p. 37).
O questionamento metafísico sobre o “que” do ser passava então na modernidade,
há ser substituído pelo seu “como”. Nessa mudança de forma de abordagem, o que
se tornava importante para os filósofos modernos era a possibilidade de
conhecimento e apreensão cognitiva do ser.
Os filósofos modernos, preocupados ainda com a questão da moral, passam a
tomar o homem como um sujeito cognoscente autônomo, capaz de tomar
consciência - partindo de suas faculdades - senão do todo do ser, ao menos de
parte da existência de um “todo”. No desdobramento máximo dessa busca, o homem
seria então capaz da apreensão e do conhecimento da “verdade”. Essa mudança da
forma de questionamento, do “que” para o “como” do ser, demonstra o processo de
“subjetivação” marcante da Modernidade (ONATE, 2000, p. 16-17).
Esse sujeito autônomo em sua subjetividade seria o responsável em fundamentar a
possibilidade do saber (GRENZ, 1997, p.127). A procura pela verdade
transcendental e universal, o “existente”, passa então a não ser mais tomado como
matéria do “pensado”, mas sim, do passível de ser “representado”. A tentativa
27
Moderna de identificar pontos estruturais de pensamento e resolver a questão dos
universais, partiu então, primeiramente, da valoração do sujeito individual
cognoscente e da sua essencial ou existencial busca de fundamentar uma
metafísica relação com um todo inexprimível.
Nessa busca de um meio que possibilitasse ao indivíduo humano a representação
dos assuntos metafísicos, emerge a questão da “linguagem” (ONATE, 2000, p. 35-
36). Essa questão é, emblematicamente, o resultado da necessidade de
representação do existente experimentada por esse sujeito moderno.
Este projeto filosófico metafísico da Modernidade, onde a universalidade estaria
intrínseca numa subjetividade que proporcionaria os pressupostos para a apreensão
da verdade - subjetividade essa determinada pelo sujeito empírico – começou no
final do século XIX, principalmente na filosofia de Nietzsche, a se tornar
insustentável.
Sob muitos aspectos, pode-se dizer que René Descartes e Emanuel Kant
escreveram o primeiro e o último capítulos da história da filosofia do
Iluminismo. A máxima cartesiana introduziu o personagem principal - o eu
como substância pensante. Os problemas resultantes dessa visão do eu,
culminado com o ceticismo de Hume foram finalmente resolvidos pelo
postulado kantiano da mente ativa e pela afirmação das categorias
transcendentais como fundadores do conhecimento o que promovia o eu
autônomo ao centro do programa intelectual. A obra desses dois filósofos
fixou os parâmetros que definiriam a empresa moderna. Nenhum dos
pensadores que vieram posteriormente conseguiriam escapar da longa
sombra por eles projetada. Parecia que haviam deixado o eu firmemente
entrincheirado na paisagem intelectual. Todavia, nem todos os seus
seguidores ficaram totalmente satisfeitos com o legado que herdaram
desses dois gigantes da filosofia (GRENZ, 1997, p.127).
Nietzsche, na crítica da concepção de sujeito da era Moderna e do primado
epistemológico desse período, arquitetou e desenvolveu sua filosofia oposicionista,
fundamentado-a nos pressupostos presentes na questão da moralidade. Com a
teoria do “niilismo” ele apresentava o equivocado legado da tradição no processo de
construção do homem europeu com seu legado metafísico.
28
Para Nietzsche, o niilismo é o resultado do esvaziamento das categorias
metafísicas que funcionavam com os valores supremos até aqui, porquanto
determinavam radicalmente o modo de estruturação da existência do
homem ocidental enquanto tal. Nesse contexto, “morte de Deus” é uma
expressão que sintetiza em si o significado mesmo do fenômeno do niilismo.
O que interessa a Heidegger nessa expressão, porém, muito mais que as
consequencias é o que ela traz consigo para a própria dinâmica do
pensamento metafísico. O niilismo em sua associação com o acontecimento
da morte de Deus baseia-se em uma supressão radical da dicotomia
metafísica entre sensível e suprassensível e em uma consequente redução
da totalidade do plano ôntico, ao plano das configurações fugazes de
duração relativa no devir. Exatamente essa supressão e essa redução
trazem consigo um dilema quanto à própria concepção heideggeriana da
essência do pensamento metafísico. Heidegger compreende a metafísica a
partir da noção e esquecimento do ser (CASANOVA, 2000,pp. 210-211).
Em sua crítica, o sujeito da modernidade, com a sua moralidade dos “ressentidos”,
dos “fracos”, dos “escravos”, não passaria de uma ficção da linguagem.
Consequentemente, a apreensão de uma “verdade” metafísica seria para esse
homem moderno, enquanto pautado em seus insuficientes pressupostos lingüísticos,
impossível. A crítica de Nietzsche viria a influenciar marcantemente o trabalho de
Heidegger.
A partir de Nietzsche Heidegger escreve o seu Nietzsche, que é também a
versão literal da história da metafísica entendida como a história do ser do
ente, ou seja, da busca de um princípio reconhecível para o que é, o qual,
poderoso, todo o mais é dependente. Em certo modo, é também um ajuste
de contas do próprio Heidegger consigo mesmo: o reconhecimento de que a
linguagem da metafísica, incluindo seu próprio nome “metafísica”, assim
como ontologia, essência – existência, forma – matéria, natureza – espírito,
constituem resistências insuperáveis para o pensar que se sugere como
“verdade do ser”. A palavra “verdade” inclui-se nessa leitura, podendo até a
cair com os demais conceitos, porém essa queda deve ser entendida
sempre não como abandono da questão, mas precisamente o expediente
para coletá-la na perspectiva que se acha mais clara, e não tapada por um
nome (LEYTE, 2005, p. 221).
No processo de busca da compreensão do mecanismo da existência temporal do
homem no mundo, da sua existência fática, Heidegger, de acordo com seus
estudiosos, teria sido o primeiro filósofo a tomar Nietzsche como um pensador sério
29
6. Poderíamos identificar, ainda, as influências nietzschianas no trabalho do autor de
Freiburg na forma como ele desenvolveu a própria releitura genealógica do processo
sobre a construção histórica do ser, a qual consta sinteticamente em Ser e Tempo,
releitura a partir da qual fundamentaria sua nova e original abordagem da
investigação do ser (GRENZ, 1997, p.154).
O problema da metafísica obteve importante realce na cena interpretativa do
trabalho nietzschiano com a publicação dos cursos e digressões a ele
dedicados por Heidegger, reunidos na densa obra Nietzsche. Nela
encontramos o pensador da Floresta Negra procurando construir seu
próprio caminho através da discussão profunda e original das perspectivas
abertas pelos escritos do filósofo de Sils-Maria. Propondo-se a “questionar
com ele, através dele e também contra ele, a única e comum questão, a
mais interior da filosofia ocidental (Nietzsche, 1961, Tomo I, p. 30), esta
leitura acaba por inscrever o pensamento analisado na esteira da
interrogação milenar sobre o significado último da realidade, do ente. Vistas
por este ângulo, as doutrinas da vontade de potência e do eterno retorno,
embora tivessem o grande mérito de instaurar o estágio derradeiro do
acabamento da metafísica em que se encerram suas possibilidades de
realização ou recomeço, levando assim aquela interrogação às últimas
consequencias, não teriam obtido êxito na abertura à questão, ao horizonte
do Ser. Decorre daí que Nietzsche seja considerado o “último metafísico do
ocidente”, encerrando definitivamente o circuito de reflexão que há milênios
domina nosso horizonte. Contudo, fechar o círculo não significaria escapar
dele e ainda menos superá-lo, apontando para novas tarefas, que
Heidegger pretende acolher e explorar na esfera de seu pensar essencial, e
sua ontologia fundamental (ONATE, 2000, p. 11).
Heidegger pretendia na segunda parte de Ser e Tempo voltar a Aristóteles,
passando novamente por Kant e Descartes, no intuito de apontar os traços
fundamentais de uma destruição fenomenológica da história da ontologia segundo o
fio condutor da problemática da temporalidade. Essa parte da obra, porém, nunca foi
escrita (PÖGGELER, 2001, p. 19).
6 HEIDEGGER, “The word of Nietzsche: God is dead”, in: “The question concerning
technology” and other essays, trad. Willian Lovitt (New York, Harper & Row, 1977, p. 54-55), in
GRENZ, 1997, p.154.
30
1.3 A recolocação da questão do ser
Ser e Tempo é a proposta de Heidegger de retomar o processo de desenvolvimento
da questão do ser. É a proposta de recuperar o que foi relegado, o fundamento
esquecido da metafísica, sobre o qual se baseia todo o ser pensado. Para o filósofo,
a retomada da indagação pelo significado do ser pressuporia, primeiramente, o
cuidado de elaborar de forma suficiente a própria questão. A questão do ser pedia
uma reformulação da forma de indagação. Ser e Tempo nos fornece então uma
nova e original forma de indagação do como, do sentido, do ser.
Heidegger diz que a indagação pelo sentido do ser deve ser repetida, porque ela
pertence ao pensamento metafísico desde o seu início como o impensado, porém
ela deve ser recolocada a partir das razões objetivas, nas quais a “dignidade” da
origem da questão possui sua raiz (PÖGGELER, 2001, p. 50).
Como vimos, o filósofo de Freiburg reconhecia a importância que a questão do ser
representava para o mundo grego. O que não teriam feito, e que propõe em sua
ontologia fundamental, é perscrutar o conceito de ser e procurar um modo suficiente
de compreendê-lo. Sobre a citada indagação dos Sofistas o autor coloca: “Hoje, não
só não temos qualquer resposta àquela indagação, como nem sequer sentimos a
necessidade de indagar assim. Por esse motivo, não só deverá hoje ser colocada de
novo a indagação pelos sentido do ser, mas também deverá despertar uma
compreensão para esta indagação” (PÖGGELER, 2001, p. 50).
Em sua cunhagem escolástica, o essencial da ontologia grega se transpôs,
através das Disputationes metaphysicae, de Suárez, para a metafísica e
filosofia transcendental da Idade Moderna, chegando ainda a determinar os
fundamentos e objetivos da Lógica de Hegel, porque no curso dessa
história, focalizam-se certas regiões privilegiadas de ser que passam então
a guiar, de maneira primordial, toda a problemática (o ego cogito de
Descarte, o sujeito, o eu, a razão, o espírito, a pessoa), essas regiões
permanecem inquestionadas quanto ao ser e à estrutura de seu ser, de
acordo com o constante descaso da questão do ser. Ao invés disso,
31
estende-se a este ente o acervo categorial da ontologia tradicional mediante
uma formalização correspondente a delimitações meramente negativas; ou
então, recorre-se à ajuda da dialética com vistas a uma interpretação
ontológica da substancialidade do sujeito (HEIDEGGER, 2008, p. 60).
Heidegger tinha por certo que até então o que vinha sendo feito - remontando o
Platão transcendental, o Aristóteles categorial, passando pelos escolásticos,
agostinianos ou tomistas, com a reviravolta renascentista, os vislumbres iluministas
chegando finalmente aos modernos e sua proposta de perscrutação racional – era
perguntar pelo ser tímida e medianamente. Para o filósofo, enquanto tomado como
transcendentalmente obscuro e sua “universalidade” como inalcançável, fadava-se
ao insucesso o empreendimento de investigação do ser (CASANOVA, 2000,p. 78).
Do mesmo modo, vimos que para o pensador de Freiburg, colocar a
responsabilidade da interpretação do ser sobre o tanto quanto subjetivo indivíduo
moderno, com sua racionalidade aos moldes cartesianos e sua controversa
transcendentalidade, seria, mais uma vez, decretar o fracasso da ontologia e
decretar também que o ser continuasse tão encoberto quanto vinha estando até
então.
A tradição assim predominante tende a tornar tão pouco acessível o que ela
“lega” que, na maioria das vezes e numa primeira aproximação, ela encobre
e esconde. Entrega o que é legado à responsabilidade da evidência,
obstruindo assim, a passagem para as “fontes” originais, de onde as
categorias e os conceitos tradicionais foram hauridos, em parte de maneira
autêntica e legítima. A tradição até fez esquecer essa proveniência. Cria a
impressão de que é inútil compreender simplesmente a necessidade do
retorno às origens. A tradição desarraiga de tal modo a historicidade do ser-
aí que ele acaba se movendo apenas no interesse pela multiplicidade e
complexibilidade dos possíveis tipos, correntes, pontos de vista da filosofia,
no interior das culturas mais distantes e estranhas. Com esse interesse, ele
procura encobrir seu próprio desarraigamento e ausência de solidez. A
consequência é que, com todo o seu interesse pelos fatos historiográficos e
em toda sua avidez por uma interpretação filologicamente “objetiva”, o ser-aí
já não é capaz de compreender as condições mais elementares que
possibilitam um retorno positivo ao passado, no sentido de sua apropriação
produtiva (HEIDEGGER, 2008, pp. 59-60).
32
Para a filosofia ontológica de Ser e Tempo, dentro dessa problemática, a própria
forma do questionar seria tão fundamental quanto o objeto questionado. Tão
importante quanto propriamente investigar o ser, seria ter bem claro como a
investigação seria feita.
Todo questionar é um buscar. Toda busca retira do que se busca a sua
direção prévia. Questionar é buscar cientemente o ente naquilo que ele é e
como é. A busca ciente pode transformar-se em “investigação” se o que se
questiona for determinado de maneira libertadora (HEIDEGGER, 2008, p.
40).
Heidegger propõe, ao recolocar a questão do ser, buscar o máximo de “certeza de
um fato de que apenas temos provas morais7”. Para o autor, essa tarefa poderia ser
realizada somente através do ente. Porém não um ente qualquer e sim um ente
dotado de características exclusivas e específicas, com uma estruturação prévia
coerentemente própria e preparada para esse tipo do questionamento.
Com o ente que se constrói no tempo, no devir, e que acontece no mundo, o Dasein,
Heidegger, como fizera Nietzsche, viria a formular sua negação ousada do conceito
cartesiano-kantiano do eu, o sujeito conhecedor que depara com o mundo como
objeto. Heidegger mostra em sua proposta ontológica fundamental que o ponto de
partida da filosofia não é a existência de um ser pensante consciente de si mesmo,
mas simplesmente em “ser aí” (GRENZ, 1997, p.155).
A substituição do ser pensamente que confronta seu objeto pelo “ser-aí”
abre caminho para a compreensão mais holista da realidade. Com isso,
tem-se um meio para evitar o dualismo sujeito-objeto e a experiência dupla
do “eu” e do “mundo” em favor de um fenômeno unitário, o “o-ser-presente-
e-acessível-junto” do sujeito e do objeto. Essa visão de ser-no-mundo como
um todo sem costuras possibilita a Heidegger atacar incansavelmente o
dualismo que, em sua opinião, tem dominado a filosofia (e a teoria literária)
desde Descartes. Seu objetivo é desalojar dicotomias tais como mente e
corpo, o eu e o mundo, sujeito e objeto, o eu e o outro. De modo particular,
ele quer se livrar da noção do sujeito como substância independente que
existe acima do tempo e da sociedade humana e que habita algum reino
transcendente à parte da vida. A insistência de Heidegger em que nos
7 Conforme a definição de “convicção” em: http://www.priberam.pt (22/07/11,
16hs22min)
33
alicercemos no mundo conduz ao que, talvez, tenha se tornado o aspecto
mais importante de seu pensamento para os filósofos pós-modernos que
reivindicam sua herança; ele oferece uma crítica desafiadora à
compreensão filosófica do que seja a “presença” (GRENZ, 1997, p.156).
O autor, ao apresentar o conceito do Dasein, desenvolve um questionamento do ser
diferente enquanto uma ontologia pautada sobre um método epistemológico
moderno, o fenomenológico. Sua ontologia assume então, nas palavras do autor, um
caráter destrutivo, no sentido de que consiste coerentemente não em superar, negar
ou aniquilar a tradição e a epistemologia, mas em compreendê-las no âmbito da
história da compreensão do ser (SÁ, 2008, p.6).
A destruição também não tem o sentido negativo de arrasar a tradição
ontológica. Ao contrário, ela deve definir e circunscrever a tradição em suas
possibilidades positivas, e isso quer sempre dizer em seus limites, tais como
de fato se dão na colocação do questionamento e da delimitação, assim
pressignada, do campo de investigação possível. Negativamente, a
destruição não se refere ao passado; a sua crítica volta-se para o “hoje” e
para os modos vigentes de se tratar a história da ontologia, quer esses
modos tenham sido impostos pela doxografia, quer pela história da cultura
ou pela história dos problemas. Em todo o caso, a destruição não se propõe
a sepultar o passado em um nada negativo, tendo uma intenção positiva.
Sua função negativa é implícita e indireta (HEIDEGGER, 2008, p. 61).
Heidegger propõem, com a ideia de destruição da ontologia tradicional, o início da
releitura da história da interpretação do ser, dada dentro da história da cultura
ocidental. Dentro desse processo de destruição, presente em toda sua obra, não só
em Ser e Tempo, fica evidente a construção e manifestação estrutural da própria
história do ser. O filósofo procura identificar como é possível construir uma nova
ontologia situada nesta compreensão de ser legada pela tradição ontológica
ocidental. Para isso tem agora que procurar o ponto base a partir do qual pode-se
preparar solidamente o fundamento da sua nova ontologia. A esta procura poder-se-
ia chamar a fase edificante ou construtiva da sua ontologia fenomenológica (SÁ,
2008, p.8).
Esta construção pressupõe automaticamente uma confrontação com a tradição
ontológica da qual surge. Esta confrontação - mediante a nova metodologia
epistemológica empregada por ele, a fenomenológica - é necessária para a
34
construção de sua nova ontologia (SÁ, 2008, p. 6). A construção da nova ontologia
fenomenológica heideggeriana, pressuporá então a destruição da tradicionalmente
praticada pela filosofia do ocidente.
Heidegger atenta para o cuidado de tomar essa construção como ela realmente é, a
saber, destrutiva, porém não destruidora. A observância desse pressuposto garante
o caráter explícito que sua nova proposta procura garantir ao ser. Sendo o ser,
dentro da ontologia fundamental heideggeriana, analisado através do ente que se
constrói no tempo, seria incoerente a rejeição da herança histórica na qual esse ente
acontece e se compreende (SÁ, 2008, p. 6).
Em seu processo destrutivo / construtivo, o filósofo atenta para o desenvolvimento
das ciências, carente de uma revisão de suas noções fundamentais e que,
consequentemente, exige um indagar primordialmente ontológico. Heidegger aponta
a primazia ontológica da questão do ser:
Indicando-se na psicologia, antropologia e biologia a falta de uma resposta
precisa e suficientemente fundada, do ponto de vista ontológico, para a
questão do modo de ser deste ente que nós mesmos somos, não se
pretende emitir um julgamento sobre o trabalho positivo destas ciências. Por
outro lado, deve-se ter sempre em mente que estes fundamentos
ontológicos não podem ser obtidos posteriormente a partir de hipóteses
sobre um material empírico. Pois quando o material empírico está sendo
simplesmente coletado, os fundamentos já estão sempre “presentes”. Se as
pesquisas positivas não vêem esses fundamentos, considerando-os
evidentes, isso prova que eles não se achem à base e que não sejam
problemáticos, num sentido mais radical do que poderá ser uma tese das
ciências positivas (HEIDEGGER, 2008, p. 95).
Na rearticulação da questão, ao invés de simplesmente tomar a ideia do ente e
prepará-lo com um arcabouço conceitual próprio para atender à sua proposta,
Heidegger toma antes - parágrafo de número dez de Ser e Tempo - o cuidado de
poupar o ente da carga de características desnecessárias, prejudiciais à pesquisa,
que lhe foram incorporados pela influência da tradição no qual se desenvolveu.
Como resultado dessa preocupação, ao introduzir na filosofia o conceito Dasein,
Heidegger substitui o termo “homem” por um análogo, porém livre dos atributos
impregnados historicamente e que sistematicamente vinham impedindo a filosofia,
35
enquanto ontologia, de corresponder com uma busca eficiente da compreensão do
ser (CASANOVA, 2000,p. 90).
Com o Dasein, o específico ente ser-aí, e ciente da natureza insondável do “que” do
ser, o filósofo predispõe-se, em sua proposta ontológica fundamental - enquanto
fenomenológica - a seguir o preconizado pelo contexto moderno em que surge,
propondo-se assim a investigar a possibilidade do “como” do ser. A busca pelo
sentido, o “como” do ser, faz parte da fase edificante ou construtiva da sua ontologia
fenomenológica.
Caso a questão do ser deva ser colocada explicitamente e desdobrada em
toda a sua transparência, a sua elaboração exige, de acordo com as
explicações feitas até aqui, a explicação da maneira de visualizar o ser, de
se compreender, escolher, aceder a são atitudes constitutivas do questionar
e, ao mesmo tempo, modos de ser de um determinado ente, daquele ente
que nós mesmos, os que questionam, somos. Elaborar a questão do ser
significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona – em seu
ser. Como modo de ser de um ente, o questionar desta questão se acha
essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser.
Designamos com o termo Dasein esse ente que cada um de nós mesmos
sempre somos e que, entre outras coisas, possui em seu ser a possibilidade
de questionar. A colocação explícita e transparente da questão sobre o
sentido do ser requer uma explicação prévia e adequada de um ente
(Dasein) no tocante a seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 42).
O Dasein então é estruturalmente fundamental dentro da proposta ontológica do
autor, pois somente com este ente especial e através dele, dado sua natureza
ôntica, é possível o processo da construção da nova ontologia de cunho
fenomenológico.
A análise do Dasein é, enquanto preparatória, determinante de toda
construção fenomenológica da ontologia. O ser não é nada fora da
compreensão do ser. O ser não é senão no Dasein. E, consequentemente,
a constituição ontológica do Dasein – constituição essa que tem, enquanto
determinante do ente que é Dasein, uma dimensão ôntica – determina o
próprio ser na sua intrínseca constituição. Assim, embora a análise
publicada em Sein und Zeit possa ser considerada, para questões de
natureza ôntica, incompleta e insuficiente, ela não pode deixar de ser, para
a elaboração da ontologia fenomenológica, vinculante e paradigmática. E se
36
o método fenomenológico da ontologia fundamental se espraia por dois
momentos essenciais – uma construção fenomenológica e uma destruição
fenomenológica - momentos esses que mutuamente se pertencem, tal quer
dizer que a análise preparatória do Dasein deve fundamentar não apenas a
elaboração construtiva da ontologia fundamental, mas também a sua
elaboração destrutiva. Por outras palavras, se a construção fenomenológica
consiste numa cabeça de Janus, arrastando sempre atrás de si o rosto
inevitável da destruição, é nessa mesma construção fenomenologica, e na
análise preparatória do Dasein que a possibilita, que se torna possível a
Heidegger fundamentar a destruição fenomenológica que a construção
necessariamente encerra (SÁ, 2008, p. 8).
Estabelecendo esta terminologia, Dasein, Heidegger livra-se da expressão “homem”.
A terminologia não é arbitrária, sua intenção com isso é dividir as propriedades do
conceito comum da palavra para com o novo termo possibilitar a apreensão de uma
gama de elementos fenomenologicamente demonstráveis. Por exemplo: enquanto
Kant coloca como características definidoras e inerentes da ideia de homem
propriedades como liberdade e dignidade que inerentemente pressupõe
espontaneidade da natureza humana, Heidegger oferece primordialmente uma
interpretação na qual o homem aparece como um conglomerado de possibilidades
de ser (ARENDT, 1993, p. 29). Assim, o ser procurado e interrogado pelo Dasein é o
seu próprio ser:
O ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos. O ser deste ente
é sempre e cada vez meu. Em seu ser isto, isto é, sendo, este ente se
relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser, o ser-aí se entrega à
responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser é o que neste ente esta
sempre em jogo (HEIDEGGER, 2008, p. 85).
O Dasein, o ser-aí, é o fenômeno analisado da existência humana manifesta em
cada um de nós. Dasein é o homem enquanto presente temporal e espacialmente
no mundo. Na continuação do trecho citado acima, Heidegger deixa bem claro a
influência de Heráclito em sua definição de homem, pois o ente analisável do
homem, uma vez realizando-se no tempo, é devir.
O elemento “temporalidade”, fundamental na filosofia de Ser e Tempo, constitui este
“ser”, objeto da ontologia, que acontece no tempo - quando procurado através do
ente temporalmente finito - pois, nas palavras do autor: “A essência deste ente está
37
em ter de ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 85), ainda “A essência do ser-aí está em sua
existência” (HEIDEGGER, 2008, p. 85).
Uma vez associados estes dois conceitos - ser-aí e temporalidade - entre si,
postula-se que Dasein é temporalidade. Podemos dizer que o ser-aí é um ser-sendo.
O autor chama nossa atenção, entretanto, para termos cuidado em não tomar as
qualidades desse ser-sendo como propriedades simplesmente dadas para um ser
igualmente, e simplesmente também, dado - pedra, boi (HEIDEGGER, 2008, p. 85).
Consequentemente, este não ser simplesmente dado, constitui uma propriedade do
Dasein de ser ele sempre um modo possível de ser e somente isso. Essa
possibilidade de ser é o que nos torna o que somos. Somos possibilidades de ser.
Fundamental também o conceito de possibilidade, pois o Dasein é possibilidade
enquanto sendo existencialmente (HEIDEGGER, 2008, p. 87).
Enquanto vivos estamos abertos as diversas possibilidades de ser, porém, temporal
que somos, estamos vinculados a um fim, isto é, a morte. O Dasein é livre para ser,
no entanto ele tem a sua estrutura existencial determinada à finitude da morte.
Ciente disso, o Dasein, sabe-se como ser-para-a-morte. Dentro da ontologia
fundamental heideggeriana em Ser e Tempo, a morte é o horizonte da finitude que
faz com que o Dasein volte-se para a tarefa de questionar sua existência
(HEIDEGGER, 2008, p. 320).
Da mesma forma que o ser-aí, enquanto é, constantemente já é o seu
ainda-não, ele também já é sempre o seu fim. O findar implicado na morte
não significa o ser e estar-no-fim do ser-aí, mas o seu ser-para-o-fim. A
morte é um modo de ser que o ser-aí assume no momento em que é. “Para
morrer basta estar vivo” (HEIDEGGER, 2008, p. 320).
Dessa forma, o Dasein é o homem como fenômeno existencial humano. Vimos que
Heidegger não faz psicologia nem antropologia muito menos biologia (HEIDEGGER,
2008, p. 89), sua preocupação filosófica é retomar o questionamento ontológico do
ser do homem, que remonta o pensamento pré-socrático, em que o particular, o
individual, expressa o ser em sua totalidade. Vimos, que sua crítica aos
desdobramentos que a filosofia desenvolvera até sua época estava exatamente
nesse relegar do problema do ser para um segundo plano, deixando às teorias de
conhecimento o foco de atenção.
38
Com o Dasein, Heidegger retomou e reconstruiu a antiga simbiose entre ser e
pensamento, entre essência e existência, existente na filosofia antiga, entre o ser
existente e o quê do ser existente concebível pela razão (ARENDT, 1993, p. 29).
Nesse ser essência e existência são imediatamente idênticos. Sua essência é sua
existência. Em sua filosofia a substância do homem que importa não é um espírito,
mas sim a existência analisável (ARENDT, 1993, p. 29). Quando falamos de
“homem”, então não nos interessamos pelo quê e sim pelo quem:
Em meio às ruínas da antiga harmonia pré-estabelecida entre Ser e
pensamento, entre essência e existência, entre o ser existente e o Quê do
ser existente concebível pela razão, Heidegger afirma que ele encontrou um
ser no qual essência e existência são imediatamente idênticos e este ser é o
Homem. Sua essência é sua existência. “A substância do Homem não é o
espírito ... mas a Existenz.” O homem não tem substância, o importante a
seu respeito é isto que ele é; não se pode perguntar pelo Quê do Homem
como se pergunta pelo Quê de uma coisa, mas apenas pelo seu Quem. O
Homem como identidade de Existenz e essência pareceu ter fornecido uma
nova chave para a questão relativa ao Ser em geral. Basta apenas recordar
que para a metafísica tradicional Deus era o ser em quem essência e
existência coincidiam, em quem pensamento e ação eram idênticos e que
por isso era interpretado como o fundamento em um outro mundo para todo
o Ser deste mundo (ARENDT, 1993, p. 29).
Segundo o pensamento metafísico tradicional, o único ser em que essência e
existência coincidiam era Deus. A partir de Ser e Tempo, podemos pensar que
enquanto Deus por sua natureza, fundamentado num plano transcendente, se faz
soberano Senhor dos seres em geral, o homem, como Dasein, como sendo, realiza-
se existencialmente sem o plano absoluto do divino. Deus é Senhor de tudo porque
sendo atemporal sempre é, já o Dasein - existência temporal que é - se constrói no
devir existencialmente na esfera da finitude. Em sua realização, o Dasein traz
consigo, diferentemente de todos os demais entes, a possibilidade de questionar
sobre seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 260).
Para existir entretanto a possibilidade de um ente questionador da existência ou do
significado de um ser do qual ele, ente, faz parte, se origina ou simplesmente é, não
se teria que supor, a priori, a já existência desse ser possibilitador desse ente que
questiona? Na recolocação da questão, Heidegger apresenta a possibilidade de se
39
cair num “círculo vicioso” ao se utilizar uma metodologia que primeiramente tem que
determinar o ente em seu ser para então, a partir daí, querer aprofundar
propriamente a questão do ser. “Para se elaborar a questão, não se está já
pressupondo aquilo que só a resposta à questão poderá proporcionar?”
(HEIDEGGER, 2008, p. 43).
Seria possível fazer uma ontologia, partindo do ente que supostamente é uma
manifestação imanente do ser, o qual questiona a possibilidade? Heidegger diz que
sim, que “não há nenhum círculo vicioso no questionamento da questão. O ente
pode vir a ser determinado em seu ser sem que, para isso, seja necessário já dispor
de um conceito explícito sobre o sentido do ser” (HEIDEGGER, 2008, p. 43).
Ele fundamenta seu pensamento dizendo que se a retomada da questão da
ontologia a partir do ente não fosse viável, não seria sequer possível buscar a
compreensão do ser e consequentemente não se teria até hoje nenhum
conhecimento ontológico, o que significaria que, de certa forma, não estaríamos nem
sequer pensando nisso agora.
“Pressupor” ser possui o caráter de uma visualização preliminar de ser, de
tal maneira que, partindo dessa visualização, o ente previamente dado se
articule antecipadamente em seu ser. Essa visualização de ser, orientadora
do questionamento, nasce da compreensão mediana de ser em que nos
movemos desde sempre e que, em última instância, pertence à própria
constituição essencial do Dasein (ser-aí) (HEIDEGGER, 2008, p. 43).
Heidegger, dessa forma, lançando mão então da fenomenologia herdada de seu
mestre Husserl – veremos que ele fará adaptações profundas, dando ao método
fenomenológico husserliano uma nova leitura e forma de aplicação - e do conceito
de Dasein - o ente e sua compreensão mediana, dada no mundo, de ser - recoloca a
questão sobre o ser propondo uma investigação ontológica fundamentada em
pressupostos passíveis da apreensão dentro da estrutura cognitiva preconizada
pelas teorias do conhecimento. Essa é a característica de sua proposta que a leva a
ser tomada como uma nova ontologia, enquanto fenomenológica.
As investigações que seguem tornaram-se possíveis apenas sobre o solo
estabelecido por Edmund Husserl, cujas Investigações Lógicas fizeram
nascer a fenomenologia. As explicitações do conceito preliminar de
40
fenomenologia demonstraram que o que ela possui de essencial não é ser
uma “corrente” filosófica real. Mais elevada do que a realidade está a
possibilidade. A compreensão da fenomenologia depende unicamente de se
apreendê-la como possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 78).
Para compreender essa nova ontologia, a recolocação do questionamento,
compreender também, consequentemente, a existencialidade do Dasein no mundo
fático - quando ele, ser-aí, vivendo em contato com os demais entes na
temporalidade, se torna (como veremos), o impessoal das-Man, o ente assumindo-
se no outro que não é ninguém – e, finalmente, compreender a formulação da
proposta ontológica fundamental de Ser e Tempo no todo, é necessário conhecer os
fundamentos e os pressupostos fenomenológicos herdados pelo autor e a sua
própria concepção de método elaborada a partir dessa herança.
41
1.4 O método fenomenológico
A demanda pelo tipo de conhecimento privilegiado na Modernidade, fez com os
pesquisadores deste momento buscassem métodos que, pautados na
sistematização da racionalidade, demonstrassem a correção fundamental das
doutrinas filosóficas em geral, como também das doutrinas religiosas, morais,
políticas e científicas.
Esse comportamento foi o natural desdobramento do modo de se fazer e encarar o
conhecimento num contexto que era oriundo da tradição que remontava a
valorização do homem dada na Renascença e da metodologia iluminista, que
colocava muitos aspectos da realidade - ao menos no mundo acadêmico – sob a
égide da razão, partindo do princípio que este tipo de leitura da possibilidade do
conhecimento fiava-se nas capacidades racionais do ser humano (ONATE, 2000, p.
25-26).
A fenomenologia, por sua vez, sinteticamente, é a descrição daquilo que aparece ou
a ciência que tem como meta ou projeto a descrição do fenômeno que se manifesta
(ABAGGNANO, 2000, p. 437).
A probabilidade histórica é que este termo tenha sido empregado inicialmente no
mundo acadêmico pela influência do filósofo alemão Christian Wolff no início do
século XVIII, cuja aplicação na esfera dos estudos jurídicos tornava clara a – como
vimos natural na época - pretensão do termo.
Em jus naturae, é exatamente a filosofia jurídica do absolutismo esclarecido
que está presente; o Príncipe, segundo Wolff, deve reconhecer uma moral e
um direito fundados na razão, fora dos poderes temporais. E cabe à
psicologia (de que Wolff é um dos iniciadores) a tarefa de explicar as
necessidades do homem e de definir seus direitos imprescindíveis. Sobre
esses alicerces, Wolff tenta construir cientificamente o direito positivo,
aplicando a esse domínio particular o rigor lógico que Kant e Hegel tanto
admiraram em sua obra (HUISMAN, 2002, p.438).
42
Historicamente, até este momento primordialmente, a fenomenologia era tomada
como a prática da apreensão da aparência ilusória do fenômeno. Kant – que, como
vimos, conhecia essa leitura do fenômeno - vem na obra “Primeiros Princípios
Metafísicos da Ciência da Natureza” de 1786, a utilizar o termo para indicar a seção
na esfera da teoria do movimento que considera o movimento ou o repouso da
matéria somente em relação com as modalidades em que eles aparecem ao sentido
externo da consciência do sujeito (ABAGGNANO, 2000, p. 438). Kant, em seu
entendimento de transcendentalidade, por exemplo, parte do pressuposto que a
filosofia não se dedica a desenvolver um conhecimento novo - nem velho - do
mundo, mas sim, propriamente, a explicar em que consiste “ver” o mundo (LEYTE,
2005, p. 28).
Certamente o eu cartesiano, como coisa aparte, inaugura a compreensão
segundo a qual a consciência se encontra no princípio, tanto do conhecimento
como da ação, porém não deixa de ser uma consciência limitada. De fato, toda
a história da modernidade filosófica se pode ler como o desenvolvimento ou a
história dessa consciência que, paradoxalmente, chega em uma de sua
culminações ao Idealismo alemão, que entende a consciência como sendo -
antes que uma substância - precisamente sua própria história , seu
desdobramento. Em efeito, a consciência , que após a crítica Kantiana perdeu
seu caráter de coisa para supor-se como o que se encontra mais além de todas
as coisas, porém, precisamente por isso, constituindo-as, não é nenhuma
coisa, nenhuma substância, senão seu próprio movimento, o qual, como em
uma odisséia, a conduz desde seu ser imediato e natural (no qual é
simplesmente consciência, sem sabê-lo), para provar-se fora dela mesma,
alienadamente, na natureza e mesclada com as coisas, para logo regressar
triunfalmente a “si mesma”, a casa, já constituída absolutamente depois de sua
viagem e graças a ela (LEYTE, 2005, p. 30).
Hegel, por sua vez, fundamentou sua ideia da consciência “Universal” ou “Infinita”
em sua história romanceada da consciência: “Fenomenologia do Espírito” de 1807,
onde narra as experiências que na apreensão das primeiras aparências sensíveis a
consciência consegue ver a si própria em sua verdadeira natureza. Neste sentido a
fenomenologia hegeliana é a identificação da consciência com o “devir da ciência ou
do saber”, onde através da fenomenologia o indivíduo repercorreria, movendo-se,
relendo, os graus de formação do tal “Espírito Universal” (ABAGGNANO, 2000, p.
438).
43
Esse é o movimento da consciência que o Idealismo, sobretudo com Hegel,
reconheceu como absoluto, fazendo valer o princípio de que a consciência
supõe o todo, pois contém e agrega toda a realidade, que deixaria de ser
fora desse movimento. Essa consciência absoluta, também chamada
“espírito”, que não consiste em algo senão em seu próprio movimento, é
uma compreensão de consciência como figura absolutamente consciente e
racional. E, nesta racionalidade, depois da odisséia do espírito, a
consciência se reconcilia coma realidade e com as demais consciências em
uma espécie de razão universal segundo a qual tudo - a natureza, como
também a história – se modela e se compreende (LEYTE, 2005, p. 30).
Entre 1859 e 1860 em suas “Preleções sobre Metafísica e Lógica” o escocês Willian
Hamilton deu outro rumo de interpretação ao termo. Tomando-o mais positivamente
como um processo psicológico de descrição – precisamente, “psicologia descritiva” –
e foi essa interpretação de fenomenologia, como a pura descrição da aparência
psíquica, anterior a explicação dos fatos psíquicos, que viria a tornar-se comum na
cultura filosófica alemã da segunda metade do século XIX e nos primeiros anos do
século XX. Essa interpretação viria a influenciar e levar o mestre de Heidegger,
Husserl, a desenvolver a base metodológica da ontologia aqui estudada.
A concepção que Husserl começaria a desenvolver sobre a fenomenologia em suas
“Investigações Lógicas” de 1900 e 1901 - a partir da interpretação de Hamilton -
tornar-se-ia a leitura comum e usual do termo até os nossos dias (GALEFFI, 2000, p.
15). Segundo o próprio Husserl, “fenomenologia é um método de crítica do
conhecimento universal das essências”, método que seria a própria ciência da
essência do conhecimento, ou uma doutrina universal das essências (HUSSERL,
1990, p. 22). Assim, para ele, sendo a fenomenologia um método de crítica do
conhecimento universal das essências, ela teria então por meta a constituição da
ciência da essência do conhecimento.
A busca da compreensão da fenomenologia husserliana leva inevitavelmente ao
questionar sobre o sentido de uma “crítica da razão fenomenológica”, ou seja, como
se daria uma crítica do conhecimento a priori, transcendentalmente puro. Surge
então a questão: qual a diferença entre a fenomenologia de Husserl e a filosofia
transcendental kantiana?
44
A “Ideia da Fenomenologia” apresenta as principais teses que deram início à fase
transcendental da filosofia de Husserl, precisamente as concernentes ao método
fenomenológico. Nela Husserl apresenta os fundamentos da sua crítica da razão aos
modos kantianos, o que de pronto já impede a identificação de diferenças essências
entre os dois fenomenólogos, principalmente no que diz ao fundamental ponto da
ideia da constituição do conhecimento crítico, puro, a priori (GALEFFI, 2000, p. 16).
A partir de 1907, Husserl começa a distanciar-se de Hamilton, assumindo então uma
nova leitura gnosiológica da interpretação psicológica descritiva da fenomenologia,
interpretação essa referente à simples esfera das vivências do “eu” que vive
relacionado empiricamente às objetividades manifestas da natureza. Importava
agora distinguir as formas de fenomenologia empírica e transcendental.
Heidegger é um tardio herdeiro dessa concepção que por diversos e até
diferentes caminhos (os caminhos que separam Marx e Nietzsche, por
exemplo, de Dilthey) chega até 1900, quando Husserl reelabora a
concepção de consciência moderna produzindo a que em certo modo bem
pode ser considerada sua figura culminante, a qual ele chamou “ego
transcendental” (LEYTE, 2005, p. 30).
A passagem da fenomenologia empírica para a fenomenologia transcendental marca
a nova posição de Husserl em relação as suas “Investigações Lógicas”. Num
manuscrito de 1907 ele apresenta o porquê da mudança, dizendo que “As
Investigações Lógicas” fariam passar a fenomenologia por psicologia descritiva
(embora fosse nelas determinante o interesse teórico-cognoscitivo). Era, porém, de
fundamental importância distinguir essa psicologia descritiva, entendida como
fenomenologia empírica, da fenomenologia transcendental. Para ele, o que nas
“Investigações Lógicas” designava-se como fenomenologia psicológica descritiva
seria o referente à simples esfera das vivências, conforme o seu conteúdo incluso.
As vivências então, seriam vivências do eu que vive, e dessa forma condizeriam
empiricamente às objetividades da natureza. Mas para uma fenomenologia poder
ser gnosiológica, e para poder ser tomada como uma doutrina da essência do
conhecimento (a priori), ela deveria estar desligada da referência empírica. Com
essa conclusão, desenvolveria então efetivamente sua fenomenologia
45
transcendental que até então figurava em um papel introdutório nas “Investigações
Lógicas” (HUSSERL, 1990, p. 13).
Nessa nova fenomenologia transcendental não lidar-se-ia com uma ontologia
apriórica, nem com lógica formal e matemática formal, nem com geometria como
doutrina apriórica do espaço, nem com cromometria e foronomia apriórica, nem com
ontologia real apriórica de qualquer espécie coisa, mudança, etc. (GALEFFI, 2000, p.
17). A fenomenologia transcendental seria a fenomenologia da consciência
constituinte, portanto não lhe caberia um único axioma objetivo (referentes a objetos
que não são consciência).
O interesse gnosiológico, transcendental, não se dirige ao ser objetivo e ao
estabelecimento de verdades para o ser objetivo, nem, por conseguinte,
para a ciência objetiva. O elemento objetivo pertence justamente às ciências
objetivas, e é afazer delas e exclusivamente delas apenas alcançar o que
aqui falta em perfeição à ciência objetiva. O interesse transcendental, o
interesse da fenomenologia transcendental dirige-se para a consciência,
enquanto consciência vai somente para os fenômenos, fenômenos em
duplo sentido: 1) no sentido da aparência (Erscheinung) em que a
objetividade aparece; 2) por outro lado, no sentido da objetividade
(Objektität) tão só considerada, enquanto justamente aparece nas
aparências e, claro está, transcendentalmente, na desconexão de todas as
posições empíricas... Dilucidar estes nexos entre verdadeiro ser e conhecer
e, deste modo, investigar em geral as correlações entre acto, significação e
objeto, é a tarefa da fenomenologia transcendental (ou da filosofia
Transcendental) (HUSSERL, 1990, p. 14).
A fenomenologia acima apresentada - a qual, mais à frente, Heidegger iria reler - é
uma gnosiologia da consciência, enquanto consciência; é uma filosofia
transcendental como crítica da razão, enquanto fenômeno da consciência
constituinte (GALEFFI, 2000, p. 18).
Assim, desde 1907, a fenomenologia de Husserl já se mostra nos moldes de um
idealismo transcendental, evidência que se tornará fato em 1913 da publicação das
“Ideias para uma Fenomenologia e uma Filosofia Fenomenológicas Puras”
(GALEFFI, 2000, p. 18).
Diante da “crise da razão gnosiológica” do seu tempo, que vinha solapando
qualquer pretensão de se dar seguimento a uma ciência da “constituição” do
46
conhecimento puro (a priori), Husserl restaura a atitude transcendental
como “retorno às coisa mesmas”, provocando, assim, profundas mudanças
no horizonte teórico do fazer filosófico do século XX. Reclamando,
renovadamente, uma nova tarefa para a Filosofia do Sujeito, precisamente
aquela capaz de superar o amadorismo empírico ou o transcendentalismo
ingênuo (ou realista) das épocas anteriores, Husserl projeta para a Filosofia
a possibilidade de desfazer-se dos “tormentos da obscuridade”, e isto
através do método fenomenológico (ou redução fenomenológica) levado às
suas extremas consequências, a saber: o retorno à consciência (GALEFFI,
2000, p. 19)
Para Husserl, esse estratégico conceito, “redução fenomenológica”, proporcionaria o
acesso ao “modo de consideração transcendental”. Em outras palavras, permitiria
um “retorno à consciência”. Através da redução fenomenológica, os objetos se
revelariam em sua constituição.
Na redução fenomenológica, retornando à consciência, os objetos apareceriam na
sua constituição como correlatos dessa consciência. Esse retorno permitiria, então, o
assimilar do ser na consciência, ou, em outras palavras, permitiria que o ser do ente
- ente apreensível, observável, manifesto – nesse movimento de retorno, tornasse-
se consciência. Essa ideia de retorno à consciência - “às coisas elas mesmas” -
constitui o fundamento da fenomenologia husserliana (GALEFFI, 2000, p. 19).
As diferenças identificáveis entre essa sua nova proposta fenomenológica
transcendental, daquela preconizada pela fenomenologia psicológica descritiva, que
tanto o influenciara no começo de seus estudos, devem ser ressaltadas:
O próprio Husserl preocupou-se em eliminar a confusão entre psicologia e
fenomenologia. Esclareceu que psicologia é a ciência de dados de fato; os
fenômenos que ela considera são acontecimentos reais que, juntamente
com os sujeitos a que pertencem, inserem-se no mundo espácio-temporal.
A Fenomenologia (que ele chama de “pura” ou “transcendental”) é uma
ciência de essências (portanto, “eidética”) e não de dados e fato,
possibilitada apenas pela redução eidética, cuja tarefa é expurgar os
fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas e levá-
los para o plano da generalidade essencial. A redução eidética, vale dizer, a
transformação dos fenômenos em essências, também é redução
fenomenológica em sentido estrito, porque transforma esses fenômenos em
irrealidades (Investigações Lógicas, I, Intr.). Com esse significado a
47
Fenomenologia constitui uma corrente filosófica particular, que pratica a
filosofia como investigação fenomenológica, ou seja, valendo-se da redução
fenomenológica e da epoché8 (ABAGGNANO, 2000, p. 438)
A redução fenomenológica, ou método fenomenológico, é o “ato” da consciência de
voltar-se “às próprias coisas”. Dessa forma, seria um caminho para se alcançar
filosoficamente a essência universal do conhecimento absoluto. Lembremos que
para Husserl: “fenomenologia é um método de crítica do conhecimento universal das
essências, método que seria a própria ciência da essência do conhecimento, ou uma
doutrina universal das essências”. E como vimos, neste processo a “atitude natural”
(psicológica, Wolff, Hamilton) é posta em questão, o que significa o exercício crítico
do próprio conhecimento (GALEFFI, 2000, p. 20).
Esta figura (o “ego transcendental”) é a que mais nos interessa se queremos
descobrir o alcance heideggeriano de um pensar fora da consciência, que
se ganha por meio de Husserl,embora diretamente contra ele. Com efeito,
Husserl entendeu por consciência o que ele chamou, recuperando certa
tradição medieval, “intencionalidade”, que define a estrutura da consciência,
em outras palavras, que define a consciência como uma estrutura em se
encontra inextricavelmente vinculados à consciência que pensa algo e
aquele pensado pela consciência (LEYTE, 2005, p. 31).
Temos então outro termo de especial importância dentro da filosofia husserliana, a
questão da “intencionalidade”. O que a fenomenologia de Husserl faz é estruturar a
construção de uma nova compreensão - mais precisa - dos “atos intencionais” que
constituem a consciência, de modo que se possa a vir edificar um conhecimento,
8 Suspensão do juízo, que caracteriza a atitude dos céticos antigos, particularmente de
Pirro; consiste em não aceitar nem refutar, em não afirmar nem negar. O contrário dessa atitude é o
dogmatismo, em que se dá assentimento a alguma coisa obscura, que constitui objeto de pesquisa
científica. Segundo o ceticismo, essa atitude era a única possível para se atingir a imperturbabilidade.
Na filosofia contemporânea, com Husserl e a filosofia fenomenológica em geral, a Epoché tem
finalidade diferente: a contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer
interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na sua
totalidade. Com a Epoché, diz Husserl, “pomos fora de ação a tese geral própria da atitude natural e
pomos entre parênteses tudo o que ela compreende; por isso, a totalidade do mundo natural que está
sempre “aqui para nós”, “ao alcance da mão” e que continuará a permanecer como “realidade” para a
consciência, ainda que nos agrade colocá-la entre parênteses. Fazendo isso, como é de minha plena
liberdade fazê-lo, não nego o mundo, como se fosse um sofista, não ponho em dúvida o seu existir,
como se fosse um cético, mas exerço a Epoché fenomenológica, que me veta absolutamente
qualquer juízo sobre o existente espácio-temporal” (ABAGGNANO, 2003, p. 339).
48
filosófico (enquanto não simplesmente natural) independente do conhecimento
produzido pelas ciências da natureza.
A fenomenologia husserliana assim, enquanto exercício da intencionalidade da
consciência, é um projeto transcendental capaz de validar uma autêntica ciência
filosófica, ciência que tem por ocupação a crítica da própria consciência, e que tem
como objetivo esclarecer sistematicamente, e cada vez mais eficientemente, a
própria consciência dos objetos na sua constituição fenomenal.
Deste modo, ao provocar o retorno radical à consciência pura, a redução
fenomenológica institui a suspeição de todos os dados da consciência
empírica (consciência psicológica, existencial, ôntica), e isto de tal forma
que a própria consciência supera a sua identificação com o conhecimento
natural, mostrando-se como consciência das coisas, de fatos, de ideações,
de afetos, etc., podendo, assim, ser rigorosamente investigada na sua
constituição, ou melhor, no modo como constitui os objetos e é constituída
por eles, segundo uma indissolúvel relação dialética (GALEFFI, 2000, p.
21).
O conhecimento filosófico mostra-se como a dúvida sistemática do conhecimento
natural. É o conhecimento que põe em dúvida o seu próprio modo de conhecer.
“Portanto, um conhecimento capaz de duvidar de si mesmo e de tornar-se o lugar de
alcance das formas a priori da sua constituição, através da “suspensão” de todos os
dados empíricos que, então, se mostram fenômenos da consciência, mas não a
própria consciência” (GALEFFI, 2000, p. 21). E é através da “redução
fenomenológica” que se retorna à própria consciência, que se mostra consciência de
objetos constituídos no próprio ato cognoscente.
Clarifica-se o motivo de comumente tomar-se na fenomenologia husserliana, o
retorno à consciência como o retorno “às próprias coisas”. O ato intencional do
retorno é o que vem a viabilizar a edificação da tal “ciência da essência do
conhecimento”. O conhecimento dessa forma será sempre conhecimento de
“coisas”, e será sempre um conhecer de fatos conscientemente dados.
Cabe agora compreender como Heidegger irá aplicar a fenomenologia como
método de investigação e compreensão do ser.
49
2. A hermenêutica da faticidade
2.1 O método fenomenológico heideggeriano
Heidegger supunha que o conhecimento não somente deveria ser exato (racional)
como também objetivo (GRENZ, 1997, p.19). Dessa forma, podemos compreender a
sua aplicação do método fenomenológico (ou “redução fenomenológica”), como
podemos também conceber o motivo de sua premente necessidade de - haja vista o
nível das críticas à epistemologia de sua época encabeçadas por Nietzsche e
Wittgenstein (HEIDEGGER, 1979, p. 88) - radicalização da metodologia husserliana.
A fenomenologia husserliana, preocupada em sondar a constituição da essência do
conhecimento, tem em si, como qualquer epistemologia, uma preocupação com a
doutrinação e apreensão da universalidade das essências. O que o autor de Ser e
Tempo faz, uma vez de posse desse arcabouço metodológico herdado é, como
comumente dito, radicalizá-lo e levá-lo ás ultimas consequências.
Heidegger então é tomado como o radicalizador da fenomenologia de seu mestre.
Se procedente a afirmação, qual sua fundamentação? Em que sentido Heidegger
radicaliza a fenomenologia husserliana? A apresentação de seu método encontra-se
no sétimo parágrafo de Ser e Tempo, O método fenomenológico de investigação.
Para Heidegger, o método de investigação empregado em sua ontologia já estaria
evidenciado da caracterização se seu objeto alvo, a saber, o ser dos entes ou, em
outras palavras, o sentido do ser em geral (HEIDEGGER, 2008, p. 66). O autor
alerta para o perigo desse método, uma vez aplicado no sentido ontológico,
continuar com seu caráter questionável - sua crítica que já vimos aqui – uma vez que
continue recorrendo às ontologias historicamente dadas ou a tentativas similares.
“Tendo em vista que, nessa investigação, o termo ontologia é usado em sentido
50
formalmente amplo, não se pode seguir o caminho da história das ontologias pra se
esclarecer o método” (HEIDEGGER, 2008, p. 66).
O filósofo diz que o termo “ontologia” não vem a designar uma determinada
disciplina filosófica entre outras, e não deve pretender vir a cumprir a tarefa de uma
disciplina como que previamente dada, mas, a partir da necessidade de resolução
da questão do ser, e do que essa tarefa exige - conquanto o modo como se
manifesta - a disciplina pode vir a ser elaborada (HEIDEGGER, 2008, p. 78).
Ontologia e fenomenologia não são duas disciplinas distintas da filosofia ao
lado de outras. Ambas caracterizam a própria filosofia em seu objeto e em
seu modo de tratar. A filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal
que parte da hermenêutica do Dasein, o qual, enquanto analítica da
existência, amarra o fio de todo questionamento filosófico no lugar de onde
ele brota e para onde retorna (HEIDEGGER, 2008, p. 78).
A fenomenologia a ser empregada em sua ontologia, no sentido e no objetivo, não
vem a ser utilizada, conforme previne, no intuito de vir a prescrever um “ponto de
vista” ou uma “corrente”. A fenomenologia significa pontualmente um conceito de
método. Não caracterizando a quidade9 dos objetos da investigação filosófica, mas
sim seu modo, o como deles.
Heidegger mostra que quanto mais autenticamente se operar um conceito de
método, como também, quanto mais abrangentemente se determinar o movimento
dos princípios de determinada ciência, maior a originariedade em que esse método
virá a se radicar numa discussão com “as coisas mesmas” e mais se afastará de seu
caráter técnico comum nas disciplinas teóricas (HEIDEGGER, 2008, p. 66).
Exposta essa ressalva quanto ao método, ele então cita a famosa frase capital: “A
palavra fenomenologia exprime uma máxima que se pode formular na expressão:
“para as coisas elas mesmas” (HEIDEGGER, 2008, pp. 66-67), frase com a qual ele
pretende erradicar qualquer possibilidade de cair em “construções soltas no ar, às
descobertas acidentais, à admissão de conceitos só aparentemente verificados,
9 Termo introduzido pelas traduções latinas do século XII (do árabe) a partir das obras
de Aristóteles; corresponde à expressão aristotélica quod quid erat esse. O termo significa essência
necessária (substancial) ou substância (ABBAGNANO, 2000, p. 820).
51
ainda, às pseudoquestões que muitas vezes se apresentam como problemas ao
longo do tempo.”
A suposta “evidência” da temática da fenomenologia ele então detalha, atentando à
importância e atenção que a questão pede:
O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; ambos remontam a
étimos gregos. Exteriormente, o termo fenomenologia corresponde, no que
respeita a sua formação, à teo-logia, bio-logia, sócio-logia, termos
traduzidos por ciência de Deus, da vida, da sociedade. Fenomenologia
seria, portanto, a ciência dos fenômenos. Vamos expor uma concepção
preliminar da fenomenologia de duas maneiras: primeiro, caracterizando o
que designam os dois componentes do termo, a saber, “fenômeno” e “logos”
e, segundo, fixando o sentido da expressão, resultante de sua composição.
A história da palavra, que apareceu segundo se presume na Escola de
Wolff, não tem aqui importância10
(HEIDEGGER, 2008, p. 67).
Heidegger articula a continuação de sua exposição do método pontuando-o em três
momentos: no primeiro discorre, como proposto na citação acima, sobre o conceito
de “fenômeno”, em seguida aborda o “logos”, para, finalmente sintetizar o “conceito
preliminar de fenomenologia” (HEIDEGGER, 2008, p. 67).
Fazendo a análise filológica de “fenômeno”, Heidegger diz que a expressão remonta
do grego phainómenon sendo traduzido pelo termo “mostrar-se”, e assim, fenômeno
diz respeito ao que se mostra, se revela. Ainda, do grego phainomenai, um verbo, o
termo comporta a interpretação “trazer para a luz do dia”, “pôr no claro”, “claridade”,
ou seja, o termo representaria o elemento, o meio, em que alguma coisa pode vir a
se revelar e se tornar visível em si mesma (HEIDEGGER, 2008, p. 67).
Deve-se manter, portanto, como significado da expressão “fenômeno” o que
se revela, o que se mostra em si mesmo. (...), “os fenômenos”, constituem,
pois, a totalidade do que está à luz do dia ou se pode pôr à luz, o que os
gregos identificavam, algumas vezes, simplesmente com “os entes”, a
totalidade de tudo que é (HEIDEGGER, 2008, p. 67).
10
Christian Wolff, conforme vimos na seção anterior, e o desdobramento psicológico
descritivo de Willian Hamilton.
52
Este ente que “se mostra”, entretanto, pode vir a mostrar-se de vária maneiras,
segundo sua via e modo de acesso. Heidegger postula que há até a possibilidade do
ente mostrar-se como aquilo que, em si mesmo, ele não é (HEIDEGGER, 2008, p.
67). “Aparência”, é esse o termo usado pelo autor para definir quando o ente “se faz
ver assim como” - mais à frente, quando viermos a estudar o das-Man, o ente no
mundo, perceberemos a importância desta possibilidade de interpretação – “Em
grego, a expressão que origina a tradução “fenômeno” possui também o significado
do que “se faz ver assim como”, da “aparência”, do que “parece e aparece”; designa
um bem, que se deixa e faz ver como se fosse um bem, mas que “na realidade” não
é assim como se dá e apresenta” (HEIDEGGER, 2008, p. 68). Importante ter claro
que a compreensão posterior de fenômeno dependerá da visão de como ambos os
significados de fenômeno – fenômeno como o que se mostra, e fenômeno como
aparecer, parecer e aparência – se relacionam em sua estrutura (HEIDEGGER,
2008, p. 68).
Heidegger, terminologicamente, reserva a palavra fenômeno para designar o
significado “positivo” da ideia do “mostrar-se” do original grego, em detrimento da
segunda interpretação que diz respeito a “aparecer”, “parecer” e “aparência”,
entendidos como modificações privativas do termo. Dessa forma, fenômeno, oriundo
do grego phainómenon, significaria “aquilo que aparece”, derivando respectivamente
do verbo phainomenai: “eu apareço” (GALEFFI, 2000, p. 21).
Heidegger segue problematizando a questão da interpretação, apontando para
cuidados terminológicos que devem ser tomados, principalmente - citando Kant - no
que diz respeito a outra possível interpretação de fenômeno como “manifestação”.
Importante o caráter e o sentido da correlação da ideia do “empírico” feita por ele,
uma vez sendo - e se dando - dessa forma, espaço temporalmente, o Dasein:
Se, nesta apreensão do conceito de fenômeno, ficar indeterminado que ente
está sendo chamado de fenômeno e se ficar em aberto se o que se mostra
é um ente ou um caráter ontológico de um ente, então ter-se-á penas um
conceito formal de fenômeno. Mas, se por aquilo que se mostra,
compreende-se o ente, que no sentido de Kant se torna acessível na
intuição empírica, então consegue-se usar devidamente o conceito formal
de fenômeno. Neste uso, o fenômeno satisfaz o conceito vulgar de
fenômeno. O conceito vulgar, porém, não é o conceito fenomenológico de
53
fenômeno. Dentro da problemática de Kant, o que, fenomenologicamente,
se entende por fenômeno, pode-se elucidar, com ressalva das demais
diferenças, através das seguintes palavras: o que já sempre se mostra nas
manifestações, no sentido vulgar, de maneira prévia e concomitante,
embora não temática, pode mostrar-se tematicamente. E o que assim se
mostra em si mesmo (“formas de intuição”) são fenômenos da
fenomenologia. Pois é evidente que, se Kant, ao afirmar que o espaço é
continente a priori de uma ordem, pretende fazer uma afirmação
transcendental fundamentada, espaço e tempo devem poder mostrar-se
assim, ou seja devem poder tornar-se fenômenos (HEIDEGGER, 2008, p.
67).
Em seu caráter duplo - retomando o preconizado por Husserl - a ideia de fenômeno,
apesar de designar comumente o que aparece, é usada preferencialmente para
designar o próprio aparecer, ou seja, como vimos, o fenômeno da consciência
(subjetivo, psicologicamente falando).
O fenômeno trata-se portanto, de uma relação interdependente entre o aparecer e o
que aparece, entre o sujeito do conhecimento e o mundo conhecido, entre a
consciência que conhece e o mundo ou objeto que aparece ou se mostra
cognoscível (GALEFFI, 2000, p. 25).
Heidegger finaliza a apresentação de seu método ressaltando que faz-se mister
compreender o fenômeno tanto em seu sentido formal, filosófico, como de seu
sentido vulgar, do conhecimento natural – atentando sempre cautelosamente para
sua característica “empírica” - pois essa relação de sentidos é o pressuposto para a
compreensão do conceito fenomenológico de fenômeno.
“Logos” em sua filosofia será tomado e interpretado na sua função primária de “fala
apofântica” (HEIDEGGER, 2008, p. 74). Esse termo, exposto dessa forma, remonta
a Aristóteles, no sentido de se tomar um enunciado em seu caráter declarativo ou
revelativo. Esse tipo de enunciado, segundo Aristóteles, seria o capaz de ser tomado
como verdadeiro ou falso, sendo o único objeto da lógica, excluindo-se, dessa forma
as orações - e consequentemente, as ideias - cujo estudo pertencem à retórica ou à
poética. Esse significado, aristotélico, seria o que viria a permanecer fixo no uso
filosófico (ABAGGNANO, 2003, p. 73).
54
Finalmente, Heidegger expressa com toda a clareza o caráter de “fenomenologia”
quando novamente afirma “para as coisas elas mesmas” (HEIDEGGER, 2008, p.
74).
Determinante na compreensão das diferenças estruturais das fenomenologias de
Husserl e de Heidegger é a própria concepção de “consciência” dos filósofos. A
estrutura da consciência, entendida para Husserl como “intencionalidade, a qual
pode ser tomada nos termos “a consciência é sempre consciência de algo”, e que
essencialmente significa dizer que fora desse “de algo” não há consciência, será
decisiva para Heidegger por vários motivos, dos quais se destacam dois:
primeiramente, graças a essa dupla constituição, de alguma maneira supera-se uma
divisão que arrasta a consciência moderna desde Descartes, enfrentando o sujeito
que pensa e o objeto pensado (LEYTE, 2005, p. 31). Ainda há algo mais. Em
segundo lugar, Heidegger reconhece um papel decisivo no que Husserl chamou de
“intencionalidades anônimas”, que são o suporte da consciência como um “fluxo
interior”, que pode ser compreendido como consciência de um tempo interno, a
consciência da vida tal como ela ocorre ordinariamente, que é normal na medida em
que não reparamos nem refletimos apenas vivemos (LEYTE, 2005, p. 31).
Assim, caminhar, comer, inclusive falar de determinada maneira, e em geral
quase todas as condutas que manifestamos, são abrangidas nessa forma
de “intencionalidade anônima” (LEYTE, 2005, p. 32).
Na busca de um modo de pensar fora da “consciência moderna”, Heidegger
deparou-se com a poderosa imagem de um sujeito, de um eu, que não parece viver
mais além e a parte das coisas do mundo, nos moldes cartesianos, mas sim mais
próximos a elas, antes que o mundo se constitua reflexivamente como conhecimento
e ciência (LEYTE, 2005, p. 32). A consciência intencional se aproxima mais da
realidade da vida consciente, aquela que nos encontramos normalmente. Heidegger,
porém, separa-se de Husserl por considerar também insuficiente esse seu
posicionamento.
Para Husserl, a razão está constituída de forma tal que uma análise de cada
um de seus atos de consciência poderia esclarecer qualquer de seus
conteúdos, inclusive esses mesmos que ele chamou “anônimos”. Neste
caso, o “anônimo” é apenas funcionalmente, porque ontologicamente, de
55
acordo com o seu ser, o anonimato desapareceria se a razão assim
pretendesse (LEYTE, 2005, p. 32).
Heidegger vai mais além. Ele pergunta: E se na realidade ocorresse que o “anônimo”
fosse constituído da mesma consciência de modo que viesse a definir a sua própria
essência e funcionamento? O que ocorreria se a consciência, além de ser
reconhecível em sua racionalidade, que esclarece e desoculta as coisas, fosse ela
mesma também o oculto e o obscuro, fosse ela também sombra? (LEYTE, 2005, p.
32). Se atentarmos que essa “intencionalidade” Heidegger segue entendendo por
“consciência”, e que para ele consciência não é simplesmente um eu que pensa,
mas sim uma mesma estrutura em que se encontra vinculado pensamento e mundo,
chega-se a conclusão que se esse lado oculto, a sombra - de certo modo também,
de erro – é inerente ao mesmo ser da consciência, da intencionalidade (LEYTE,
2005, p. 32). O desdobramento dessa questão levantada por Heidegger será
manifesta em Ser e Tempo na indissociável vinculação entre os conceitos de
autêntico e inautêntico, e, mais à frente em seus escritos posteriores, entre o oculto
e o desoculto, ou o velado e o desvelado (LEYTE, 2005, p. 33). Neste momento, que
investigamos a questão prévia da possibilidade de se construir um pensamento fora
da consciência moderna, o mais importante é clarificar um caminho alternativo ao
legado pela tradição.
Da mesma forma que Heidegger questiona a consciência em Husserl, ele questiona
igualmente a noção de “fenômeno” de seu mestre. Se para Husserl, por cima e além
das intencionalidades anônimas, a razão pode decompor analiticamente e assimilar
todos os conteúdos da consciência – o que vem a supor o mundo – significa que a
consciência pode realmente objetivar, ou seja, está apta para analisar qualquer
pensamento, ideia e, finalmente, coisa (LEYTE, 2005, p. 33). Por esse caminho
assegura-se um meio para o fenômeno, em outras palavras, a coisa tal como ela se
apresenta a uma consciência, e a sua realização depende exclusivamente de se
atentar ao caminho. Trata-se então de uma questão de método, onde um bom
método garante uma boa análise. A fenomenologia garantiria assim a assimilação do
mundo que se lhe apresenta (LEYTE, 2005, p. 33). Para Husserl, não importa a
escolha do método, nem sorte na definição do caminho analítico ou do objeto
analisado pois, no fim das contas, a assimilação do “em si” dos objetos é impossível,
porque para ele - essencial e constitutivamente - as coisas são ocultas, e não
56
simplesmente “estando” ocultas. Sendo assim, a objetivação total é impossível, e o
que é mais importante, o fenômeno, longe de ser o que supostamente se apresenta
claramente a uma consciência, é na verdade fundamentalmente oculto (LEYTE,
2005, p. 33).
Para ser mais exato, o fenômeno, é o que aparece na mesma medida em
que é aquele que se recusa a aparecer (LEYTE, 2005, p. 33).
A evocação de Heidegger para o anúncio fenomenológico “às coisas elas mesmas”
não varia, o que ocorre é que o filósofo reconhece no fenômeno uma resistência
intransponível, ao menos se considerado o propósito aludido da fenomenologia
(LEYTE, 2005, p. 33). Para Heidegger, à luz de seu questionamento sobre o sujeito
moderno – e consequentemente sobre a consciência - a máxima acima cobra um
novo e duplo sentido: por um lado, a busca das coisas tem que passar pelo
reconhecimento de sua constituição, que reside em seu caráter oculto, por outro lado
talvez seja necessário reconhecer que não há nem seja possível a própria existência
das coisas, precisamente porque o ideal da consciência moderna estaria na
apreensão de propriedades claras e distintas, segundo Descartes, ou absolutamente
descritíveis fenomenologicamente, segundo Husserl (LEYTE, 2005, p. 34). Nesse
sentido, significa que quando Husserl fala de coisas está se referindo ao “conteúdo”
da consciência ou, num sentido mais amplo, dos objetos. Um objeto, porém, não é
uma coisa, pelo contrário, para Heidegger, enquanto tomado metafisicamente como
um “mais além”, ele é a sua negação (LEYTE, 2005, p. 34).
Um objeto, como se verá, é uma realidade metafísica, e a busca em
Heidegger não se refere a nada metafísico no sentido de um mais além
(LEYTE, 2005, p. 34).
Heidegger enquanto permanece no propósito e pretensão fenomenológica de buscar
às coisas mesmas, pensa precisamente nas coisas e não nos objetos (LEYTE, 2005,
p. 34).
Para Heidegger o fenomenológico encontra-se indissociavelmente unido ao
hermenêutico, principalmente a partir do momento em que se compreende o
fenômeno não só como o que aparece mas também - fazendo parte de sua
estrutura, constituindo-o - o que se recusa a aparecer, não obstante, revelador
nesse seu obscurecimento (LEYTE, 2005, p. 34). Na busca do desvelamento desse
57
velado obscuro, desenvolve-se a hermenêutica fenomenológica. Heidegger dessa
forma afasta-se da consciência moderna na qual, em sua leitura, as coisas se
tornaram impossíveis. De certo modo, sair fora da consciência moderna significa
também salvar as coisas.
Temos assim em Ser e Tempo a preocupação de Heidegger em bem delimitar os
conceitos que emprega em sua ontologia fundamental. Sua retomada do
questionamento então apresenta-se como o indagar sobre a forma e sobre o próprio
agente que questiona. Em sua preocupação em clarificar e pré-estabelecer a
definição dos conceitos, tomamos conhecimento do rigor ao qual submete o Dasein -
o ente ôntico, em sua possibilidade fenomenológica - possibilitador da hermenêutica
do ser, retomando e pautando-se nos pressupostos husserlianos.
De maneira um tanto genérica, podemos dizer que são três os elementos do
projeto fenomenológico husserliano que interessam de início efetivamente à
Heidegger: em primeiro lugar, a noção de intencionalidade; em segundo
lugar, a noção de redução ou de έποχή fenomenológica e, em terceiro lugar,
o lema husserliano “rumo às coisas mesmas” (CASANOVA, 2000,p. 40).
“Radicalizar” o método fenomenológico husserliano, compreendido da aplicação
heideggeriana, tem um caráter duplo que consiste sinteticamente em: Primeiramente
Heidegger determina que no Dasein, o ente que analisa o ser - neste ato intencional
de sua consciência - analisa, enquanto sendo, o ser, seu, a si mesmo, voltando-se
dessa forma, “à coisa mesma” que é a sua consciência que se descobre, na redução
fenomenológica, consciência do ser sendo, nele, Dasein. Em segundo lugar, a
aplicação de Heidegger é fundamentalmente radical enquanto sendo uma
metodologia epistemológica utilizada na esfera ontológica. Em outras palavras,
Heidegger radicaliza ao tomar o método fenomenológico de seu mestre - até então
aplicado sobre entes inanimados - e, pela primeira vez, aplicá-lo no homem, gerando
nesse ato consequências decisivas na hermenêutica ontológica da cultura da
humanidade.
58
2.2 A compreensão fática do Dasein, o das-Man
Ser e Tempo é um trabalho composto de três subprojetos que se relacionam
constantemente em função de estruturar a ontologia fundamental proposta por seu
autor. Os três momentos contidos na obra são: destruição da história da ontologia,
hermenêutica da faticidade e analítica existencial (CASANOVA, 2000,p. 79). A
fenomenologia do Dasein é a metodologia desenvolvida por Heidegger no intuito de
garantir a harmonização desses três momentos e de possibilitar a hermenêutica do
ser, dentro da sua proposta de radicalização da questão fundamental da ontologia:
O que se busca é responder à questão do sentido do ser em geral e, antes
disso, a possibilidade de elaborar radicalmente essa questão fundamental
de toda a ontologia. Liberar o horizonte em que o ser em geral é, de início,
compreensível equivale, no entanto, a esclarecer a possibilidade da
compreensão do ser em geral, pertencente à constituição desse ente que
chamamos de Dasein. Como momento de ser essencial do Dasein, a
compreensão de ser só deixa esclarecer radicalmente caso o ente que a
possua seja interpretado originariamente na perspectiva de seu ser
(HEIDEGGER, 2008, pg. 303-304).
Ser e Tempo, então, é a busca da compreensão - da hermenêutica - do ser. A
palavra “Hermenêutica” é utilizada por Heidegger no sentido da interpretação fática
do Dasein. Ao fenomenológico Dasein cabe a tarefa de se compreender,
faticamente, enquanto sendo no mundo.
Heidegger faz um breve histórico de Hermeneutik, “hermenêutica”, em LXII,
Ontologia : a hermenêutica da faticidade. Ele começa com o lon. de Platão,
onde Sócrates chama os poetas de “intérpretes”, hermenes, dos deuses
(lon. 534e4-5). Hermeneuein é a palavra grega para “interpretar”, e
hermeneia, “intrepretação”, Auslegung, que descobre o previamente
escondido (LXIII, 11). Hermeneutik não é, atualmente, interpretação e, sim,
teoria ou estudo da interpretação. Esta disciplina foi sistematizada por
Schleiermacher como “(a teoria da) arte de comprenssão {Kunst (lehre) das
Verstehens}”, primordialmente os textos escritos (LXIII, 13). Dilthey, biógrafo
de Schleiermacher, estendeu a hermenêutica às “ciências humanas
59
(Geisteswissenschaften)”, que incluem filologia , mas também o estudo da
história, teologia, arte, instituições sociais etc. A hermenêutica é, agora, a
metodologia, o estudo do método de tais ciências. Heidegger usa
Hermeneutik para significar “interpretação”, interpretação da “faticidade”,
isto é, de nosso próprio Dasein (LXIII, 14) (INWOOD, 1999, pg. 79).
Essa tarefa filosófica de compreensão é um desenvolvimento que o Dasein cotidiano
faz primeiramente a si mesmo. “Um soldado, por exemplo, ao se interpretar dessa
forma, torna-se o que é” (INWOOD, 1999, pg. 79). Essa auto-interpretação nem
sempre condiz com a realidade, pois raramente é feita - utilizando a terminologia de
Ser e Tempo - de modo “autêntico e próprio”.
Heidegger argumenta em Ser e Tempo que a hermenêutica do Dasein,
primordialmente interpretativa, enquanto propiciadora do desvelamento do ser e das
estruturas básicas do fático ser-aí (HEIDEGGER, 2008, pg. 77-78), pode assumir
certas variações, ampliando sua aplicabilidade. Sendo que a hermenêutica em seu
sentido principal “apresenta o horizonte para qualquer outro estudo ontológico dos
entes que não são do tipo de Dasein, também há a hermenêutica no sentido de
Schleiermacher”, ou seja, ela elabora as “condições de possibilidade de qualquer
investigação ontológica” (INWOOD, 1999, pg. 80). Ainda, a prioridade ontológica do
Dasein sobre os outros entes depende de sua possibilidade de existência. Dessa
forma, ao interpretar o ser do Dasein, a hermenêutica heideggeriana em seu sentido
primordial (desvelar o ser e as estruturas do Dasein) precisa analisar a
“existencialidade da existência”.
O sentido de hermenêutica “filosoficamente primordial” da ontologia fundamental
heideggeriana parte dessa forma - sendo que todo o questionamento filosófico surge
da existência e para ela retorna - da fenomenológica interpretação do existente e
analisável Dasein (INWOOD, 1999, pg. 80).
Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos entes - é
ontologia. Ao esclarecer as tarefas de uma ontologia, surgiu a necessidade
de uma ontologia fundamental, que possui como tema o Dasein, isto é, o
ente dotado de um privilégio ôntico-ontológico. Pois somente a ontologia
fundamental pode colocar-se diante do problema cardeal, a saber, da
questão sobre o sentido do ser em geral. Da própria investigação resulta
que o sentido metodológico da descrição fenomenológica é interpretação. O
60
λόγος (logos) da fenomenologia do Dasein possui o caráter de έρμηνεύειν
(interpretação). Por meio deste έρμηνεύειν anunciam-se o sentido próprio de
ser e as estruturas fundamentais de ser que pertencem ao Dasein como
compreensão de ser. Fenomenologia do Dasein é hermenêutica no sentido
originário da palavra em que se designa o ofício de interpretar.
Desvendando-se o sentido de ser e as estruturas fundamentais do Dasein
em geral, abre-se o horizonte para qualquer investigação ontológica ulterior
dos entes não dotados do caráter de Dasein. A hermenêutica do Dasein
torna-se também uma “hermenêutica” no sentido de elaboração das
condições de possibilidade de toda investigação ontológica. E, por fim, visto
que o Dasein, enquanto ente na possibilidade de existência, possui um
primado ontológico frente a qualquer outro ente, a hermenêutica do Dasein
como interpretação ontológica de si mesmo adquire um terceiro sentido
específico – embora primário do ponto de vista filosófico - , o sentido de
uma analítica da existencialidade da existência. Trata-se de uma
hermenêutica que elabora ontologicamente a historicidade do Dasein como
condição ôntica de possibilidade da história fatual. Por isso é que, radicada
na hermenêutica do Dasein, a metodologia das ciências históricas do
espírito só pode receber a denominação de hermenêutica em sentido
derivado (HEIDEGGER, 2008, pg. 77-78).
Como já aludido, o fenomenológico Dasein, do qual sua compreensão possibilita a
“hermenêutica” no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda
investigação ontológica, se caracteriza por ser sempre meu, segundo este ou aquele
modo de ser. O ente, cujo ser, sendo, está em jogo o próprio ser, relaciona-se e
comporta-se com o seu ser, com a sua possibilidade mais próxima, assim, como
citado, o Dasein é sempre sua possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 86).
Essa possibilidade de ser para Heidegger não é tida como propriedade
simplesmente dada, e sendo possibilidade, o ser-aí pode “escolher-se”, ganhar-se
ou perder-se ou ainda dissimular um determinado ganho ou perda (HEIDEGGER,
2008, p. 86). O ser-aí fático, porém, acontecendo no mundo, só pode perder-se ou
ainda não se ter ganho por ser uma possibilidade própria, ou seja, é um ser
vocacionado a apropriar-se de si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 86). Sendo, o
Dasein tende a escolher o que será, esta escolha pode ser uma escolha pensada e
própria, que lhe faça sentido, após uma análise de si mesmo ou, pode ele também,
simplesmente levar uma vida imprópria.
61
Os termos “próprio” e “impróprio” são usados por Heidegger em seu sentido literal.
Importante ressaltar que apesar de intuitivamente relegarmos ao impróprio um
sentido pejorativo, não é o caso aqui, pois a manifestação imprópria do ser-aí não o
coloca numa posição menor na filosofia heideggeriana, pelo contrário, esse
posicionamento em sua auto-compreensão pode determinar a concreção de seus
estímulos interesses e preferências.
O Dasein se constitui pelo caráter de ser sempre meu, segundo este ou
aquele modo de ser. De alguma maneira, sempre já se decidiu de que modo
o ser-aí é sempre meu. O ente, em cujo ser, isto é, sendo, está em jogo o
próprio ser, relaciona-se e comporta-se com o seu ser, como a sua
possibilidade mais própria. O ser-aí é sempre a sua possibilidade. Ele não
“tem” a possibilidade apenas como uma propriedade simplesmente dada. E
porque o Dasein é sempre essencialmente sua possibilidade ele pode, em
seu ser, isto é, sendo, “escolher-se”, ganhar-se ou perder-se ou ainda nunca
ganhar-se ou só ganhar-se “aparentemente”. O Dasein só pode perder-se
ou ainda não ser ter ganho porque, segundo o seu modo de ser, ele é uma
possibilidade própria, ou seja, é chamado a apropriar-se de si mesmo. Os
dois modos de ser propriedade e impropriedade – ambos os termos foram
escolhidos em seu sentido rigorosamente literal – fundam-se em o ser-aí
determinar-se pelo caráter de ser sempre meu. A impropriedade do Dasein,
porém, não diz “ser” menos e nem tampouco um grau “inferior” de ser. Ao
contrário, a impropriedade pode determinar toda a concreção do ser-aí em
suas ocupações, estímulos, interesses e prazeres (HEIDEGGER, 2008, p.
86).
O ser-aí acontece na vida cotidiana, e nessa cotidianidade ele pode muito bem,
envolvido pelo fluxo das influências e estímulos que o cercam, simplesmente
participar indiferentemente ao questionamento do que venha a lhe ser próprio ou
não. Essa indiferença cotidiana experimentada pelo Dasein, vivendo na
mundaneidade, Heidegger, chama de medianidade:
Não se deve, porém, tomar a cotidianidade mediana do ser-aí como simples
“aspecto”. Pois a estrutura da existencialidade está incluída a priori na
cotidianidade e até mesmo em seu modo impróprio. De certa forma, nele
está igualmente em jogo o ser do ser-aí, com o qual ele se comporta e
relaciona no modo da cotidianidade mediana, mesmo que seja apenas
fugindo e esquecendo-se dele (HEIDEGGER, 2008, p. 88).
62
Independente da postura que venha o Dasein a assumir no mundo - para firmar-se,
para proteger-se, para fugir, de qualquer forma - para a analítica existencial, o
importante, que devemos tomar como uma positiva constituição da estrutura do ser,
é que essa estrutura, da forma como se dá, por mais provisória que venha se
mostrar, é nosso ponto de partida conveniente na tentativa de acessar o ser do
homem.
No parágrafo vinte e sete de Ser e Tempo, Heidegger postula que na cotidianidade
nos comportamos de forma impessoal envolvidos pela influência do meio. “Este
conviver dissolve inteiramente o próprio Dasein no modo de ser dos “outros”, e isso
de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de
diferença e expressão. O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de
surpresa e de possibilidade de constatação” (HEIDEGGER, 2008, p. 184).
O Dasein, como vimos, é a manifestação fenomenológica do ser do homem, da ideia
de uma realidade humana transcendente manifesta sensorialmente na figura de
cada um de nós mesmos, enquanto vivendo, sendo, no mundo como humanos,
donos de uma existência temporal e gozando de certa margem de escolha.
Com o fator “mundo”, passa-se então, na ontologia fundamental de Heidegger, a
considerar o Dasein na coletividade, ou seja, o ser-aí na convivência com os outros
seres-aí, que, juntos, compõe a ideia de vida social. Desse momento, o autor analisa
as consequências que a interação social exercem na existência fática.
A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo o
próprio Dasein. Será que essa caracterização não provém de uma distinção
e isolamento do “eu”, de maneira que se devesse buscar uma passagem do
sujeito solado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso
atentar em que sentido se fala aqui dos “outros”. Os “outros” não significam
todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros,
ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se
consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se
está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de
um ser simplesmente dado “em conjunto” dentro de um mundo. O “com” é
uma determinação do Dasein. O “também” significa a igualdade no ser
enquanto ser-no-mundo que se ocupa dentro de uma circunvisão. “Com” e
“também” devem ser entendidos existencialmente e não categorialmente. À
base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o
63
mundo compartilhado com os outros. O mundo do dasein é mundo
compartilhado. O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano
desses outros é co-presença (HEIDEGGER, 2008, p. 175).
O conceito “mundo11” em Ser e Tempo é tomado no seu sentido comum e corrente,
como o lugar em que vivemos e nos relacionamos com os demais entes
fenomenologicamente percebidos; ainda também, como o meio-ambiente que indica
o conjunto das coisas que circundam o homem, palco da realidade em que este(s)
se encontra(m) (INWOOD, 1999, pg. 120).
Das-Man é o conceito utilizado por Heidegger para definir como o ser-aí é tomado
em sua relação intramundana com os demais seres iguais a ele, dito de outra forma
seria: este-ser-aí, o impessoal. Das-Man é como somos tomados, como temos
nosso personagem cotidiano definido pelos outros.
Na figura do das-Man reside a inquietação do Dasein – no mundo - de como é visto
por seus pares. Se a imagem que o Dasein passa condiz ou não com a realidade do
que realmente é pouco importa, o importante é postular que ele se preocupa em
passar uma imagem, e esse fato, julgando ser ele normal, é um dos determinantes
elementos para a consolidação da angústia em sua experiência temporal, pois
resolvido a cumprir o papel X ou Y, condizente com o que esperam dele, e
engajando-se, uns mais outros menos, em corresponder a essa expectativa alheia,
muitas vezes - ainda que sem tomar consciência disso - ele se comporta em
desacordo com o que realmente lhe faz, ou viria a lhe fazer, sentido.
A preocupação do Dasein em agradar e ser aceito socialmente será, entre outros,
fator decisivo a levá-lo a um estado passional aflitivo perante a expectativa externa
circundante.
A filosofia de Heidegger se propõe a ser absolutamente mundana (ARENDT, 1993,
p. 30), visto que o estudo do Dasein diz respeito à analítica do ser preocupado no
mundo. Sua constituição como ente fenomenológico fundamentalmente se
apresenta por ser-no-mundo, sendo este mundo provido da mundanidade.
11 Genericamente é possível distinguir três conceitos fundamentais de Mundo: 1º.
Mundo como ordem total; 2º. Mundo como totalidade absoluta; 3º. Mundo como totalidade de campo.
(ABAGGNANO, 2000, p. 687)
64
“Mundanidade” é um conceito ontológico e significa a estrutura de um
momento constitutivo de ser-no-mundo. Este, nós o conhecemos como uma
determinação existencial do Dasein. Assim, a mundanidade já é em si
mesma um existencial. Quando investigamos ontologicamente o “mundo”,
não abandonamos, de forma nenhuma, o campo temático da analítica do
Dasein. Do ponto de vista ontológico, “mundo” não é determinação de um
ente que o ser-aí em sua essência não é. “Mundo” é um caráter do próprio
Dasein. Isto não exclui que o caminho de investigação do fenômeno
“mundo” deva seguir os entes intramundanos e seu ser (HEIDEGGER,
2008, p. 112).
O Dasein se aflige por perceber-se socialmente dependente e vinculado a laços
interpessoais que excedem sua capacidade de livre ação – vale lembrar que muitas
vezes esse fenômeno acontece sem que o ser-aí se de conta disso. O das-Man,
entretanto, não é um estado a ser transposto, a filosofia de Heidegger não faz juízo
moral em relação à postura própria ou impróprio que o Dasein venha a assumir em
sua vivência, ou ainda, que o fato do ser-aí tomando-se socialmente pressionado e
refugiando-se na fuga à medianidade, seja mais ou menos que outro que aja de
forma autêntica em relação à suas convicções.
O das-Man, este-ser-aí, impessoal, medido pelo crivo alheio, terá, independente da
postura que venha à assumir, independente da possibilidade que venha a apropriar-
se, a angústia como companheira constante, pois esta “disposição fundamental” -
como veremos mais detalhadamente à frente, quando da análise dos pontos
determinantes da “analítica existencial” de Ser e Tempo - é inerente à constituição
cognitiva de seu ente temporal.
(...) Este conviver dissolve inteiramente o próprio ser-aí no modo de ser dos
“outros”, e isto de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em
sua possibilidade de diferença e expressão (HEIDEGGER, 2008, p. 185).
O impessoal tira o encargo de cada ser-aí em sua cotidianidade. E não
apenas isso; com esse desencargo, o impessoal vem ao encontro do ser-aí
na tendência de superficialidade e facilitação. Uma vez que sempre vem ao
encontro de cada ser-aí, dispensando-o de ser, o impessoal conserva e
solidifica seu domínio teimoso. Todo mundo é o outro e ninguém é si
mesmo. O impessoal que responde à pergunta quem do ser-aí cotidiano, é
ninguém, a quem o ser-aí já se entregou na convivência de um com outro
(HEIDEGGER, 2008, p. 185).
65
Para compreender a ontologia fundamental de Heidegger é importante fixar que o
das-Man é o Dasein assumindo-se no outro que não é ninguém. Para o ser-aí, o
outro é este-ser-aí, e, sendo social, intramundano, no-mundo, o Dasein se aflige em
assumir um modo de ser compatível ao que esperam dele, ou o que ele acha que
corresponda coerentemente à sua personalidade frente ao mundo e realidade a sua
volta, seu mundo “circundante”. “O mundo mais próximo do ser-aí cotidiano é o
mundo circundante” onde ele acontece e involuntariamente se aflige (HEIDEGGER,
2008, p. 86).
Definimos assim o conceito do das-Man, determinante para a investigação proposta
em Ser e Tempo, como o ente Dasein tomado pela atenção externa da consciência
dos outros. Esses conceitos, Dasein e das-Man são caracterizados por serem,
enquanto realizados no mundo, passíveis de exame e apreensão fenomenológica
pela cognição. Devemos lembrar, entretanto, que o que a fenomenologia mostra é
aquilo que, acima de tudo e na maior parte dos casos, não se manifesta, o que está
escondido, mas que é capaz de expressar o sentido e o fundamento daquilo que,
acima de tudo, e na maior parte dos casos se manifesta (ABAGGNANO, 2000, p.
439).
Concluindo esta seção sobre o ser-no-mundo, sintetizando o já visto, foi Heidegger
quem retomou na contemporaneidade o estudo da relegada questão do ser,
demarcando nessa retomada o limiar do ôntico e do ontológico, partindo da análise
da manifestação temporal do ente - que chamou de Dasein - lançando mão do
método fenomenológico de Husserl, e que, agora, avançando na via apontada por
Kierkegaard (ARENDT, 1993, p. 28), aprofunda e fundamenta o momento da análise
existencial do Dasein lançando mão de um conceito que - posteriormente à Ser e
Tempo - tomaria outro sentido do comumente percebido dentro da ontológica busca
pelo sentido do ser até então realizada na história da filosofia ocidental.
Este novo conceito, analisado agora em nossa investigação, é o que caracteriza a
situação fática do Dasein enquanto no mundo (das-Man). Dotado de um sentido
composto, misto de elementos de duas naturezas, o termo que analisaremos agora
viria há ser a ponte de acesso para se pensar a possibilidade de uma realidade
humana transcendental. A “angústia”, conceito decisivo na análise da existência
fática de Ser e Tempo, é uma interface situada entre dois mundos. Angústia na ótica
66
heideggeriana expressa algo que sentindo aqui, em nossa realidade física humana,
remete-nos para “lá”, outra realidade, metafísica e misteriosa.
O medo, a ansiedade, a excitação, a alegria, a expectativa, todas as disposições
experimentadas na cotidianidade pelo Dasein, são propriedades diretamente ligadas
à apreensão cognitiva dadas no mundo espacial e temporal de sua realidade prática
e experimental. Nelas, porém, nessas disposições e através delas, tem-se
consequentemente o elo manifesto do que está oculto no verdadeiro plano do ser -
que é extramundano - o aprofundamento dessa extramundana possibilidade do ser
do Dasein excede a proposta ontológica fundamental de Ser e Tempo.
A possibilidade de se pensar a natureza extramundana da angústia, está
proporcionalmente ligada à possível interpretação da transcendentalidade do ser. Na
“angústia”, a hermenêutica de Ser e Tempo abre a possibilidade de se diagnosticar
na natureza cognitiva, sensorial e temporal do Dasein, a apreensão de um indicativo
a uma realidade contingente.
67
3. A analítica existencial
3.1 A disposição fundamental da angústia
Enquanto Heidegger foi tomado como um dos precursores da filosofia existencialista,
a de linha humanista, Kierkegaard figura representando outra vertente, a cristã
(MAGEE. B, 2000, p. 209). Porém para ambos a predisposição dos indivíduos à
angústia é consequência de a existência humana ser uma questão de “possibilidade”
(ABBAGNANO, 2000, p. 60).
Vimos que o Dasein é possibilidade, que o homem enquanto temporal vive de
possibilidades, e sendo esse estado um constante remeter-se ao futuro, a angústia
tem como qualidade e essência o fato de não referir-se a algo determinado,
específico (HEIDEGGER, 2008, p. 254).
Não podemos dizer que sentimos a angústia por causa disto ou daquilo
precisamente, ou, colocando de outra forma - podemos ser mais exatos utilizando
uma terminologia mais precisa -, não podemos condicionar a predisposição do ser-aí
à angústia, relacionando-a a algum fenômeno específico (HEIDEGGER, 2008, p.
254).
Com exceção do evento do fim da existência temporal - a morte - não temos,
enquanto possibilidades que somos - excluindo argumentos de natureza religiosa -
garantia de concretude de nenhuma de nossas idealizações e planos. Apenas pela
nossa capacidade de abstração procuramos imaginar as melhores opções na gama
de possibilidades para o nosso futuro - isso enquanto gozando de certa saúde
mental. O fato é que não temos certeza alguma de um porvir agradável livre de
percalços trágicos. A realidade - no âmago sabemos - é que a possibilidade de “nos
darmos bem” na vida é diretamente proporcional a de “nos darmos mal”. Para o
Dasein ter consciência disso não é agradável.
68
Assim sendo, enquanto para o espiritualista Kierkegaard sobra ao homem pecador,
certo da inexorável opressão da existência - por mais habilidoso que seja, ainda um
impotente frente ao destino - apenas dois caminhos libertários: o suicídio ou a fé
(ABBAGNANO, 2000, p. 60); para Heidegger, um humanista em sua proposta
ontológica secular, por outro lado, resta ao Dasein, nessa experiência temporal
incondicionalmente aflitiva, principalmente sabendo-se um ser-para-a-morte -
diuturnamente chamado à reflexão - a oportunidade redentora do auto-
conhecimento, que apontará à possibilidade de gradativamente adquirir um
conhecimento de si que lhe faça sentido e, de alguma forma, bem.
Na angústia Heidegger focalizou o ser-para-a-morte da existência humana, e isso
significa – tendo em mente o peso que a ideia “de morrer” sugere a um ser temporal
- que nela, nesta disposição fundamental, o Dasein (inautêntico das-Man) tem um
genuíno motivo de refletir sobre sua existência:
A angústia, porém, é a disposição que permite que se mantenha aberta a
ameaça absoluta e insistente de si mesmo, que emerge do ser mais próprio
e singular do ser-aí. Na angústia, o ser-aí dispõe-se frente ao nada da
possível impossibilidade de sua existência. A angústia se angustia pelo
poder-ser daquele ente mais determinado, abrindo-lhe a possibilidade mais
extrema. Porque o antecipar simplesmente singulariza o ser-aí e, nessa
singularização, torna certa a totalidade de seu poder-ser, a disposição
fundamental da angústia pertence ao compreender de si mesma, próprio do
ser-aí. O ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia. Isso é
testemunhado, de modo indubitável, embora “apenas” indireto, pelo ser-
para-a-morte já caracterizado, quando a angústia se faz medo covarde e,
superando, denuncia a covardia à angústia (HEIDEGGER, 2008, p. 343).
Destaquemos que angústia é diferente de medo. O Dasein teme o que possa vir a
seu encontro na esfera intramundana que vive, por outro lado, angustia-se por algo
“além” de sua compreensão, algo que excede suas definições e apreensões
ordinárias (HEIDEGGER, 2008, p. 256).
Pode-se sintetizar dizendo que o que angustia o ser-aí é a certeza da morte? A
resposta não é tão simples. Para Heidegger o assentamento da angústia não está
em apenas saber-se ser-para-a-morte, a angústia do Dasein está, na verdade, em
sua consciência de saber que não sabe como responder positivamente às questões
69
básicas de sua ontologia: “De onde vim?”, “Para onde vou?”. O ser-aí, desprovido de
qualquer certeza metafísica, ou seja, impossibilitado de experimentar
fenomenologicamente uma experiência pós-morte, vê-se fadado a uma única
certeza: a realidade é essa que vivemos, na qual existimos.
Do mesmo modo que não podemos, positivamente, apontar a origem de nossa
consciência - enquanto aspiração transcendental - não podemos igualmente
asseverar seu destino após a intransferível experiência da morte. Sendo assim,
sobra apenas a certeza de que após a morte, despojado da química que o compõe,
ao Dasein, fenômeno temporal que é, não sobra nada, a não ser ter essa matéria
que compõe seu corpo tornada em pó – ou plâncton.
A angústia está em saber que, da mesma forma como especulamos sobre a origem
metafísica desses elementos, e do Universo onde eles se encontram, especulamos
sobre a origem metafísica de nossa consciência, e da mesma forma como
especulamos sobre a origem dessa nossa consciência, e do possível Universo
desconhecido à qual sua essência pertença, especulamos igualmente sobre o seu
destino.
Por mais que especulemos, por mais virtuoso que seja nosso raciocínio, ou ainda,
por mais complexa que seja nossa teoria sobre o apreender do conhecimento, a
verdade é que fenomenologicamente não obtemos prova alguma de uma realidade
contingente extraordinária que transcenda a ordinária experenciável.
Encontrando-nos neste turbilhão especulativo, a ontologia fundamental de
Heidegger fulmina o que possivelmente restou de ingenuidade, sumariando com a
ideia que pautará nosso pensamento, tirando-nos do talvez tranquilo e tentador
mundo decadentemente alienado do das-Man, forçando-nos a trocar a falação e a
curiosidade ambíguas do mundo circundante pelo amadurecer refletido sobre o que
realmente importa: a questão ontológica e suas consequências. A questão do ser no
que se puder apreender.
Ciente disso, como cabe ao Dasein se comportar? Existe um determinado modo pré-
estabelecido que assegure o fim desse estado incomodativo da angústia? Não.
Heidegger determina e postula, em sua proposta ontológica fundamental de Ser e
70
Tempo, uma conduta específica que assegure o alívio para o enjôo de ter de ser
dessa forma como o ser-aí é? Não.
O que Ser e Tempo nos oferece, no tocante a esses questionamentos, é um método
hermenêutico que consiste na capacidade de compreender e interpretar o evento da
angústia como a autêntica predisposição privilegiada que o ser-aí dispõe como
acesso para adentrar no mundo de seu verdadeiro ser, um mundo que - admitamos
ou não - na contingência de sua essência, excede o conhecimento científico, sendo
assim, por excelência, inalcançável pela teoria, podendo porém, com o método
fenomenológico, tornar-se uma qualidade de possibilidade transcendental.
A angústia é a pista que nos coloca a abstrair sobre novos caminhos
existencialmente possíveis. Das conclusões sobre sua existencialidade na angústia
de ser-para-a-morte, o Dasein vê-se, num piscar de olhos, passando de simples
criatura num mundo estranho, para um possível criador de uma realidade
propriamente sua, pautada em um verdadeiro ser, seu, que começa a se lhe
desvelar (ARENDT, 1993, p. 28).
O fascínio peculiar que o pensamento do Nada exerceu sobre a filosofia
moderna não é simplesmente característico do Niilismo. Se olharmos pra o
problema do Nada no contexto de uma filosofia que se revolta contra a
filosofia como pura contemplação, então o veremos como um esforço para
tornar-se “Senhor do Ser” e, dessa forma, como um esforço para questionar
filosoficamente de forma tal que progrida imediatamente para o ato; assim, o
pensamento de que o Ser é realmente o Nada leva uma grande vantagem.
Baseando-se nisso o Homem pode imaginar-se, pode relacionar-se com o
Ser que é dado, tanto quanto o Criador antes da criação do mundo, que,
como sabemos, foi criado a partir do nada. Na caracterização do Ser como
Nada há finalmente a tentativa de livrar-se da definição do Ser como o dado
e de transformar as atividades do homem que eram semelhantes às divinas
em atividades divinas. Esta é também a verdadeira razão pela qual em
Heidegger o Nada subitamente torna-se ativo e começa a “nadificar”. O
Nada tenta, por assim dizer, reduzir a nada o fato-de-ser-dado do Ser e pôr-
se no lugar do Ser. Se o Ser que eu não criei é a ocasião de uma natureza
que eu não sou e que eu não conheço, então talvez o Nada seja o
verdadeiro domínio do Homem. Já que eu não sou um criador-de-mundo,
talvez a minha natureza seja de um verdadeiro destruidor-de-mundo. (Tais
conclusões estão agora desenvolvidas de forma bastante livre e clara em
71
Camus e Sartre). Isto, em todo o caso, é a base filosófica do moderno
Niilismo, sua origem na antiga ontologia; a tentativa de vazar a novas
questões e os novos temas no antigo quadro vinga-se aqui (ARENDT, 1993,
p. 28).
Nesse vislumbre de um si-mesmo, potência criadora, o das-Man liberta-se da
impropriedade do mundo circundante e começa a caminhar sozinho,
fenomenalmente realizado, no mundo. Uma vez atento à pista transcendental da
angústia, que a cada passo nesse rumo vai perdendo seu caráter de doença para
dar lugar a um novo de cura, este ser-aí começa a descobrir-se num mundo além
dos fragmentos do velho mundo já conhecido seu, um novo mundo de
possibilidades, cheio de respostas disponíveis, cabendo-lhe para alcançá-las apenas
formular de forma correta as perguntas para o desconhecido ele mesmo, que vem à
seu encontro nessa nova, e mais própria, realidade.
72
3.2 A decadência do Dasein
Vimos que o ser-aí, dado no mundo assume um modo de ser impróprio determinado
pelo contexto do mundo circundante. Cabe agora determinar quais os caracteres
existenciais da abertura do ser-no-mundo quando o ser-no-mundo cotidiano se
detém no modo impessoal.
Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e especifica, uma
compreensão, uma fala e uma interpretação especiais? (HEIDEGGER, 2008, p.
230).
Se o compreender deve ser entendido primordialmente como poder-ser do
ser-aí, as possibilidades de ser que o Dasein, enquanto impessoal, abriu e
das quais se apropriou devem ser extraídas de uma análise do
compreender e da interpretação próprias do impessoal. Essas
possibilidades próprias revelam assim uma tendência essencial do ser da
cotidianidade (HEIDEGGER, 2008, p. 230).
Esse modo de ser é caracterizado por três elementos dominantes e Heidegger os
define como “tagarelice” ou falação, “curiosidade” e “ambigüidade” ou equívoco.
Esses três elementos determinam o modo impróprio do ser-aí, sob o jugo do critério
alheio, das-Man. Devemos lembrar entretanto que Heidegger não faz nenhuma
valorização preferencial dizendo qual o ideal a ser buscado, tomando o impróprio
como ruim ou o próprio como bom.
O modo de ser impróprio, composto pela tríade de elementos descritos acima, são
características intrínsecas do Dasein, uma vez no mundo; portanto, o que importa
para a ontologia fundamental de Heidegger é a manifestação enquanto um caráter
do fenômeno analisado, sendo assim, primeiramente sobre a falação, para a
compreensão correta do sentido, devemos lembrar de não tomá-la em sentido
pejorativo. Terminologicamente significa um fenômeno positivo que constitui o modo
do compreender e da interpretação do ser-aí cotidiano (HEIDEGGER, 2008, p. 231).
73
A falta de solidez da falação não lhe fecha o acesso ao que é público, mas o
favorece. A falação é a possibilidade de compreender tudo sem se ter
apropriado previamente da coisa. A falação se previne do perigo de
fracassar na apropriação. A falação que qualquer um pode sorver
sofregamente não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico,
como também elabora uma compreensibilidade indiferencial da qual nada é
excluído (HEIDEGGER, 2008, p. 233).
Tratando-se de parte constituinte ao meio que pertence, essa postura do Dasein é
tomada como positiva a partir do momento que compreende-se assim o
funcionamento estrutural do ser-no-mundo. Comportando-se dessa maneira o ser-aí
está seguro dentro do meio que vive. Quanto à curiosidade segue-se o mesmo
raciocínio:
A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o
que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca
o novo a fim de por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse
acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade
através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se no mundo.
Por isso a curiosidade caracteriza-se, especificamente, por uma
impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca
o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação
mediante o sempre novo e as mudanças que vem ao encontro. Em sua
impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de
dispersão (HEIDEGGER, 2008, p. 237).
A curiosidade é regida pela falação, ela que determina o que deve ser lido e visto.
Ambos caminham no mesmo sentido, um arrastando o outro consigo, para além da
tendência de simples desenraizamento. “A curiosidade que nada perde e a falação
que tudo compreende, dão ao ser-aí, que assim existe, a garantia de uma “vida
cheia de vida”, pretensamente autêntica. Com essa pretensão, porém, mostra-se um
terceiro fenômeno característico da abertura do ser-aí cotidiano” (HEIDEGGER,
2008, p. 237).
A ambigüidade, o equívoco, é o resultado dessa apreensão do mundo. Esse
equívoco não se aplica apenas à compreensão do mundo fenômeno, mas também
às relações interpessoais e mesmo à própria interpretação do ser-aí em relação si
próprio.
74
Se, na convivência cotidiana, tanto o que é acessível a todo mundo quanto
aquilo de que todo mundo pode dizer qualquer coisa vêm igualmente ao
encontro, então já não mais se poderá distinguir, na compreensão autêntica,
o que se abre do que não se abre. Essa ambiguidade não se estende
apenas ao mundo, mas, também, à convivência como tal e até mesmo ao
ser do Dasein para consigo mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 237).
Sendo assim, a falação, a curiosidade e ambigüidade caracterizam o modo que o
Dasein cotidianamente se realiza no mundo, e, importante, como determinações
relativas à sua existência – existenciais - essas características não são
simplesmente e superficialmente dadas no ser-aí temporal, mas, como mostrado,
acabam constituindo seu próprio ser.
“Falação, curiosidade e ambiguidade são as manifestações essenciais da existência
impessoal cotidiana. Essas manifestações caracterizam o Dasein no mundo
circundante, que é o mais próximo a si, ao qual pertence, onde ele disperso se
realiza em possibilidades sempre novas” (ABBAGNANO, 2000, p.229).
Nelas e em seu nexo ontológico, desvela-se um modo fundamental de ser da
cotidianidade que Heidegger define na analítica existencial de sua proposta
ontológica como “decadência” do Dasein. O filósofo diz que a decadência não
exprime qualquer avaliação negativa, pretende apenas indicar que num primeiro
momento, e na maioria das vezes, o ser-aí está junto e no “mundo” das ocupações,
e este estar junto e empenhado com as ocupações cotidianas é o que chamamos e
já citamos aqui de “impessoal”, o estar lançado no público. “Por si mesmo, em seu
próprio poder ser si mesmo mais autêntico, o ser-aí já sempre caiu de si mesmo e
decaiu no “mundo” (HEIDEGGER, 2008, p. 240).
A decadência na impropriedade não pode ser tomada como um estado de queda de
uma situação superior mais pura e original do Dasein, quanto a isso Heidegger diz
que não dispomos onticamente de nenhuma experiência e ontologicamente de
nenhuma possibilidade de interpretação.
Decair no mundo indica o empenho na convivência, na medida em que esta é
conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade. O que anteriormente chamamos
de “impropriedade”, a partir deste momento define-se mais precisamente com este
termo, “decadência”.
75
A decadência é uma determinação existencial do próprio Dasein e não se refere a
ele como algo simplesmente dado, nem a relações simplesmente dadas com o ente
do qual ele “provém”, ou com o qual ele depois acaba se relacionando
(HEIDEGGER, 2008, p. 241).
Sendo assim, a decadência não é um estado ôntico negativo a ser superado, nem
um estágio a ser suplantado por um nível mais desenvolvido de cultura humana. A
decadência é o estado em que o Dasein se alheia de si mesmo e entrega-se ao
modo impessoal de ser, modo determinado pelos caracteres da falação da
curiosidade e da ambiguidade cotidiana.
A realidade humana só seria verdadeiramente ela mesma se pudesse
retirar-se desse ser-no-mundo para si mesma, o que ela nunca pode fazer;
logo, ela é essencialmente um declínio, um decair a partir de si mesma. “A
realidade humana sempre decai a partir de si mesma como uma verdadeira
unidade – declina no ‘mundo’”. Apenas na realização da morte, que o
retirará do mundo, o homem tem a certeza de ser ele próprio (ARENDT,
1993, p. 31).
Heidegger determinou como o ser-aí interpreta o ente vindo ao seu encontro no
mundo, chegando ao ponto de tê-lo, de tomá-lo (o ente) em geral como o si mesmo.
O Dasein assim, na decadência, não vive como ele mesmo, mas sim como se vive
através da ditadura do impessoal das-Man (HEIDEGGER, 2008, p. 184).
Nessa situação ele não se volta naturalmente para o seu ser mais próprio, pelo
contrário envolve-se espontaneamente com o que vem ao encontro neste ser-no-
mundo cotidiano e impróprio. “Todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo. O
impessoal, que responde à pergunta quem do Dasein cotidiano, é ninguém, a quem
o Dasein já se entregou na convivência de um com o outro” (HEIDEGGER, 2008, p.
185).
Neste estado o Dasein desenvolve e formula seu questionamento existencial, mas o
temor perante os eventos desse cotidiano, não é equiparável à verdadeira angústia,
na qual ele pergunta sobre sua natureza mais própria, onde o “quê” do ser-no-
mundo se torna a grande questão (PÖGGELER, 2001 p. 61).
Heidegger realçou penetrantemente como a existência degenera o ente
vindo ao encontro do interior do mundo de tal modo que ela a si mesma se
76
compreende e ao ser em geral a partir do ente encontrável. A existência não
vive de todo como ela mesma, mas sim como se vive ela: ela é
vivida através da ditadura do impessoal Se ( 27). Na sua
situabilidade ou afinação ela não se volve habitualmente para que ela seja;
ela afasta-se do Que do seu ser-no-mundo, e somente se volve ainda pra o
que vem ao encontro neste ser-no-mundo. Ela tem temor perante isto ou
aquilo, mas não a verdadeira angústia, na qual o Que do ser-no-mundo se
torna em questão ( §30, §40). O discurso não deixa surgir uma autêntica
abertura do ser-no-mundo, mas torna-se em falatório , que permanece
na ambiguidade (§35, §37). Ao sucumbir à tentação da queda no
denominado mundo e, consequentemente, de esquecer o próprio ser-
no-mundo, a existência afunda-se na inautenticidade. Mas que ela de todo
possa aí afundar-se, isso demonstra que ela é modificável segundo o seu
ser: que ela é inautêntica, mas que também pode ser autêntica. Só na
autenticidade é que ela poderá entender o sentido do seu ser (PÖGGELER,
2001 p. 61).
Na decadência no mundo, ao sucumbir à impessoabilidade da vida cotidiana, o
Dasein afunda-se na impessoalidade do das-Man inautêntico, mas isso demonstra
seu caráter modificável segundo o seu ser. Isso denuncia sua possibilidade de, do
mesmo modo que se mostra inautêntico, poder ser autêntico. “O Dasein só pode
decair porque nele esta em jogo o ser-no-mundo, no modo de compreender e dispor-
se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a
decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ele é apenas uma apreensão
modificada da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2008, p. 245).
O Dasein é essencialmente sua possibilidade, e ele pode, no seu ser, escolher-se e
conquistar-se ou perder-se, ou escolher conquistar-se apenas aparentemente
(HEIDEGGER, 2008, p. 86). Mas é só na autenticidade que o Dasein pode entender
o sentido do seu ser. Este é um estado mais profundo, em contraposição à
superficialidade do inautêntico. O Dasein tem a possibilidade de compreender-se em
seu ser mais próprio, mas essa possibilidade só é realizável na autenticidade, e para
que isso seja possível ele tem de se adiantar na possibilidade mais extrema e
intransferível da morte. A possibilidade da morte cessa todas as outras de qualquer
existir, de qualquer poder ser.
Se a existência é caracterizada como cuidado por meio de ser-se-adiantado e
ainda assim não é algo, então resta a questão de saber se a existência na
77
sua totalidade pode de todo ser entendida. Heidegger sublinha como o ser no
adiantar-se para a morte é sempre todo , obviamente não todo no
sentido do ser-todo de um existente. Neste adiantar-se demonstra-se de uma
forma exarcebada como a existência é existência efectiva: a existência é
possibilidade como compreender ou poder-ser, mas ela somente é esta
possibilidade na autenticidade se se adiantar na possibilidade mais extrema e
inultrapassável. Esta possibilidade extrema é a morte. O adiantar-se na morte
aprofunda a possibilidade que a existência é no seu extremo, onde ela se
torna uma impossibilidade desmedida, ou seja, a impossibilidade de qualquer
existir, como um determinado poder-ser (PÖGGELER, 2001 p. 61).
A decadência é dessa forma o estado em que o Dasein se alheia de si mesmo,
fugindo e refugiando-se no mundo impessoal e inautêntico do das-Man, regido pelo
critério de possibilidades inerentes ao mundo circundante, onde o comportamento é
manifestado pelos caracteres da falação, da curiosidade e da ambiguidade, numa
constante fuga da certeza que lhe é mais própria, a da morte (HEIDEGGER, 2008, p.
339).
Quando ciente da limitação de sua existência temporal na morte, de que ela
representa a nulidade das possibilidades, o Dasein angustia-se, restando-lhe a fuga
à decadência confortante da impropriedade ou, por outro lado, pode ele, descobrir
nesse estado um acesso privilegiado para o seu ser autêntico (ABBAGNANO, 2000,
p. 229)
78
3.3 A abertura
A angústia não é o medo da morte. O medo acontece no intramundano, a angústia,
por sua vez, brota do próprio Dasein. Na fuga deste estado angustiado vimos no
capítulo anterior que o Dasein refugia-se numa vida inautêntica, envolvendo-se nos
afazeres ordinários do meio em que vive - seu mundo mais próximo, circundante –
sendo essa fuga na impessoalidade decadente, do ponto de vista existenciário, uma
obstrução e o fechamento do ser-aí à propriedade do ser-si-mesmo.
Assim, fenomenologicamente, a característica mais próxima do Dasein está na
decadência, que obstruí e fecha. “Esse fechamento, entretanto, é apenas a privação
de uma abertura que se revela fenomenalmente dado que a fuga do Dasein é a fuga
de si mesmo.” O Dasein enquanto não consciente de si, não sabe do que foge, a
decadência não permite que ele se ganhe. Acaba ocorrendo o paradoxo dele,
equivocado, correr atrás justamente do que foge. Neste estado não podemos dizer
que o Dasein foge de si mesmo por que ainda nem tomou consciência desse “si
mesmo”. (HEIDEGGER, 2008, p. 251).
Somente na medida em que, através de sua abertura constitutiva, o Dasein
se coloca essencialmente diante de si mesmo é que ele pode fugir de si
mesmo. Decerto, tanto no desviar-se como no aviar-se, próprios da
decadência, não se apreende aquilo de que se foge nem se faz a sua
experiência. No entanto, no desvio de si mesmo, descortina-se o “ser” do
ser-aí. Em razão do seu caráter de abertura, o desvio ôntico-existenciário
propicia fenomenalmente a possibilidade de se apreender aquilo de que se
foge como tal, de forma ontológico-existencial. Em meio a esse movimento
ôntico de “para longe de”, inerente ao desvio, pode-se compreender e
conceituar aquilo de que se foge, “aviando-se 12
” para uma interpretação
fenomenológica (HEIDEGGER, 2008, p. 251).
12 Aspas do autor. Aviar-se: 1. Preparar, despachar. 2. Pôr em estado de empreender
caminho ou ir-se embora (em http/www.priberam.pt, 24/10/11, 21.00 hrs).
79
No capítulo quarenta de Ser e Tempo, Heidegger aponta a angústia como sendo
disposição fundamental que proporciona a abertura privilegiada do Dasein. Abertura
para quê? Para quem? O que entende-se por abertura?
A característica ôntica do Dasein - enquanto ente fenomenológico espaço/temporal
que é - é o fato dele se realizar no devir, no tempo, e no mundo. No ser-no-mundo
ele constitui o comportamento característico da decadência, que é uma fuga no
“fechamento” a si mesmo no impessoal – das-Man - e no “mundo” das ocupações
(HEIDEGGER, 2008, p. 251). Porém, nem todo retirar-se de..., nem todo desviar-se
de... constitui uma fuga. Foge-se de algo que desencadeia o medo - que é dado no
intramundano – foge-se do ameaçador. Heidegger alerta que a linha que separa a
interpretação do medo e da angústia ainda se nos mostra obscura, e que entre
ambos existe o parentesco fenomenal. “Medo é angústia imprópria, entregue à
decadência do mundo e, como tal, angústia nela mesma velada” (HEIDEGGER,
2008, p. 256).
Consequentemente, o desvio na decadência não é uma fuga do medo e sim se
funda na angústia que, por sua vez, é quem possibilita o medo (HEIDEGGER, 2008,
p. 252). Tornando mais claro, deve-se ter em mente que a constituição fundamental
da decadência como fuga de si mesmo inerente ao Dasein se dá pelo fato de ele
ser-no-mundo, sendo assim, aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-
mundo como tal.
Diferentemente do medo, o “com que” da angústia não é relacionado a nada
determinado. Essa indeterminação decreta não só o caráter infundado do “se sentir
ameaçado” pelos entes como também postula a irrelevância desse ente. “Nada do
que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a
angústia com ele angustiar-se” (HEIDEGGER, 2008, p. 252).
Sendo assim, o que caracteriza a angústia é a indeterminação do ameaçador, o fato
dele não se encontrar em lugar algum. Porém, essa indeterminação não significa um
caráter negativo, de inexistência, justamente aí se situa a região, a abertura do
mundo em geral para o ser-em essencialmente espacial. O ameaçador da angústia
esta sempre rondando por um aí indefinido, em lugar nenhum, porém tão próximo,
ao ponto de sufocar a respiração (HEIDEGGER, 2008, p. 252).
80
Naquilo com que a angústia se angustia revela-se o “é nada e não esta em
lugar nenhum”. Fenomenalmente, a impertinência do nada e do lugar
nenhum intramundanos significa que a angústia se angustia com o mundo
como tal. A total insignificância que se anuncia do nada e no lugar nenhum
não significa ausência de mundo. Significa que o ente intramundano em si
mesmo tem tão pouca importância que, em razão de insignificância do
intramundano, somente o mundo se impõe em sua mundanidade
(HEIDEGGER, 2008, p. 253).
O angustiar-se então abre, de maneira direta e originária, o mundo como mundo. Na
angústia perde-se o que está a mão no mundo circundante. Partindo de que o
Dasein é sempre sua possibilidade (HEIDEGGER, 2008, p. 86), o que surge então
na insignificância do intramundano é um estreitamento sobre a concepção de
possibilidade. O Dasein não acha mais conforto no mundo, nem nas relações de co-
presença com os outros.
Nesta solidão de se ver singularizado em seu próprio ser-no-mundo, não achando
na decadência cotidiana do intramundano consolo pra tal angústia, o Dasein tem
então o tal estado privilegiado de abertura para suas possibilidades mais próprias. A
angústia revela ao Dasein o seu poder-ser mais próprio, que é o ser-livre para a
liberdade de escolher e acolher a si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 254).
A disposição fundamental da angústia como abertura privilegiada está no fato dela
eficientemente chamar a atenção do Dasein ao sentimento solitário de estar num
mundo estranho - neutralizando automática e consequentemente a influência do
consolo decadente do cotidiano – porém, não o colocando como simples coisa-
sujeito, ente dado, num vazio inofensivo desprovido de espacialidade. Ao contrário,
o que esta abertura angustiante proporciona ao Dasein é o sentido extremo de ser
trazido como mundo para o seu mundo e, assim, “como ser-no-mundo para si
mesmo” (HEIDEGGER, 2008, p. 255). Ou seja, a angústia abre ao Dasein a
possibilidade dele ver sentido numa existência mais própria. Também:
O Ser do Homem é caracterizado como Ser-no-mundo, e o que esta em
questão para esse Ser no mundo é, finalmente, nada mais do que manter-
se no mundo. Precisamente isto não lhe é dado; assim, o caráter
81
fundamental do Ser-no-mundo é a ansiedade13
no duplo sentido de
desabrigo e medo. Na ansiedade, que é fundamentalmente ansiedade
perante a morte, o não-estar-em-casa no mundo torna-se explícito. “O Ser-
no-mundo aparece no modo existenciário do não estar em casa.” Isto é
ansiedade (ARENDT, 1993, p. 30).
O estranhamento sentido por ser-no-mundo, se dá ao fato do Dasein, sendo-no-
mundo, não se sentir em casa. O ápice do estranhamento, fato tácito que o
fundamenta, como visto anteriormente, esta no saber-se ser-para-a-morte.
Diante dessas circunstâncias, não sendo mais eficiente, a decadência não supre
mais a necessidade de familiaridade buscada pelo ser-aí na cotidianidade mediana.
A angústia assim retira o Dasein de seu empenho impessoal no “mundo”. “O ser-em
aparece no “modo” existencial de não sentir-se em casa. É isso o que diz a fala
sobre a ‘estranheza’” (HEIDEGGER, 2008, p. 255).
Fica claro agora – fenomenologicamente - do que foge o Dasein como fuga.
Heidegger diz que ele não foge de um ente intramundano, mas justamente para
esse ente é que ele acaba correndo, buscando tranqüilidade nas ocupações do
“mundo” impessoal, ou seja, ele foge buscando qualquer coisa no público que o faça
esquecer-se do chamado intermitente que o faz sentir-se estranho frente ao
impessoal enquanto ser-no-mundo singularizado, lançando-o para si mesmo em seu
ser. Esse chamado é feito pela angústia.
Entretanto Heidegger chama a atenção para a dificuldade de se delimitar
fenomenologicamente a disposição da estranheza. Ele diz que na raridade de um
Dasein autêntico que sirva de referência, geralmente toma-se a angústia por suas
manifestações ôntico/fisiológicas, sendo que o “irromper fisiológico da angústia só é
possível porque o Dasein, no fundo do seu ser, se angustia” (HEIDEGGER, 2008, p.
257). Erra-se ao tomar o sintoma pela causa. O desprezo sistemático pela questão
da análise existencial do Dasein é um fator que colabora para que essa má
interpretação ocorra,
13 A edição utilizada do texto de Hanna Arendt traz uma tradução onde a palavra
ansiedade denota o mesmo sentido da angústia.
82
O apontamento desfavorável de Heidegger em relação ao habitual enfoque dado
pela filosofia para com a questão do ser, e especialmente para com o fenômeno da
disposição14, é que o enfoque corrente possibilita a consolidação desse diagnóstico
negligente.
Por outro lado, “essa raridade do fenômeno da autenticidade do Dasein, representa
que em sua propriedade, ele permanece encoberto para si mesmo em vista da
interpretação pública e que, na oportunidade, ele se abre para um sentido originário”
(HEIDEGGER, 2008, p. 257).
A angústia em seu chamado irrecusável, não obstante a fuga, promove a
possibilidade de uma abertura privilegiada do Dasein ao ser. Chamando-o para o
questionamento ontológico, tira-o do estado decadente do impessoal, revelando-lhe
na solidão da singularidade a propriedade e a impropriedade como possibilidades
fundamentais suas, de seu ser.
Pertence, na verdade, à essência de toda disposição abrir, cada vez, todo o
ser-no-mundo, segundo todos os seus momentos constitutivos (mundo, ser-
em, ser-próprio). Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura
privilegiada uma vez que ela singulariza. Essa singularização retira o Dasein
de sua decadência, revelando-lhe a propriedade e impropriedade como
possibilidades de seu ser (HEIDEGGER, 2008, p. 257).
Neste estado privilegiado da angústia, essas possibilidades fundamentais mostram-
se como elas são em si mesmas, sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a
que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o Dasein se atém
(HEIDEGGER, 2008, p. 257).
14 “Segundo Dewey, ‘a palavra Disposição significa predisposição, prontidão para agir
abertamente de determinado modo sempre que se apresentar a oportunidade: essa oportunidade
consiste na supressão da pressão exercida pelo domínio de algum hábito patente’ (Human Nature
and Conduct, 1922, p. 41).” (ABAGGNANO, 2003, p. 687)
83
3.4 O cuidado
Heidegger termina o parágrafo quarenta de Ser em Temo com a seguinte questão:
“Em que medida, com essa interpretação existencial da angústia, conquistou-se um
solo fenomenal capaz de responder à questão diretriz sobre a totalidade do todo
estrutural do Dasein?” (HEIDEGGER, 2008, p. 258).
O que vem a ser a “totalidade do todo estrutural do Dasein”? Partir de uma
recapitulação de alguns pontos fundamentais sobre o ser-aí e a angústia pode ser a
forma mais eficiente de responder a questão.
O Dasein não é um ente dado, como uma planta, um copo. Diferentemente ele é um
ente no espaço/tempo sempre sendo, no devir (sendo-em-si-mesmo), que se realiza
no mundo (sendo-no-mundo) e, no mundo, relaciona-se com os outros entes a sua
volta (sendo-com). Essas características constituem o Dasein em possibilidade e
decadência.
O Dasein é também um ser capaz de formular um questionamento ontológico – que
varia em complexibilidade e profundidade de indivíduo para indivíduo. Esse
“questionamento” que transcende a esfera do ôntico, como vimos, é conceituado em
Ser e Tempo como “angústia”, que é a disposição15 que o remete ao extraordinário –
e no ápice de sua ação, torna-o ciente do seu “ser-para-a-morte” - tirando sua
apreensão da problemática ordinária do cotidiano, levando-o assim, ou a fuga na
impessoalidade da vida imprópria e inautêntica da decadência ou a busca da
realização de suas possibilidades mais próprias numa vida autêntica.
15 Ainda: “A disposição é o humor ou a tonalidade afetiva que alternadamente
possuímos e que nos faz parecer alternadamente o mundo desta ou daquela maneira. A disposição
não é, porém, um simples fenômeno psicológico, colorindo as coisas e as pessoas, mas é, antes,
uma determinação constitutiva do nosso ser. Ela revela ao ser-aí, sempre de maneira diferente, o que
Heidegger chama o seu ser-lançado (die Geworfenheit), a sua faticidade, ou seja, o fato de que ele
está sempre já lá.” (BOUTOT, 1991, p. 35)
84
Sendo assim, enquanto o remete para o futuro na temporalidade e possibilidade, a
angústia possibilita ao Dasein “projetar-se”. Esse projetar-se é característico ao
Dasein quando da sua qualidade de sempre poder ser algo além do que já se é, de
sua capacidade de anteceder-se-a-si-mesmo.
O Dasein, em razão da disposição a que pertence de modo essencial,
possui um modo de ser em que ele é trazido para diante de si mesmo e se
abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser
de um ente que sempre é ele mesmo em suas possibilidades e isso de tal
maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas
(projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira
igualmente originária, tanto o ser junto que está à mão quanto o ser-com os
outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira
aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-
mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto,
determinar a cotidianidade mediana do Dasein como ser-no-mundo aberto
da decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo”
e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio
(HEIDEGGER, 2008, p. 247).
Optando o Dasein pela autenticidade, a angústia – livrando-o da influência do
intramundano que lhe obstrui e o fecha em si-mesmo – assume-se como a “abertura
privilegiada” para suas possibilidades mais próprias (HEIDEGGER, 2008, p. 250).
Uma vez que o revela em sua total constituição, essa constituição revelada na
angústia é a sua totalidade estrutural.
Assim, a angústia é abertura privilegiada, pois o coloca em condição de apreender-
se nessa totalidade estrutural, estrutura essa composta categoricamente em
existência (o ser-aí-face-a-si-mesmo), faticidade (o ser-já-no-mundo) e decadência
(o ser-junto-aos-entes encontrados no mundo) (BOUTOT, 1991, p. 37). Na união
dessas três determinações ontológicas que o compõe é que ele pode apreender
ontologicamente seu ser como tal (HEIDEGGER, 2008, p. 258).
Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade,
faticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não
são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não
prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que
constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas
85
determinações ontológicas do Dasein é que se poderá compreender
ontologicamente o seu ser como tal (HEIDEGGER, 2008, p. 258).
As estruturas do Dasein, do “Isto” fenomenológico do ser, Heidegger denomina
“existenciais”; e suas inter-relações estruturais, existencialidade. “A possibilidade
individual de apreender essas estruturas existências e, portanto, de existir em um
sentido explícito, Heidegger chama existenciário.” (ARENDT, 1993, p. 30)
A angústia então, enquanto disposição é um modo de ser-no-mundo; a angústia se
angustia enquanto sendo-no-mundo, ela se angustia com o ser-no-mundo-lançado
(HEIDEGGER, 2008, p. 258). Sabemos que o Dasein é um ser que sendo, arrisca-se
(põe em jogo) o seu próprio ser. Entendemos esse “arriscar-se”, o “colocar-se em
jogo”, a qualidade do Dasein que se projeta para o seu poder-ser mais próprio e
autêntico. Essa qualidade de poder-ser é o que caracteriza o Dasein, independente
dele se realizar própria ou impropriamente. Dessa forma, o Dasein desponta como
um ser lançado em projeto, onde ele é capaz de acessar seu ser, em virtude de sua
qualidade própria de “poder ser”.
Ontologicamente, o ser para o poder-ser mais próprio significa: “em seu ser,
o Dasein já sempre se antecedeu a si mesmo. O Dasein já esta sempre
‘além de si mesmo’, não como atitude frente aos outros entes que ele
mesmo não é, mas como ser para o poder-ser que ele mesmo é.
Designamos a estrutura ontológica essencial do ‘estar em jogo’ como o
anteceder-a-si-mesmo do Dasein (HEIDEGGER, 2008, p. 259).
A união dos três elementos/momentos constitutivos do Dasein - existencialidade,
faticidade e decadência - numa estrutura unitária, Heidegger define então como o
“todo estrutural” do Dasein. O evento que articula e une esses três caracteres
ontológicos fundamentais do Dasein Heidegger define como “cuidado”. E “é na
angústia que o abandono do Dasein a si-mesmo se mostra em sua concreção
originária.” (HEIDEGGER, 2008, p. 259)
A realidade humana é assim caracterizada não pelo fato de que ela
simplesmente é, mas que seu próprio Ser é por seu próprio Ser em questão.
Essa estrutura fundamental é o “Cuidado 16
” que se encontra na base de
16
Diferentemente da solução adotada na tradução para o português de Ser e Tempo, a
saber, cura, achamos mais apropriado traduzir care (sorge) por cuidado.
86
nosso cuidado cotidiano no mundo. O cuidar, o ter cuidado, tem
verdadeiramente um caráter auto-reflexivo; ele é apenas aparentemente
dirigido para o objeto de que se ocupa. O Ser para qual a realidade humana
é tomada de cuidado é a “Existenz17
” que perpetuamente ameaçada pela
morte, esta condenada afinal à extinção (ARENDT, 1993, p. 30).
O cuidado é assim a totalidade das estruturas ontológicas do Dasein enquanto ser-
no-mundo. Compreende todas as possibilidades da existência que estejam
vinculadas às coisas e aos outros homens e dominadas pela situação. O cuidado,
entretanto não tem nada a ver com tristeza, aflição ou preocupação da vida em
relação à esfera ôntica, ao contrário, é possível onticamente ao Dasein ser feliz,
porque ontologicamente compreendido ele próprio é cuidado. O cuidado diz respeito
ao ontológico, como a angústia. É a essência do ser-aí. (ABAGGNANO, 2000, p.
224). “Sendo em sua totalidade essencialmente indivisível, toda tentativa de
reconstrução ou recondução do fenômeno do cuidado a atos ou impulsos
particulares tais como querer ou desejar, propensão ou tendência acaba em
fracasso” (HEIDEGGER, 2008, p. 261).
O cuidado precede toda a conduta afetiva do Dasein, e não diz respeito a uma
primazia da atitude prática sobre a atitude teórica. “Teoria” e “prática” para
Heidegger são possibilidades de ser de um ente cujo ser deve ser determinado
como cuidado (HEIDEGGER, 2008, p. 261).
Entretanto, o desejar ôntico no caráter de ser-no-mundo do Dasein compromete o
cuidado, à medida que o desejar é uma “modificação existencial do projetar-se que,
na decadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades
próximas.” Essa adesão fecha o Dasein às possibilidades mais próprias, fazendo
com que ele novamente caia no equívoco de tomar o que esta “por aí” como o
“mundo real”. Nessa tendência natural que remonta suas raízes, o fenômeno do
cuidado está sempre comprometido. “Não se pode negar a propensão ‘para viver’,
nem tampouco extirpar a tendência de se ‘deixar viver’ pelo mundo”. Porém, essa
propensão e tendência só existem porque se fundam ontologicamente no cuidado e
17
“O termo Existenz aparece em alemão no original inglês. Não vimos razão para
traduzi-lo, já que qualquer tradução, necessariamente precária, nada acrescentaria à elucidação de
seu significado amplamente discutido no texto pela autora. Provavelmente este é o motivo pelo qual a
autora o manteve em alemão.” (N.E.) (ARENDT, 1993, p. 179)
87
se modificam através dela como ôntico-existenciário próprio, afinal, o Dasein,
independentemente do objeto, antecedendo-se-a-si-mesmo se preocupa
(HEIDEGGER, 2008, p. 263).
A expressão “cuidado” significa um fenômeno ontológico-existencial básico
que também em sua estrutura não é simples. A totalidade ontologicamente
elementar da estrutura do cuidado não pode ser reconduzida a um
“elemento primário” ôntico, assim como o ser não pode ser “esclarecido”
pelo ente. Por fim, há de se mostrar que a ideia de ser é tão pouco “simples”
como o ser do Dasein. A determinação do cuidado, como antecerde-se-a-si-
mesmo no já-ser-em..., enquanto-ser-junto-a, torna claro que este fenômeno
está, em si mesmo, articulado estruturalmente (HEIDEGGER, 2008, p. 264).
Heidegger termina o parágrafo quarenta e um do sexto capítulo da primeira seção
de Ser e Tempo questionando se, pelo visto até então, não seria necessário
prosseguir no estudo da questão ontológica levando adiante a pesquisa sobre o
fenômeno mais originário, de modo a dar maior sustentabilidade ontológica a
unidade e totalidade da multiplicidade estrutural do cuidado. Ele propõe ainda que,
antes do cuidado, deve-se aprofundar a questão ontológica fundamental do sentido
do ser em geral. Antes disso, porém, Heidegger lembra a necessidade de ressaltar
que, do ponto de vista ontológico, a “novidade” dessa interpretação abordada,
onticamente, é bastante antiga, já fora abordada anteriormente de outras formas.
O que o filósofo postula, concluindo, é que a explicação do ser do Dasein como
cuidado não força esse “ser” a se enquadrar numa ideia inventada, mas nos torna
possível conceituar existencialmente o que já se abriu de modo ôntico-existenciário
(HEIDEGGER, 2008, p. 264). Lembremo-nos do parágrafo dez de Ser e Tempo. A
proposta é ontológica, não psicológica, não antropológica nem tampouco biológica
(HEIDEGGER, 2008, p. 89).
Neste momento faz sentido a questão: se incompleta a investigação do ser realizada
através da analítica existencial do Dasein, dentro da ontologia fundamental de Ser e
Tempo, porquê?
Se incompleta foi porquanto fenomenológica. O próprio parágrafo dez, relembrado
acima, já abria a suspeição para essa possibilidade final. O ente Dasein, como
vimos, é, enquanto estruturalmente fático, um ente que conhece o seu ser uma vez
88
sendo no mundo, e esse conhecer, ato intencional da consciência, é um conhecer
temporário compatível com sua existência finita. Esse tempo em que se conhece
não dura necessariamente, a partir do momento que a disposição fundamental da
angústia lhe possibilita essa abertura privilegiada para o seu ser, próprio, toda a
extensão de sua existência fática.
Em Sein und Zeit, Heidegger é claro relativamente ao estatuto da
inautenticidade. Na medida em que é já sempre lançado numa situação que
o finitiza, na medida em que é ser “lançado-para-a-morte”, o Dasein é
sempre, na faticidade, constituído pela fuga inautêntica diante da sua
finitude. A autenticidade surge assim não como uma alternativa possível à
inautenticidade, não como uma saída da faticidade inautêntica, mas apenas
como uma tomada de consciência instantânea e sem continuidade desta
mesma autenticidade (SÁ, 2008, p. 12).
Dessa forma, a autenticidade que o Dasein porventura venha experimentar, será
sempre, enquanto dada dentro desse ser temporal, igualmente temporária. A
inautenticidade vivida ordinariamente na medianidade seria então
extraordinariamente experienciada via a disposição da angústia.
Por outras palavras: a autenticidade não é uma negação da inautenticidade,
um estado situado acima da inautenticidade, mas apenas, como o próprio
Heidegger explicitamente afirma, “um captar modificado desta”. É a esta
captação modificada da inautenticidade que Heidegger chama de angústia.
Esta traduz então não um modo de compreender diferente da compreensão
inautêntica, mas uma tomada de consciência da própria inautenticidade
inelutável, uma tomada de consciência fugaz, que ocorre “apenas por
instantes” (SÁ, 2008, p. 12).
Nesse raciocínio, pressupostos de cunho científico, fenomenologicamente
analisáveis - por mais preciso que se procure deixar o objeto referência do estudo, o
“corpo de prova” Dasein – evidentemente não dariam conta de responder a questão
do ser. A incompatibilidade da análise do Dasein como propiciador de uma ontologia
fenomenológica final torna-se clara. Heidegger, nas palavras finais da tradução da
preleção do semestre de inverno ministrada entre 1928 e 1929 na Universidade de
Freiburg, diz:
Ainda uma última coisa: precisamente os instantes do ser-aí em que
conseguimos existir de modo completo e essencial não são apenas raros,
89
mas de certo modo constituem um cume estreito sobre o qual só nos
mantemos de maneira fugaz. Mesmo quando esses instantes retêm a força
de impactação do ser-aí por meio de uma lembrança autêntica, eles apenas
anunciam tanto mais incisivamente que, na maioria das vezes, a existência
não é dessa maneira, ainda que ela efetivamente aconteça assim
(HEIDEGGER, 2009, p. 359).
Do mesmo modo que a análise do fático Dasein estaria sempre marcada pela
inautenticidade, o próprio projeto da construção de uma ontologia apta a confrontar-
se destrutivamente com a tradição ontológica ocidental tornaria necessária uma
compreensão diferente da compreensão inautêntica determinante da faticidade
característica do Dasein, possibilidade que a análise heideggeriana nega. Quando
de frente a este impasse, o conceito do “tempo” toma força a partir de então e se
mostra como continuidade natural dentro do projeto. “A análise da historicidade do
Dasein busca mostrar que esse ente não é ‘temporal’ porque ‘se encontra na
história’ mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque,
no fundo de seu ser, é temporal” (HEIDEGGER, 2005, p. 468).
Esta incompatibilidade tornar-se-ia manifesta no preciso momento em que a
elaboração do projecto se interrompe: na passagem das duas secções
publicadas sob o título genérico de “ser e tempo” para a terceira secção, a
qual deveria ser intitulada “tempo e ser” (SÁ, 2008, p. 13).
Nessa momento do processo da investigação do ser do Dasein, cuja essência é sua
existência, Heidegger adentra definitivamente a questão do tempo - esse movimento
ficaria mais tarde conhecido (na terminologia do autor) como “kehre” (giro), termo
que usaria pela primeira vez nas preleções do semestre de verão18 de 1928.
Heidegger, assim, a partir da questão da angústia, da decadência e do cuidado,
continua sua investigação ontológica de Ser e Tempo focando-se na temporalidade
e historicidade do Dasein. No §78: A incompletude da presente análise temporal do
Dasein, o filósofo pronuncia:
O Dasein fático, leva em conta o tempo, sem, no entanto, compreender,
existencialmente a temporalidade. Antes da questão do que significa o ente
18
HEIDEGGER, Martin (1990), Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang
von Leibniz [Marbusrg Vorlesung Sommersemester 1928; Gesamtausgabe, vol. 26], Frankfurt am
Main, Vittorio Klostermann, 2ª ed. (Apud. SÁ, 2008, p. 21).
90
é e está “no tempo”, faz-se necessário esclarecer a atitude elementar desse
contar com o tempo. Deve-se interpretar toda a atitude do Dasein a partir de
seu ser, isto é, a partir da temporalidade. Cabe mostrar de que maneira o
Dasein, como temporalidade, temporaliza uma atitude que se relaciona com
o tempo, no modo de levá-lo em conta. A caracterização feita até agora da
temporalidade não é, pois, apenas incompleta, porque nem todas as
dimensões do fenômeno foram observadas, mas é, em princípio, deficiente,
já que pertence à própria temporalidade uma espécie de tempo do mundo,
no sentido rigoroso do conceito existencial e temporal de mundo. Deve-se
compreender como isto é possível e porque é necessário. E com isso poder-
se-á esclarecer tanto o “tempo”, vulgarmente conhecido, “no qual” ocorrem
entes, quanto a intratemporalidade desses entes (HEIDEGGER, 2005, p.
499).
Mais a frente, na conferência Tempo e Ser de 1962, o filósofo sumariaria:
A tentativa do §70 de Ser Tempo de reduzir a espacialidade do ser-aí à
temporalidade não pode ser mais sustentada (HEIDEGGER, 1979, p. 270).
Concluímos nosso trabalho neste ponto, lembrando que a proposta desta seção de
nossa investigação foi apontar para que, dentro da ontologia de Ser e Tempo, a
qual buscamos apresentar sua formulação fundamental, o conceito do “cuidado” é
apresentado finalmente como a forma de compreensão e interpretação do ser,
enquanto sendo temporalmente ser-aí. Ainda, que a completude do todo estrutural
do Dasein, alcançado por ele somente através da ação incondicional do fenômeno
da angústia, sendo esta a abertura privilegiada do ser-aí à sua possibilidade mais
própria, onde, antecedendo-se-a-si-mesmo no projeto, lhe é possibilitado apropriar-
se, do seu todo estrutural em questão, completando assim ontologicamente o ciclo
existencial, colocando-se consequentemente numa disposição, em conformidade e
coerência com o seu ser próprio.
Deste momento em diante a obra de Heidegger nos abre um novo horizonte de
caminhos e de possibilidades de estudo. Matéria que abordaremos futuramente, se
nossa existência temporal permitir.
91
Conclusão
O objetivo deste trabalho foi apresentar a formulação da proposta ontológica
fundamental heideggeriana presente na obra Ser e Tempo. Procuramos mostrar que
a proposta da filosofia de Heidegger na referida obra consiste em retomar a questão
do estudo ontológico do ser, relegada pela filosofia ocidental. Através da
fenomenologia, uma metodologia epistemológica, ele busca identificar a
manifestação analisável do ser no mundo. Procuramos atentar que se houve um
motivo para a incompletude de sua proposta ontológica fundamental de Ser e
Tempo foi devido à abordagem via a fenomenologia do Dasein.
Analisamos o surgimento do Dasein, o ser-aí, o ente espaço/temporal em toda sua
complexibilidade estrutural e que esse tal Dasein padece na finita existência fatídica
e decadente do ser-no-mundo. Esse contínuo e sempre presente padecer do
Dasein, Heidegger conceitua como angústia.
Ressaltamos a relevância da disposição da angústia como a abertura privilegiada do
Dasein para suas possibilidades próprias. Para tal propósito, abordamos alguns
conceitos fundamentais como: Dasein, das-Man, decadência, abertura e cuidado,
procurando dessa forma situar o leitor no essencial da proposta ontológica
fundamental da filosofia heideggeriana.
Demonstramos que o Dasein é o homem como fenômeno existencial, ou, traduzindo,
o ente, o ser-aí, e que o das-Man, é este ser na sua relação no mundo, expresso
existencialmente na forma impessoal da convivência com os demais entes.
Apontamos o fato de Heidegger sustentar que a questão da angústia nasce da
inquietação do Dasein enquanto ser-no-mundo, e que se dá ordinariamente de
forma inautêntica e temporal. Essa inautenticidade do Dasein no ser-no-mundo,
impropriamente, é conceituada com o termo decadência, situação em que ele se
encontra fechado para sua existência mais própria.
92
A angústia é apresentada como a abertura privilegiada do Dasein para sua
originalidade, o que lhe possibilita uma apreensão de sua autenticidade.
Demonstramos também que através do conceito de angústia, o Dasein é colocado
em condição de apreender-se em sua totalidade estrutural, estrutura essa composta
ontologicamente pela existência (o ser-aí-face-a-si-mesmo), pela faticidade (o ser-já-
no-mundo) e pela decadência (o ser-junto-aos-entes encontrados no mundo). Essa
apreensão do seu todo estrutural Heidegger postula como cuidado.
Concluímos assim a pesquisa apresentando o cuidado como a completude
estrutural/existencial do Dasein, alcançada somente através da ação incondicional
do fenômeno da angústia, em que ele, ente temporal, antecedendo-se-a-si-mesmo
no projeto, é possibilitado apropriar-se do seu todo estrutural em questão, abrindo-
lhe a possibilidade de apreender ontologicamente o seu ser próprio.
Mostramos que em Ser e Tempo Heidegger não fez psicologia, nem antropologia,
tampouco biologia, sua proposta foi, filosoficamente, identificar o ente
fenomenológico, o Dasein, em suas múltiplas possibilidades temporais, buscando a
compreensão do ser realizado no tempo.
Nosso interesse, assim, foi analisar os fundamentos básicos da ontologia
fenomenológica heideggeriana, constituinte da obra filosófica Ser e Tempo,
procurando com o resultado desta pesquisa, além dos fins práticos do momento,
contribuir com os estudiosos, como nós, da filosofia heideggeriana e dos autores
nele inspirados.
Assim, é possível falar, por exemplo, de uma leitura fenomenológica
(Merleau-ponty, Held, Sallis, Figal) existencialista (Sartre),
desconstrucionista (Derrida, Krell), pragmatista-wittgensteiniana (Dreyfus,
Haugeland, Brandon) e histórico-crítica (Pöggeler, Gethmann-Siefert) da
obra de Heidegger (HEIDEGGER, 2009, XI-XII).
Assim, relembramos enfim que o interesse de pesquisar os fundamentos da filosofia
ontológica de Heidegger, acreditando que ao abordar conceitos como possibilidade,
devir, temporalidade, possibilidade, existencialidade e outros conexos, constituintes
da vigorosa terminologia heideggeriana, desenvolveremos a capacidade de
identificar o desdobramento que sua obra desencadeou no processo histórico na
filosofia contemporânea, e compreender a influência que seu trabalho exerceu e
93
exerce não só no pensamento existencialista ou de linhas similares, mas também na
diversidade de teorias e campos de pesquisa atuais, além das expostas acima,
outras, possibilitando-nos, dessa forma, ampliar nossa percepção em relação as
nossas várias possibilidades futuras.
94
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