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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
MÁRIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Curitiba 2004
MÁRIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Monografia apresentada ao curso de Direito da
Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade
Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a
obtenção de grau de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Sérgio Said Staut Júnior
Curitiba
2004
TERMO DE APROVAÇÃO
MÁRIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Esta monografia foi julgada e aprovada para obtenção do título de Bacharel em Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, de de 2004.
Eduardo Oliveira Leite Bacharelado em Direito
Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador: Prof. Sérgio Said Staut Junior Universidade Tuiuti do Paraná
Prof. __________________________________ Universidade Tuiuti do Paraná
Prof. __________________________________ Universidade Tuiuti do Paraná
DEDICATÓRIA
Aos meus pais que mesmo não estando presentes,
com certeza estariam felizes por seu filho ter
alcançado este objetivo, que eles infelizmente não
puderam alcançar, pois também, foram vítimas dos
efeitos causados pelo objeto tema desta monografia.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha esposa e companheira Vera Lúcia, aos meus filhos Sesóstris e
Athená pelo apoio recebido durante todos estes anos.
Agradeço ao meu orientador Professor Sérgio Said Staut Júnior; a Professora
e escritora Jeaneth Stefaniak pela contribuição com o valioso material para pesquisa
e ao amigo Marcos Fontinelli pelo auxílio de campo durante a pesquisa realizada.
Agradeço aos professores, funcionários e colegas de turma do curso de
Direito da Universidade Tuiuti do Paraná, que muito contribuíram para a conclusão do
curso, pois sem o incentivo deles as coisas ficariam mais difíceis.
SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................................VII
INTRODUÇÃO..…………...........................................................................................1
CAPITULO I – DOS DIREITOS DO HOMEM AO DIREITO DE
PROPRIEDADE............................................................................................................3
1.1. Os Direitos do Homem ............................................................................................3
1.2. Os Direitos Fundamentais .......................................................................................4
1.3. Definição de Propriedade ........................................................................................5
1.4. Noções Históricas Sobre a Propriedade...................................................................7
1.5. Noções Históricas da Propriedade no Brasil..........................................................11
CAPITULO II – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE...............................17
2.1. Definição de Função Social da Propriedade ..........................................................17
2.2. Antecedentes Históricos do Instituto da Função Social.........................................18
2.3. A Propriedade Como Função Social .....................................................................19
2.4. A Função Social da Propriedade no Brasil e o Direito Positivo.............................20
2.5. A Legitimação da Propriedade Privada em relação a Função Social e..................25
2.6. Deveres Fundamentais quanto à Propriedade.........................................................27
2.7. A Quem se destina a Função Social da Propriedade e qual o seu objeto...............31
2.8. A Questão Agrária e a Conjuntura Nacional..........................................................32
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................36
REFERÊNCIAS............................................................................................................39
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo, discutir a propriedade privada, seus contornos
sociais e a evolução do direito de propriedade para a concepção de direito à
propriedade, tentando enfocar os aspectos da função social.
Começamos com a análise do conceito e definição com base nos antecedentes
históricos, demonstrando como ele foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro,
analisando seu surgimento no contexto internacional e qual a verdadeira intenção
quando da sua elaboração, sua real natureza jurídica, e como ele serve de sustentação
ou não para a situação atual.
Verificamos que a construção jurídica deste instituto se baseou nos efeitos da
Revolução Francesa, que elevou a grau de direito fundamental do homem a questão da
propriedade e que já nos dias de hoje apresenta uma reflexão profunda com respeito à
função social da mesma onde detectamos ainda premente a falta de políticas claras
para realizá-la.
INTRODUÇÃO
Nossa intenção com o presente trabalho é colaborar para a construção de uma
sociedade mais justa. Para isso, enfocamos no trabalho, como questão central, a
Função Social da Propriedade. O que nos causou interrogações e por que não dizer
indignação até os dias de hoje, nos parece ter seu foco apontado para a má distribuição
das riquezas existentes em nosso país e no mundo.
Os conhecimentos adquiridos como estudante de Direito, bem como em nossa
atividade profissional como integrante do quadro de auxiliares da justiça,
proporcionaram a alavancada para a busca de subsídios que pudessem contribuir para a
mudança do quadro atual.
A função social da propriedade é o ponto a ser explorado, porque é nela que
está fincada a grande maioria das contradições em termos de pensamentos teóricos,
jurídicos e políticos existentes no Brasil como nação, os quais são resultados de
séculos de conflitos em prol da manutenção da propriedade exclusivamente de forma
particular.
Nossa pesquisa abordará a propriedade desde as suas primeiras conceituações,
fazendo um apanhado histórico no Brasil e no mundo, verificando o surgimento do
conceito, como foi aplicado no Direito estrangeiro e nacional, qual é a visão atual e
que influência exerce no cotidiano das pessoas.
Verificaremos, também, se a existência de movimentos sociais envolvidos na
luta pela terra contribuem de alguma forma para a mudança da realidade e qual a sua
visão para a implementação desta transformação.
Nossos questionamentos ecoam - tendo em vista que no Brasil vivem
aproximadamente 170 milhões de pessoas - em uma área de 8,5 milhões de
quilômetros quadrados de condições privilegiadas para uma série de atividades que
podem garantir o bem estar da população. Mas, no entanto, é mal distribuída, ficando
grandes áreas nas mãos de poucos denominados proprietários, em detrimento da
maioria que são os não proprietários.
Para o embasamento de nossa pesquisa nos utilizamos de documentos
doutrinários de toda ordem, documentos elaborados pelos movimentos envolvidos com
a questão da terra, dentre outros que pareceram pertinentes, dividindo o trabalho em
dois capítulos. No primeiro, abordamos os direitos do homem em relação ao direito de
propriedade e, no segundo, fizemos a abordagem da função social da propriedade,
propriamente dita, estabelecendo uma correlação com a visão que têm os movimentos
sociais em relação à mesma.
CAPÍTULO 1 – DOS DIREITOS DO HOMEM AO DIREITO DE
PROPRIEDADE
1.1. Os Direitos do Homem
Das consultas realizadas para chegarmos próximo da conceituação do que é
Direito encontramos muitas dificuldades em determinar algo objetivo. Notamos,
porém, que o Direito deriva de uma ciência social, devendo, portanto, ser pensado
como resultado de experiências dialéticas.
Neste contexto, verificamos a existência de várias escolas que estão em
constante enfrentamento intelectual tentando determinar a sua origem. Entretanto,
iremos trabalhar inicialmente com as mais expressivas, ou sejam: Jusnaturalista,
Positivista e também a concepção Marxista.
Para os jusnaturalistas o Direito é a expressão da Justiça que está acima das leis
ditadas pelo Estado, com princípios maiores, estabelecendo uma ordem mais justa. Já,
para os positivistas, o Direito se identifica com a ordem imposta pelo poder estatal,
sendo em última instância a expressão da ordem positivada através das normas
jurídicas.
Há, também com relevante importância, a existência de uma terceira concepção
do direito, de inspiração marxista, que opõe ao idealismo jurídico a objetividade das
relações sociais ou a dialética social.
“A proposta da concepção jusnaturalista é relacionar “Direito e Justiça”,
emanadas de uma ordem superior e, por quê não, divina? O Direito, se reduzido à mera
legalidade, perderia então o status de ciência, tornando-se um dogma, no mais puro
sentido da palavra”1.
Já, o positivismo, corresponde a uma forma de entendimento do mundo, do
homem e das coisas em geral. Ele entende que os fenômenos da natureza acham-se
submetidos a leis naturais que a observação descobre, que a ciência organiza e que a
tecnologia permite aplicar, preferencialmente em benefício do ser humano. As leis
naturais existem nas várias categorias de fenômenos, que Augusto Comte distinguiu
em sete: há fenômenos matemáticos, astronômicos, físicos, químicos, biológicos,
sociais e psicológicos2.
Com relação ao Marxismo, este afirma que a realidade social dos homens
condiciona a sua consciência. Isto quer dizer que o indivíduo tem uma posição na
sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de produção, tendo, também, um
conjunto de idéias que é determinado por esta posição. Em suma, que o direito é uma
forma necessária da sociedade capitalista e que surge em conseqüência de determinado
nível de desenvolvimento das forças produtivas e das inter-relações daí decorrentes3.
1.2. Os Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais do homem são frutos de um desenvolvimento
histórico, cultural e político. Inspiraram-se no pensamento cristão e nas concepções
dos direitos naturais. Revela-nos Giorgio del Vecchio, citado por José Afonso da
1 STEFANIAK, Jeaneth Nunes. Propriedade e Função Social – Perspectiva do Ordenamento Jurídico e do MST. p. 15. 2 LACERDA NETO, Arthur Virmond de. http://membres.lycos.fr/clotilde/contacts/arthur/ateismo.htm. 15/08/03. 3 LYRA FILHO. Roberto, O que é Direito. p. 19.
Silva4 que, ademais, as inspirações de cunho filosófico têm grande ingerência para a
declaração e o desenvolvimento dos ditos direitos fundamentais.
Entenda-se nesta conceituação os direitos abrangidos por todos os seres
humanos, como o direito à vida, liberdade, segurança, alimentação, moradia, trabalho,
entre outros direitos que permitem aos homens, socialmente considerados, viver em
sociedade, sem qualquer distinção de gênero, etnia, credo, língua, manifestação
política, consciência, religião e liberdade de pensamento.
Assim contextualizando, esses direitos foram concebidos em decorrência de
conflitos existentes ao longo do tempo e conforme as circunstâncias ali ditadas.
1.3. Definição de Propriedade
Os mais diversos autores e teóricos ainda não conseguiram encontrar uma
definição para o termo propriedade que lhe fosse completo ao ponto de sintetizar clara
e inequivocadamente sua enorme abrangência e, portanto, apresentam significativas
diferenças, sejam elas técnico-jurídicas, sociais ou culturais, referindo-se muitas delas
a conceitos semelhantes como posse, possuidor ou coisa possuída.
Assim, temos que, etimologicamente, propriedade vem: Do lat. proprietate. S. f.
1. Qualidade de próprio; 2. Qualidade especial - particularidade, caráter; 3. Emprego
apropriado de linguagem; 4. Pertença ou direito legítimo; 5. Prédio, fazenda,
herdade; 6. Jurídico: Direito de usar, gozar e dispor de bens, e de reavê-los do poder
4 SILVA, José Afonso da. Curso de direito positivo brasileiro, p. 159
de quem quer que injustamente os possua; 7. Bens sobre os quais se exerce este
direito5.
Já, do ponto de vista filosófico, é fácil observar que o capitalismo, ao acalentar
a ideologia do "direito" inalienável da propriedade privada, automaticamente acalenta
paralelamente o crescimento das desigualdades na distribuição dos recursos
produzidos e essa desigualdade na distribuição dos recursos, por sua vez, acalentará
uma futura desigualdade no poder de barganha entre o proprietário e o não
proprietário. Diante disso os apologistas do capitalismo usualmente tentam justificar a
propriedade privada declarando que a posse [procuram confundir posse com
propriedade] é um "direito universal".
Proudhon escreve sobre isso:
"O proprietário, o ladrão, o opressor, o soberano - todos esses títulos são sinônimos - impõem sua vontade como lei, sem objeções ou controle; isto é, fazem o papel do poder legislativo e executivo ao mesmo tempo . . . a propriedade engendra despotismo . . . A essência da propriedade é tão clara que, para vê-la, basta observar o que acontece à sua volta. A propriedade é o direito do uso e do abuso . . . se bens são propriedade, por que os proprietários não seriam reis,... reis despóticos? E se cada proprietário é um senhor soberano dentro da esfera da sua propriedade, um absoluto rei dentro do seu próprio domínio, como poderia um governo de proprietários ser outra coisa além de caos e confusão”6.
Por estas razões, os anarquistas concordam com Rousseau quando ele afirma:
"O primeiro homem que, depois de cercar um pedaço de terra, atreveu-se a dizer: 'isto é meu e encontrou gente simples o suficiente para acreditar nele é o real fundador da sociedade civil'. Quantos crimes, guerras, assassinatos, quantas misérias e horrores à raça humana poderiam ter sido evitados se alguém diante daquela cerca ou fosso, tivesse gritado para seus companheiros: 'cuidado com este impostor; vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos da terra pertencem a todos e que a terra não pertence a ninguém'"7.
5 _______www.comp.pucpcaldas.br/ forum/viewtopic.php?p=452&highlight 6 PROUDHON, Pierre-Joseph. A Propriedade é um Roubo. p. 67. 7 ROSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. p. 84.
1.4. Noções Históricas sobre a Propriedade
Ao traçar a história da propriedade, iniciamos com o direito romano, no qual a
propriedade tinha caráter individualista; na Idade Média enfrentou uma peculiaridade
que era a dualidade de sujeitos, o dono e o que utilizava o imóvel, pagando este ao
primeiro pelo seu uso; com o advento da Revolução Francesa, assumiu feição
marcadamente individualista, sendo que neste século se deu a acentuação do seu
caráter social, tendo contribuído para tanto as encíclicas papais.
É então a partir deste período que a propriedade se condicionou como direito
sagrado do homem, mais precisamente, a partir da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão de 26 de agosto 1789, com o estabelecimento do modo de produção
capitalista, o que legitimou a propriedade privada dos meios de produção como
pressuposto da condição de cidadão.
A Revolução Francesa teve a burguesia como classe hegemônica que acabou
formulando suas próprias concepções sobre à propriedade. Neste período, como
combate aos institutos jurídicos, o direito romano foi revitalizado, sobretudo pelos
pensadores iluministas.
“Na era romana preponderava um sentido individualista de propriedade, apesar de ter havido duas formas de propriedade coletiva: a da gens e a da família. Nos primórdios da cultura romana a propriedade era da cidade ou gens, possuindo cada indivíduo uma restrita porção de terra (1/2 hectare). (...) Com o desaparecimento dessa propriedade coletiva da cidade, sobreveio a da família, que, paulatinamente, foi sendo aniquilada ante o crescente fortalecimento da autoridade do pater familias. A propriedade coletiva foi dando lugar à propriedade privada”8.
8 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. p. 100).
Com o declínio do Império Romano, protagonizado pela invasão dos bárbaros,
teve inicio a idade média, com o fortalecimento do feudalismo que era composto pelos
príncipes, condes, barões e o clero, os quais detinham poder absoluto sobre servos,
vassalos e outros que viviam em seus feudos. “Nessa época feudal a propriedade perde
o seu caráter exclusivista, pois o domínio se reparte em domínio eminente (Estado),
domínio direto (senhor) e domínio útil (vassalo)”9.
Estão expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão os
princípios da Revolução Francesa, que foi aprovada pela Assembléia Nacional, em 26
de agosto de 1789, sendo considerada o “atestado de óbito” do regime feudal e tendo
importância fundamental para o início da nova era10.
A partir da Declaração Francesa surgem os jusnaturalistas, com maior
expressão para Hobbes, Locke e Rosseau, sendo que, para Hobbes, o Estado tem o
poder de instituir a propriedade, delegando aos seus súditos tal direito, podendo,
também, destituí-la. Já, para Locke, a propriedade é um direito natural e, quanto a
Rosseau, este entendia que o homem ao participar do contrato social perderia a
liberdade natural, mas ganharia a liberdade civil e a propriedade, sendo que para ele a
“história da sociedade se confunde com a própria idéia de propriedade”11.
“Ao contrário do que hoje se poderia pensar, depois das históricas reivindicações dos não proprietários contra os proprietários, guiados pelos movimentos socialistas do século XIX, o direito de propriedade foi durante séculos considerado um dique – o mais forte dos diques – contra o poder arbitrário do soberano. Foi Thomas Hobbes, talvez o mais rigoroso teórico do absolutismo, que teve a audácia de considerar como uma teoria sediciosa (e, portanto merecedora de condenação num Estado fundado nos princípios da razão) a que afirma “que os cidadãos têm a propriedade absoluta das coisas que estão sob sua posse”
12.
9 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições do Direito Civil. p. 94. 10 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. p. 85. 11 ROSSEAU, Jean-Jacks. Do Contrato Social. p. 31. 12 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. p. 95.
Estas idéias foram inseridas nos ordenamentos jurídicos pelo mundo todo, mais
notadamente nos de regime capitalista, nos quais estão até o momento, determinando
privilégios para uns poucos em detrimento da maioria.
Tais fatos só serviram para acentuar os conflitos de classe, mantendo sempre
uma intranqüilidade dos sistemas políticos e sociais. O capitalismo foi o que mais
avançou, todavia, nunca de forma tranqüila, recebendo críticas de toda ordem dos
minoritários socialistas utópicos e anarquistas.
Dentre tantos críticos, destacou-se Marx, com suas idéias ainda presentes na
atualidade. Nestas, ele procura demonstrar as contradições do sistema capitalista,
sustentado justamente na propriedade privada de produção. Em suas obras são vistas
várias formas de propriedade, todas com visão socialista e que estavam ligadas à visão
produtiva da propriedade direcionadas à coletividade.
“Eis porque toda estrutura social baseada nesta propriedade coletiva, e com ela o poder do povo no mesmo grau, decaem na medida em que se desenvolve a propriedade privada imóvel. A divisão do trabalho já é mais desenvolvida. Encontramos já a oposição entre a cidade e o campo, e mais tarde a oposição entre os estados que representam o interesse das cidades e os que representam os interesses do campo; e encontramos no interior das próprias cidades a oposição entre o comércio marítimo e a indústria. As relações de classe entre cidadãos e escravos estão agora completamente desenvolvidas”13.
Marx divide o sistema em classes sociais, definindo-os como grupos sociais
com papel e função específicos na divisão social do trabalho. Os indivíduos que se
encontram nas mesmas condições de existência formam uma classe14, influenciando
tanto os meios de produção como de distribuição.
A propriedade privada foi posta em cheque no fim do Século XIX, quando a
situação de miséria instalada na Europa acalorou os debates sobre a abolição da
13 MARX, Karl. A Ideologia Alemã. p. 31. 14 Idem ibidem. p. 72.
propriedade privada. Por outro lado, reformadores sociais franceses defendiam a
necessidade de se extinguir a miséria, porém, sem a extinção da propriedade burguesa.
Nascia aqui o debate sobre a necessidade de se dar um caráter social à propriedade
privada.
“Em resumo, a propriedade privada é igualmente social, se forem considerados seus usos e não apenas seu modo de apropriação. Sua separação absoluta do trabalho parece mais contestável à medida que este é, em última análise, a fonte da riqueza. Porém, em sua acepção liberal, permanece um divórcio entre os usos e o modo de apropriação da propriedade. Esta é justificada por sua utilidade social (é assim que os patrões justificarão, constantemente, sua preeminência: é a empresa que permite a existência dos trabalhadores), mas seu proprietário privado continua a ser o juiz soberano de sua utilização”15.
Por fim, temos o advento da propriedade social defendida por Duguit. Em seu
Direito social, declara que desaparece a propriedade “direito subjetivo”, dando lugar a
propriedade como função social. Para Duguit, propriedade legítima é aquela que
responde às necessidades sociais, que contribui para a riqueza social, ou seja, a
propriedade deixa de ser um direito sagrado e intocável para se tornar uma função
social16.
Com o advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o discurso sobre
propriedade social se acentuou. Com o mundo destroçado pela guerra e o discurso
socialista conquistando aliados, o capitalismo oferece sua primeira contribuição para
conter a voz socializante: era obrigatório dar à pedra angular do sistema capitalista – a
propriedade – uma função social, que não a faria deixar de ser uma propriedade
privada, porém, agora com uma feição menos individualista, voltada para a
“sociedade”. Segundo Castel, “o capitalismo realiza aí uma estranha operação de
alquimia. Os poderes da propriedade são conservados”17. O Estado Social assume o
15 CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social. p. 396. 16 DUGUIT, Leon. Fundamentos do Direito. p. 65. 17 CASTEL, Robert. A Metamorfose da Questão Social. p. 406.
papel de provedor da classe dos não proprietários e com isso evita qualquer ataque ao
direito de propriedade.
1.5. Noções Históricas da Propriedade no Brasil
No início de sua colonização, levada a efeito pelo império português, o Brasil
foi denominado de “Terra de Santa Cruz”, e teve sua experiência de governo
constituída pelo regime feudal. Iniciada a divisão territorial da extensa costa brasileira,
a partir de 1530, com a divisão em 15 circunscrições administrativas, cujas áreas
traçadas paralelamente em forma de grandes lotes lineares de terra, com faixas de
terras que variavam de medida entre 150 a 600 quilômetros de largura, eram limitados
ao oeste pelo Tratado de Tordesilhas, e a leste, pelo Oceano Atlântico.
Nesse sistema de colonização utilizado pelos portugueses por meio do regime
de sesmarias, o território denominado de capitania hereditária era doado pelo Rei a um
fidalgo de sua confiança chamado de donatário, cuja a administração deveria seguir a
orientação legislativa da metrópole 18.
“... o solo colonial não passou a constituir patrimônio privado dos donatários. Como propriedade particular, os donatários receberiam apenas dez léguas de terras, que poderiam tomar onde quisessem, contanto que não fossem contíguas. Deveriam ser repartidas em quatro ou cinco partes, separadas, no mínimo, por duas léguas entre si. O restante das terras deveria ser distribuído por eles na forma de sesmarias, segundo as Ordenações do Reino”19.
18 ________http://www.jbcultura.com.br/mmeroe/capitan.htm 19 SILVA, Ligia Ozório. Terras Devolutas e Latifúndios – Efeitos da Lei de 1850. p. 29.
O sistema de sesmarias vigorou até 17 de julho de 1822, “passando, então, a
vigorar o regime de posses, que é a ocupação da terra por aquele que a explora, ergue
benfeitorias, geralmente utilizando-se tão só da força de trabalho familiar. Essa nova
situação permite o surgimento das pequenas propriedades no Brasil”20.
A questão da terra e sua distribuição, notadamente os grandes latifúndios,
passaram a fazer parte das discussões e deram origem à Constituição de 1824, seguida
da lei nº 601 de 18 de setembro de 1850, Lei das Terras, que tinha por objetivo
legalizar a propriedade da terra. Tal lei veio acompanhada de outras leis, como a Lei
do Ventre Livre, a Lei do Sexagenário e a Lei Áurea em 1888.
Ainda, na seqüência, vieram as determinações que objetivam a Lei de Terras,
ou seja: implementar a teoria do “preço suficiente”21, que objetivava impedir o acesso
à terra pelos trabalhadores livres e imigrantes que chegavam ao país devido à
necessidade de mão-de-obra para as grandes propriedades. Anteriormente, a
Constituição de 1824, em seu artigo 170 estabeleceu o seguinte: “é garantido o direito
de propriedade em toda sua plenitude”. O Código Civil de 1916 em seu artigo 524
descreve o conteúdo do direito de propriedade e prescreve que a lei assegura ao
proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de
quem injustamente os possua.
Assim se encaminhou em todas as constituições brasileiras, até a atual
Constituição Federal, promulgada em 1988, o caráter de direito absoluto. O legislador
constituinte manteve a propriedade como direito fundamental. Em seu Artigo 5°,
20 ARAUJO, Luiz Ernani Banesso de. O Acesso a Terra no Estado Democrático de Direito. p. 72. 21 Teoria sustentada por Edward Gibbon Wakefield, que se resume na estipulação de um preço suficiente para as terras vagas, permitindo aos capitalistas a obtenção de mão-de-obra barata pagando pela emigração de pessoas pobres. SILVA, Ligia Ozório. Terras Devolutas e Latifúndios – Efeitos da Lei de 1850. p. 101.
inciso XXII, o Artigo 170, inciso II, também enunciou-se a propriedade como
princípio da ordem econômica e financeira.
O caráter funcionalista da propriedade, característica que apareceu no
ordenamento jurídico nacional na Carta de 1934, em seu artigo 113, ítem 17,
determinava que o direito de propriedade não podia ser exercido contra o interesse
social. A partir de então, as Constituições brasileiras, bem como o Estatuto da Terra,
determinam que a propriedade será garantida se cumprir a sua função social.
Assim também aconteceu com o novo Código Civil Brasileiro, de 2002,
estabelecendo, em seu artigo 1.228, que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor
da coisa, e o direito de reavê-la de quem quer que injustamente a possua ou detenha. “No § 1o
O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido
em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. “No § 2o São defesos
os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam
animados pela intenção de prejudicar outrem”. “No § 3o O proprietário pode ser
privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou
interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”.
“No § 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de
considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou
separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico
relevante”. E por fim, “no § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa
indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o
registro do imóvel em nome dos possuidores”.
É possível alinhar as seguintes considerações: o “caput” dá a medida dos
poderes do proprietário, mantendo o mesmo conceito do código civil de 1916; o
parágrafo 1º demonstra a preocupação com a função social e a proteção ao ambiente
sadio, e o parágrafo 2º condena o abuso de direito, o espírito emulativo.
Com relação aos parágrafos 4º e 5º, se de um lado afirma-se que a Usucapião
ganhou contornos importantes, ao absorver as formas do extraordinário e
constitucional, apresentando-nos o legislador uma nova forma de desapropriação, de
outro, doutrinadores de nomeada são enfáticos em afirmar da inconstitucionalidade,
inconveniência e dificuldade de implementação destas disposições.
Em primeiro lugar diz-se que não poderia a lei ordinária estabelecer mais uma
forma de desapropriar-se um bem; em segundo, da ofensa à Constituição Federal
acerca de uma prévia indenização; em terceiro lugar, quem vai pagar o valor
estabelecido? Os menos favorecidos sem um nada de recursos? Foi dito e escrito que
somente indagações foram encontradas e as justificativas apontam para a exclusão do
Legislativo e do Executivo nestas situações, relegando delicado assunto ao arbítrio do
Juiz. Ademais, encontram-se artigos textualizando que isto importa em nova hipótese
de perda de propriedade a penalizar o proprietário que pagou os devidos impostos,
impondo-lhe dano.
Por outro lado, em perfeita sintonia com o “caput”, a regra do parágrafo 4º
menciona imóvel reivindicado, o que induz ao requerimento do proprietário. Do
dicionário atual encontramos a seguinte significação: “Verbete: reivindicar [De
reivindicação.] V. t. d. 1. Intentar demanda para reaver (propriedade que está na posse
de outrem); vindicar. 2. Reaver, readquirir, recuperar: O funcionário reivindicou o
antigo posto. 3. Tentar recuperar: Reivindicou em vão o lugar perdido”22.
A justificativa inicial, na defesa do projeto, era que o juiz não determinasse a
restituição do imóvel ao proprietário reivindicante que teve êxito na demanda, como já
vimos várias vezes no noticiário televisivo: máquinas derrubando casebres e população
humilde ao desabrigo. De modo diverso, que se oportunizasse ao cidadão a
possibilidade de permanecer ali e indenizar, da forma mais razoável possível, o
proprietário da área, que agora a perde em favor do social e não decidir sob os rigores
da lei em favor de um indivíduo que acumula riquezas e deixa a área sem utilização. É
bem verdade que pelo antigo “espírito” deveria ser restituído daquilo que era seu, de
sua incontroversa propriedade. Aí está explicitada a razoabilidade que se diz presente
no novo Código, impondo mais uma leitura ao artigo 5º da Lei de Introdução ao
Código Civil.
É bem verdade que o princípio da socialidade é um dos que norteam o novo
Código e que isto não justificaria a subversão de princípios constitucionais. Entretanto,
por falar neste princípio, que reforça a função social da posse e da propriedade, esta
noção não é nova, uma vez que começou a despontar ainda na fase contemporânea
com o advento do Constitucionalismo Social, pois até então o direito de propriedade
era marcado por uma idéia de absolutismo, estabelecendo um quadro individualista e
egocêntrico.
22 TOMASZEWSKI, Adauto de Almeida. Breves considerações sobre o Direito das coisas no Novo Código
Civil. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 17 de maio de 2004
Desta noção, extrai-se que já não era mais possível que o direito de
propriedade permanecesse sob a égide eminentemente privada, razão pela qual o
constitucionalismo do século XX, marcadamente democrático, apresentou contornos
mais modernos acerca do direito de propriedade.
CAPÍTULO II – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Não é nossa intenção apresentarmos aqui um conceito pronto e acabado sobre o
que é função social da propriedade. Buscaremos, sim, um aprofundamento nas
discussões para quem sabe darmos um ponto de partida, traçando uma linha mestra de
pensamento, objetivando uma nova concepção para este instituto.
Neste capítulo procuraremos abordar os aspectos relativos a uma aproximação
da definição da função social da propriedade, apontaremos os antecedentes históricos,
analisaremos a propriedade como função social, a aplicação deste instituto no
ordenamento jurídico brasileiro, os deveres fundamentais ligados a ela e quem são
seus destinatários e quais as outras visões a cerca da matéria.
2.1. Definição de Função Social de Propriedade
Pelo que pudemos verificar, a evolução do Direito produziu uma grande
transformação no direito de propriedade retirando-lhe aquele caráter absoluto de que
se revestia em épocas passadas, acrescentando-lhe uma função social, submetendo-lhe
a um interesse coletivo.
Há, hoje, na maior parte dos países, e notadamente na França, uma série de leis
que obrigam o proprietário a consagrar sua propriedade ao interesse geral; que lhe
impedem de destruí-la em certos casos, ou mesmo de modificá-la; que o proíbem,
muitas vezes, de vendê-la e dispor dela livremente; que o obrigam a torná-la útil; que o
tornam, enfim, responsável pelos danos causados por seus bens. O proprietário
aparece, assim, mesmo tanto quanto o indivíduo no interior do direito civil, como
encarregado de um serviço público.
Desta forma, o direito de propriedade, assim como é concebido atualmente nas
legislações mais adiantadas do mundo, passa por completa metamorfose, sofrendo
numerosas restrições impostas não só em função do próprio interesse privado como,
também, e principalmente, do interesse público, a tal ponto de já não se saber com
precisão se ela continua pertencendo ao direito privado ou se passou a integrar o
direito público, ou a um direito misto, como sugerem alguns.
2.2. Antecedentes Históricos do Instituto da Função Social
O caráter social da propriedade foi defendido primeiramente na história da
humanidade pela Igreja Católica, portanto, é de origem teológica, iniciada sob o
prisma tomista com São Tomás de Aquino, por meio da “summa contra gentile”. Esta
visão teológica foi seguida pelos papas Leão XIII, João XXIII, Pio XI, Paulo VI e
João Paulo II, os quais afirmavam através das encíclicas que a propriedade privada
deveria contar com contornos sociais.
A Revolução Francesa condicionou a propriedade como sendo sagrada e
inviolável, sendo que a cidadania do homem estava ligada à sua propriedade.
Com a hegemonia burguesa surge o capitalismo, gerando diversos conflitos
entre classes que, dentre outras coisas, lutavam por uma função social da propriedade,
sendo seu maior defensor Karl Marx que apontava que a propriedade social se
contrapõe à propriedade privada dos meios de produção.
“Em 1848, Marx e Engels questionaram novamente o caráter absoluto da propriedade, mostrando o quanto a mesma tornava-se nociva ao desenvolvimento social e ao bem-estar do homem quando utilizada de modo antiprodutivo ou ainda voltada única e exclusivamente para o benefício de poucos em detrimento de uma grande massa de excluídos. Apenas dois anos mais tarde, o pai do positivismo, Augusto Comte também afirmava que a propriedade vinha perdendo seu caráter absoluto, do modo como dispunha o Code Napoléon”
23.
O termo função social da propriedade foi utilizado primeiramente por Augusto
Comte, em 1851, em sua Teoria Positivista, onde condenou os excessos capitalistas e
as utopias socialistas, defendendo uma função social da propriedade:
“O positivismo está duplamente empenhado em sistematizar o princípio da função social, que trata da natureza social da propriedade e sobre a necessidade de regulá-la” (COMTE, 1978, p. 199). E ainda, para reafirmar o que se traduzia na concepção positivista de Comte, do que significava a função social, afirmava: “A propriedade deve atender a uma indispensável função social destinada a formar e administrar os capitais, pelos quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte”24.
2.3. A Propriedade como Função Social
A intenção de se colocar a propriedade como função social é vista por muitos
autores como meio de democratização de direito de propriedade, fazendo assim uma
contraposição de que a propriedade privada é tão somente um direito individual.
Como já vimos, Augusto Comte foi o primeiro a sinalizar em sua obra sobre a função
social da propriedade, entretanto, a paternidade da idéia é dada a Leon Duguit, para o
qual o direito do proprietário é limitado pela missão social que possui.
Estes defensores em prol da sociedade vêem na propriedade, além do aspecto
jurídico e econômico necessários à sociedade, também o aspecto político.
23 VARELA, Marcelo Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária. p. 203. 24 COMTE, Auguste. Teoria Positivista. p.74.
A teoria funcionalista da propriedade foi inicialmente incorporada pela Igreja
Católica em seus ensinamentos e, posteriormente, nos ordenamentos jurídicos de
todos os países de orientação capitalista – Constituição do México (1917),
Constituição de Weimar (1919), Constituição Espanhola (1931), Constituição
Brasileira (1934) e Constituição Italiana (1947). Esta última fez referência específica
à função social da propriedade como limitadora do exercício do direito de
propriedade.
2.4. A Função Social da Propriedade no Brasil e o Direito Positivo
Até a independência, regeu-se o Brasil pela legislação portuguesa corporificada
nas Ordenações Manoelinas, Afonsinas e Filipinas. A primeira legislação pátria
independente surge em 1824 com a Constituição Imperial, outorgada por D. Pedro I.
Em seu artigo 179, inciso XXII, sob inspiração liberal, consagrava que "É garantido o
direito de propriedade em toda a sua plenitude". Embora se permitisse a
desapropriação para o bem público, não se pode inferir que se houvesse aí
contemplado qualquer homenagem a uma função social. A Constituição de 1891
acrescentou como causas para a desapropriação a necessidade ou utilidade pública,
mas conforme nos faz ver Paulo Torminn Borges "a primeira Constituição
Republicana, em 1891, estava dominada pelo mesmo fervor individualista na
concepção do direito de propriedade"25. O mesmo autor destaca que emenda
constitucional de 1926 consistiu a primeira limitação ao direito de propriedade. A esta
25 BORGES. Paulo Torminn, Institutos Básicos do Direito Agrário, cit., p. 2.
limitação, que se referia a minas e jazidas minerais, a Constituição de 1934 somou a
concernente às quedas d’água e ainda ressalvou, em seu artigo 113, nº. 17, que o
exercício do direito de propriedade não se poderia fazer contra o interesse social ou
coletivo. Os mesmos princípios foram mantidos no texto de 1937, art. 122, nº. 14, e nº.
143, e na Lei Constitucional nº 5, de 1942. A Constituição de 1946, francamente
voltada a contrariar ao anterior período de exceção, procurou condicionar o exercício
da propriedade ao bem estar social e a preconizar a justa distribuição da propriedade
com igualdade de oportunidades para todos (art. 141, § 16 e 147).
Às Constituições de 1967 e 1969 deve-se a inserção da função social da
propriedade e como condicionante da propriedade. Na primeira, art. 150, § 22 e 157 e
parágrafos, e na segunda, art. 153, § 22, e 16126. A Constituição de 1988 dedicou
diversos dispositivos à disciplina da propriedade. José Afonso da Silva enumera os
seguintes artigos. 5º, incisos XXIV a XXX, 170, II e III, 176, 177, 178, 182, 182, 183,
184, 185, 186, 191 e 22227. Na verdade, o art. 5º nos incisos XXII e XXIII traz os
princípios basilares da propriedade, o primeiro garantindo-a, o segundo atrelando-a a
função social. Nos interessam especialmente o art. 5º, incisos XXII e XIII, 170, II e III
e 186. O inciso XXII do art. 5º afirma que: "é garantido o direito da propriedade". O
inciso XXIII afirma que "a propriedade atenderá sua função social". O art. 170, dando
início ao capítulo I, do Título VII, Da Ordem Social e Econômica prescreve: "art. 170
– A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: II – propriedade privada, III –
26 CRETELLA JR. José, Comentários a Constituição Brasileira de 1988. p. 299. 27 SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 244
função social da propriedade". O art. 186, por seu turno, dentro do Capítulo III, Da
Política Agrícola e Fundiária e Da Reforma Agrária, elenca os requisitos da função
social da propriedade rural de forma clara, verbis: "art. 186 – A Função Social é
cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e
graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: Aproveitamento
racional adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações
de trabalho e exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos
trabalhadores"28.
Em primeiro plano é de invocar o magistério de José Afonso da Silva acerca da
natureza pública da função social da propriedade. Segundo o eminente
constitucionalista "os juristas brasileiros, privatistas e publicistas concebem o regime
jurídico da propriedade privada como subordinado ao Direito Civil, considerado
direito real fundamental" e emenda que "essa é uma perspectiva dominada pela
atmosfera civilista, que não levou em conta as profundas transformações impostas às
relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público,
que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais"29. Em outra passagem, o
mesmo autor ao referir-se à inserção do princípio da função social na ordem
econômica diz "já destacamos antes a importância desse fato, porque, então, embora
também prevista entre os direitos individuais, ela não mais poderá ser considerada
puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente
28 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários . Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 66, jun. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4125>. Acesso em: 17 mai. 2004. 29SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 244.
porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de
seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social"30.
Além do caráter publicístico, nota-se uma conjugação complexa de requisitos
na construção da função social da propriedade, de tal modo que a definição do art. 186
valeu de Ismael Marinho Falcão o seguinte comentário: "Diante de tal conceituação
resta evidente que é pelo trabalho e não pelo simples fato do título que o homem
conquistará o direito de propriedade sobre a terra"31. Conforme o Prof. Ernani Bonesso
de Araújo "a propriedade passa, então, a ser vista como um elemento de transformação
social"32.
A lei 8629 de 25 de fevereiro de 1995 veio regulamentar o art. 186 da CF. Os
arts. 6º e 9º, especialmente discorrem acerca da regulamentação dos incisos do artigo
constitucional, que vêm repetidos no art. 9º. O parágrafo 1º, que trata do
aproveitamento racional remete aos parágrafos 1º a 7º do art. 6 da lei. O parágrafo 2º
condiciona a utilização da terra à sua vocação natural, resguardando-se a continuidade
do potencial produtivo. O parágrafo 3º trata da preservação ao meio ambiente. O
parágrafo 5º do artigo 9º trata do bem estar social de proprietários e trabalhadores,
afirmando que a exploração deve atender às necessidades básicas dos que labutam na
terra, observando-se as normas de segurança do trabalho e a não provocação de
conflitos e tenções sociais. O art. 6º define a propriedade produtiva e estabelece
critérios para sua configuração.
É importante observar que não se está negando o direito de propriedade, apenas
se está introduzindo um interesse preponderante, que corresponde ao interesse da
30Idem ibidem. p. 690. 31 FALCÃO. Ismael Marinho, Direito Agrário Brasileiro. p. 212 32 ARAÚJO. Luiz Ernani Bonesso de, Acesso à Terra no Estado Democrático de Direito. p. 81
coletividade, em busca de que a propriedade seja um mecanismo de justiça social.
Busca-se assim a conciliação do modelo econômico capitalista com uma política social
que almeje a reduzir desigualdades e promover a dignidade humana, enquanto
princípios e fins da Constituição e norteadores da ação estatal. Conforme lembra Paulo
Torminn Borges é preciso um "proprietário que faça a terra produzir como mãe
dadivosa, mas sem exaurir, sem esgotar, porque as gerações futuras também querem
tê-la produtiva"33.
A Emenda Constitucional nº. 10, de 1964, alterando o art. 5, inc. XV, da
Constituição Federal de 1946, concedeu à União competência para legislar sobre o
Direito Agrário. Estava aberta a porta para o Estatuto da Terra, Lei 4504 de 30 de
Novembro de 1964, que recebeu a regulamentação pelo Decreto 59566, de 14 de
Novembro de 1966. Apesar de produzidas sob um regime de exceção, a novel
legislação de então, configurou-se um conjunto de normas de vanguarda, tendo, na
maioria dos dispositivos, adotado posições das mais adiantadas e consonantes ao
espírito do direito contemporâneo. Pomos em destaque os art. 2º caput e seu parágrafo
2º, alínea b, bem como os arts. 12 e 13 da Lei 4504/64. Diz o art. 2º caput, verbis: "art.
2º: É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionado
pela sua função social, na forma prevista nesta Lei". O parágrafo 2º, alínea b, reza que
dentre os deveres do poder público está o de "zelar para que a propriedade da terra
desempenhe sua função social...". O artigo 12, na Seção II, traz em seu caput que "à
propriedade privada da terra cabe intrinsecamente uma função social e seu uso é
condicionado ao bem-estar coletivo previsto na Constituição Federal e caracterizado
nesta lei. “O art. 13, por fim, determina que "o poder público promoverá a gradativa 33 BORGES. Paulo Torminn, Institutos Básicos do Direito Agrário. p. 9.
extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem sua função
social". Estabeleceu-se franca opção pela função social da propriedade configurando-
se uma das primeiras manifestações de ruptura do "privatismo individualista" no
sistema positivo nacional, que, sem dúvida, influenciou toda a discussão seguinte que
redundou na CF/88, e preparando o caminho para evoluções como as leis de locações e
de defesa do consumidor, 8245 e 8078 respectivamente, na medida em que o Estatuto
Terra representou uma das primeiras manifestações concretas do "solidarismo
jurídico"34.
2.5. A Legitimação da Propriedade Privada em relação a Função Social
A função social da propriedade provoca uma dicotomia interpretativa, pois, se,
de um lado ela, de alguma forma, ameaça o pleno fluir e gozar do proprietário, por
outro, ao contrário, funciona como verdadeira condicionante para este mesmo goza e
fluir. Desta forma, vejamos:
“Na defesa da função social como legitimadora do direito de propriedade, segue-se a linha de que ela é como “um freio ao exercício anti-social da propriedade”, e que “não lhe retira todo o seu gozo e exercício, pelo contrário, muitas vezes é ela a mola impulsionadora do exercício da senhoria”, significando que a propriedade assim encarada “continua sendo direito subjetivo de seu titular e em seu proveito estabelecida”35.
Outro fator de igual relevância, no sentido de justificar o posicionamento de que
o direito de propriedade não sofreu derrogações, é apontado por SILVA, que, a
34 MEZZOMO, Marcelo Colombelli; COELHO, José Fernando Lutz. A função social da propriedade nos contratos agrários 35GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. “Função Social da Propriedade”. In: TEPEDINO, Gustavo (coord). Problemas de Direito Civil – Constitucional. p. 418.
despeito da temida possibilidade de socialização da propriedade, defende a tese de que
“a inserção do princípio da função social não autoriza a suprimir por via legislativa a
instituição da propriedade”36.
A função social, muito mais que um perigo à instituição da propriedade é, nas
palavras de PERLINGIERI, aspecto complementar e “justificativo da propriedade”37.
Essa complementação do conteúdo da propriedade diz respeito tão somente à atuação
do proprietário, dando ao bem do qual é proprietário a devida função social: “A
ausência de atuação da função social, portanto, faz com que falte a razão da garantia e
do reconhecimento do direito de propriedade”38.
Assim sendo, é ponto pacífico que a propriedade privada continua com o
mesmo status junto ao ordenamento jurídico. No entanto, hodiernamente está atrelada
a este direito a noção de que este somente será garantido ao seu titular se ele utilizar a
sua propriedade de modo a atender aos reclamos da sociedade onde ela está inserida:
“A função social não se impõe por obra e graça do legislador; é, em verdade, uma
imposição das condições sociais dos tempos atuais em relação à propriedade privada.
É o suspiro último da propriedade privada. É válvula redentora dela”39. Em síntese, a
propriedade privada, na atualidade, assume outra característica. Nas palavras de
COMPARATO40, tem natureza constitucional de ser um direito-meio e não mais um
direito-fim.
A concepção privatista da propriedade, a que se fez referência no início desta
exposição, tem levado, freqüentemente, autores e tribunais à desconsideração da
36 SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 256 37 PERLINGIERI. Pietro, Perfis do Direito Civil. p. 231. 38 Idem ibidem. p. 229. 39 MORAES. José Diniz de, A Função Social da Propriedade e a Constituição Federal de 1988. p. 92. 40 COMPARATO. Fabio Konder, “Direitos e Deveres Fundamentais em Matéria de Propriedade” R.T. 2000.
verdadeira natureza constitucional da propriedade, que é sempre um direito-meio e não
um direito-fim. A propriedade não é garantida em si mesma, mas como instrumento de
proteção de valores fundamentais.
Desde a fundação do constitucionalismo moderno, com a afirmação de que há
direitos anteriores e superiores às leis positivas, a propriedade foi concebida como um
instrumento de garantia da liberdade individual, contra a intrusão dos Poderes
Públicos. As transformações do Estado contemporâneo deram à propriedade, porém,
além dessa função, também a de servir como instrumento de realização da igualdade
social e da solidariedade coletiva, perante os fracos e desamparados.
Seria indesculpável anacronismo se a doutrina e a jurisprudência hodiernas não
levassem em consideração essa transformação histórica, para adaptar o velho instituto
às suas novas finalidades.
2.6. Deveres Fundamentais quanto à Propriedade
A exigência de cumprimento da função social da propriedade não se
confunde com comunismo ou socialismo. A função social da propriedade é um
instrumento capitalista, que entre outras coisas preserva o direito de propriedade, bem
como, a mesma não é um artifício para a realização da Reforma Agrária. Este instituto
é resultado do processo civilizatório da humanidade, com o intuito de considerar a
terra como um bem básico e coletivo, embora particularmente apropriado segundo o
sistema econômico de cada cultura.
Além disso, a função ecológica da propriedade rural está intimamente ligada à
função social da mesma. Portanto a proteção da flora e da fauna com a conseqüente
vedação de práticas que coloquem em risco a sua função ecológica projetam-se como
formas instrumentais destinadas a conferir efetividade ao direito a propriedade rural e
sua função social. A necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos
naturais disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente, é requisito
indispensável para o exercício da função social em tela, sob pena de, em descumprindo
desses encargos, sofrer a desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei
Fundamental.
A dignidade da pessoa humana, conceito que não dispensa, entre outras coisas,
o cumprimento de qualquer dos requisitos inerentes à função social, não pode, porque
ontológica, ser objeto de disposição nem mesmo pelo seu próprio titular, devendo,
pois, ser cobrada dos proprietários como respeito devido ao direito alheio. Deve,
mesmo, ser exigida com a intransigência com que eles, os proprietários rurais, cobram
o respeito à propriedade que cumpre sua função social. Assim, temos que:
“A produtividade, para impedir a desapropriação, deve ser associada à realização de sua função social. O conceito de produtividade vem definido pela Constituição de maneira essencialmente solidarista, vinculado aos pressupostos para a tutela da propriedade. Dito diversamente, a propriedade, para ser imune à desapropriação, não basta ser produtiva no sentido econômico do termo, mas deve também realizar sua função social. Utilizada para fins especulativos, mesmo se produtora de alguma riqueza, não atenderá a função social se respeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Em conseqüência, não será merecedora de tutela jurídica, devendo ser desapropriada, pelo Estado, por se apresentar como obstáculo ao alcance dos fundamentos e objetivos – constitucionalmente estabelecidos – da República. Em definitivo, a propriedade com finalidade especulativa, que não cumpra a sua função social, ainda que economicamente capaz de produzir, deverá ser prioritariamente desapropriada, segundo a Constituição, para fins de reforma agrária”41.
41 TEPEDINO. Gustavo, Temas de Direito Civil. p. 274.
Nesta linha de raciocínio, conclui-se que, no tocante à função social da
propriedade, o dever do proprietário corresponde ao direito de todos os não
proprietários, cujo acesso à propriedade lhes está sendo impedido pela ocupação
daquele proprietário que descumpre com os deveres a que estava legalmente obrigado.
Bem por isso, nosso ordenamento apenas garante a propriedade da terra rural se
cumprir sua função social (Constituição Federal, art. 5º, XXIII).
Explica Ihering que a utilização econômica da propriedade tem por condição a
posse. A primeira sem a segunda seria um tesouro sem a chave para abri-lo, uma
árvore frutífera sem a escada necessária para colher os frutos. O proprietário privado
da posse acha-se paralisado quanto à utilização econômica da propriedade. Em síntese,
assegura-se o direito de propriedade ao respectivo titular, para que possa
economicamente tirar da coisa todos os proveitos ou vantagens que ela possa oferecer.
Isso significa, por óbvio, que não se protege a propriedade apenas nominal,
especulativa, sem que o bem seja economicamente explorado. Há, pois, uma sincronia
entre a economia e a ciência jurídica. Nosso ordenamento não tolera que alguém
adquira um imóvel apenas para a especulação, para a revenda, sem utilizá-lo, sem
torná-lo produtivo.
Nessa linha, o art. 186 da Constituição Federal enumera as situações em que a
propriedade cumpre sua função social, ou seja, quando seu aproveitamento é racional e
adequado; preservando o meio ambiente e respeitando as disposições que regulam as
relações de trabalho, com exploração que favoreça o bem estar dos proprietários e dos
trabalhadores. Penalizando aqueles que assim não atuam, o art. 184 de nossa Carta
permite a desapropriação por interesse social e para fins de reforma agrária, de modo a
fazer com que a propriedade cumpra sua função social.
A mídia deu grande destaque ao documentário cinematográfico "os carvoeiros",
que mostra a utilização da mão-de-obra infantil na produção do carvão vegetal, com
crescente desmatamento, utilizado na produção de ferro que depois é exportado. Não
basta, pois, hoje, que o bem seja economicamente utilizado. Deve respeitar o meio
ambiente, as leis trabalhistas e mostrar-se economicamente viável. Não cumprirá, por
ex., sua função social a área rural utilizada na pecuária com apenas um animal por
hectare, quando comportar dois ou mais.
Na mesma linha, o parágrafo 2º do art. 182 da C.F. diz que a propriedade
urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade, expressas no plano diretor. Se o bairro é residencial, o lote deve
ser edificado. O descumprimento desse preceito permitirá a incidência de imposto
sobre a propriedade imobiliária progressivo, de modo a estimular a utilização
econômica adequada.
Em resumo, podemos afirmar, hoje, que uma propriedade cumpre sua função
social quando é adequada e economicamente utilizada, respeitando as posturas
municipais, quando urbana, o meio ambiente e as regras de proteção aos trabalhadores,
se rural. O que se pretende que é que não haja imóveis ociosos, terrenos baldios, áreas
improdutivas ou exploradas contra o interesse público. A pose, a utilização econômica
de um bem gera riquezas, empregos, receitas tributárias. Bem por isso, apenas se
protege a propriedade que cumpre sua função social42.
2.7. A Quem se destina a Função Social da Propriedade e qual seu Objeto
A princípio, todas as coisas deveriam ser comuns, provendo as necessidades de
todas as pessoas. A terra, não poderia ser objeto de domínio, devendo ser distribuída
com a devida igualdade material entre todos; num Estado Social que de realmente a
cada um segundo a sua necessidade e capacidade, sem detrimento do grupo social, a
terra como propriedade teria o caráter exclusivamente social.
A riqueza patrimonial tem origem social, e deveria ter destino social. A
propriedade, tendo tido origem social há de seguir o mesmo caminho: ter um destino
social e fraterno, impedindo que uma única pessoa seja detentora das riquezas comuns.
Conforme Gondinho, a “função social da propriedade tem destinatários específicos: o
titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz”43. Para o primeiro, continua o jurista,
“a função social assume uma valência de princípio geral”44: isto é, o proprietário não pode
perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social ou até mesmo,
antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela jurídica a seu direito. O legislador é
destinatário da função social da propriedade porque este não pode conceder ao titular do
direito de propriedade, através de normas infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em
contrário ao interesse social previamente tutelado.
42 RUIZ Urbano. Magistrado em São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia. http://www.correiocidadania.com.br/ed239/dicionario.htm 43 GONDINHO, André Pinto da Rocha Osório. “Função Social da Propriedade”. In: TEPEDINO, Gustavo
(coord). Problemas de Direito Civil – Constitucional. p. 421. 44 Idem bidem. p. 422.
“Em referência à atividade judicante, o magistrado e os demais operadores jurídicos
devem encarar a função social da propriedade como um “critério de interpretação e aplicação
do direito, deixando de aplicar as normas que lhe forem incompatíveis”45.
Assim, caso a propriedade rural latifundiária não atenda sua função social
porque o proprietário não proceda a seu aproveitamento racional adequado; não utilize
adequadamente os recursos naturais disponíveis nem preserve o meio ambiente;
desrespeite as normas que regulam as relações contratuais trabalhistas; a explore de
uma maneira tal que não favoreça o bem-estar do proprietário e dos trabalhadores,
deve o magistrado levar tais circunstâncias em consideração quando provocado,
através de ação reintegratória de posse, pelo titular do respectivo domínio.
2.8. Aspectos Conjunturais em ralação a Questão Agrária
O capitalismo agrário brasileiro, sob o comando das agro-indústrias
multinacionais, dá conta do recado. O problema é que as premissas da análise dos
defensores do “status quo” não retratam a verdadeira realidade do campo brasileiro,
mas apenas os aspectos de uma situação conjuntural que atendem aos interesses das
classes que estes analistas defendem. Quem tenha uma posição crítica diante do “status
quo”, obviamente, não pode aceitá-las como base para sua análise, não porque elas
sejam inteiramente falsas, mas porque escondem, com meias verdades, afirmações
errôneas a respeito da realidade do campo.
A Situação Agrária Brasileira conforme dados estatísticos publicados pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, Comissão Pastoral da Terra46: 45 Idem bidem p. 422.
A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50
mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das
terras cadastradas. Cerca de 1% dos proprietários rurais detêm em torno de 46% de
todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de hectares titulados como
propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura. O
restante das terras estão ociosas, sub-utilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo
dados do Incra, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil.
Segundo o censo de 1995, existem cerca de 4,8 milhões de famílias de
trabalhadores rurais “sem terra”, ou seja, que vivem em condições de arrendatários,
meeiros, posseiros ou com propriedades de menos de 5 hectares. A Constituição
brasileira determina que as terras que não cumprem sua função social devem ser
desapropriadas para fins de reforma agrária. A função social da terra é determinada de
acordo com o nível de produtividade, além de critérios que incluem os direitos
trabalhistas e a proteção ao meio ambiente.
O Brasil produz apenas 75 milhões de toneladas de grãos por ano. Esse número
é quatro vezes menor do que a média de produção em países com condições climáticas
e de solo iguais ou piores. Segundo o Censo Agropecuário, entre 1985 e 1996, a
redução de áreas com lavouras permanentes foi de 2 milhões de Ha. e as áreas com
lavouras temporárias foram reduzidas em cerca de 8.3 milhões de Ha. De 1980 a 1996
a área cultivada diminuiu 2% e a população aumentou 34%. Na década de 80, o Banco
do Brasil investia em torno de 19 bilhões de dólares na agricultura. Entre 1994 e 1998,
46 Reforma Agrária e Violência no Campo. Centro de Justiça Global, Comissão Pastoral da Terra e
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
a média de financiamentos foi de 6 bilhões de reais por ano. Entre 1980 e 1996, a
renda média de todos os agricultores diminuiu 49%.
As melhores terras destinam-se à monocultura de cultivos para a exportação
como cana, café, algodão, soja e laranja. Ao mesmo tempo, 32 milhões de pessoas
passam fome no país e outras 65 milhões de pessoas alimentam-se de forma precária.
Desses 32 milhões que passam fome, metade vive no meio rural. Segundo estatísticas
oficiais, cerca de 30 milhões de pessoas migraram do campo para as cidades, no
período de 1970-1990. O contingente de trabalhadores rurais diminuiu em 23% de
1985 a 1996. Hoje mais de 77% da população brasileira vive nas cidades.
De acordo com o censo de 1995, existem cerca de 23 milhões de trabalhadores
no meio rural, sendo que apenas 5 milhões são classificados como assalariados rurais
(permanentes ou temporários). Cerca de 65% dos assalariados rurais não possuem
carteira assinada e apenas 40% desses trabalhadores possuem trabalho o ano todo.
Muitos desses trabalhadores chegam a trabalhar até 14 horas por dia. Nesse contexto,
as mulheres e as crianças são as mais vulneráveis. As maioria das mulheres realizam
dupla jornada de trabalho, dedicando-se à produção e ao trabalho doméstico. Muitas
mulheres e crianças que trabalham no meio rural não recebem remuneração. Uma
pesquisa baseada no PNAD/1995 verificou que cerca de 4 milhões de crianças entre 5
e 14 anos trabalham no meio rural nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país, o que
representa mais de 11% dessa população. Somente 29% das crianças que trabalham
recebem remuneração. Entre as crianças de 5 a 9 anos, somente 7% recebem
remuneração. Um grande número de crianças no meio rural não tem acesso à educação
e, entre os adultos, o nível de analfabetismo chega a 70% em algumas regiões.
Segundo o Censo Agropecuário de 1996, realizado pelo IBGE, houve um
aumento da concentração de terra nas duas últimas décadas. Em 1970, os
estabelecimentos com menos de 100 Ha representavam 90.8% do total de
estabelecimentos, detendo 23% da área. Em 1996, esse número foi de 89,3%, detendo
20% da área total. Em contraposição, em 1970, os estabelecimentos com área acima de
1.000 Ha. representavam 0.7% do total e detinham 39,5% da área. Em 1996, esses
estabelecimentos passaram a representar 1% do número total e acumular 45% da área.
Entre 1985 e 1996, constatou-se a diminuição do número de estabelecimentos
agrícolas de 5.801.809 para 4.859.865, registrando-se, portanto, uma diferença de
941.944. Essa diminuição equivale a 61% da área total plantada com grãos na safra de
1997/1998. Entre 1994 e 1998, 400 mil pequenos agricultores perderam suas terras e
800 mil trabalhadores rurais perderam seu emprego. Os dados elencados acima falam
por si mesmos.
Não existe projeto político sério para o cumprimento efetivo da função social da
propriedade em nosso país.
Movimentos sociais, como o MST, Pastoral da Terra, entre outros, atualmente
os responsáveis pela maioria das provocações no sentido de fazer valer os preceitos
constitucionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao concluirmos nosso trabalho, verificamos que o tema função social da
propriedade suscita, ainda, muita controvérsia no que se refere a sua real
implementação. Notamos que o tema evoluiu historicamente em decorrência dos
inúmeros conflitos gerados em torno do objeto propriedade, visto que a
individualização da propriedade ainda é a meta de muitos ideólogos do poder.
Não podemos dizer que nos sentimos realizados por ter conseguido terminar o
trabalho, ficamos, sim, satisfeitos, mas, também, mais curiosos com o tema, que
certamente fará parte de nossos estudos futuros, pois entendemos que podemos dar
nossa contribuição a cerca da matéria que, sem sombra de dúvidas, representa um dos
elementos político-sociais de maior relevância para a transformação do “status quo”
hoje vigente em nosso país.
Ao realizarmos nosso trabalho, procuramos conhecer mais sobre o surgimento
da propriedade privada, observando seu contexto histórico, sua positivação, sua
implementação junto aos sistemas jurídicos de outros países e a sua adequação à
função social.
Abordamos o tema função social da propriedade sob a ótica dos primeiros
autores a vislumbrá-la, aprendendo que a igreja católica foi a primeira, seguida depois
pelos autores positivistas, e em seqüência as discussões realizadas pelos jusnaturalistas
e socialistas. Como foi sua inserção no sistema jurídico francês com o advento da
Revolução Francesa, transitando assim pela história até as primeiras positivações em
nosso ordenamento jurídico.
Notamos, ainda, que apesar dela estar inserida em nossa Constituição Federal,
vem gerando enormes conflitos, pelos que, de um lado, tentam garantir-se com
volumosas áreas de terras, que às vezes mesmo produtivas não cumprem sua função
social e, de outro lado, os que lutam para consegui-la, organizados em movimentos a
nosso ver sérios, com o fito de produzir, dando sustento às suas famílias, gerando, em
conseqüência, riquezas mais consistentes para o país.
O que pudemos concluir é que leis existem, até com bastante clareza. Todavia,
o que falta são políticas claras que as façam ser cumpridas, visando sanar os problemas
existentes, acabando de vez com o estado de agonia crescente gerado pela
insensibilidade demonstrada pelos detentores do poder que legitimam este quadro de
excludência.
Para exemplificar tais afirmações apresentamos os dados a seguir que ilustram o
que foi dito: última PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada
entre 1999 e 2001 e divulgada em setembro de 2002 pelo IBGE, em que se confirmou
o empobrecimento e esvaziamento do campo. A população rural encolheu e a renda do
trabalhador do campo diminuiu: a população rural, que no último PNAD, de 1998, era
de 32.585.066 pessoas, foi reduzida para 27.269.877, ou seja, 5,3 milhões de pessoas
que antes habitavam a zona rural vieram para as cidades, agravando enormemente a
situação já crítica das áreas urbanas brasileiras.
Ainda, utilizamo-nos de opinião dada por João Pedro STEDILE, líder do MST,
em entrevista concedida em novembro de 2001, para a Professora e escritora Jeanete
Nunes Stefaniak, autora de trabalho semelhante e mais conclusivo que o nosso, na qual
ele afirma que a função social da propriedade é instrumento suficiente para resolver a
questão agrária no Brasil, abalizando-a nos seguintes termos:
“O querido e saudoso José Gomes da Silva, que foi presidente do Incra durante a Nova República, e era
um grande estudioso, antes de falecer fez um estudo, com base no cadastro do Incra e na constituição e concluiu que apenas aplicando a constituição, e desapropriando os imóveis improdutivos acima de mil hectares, se poderia desapropriar em torno de 40 mil imóveis totalizando 180 milhões de hectares. O que representa uma média de 4 mil hectares por área desapropriada. Ora, com uma reforma agrária que redistribuísse 180 milhões de hectares, nem sequer haveria famílias de sem terra suficientes para tanta terra”47.
Por tudo isso demonstrado, e que só veio reafirmar nossa visão inicial, é que
dizemos que a hegemonia ora posta pelos detentores do poder econômico e político, no
sentido de não abrir mão da propriedade, fazendo com que ela exerça sua verdadeira
função social, nos faz refletir e criar ânimo para continuar o debate, procurando
contribuir para a mudança do quadro atual, objetivando que a propriedade social venha
a ser verdadeiramente uma realidade.
47 STEFANIAK. Jeaneth Nunes, Propriedade e Função Social – Perspectiva do Ordenamento Jurídico e do MST. p. 109.
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