PentagramA · fala da tensão causada pelo abismo P 2. que separa a existência terrestre da vi- da...

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Revista bimestral do Lectorium Rosicrucianum DESENTERRAR O TESOURO ELE ACREDITAVA NO BEM, MAS SÓ AMAVA A SI MESMO O QUE VEMOS NÃO É A NATUREZA ORIGINAL O JUSTO PASSA, PORÉM SUA LUZ PERMANECE A PROMESSA ESPIRITUAL DA EUROPA ORIENTAL “O MUNDO ME PERSEGUIU, MAS NÃO ME CAPTUROUFONTES A VERDADEIRA RELIGIÃO NÃO É SABER, MAS AGIR LEON TOLSTOI A TRILHA DE UM PESQUISADOR “TODA ALMA HUMANA É UMA PARCELA DE DEUSPentagramA 2003 número 6

Transcript of PentagramA · fala da tensão causada pelo abismo P 2. que separa a existência terrestre da vi- da...

Revista bimestral do

Lectorium Rosicrucianum

DESENTERRAR O TESOURO

ELE ACREDITAVA NO BEM, MAS SÓ AMAVA A SI MESMO

O QUE VEMOS NÃO É A NATUREZA ORIGINAL

O JUSTO PASSA, PORÉM SUA LUZ PERMANECE

A PROMESSA ESPIRITUAL DA EUROPA ORIENTAL

“O MUNDO ME PERSEGUIU, MAS NÃO ME CAPTUROU”

FONTES

A VERDADEIRA RELIGIÃO NÃO É SABER, MAS AGIR

LEON TOLSTOI – A TRILHA DE UM PESQUISADOR

“TODA ALMA HUMANA É UMA PARCELA DE DEUS”

PentagramA2003 número 6

PENTAGRAMA

T E M A D E S T E N Ú M E R O :

A promessa espiritual

da Europa oriental

“A Europa oriental luta para libertar o espírito

das amarras que desde muito tempo o prendem

à terra. Nesse imenso combate, o Oriente

e o Ocidente ofertam um ao outro o melhor

que podem alcançar no plano espiritual.

Muitos exemplos de serviço desinteressado,

de compaixão, de amor pela humanidade,

despertam o pesquisador.”

Pégasus, Jacopo de Barbari, c.a. 1505.

ÍNDICE:

02 DESENTERRAR O TESOURO

04 ELE ACREDITAVA NO BEM,MAS SÓ AMAVA A SI MESMO

08 O QUE VEMOS NÃO É A

NATUREZA ORIGINAL

11 O JUSTO PASSA, PORÉM SUA

LUZ PERMANECE

16 A PROMESSA ESPIRITUAL

DA EUROPA ORIENTAL

24 “O MUNDO ME PERSEGUIU,MAS NÃO ME CAPTUROU”

27 FONTES

28 A VERDADEIRA RELIGIÃO

NÃO É SABER, MAS AGIR

31 LEON TOLSTOI – A TRILHA

DE UM PESQUISADOR

36 “TODA ALMA HUMANA

É UMA PARCELA DE DEUS”

ANO 25NÚMERO 6

Desenterrar o tesouro

O herói de um conto russo, o giganteSvjatogor, exclama: “Se eu encontrasseo centro de gravidade da terra, pren-deria um anel no céu e, com uma cor-rente, puxaria a terra em direção aocéu para lançar uma ponte entre osdois”. Pouco depois, ele encontra umvagabundo segurando um saco nascostas, que o cumprimenta e diz: “Tu,famoso Svjatogor, tens uma força ex-traordinária! Poderias me ajudar acarregar o meu saco?” Svjatogor tentaerguer o saco, mas não consegue mo-vê-lo uma polegada sequer. “O quehá dentro deste saco?”, pergunta o gi-gante, “e quem és tu?” – “Eu sou Mi-koéla Seljaninivitsji. Dentro desse sacoeu coloquei o centro da terra”, respon-de o vagabundo, que segue tranqüila-mente seu caminho. Em outro conto,um rei e seus cavaleiros encontram omesmo Mikoéla Seljaninivitsji lavran-do seu campo com um arado de pratapuxado por um miserável cavalo. Oscavaleiros tentam erguer o arado, masnenhum deles consegue. Então Miko-éla o puxa com uma só mão e o colocade lado.

rocurar o ponto central da terra elavrá-la com um arado de prata sãoimagens míticas que vieram de umpassado remoto na história da Europaoriental. Como em quase todos osmitos, essas imagens escondem umdever e uma promessa. Podemos con-siderar o camponês que lavra como o

símbolo da promessa. Nele, o núcleodo espírito é revivificado. Ele é cons-ciente disso, o que o modifica e per-mite que se integre à terra santa.

Em todo ser humano está escondi-do um princípio divino que corres-ponde ao centro espiritual da terra.Mas ninguém, por mais forte que seja,pode desenterrar esse tesouro paraum outro; cada um deve fazê-lo parasi mesmo. Em muitos relatos da Eu-ropa oriental deparamo-nos com umarado de prata, símbolo da alma quese tornou pura e imaculada após umcombate interior. Numerosos filóso-fos, escritores, poetas, artistas e gnós-ticos dessas regiões procuraram essecaminho e testemunharam sobre suasdescobertas. Eles explicam como con-seguiram libertar o tesouro espiritualexistente em seus corações atravessan-do o “mar vermelho” do aprisiona-mento do sangue.

No curso de seu desenvolvimento,os povos da Europa oriental sofrerammuito e passaram por grandes prova-ções. Freqüentemente sua literatura esua filosofia tratam da alma que, emsua humildade, se sente culpada pelaexistência que leva na terra. A servi-dão, bem como a miséria material eespiritual, reforçam esse sentimento,mas levam também a um autoquestio-namento sobre a causa desta vida. Agrande poetisa russa Anna Akhma-tova deu um testemunho pungente.De sua alma profundamente tocada,fala da tensão causada pelo abismo

P

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que separa a existência terrestre da vi-da eterna que ela pressente.

O ideal de uma humanidadedivinizada

O místico ucraniano Grigori S.Skovoroda, na sua busca pelo homemespiritual, brilha como um farol acimade todos. Os ucranianos chamam-no“nosso Pitágoras”. Ele fala de maneiramagistral do homem renascido dentrodele: A árvore da vida se encontra emnossa própria carne. O homem verda-deiro está dentro do coração humano,o coração renovado, espiritualmentedesperto. Bisneto de Skovoroda, oprecursor do simbolismo, Vladimir S.Soloviev (1830-1900), que está entreos pensadores e filósofos da grandeRússia do século XIX, afirma: O idealperfeito da humanidade divinizada éo objetivo mais elevado da aspiraçãocoletiva. Soloviev examina a transfor-mação de dentro para fora a partir doespírito e do coração do homem. E,no século XX, a artista Kora Antaro-va faz alusão à força da eternidade queressoa no coração.

Neste número da Pentagrama e nopróximo, evocamos o combate titâni-co de escritores como Leon Niko-laievitch Tolstoi (1828-1910), FiódorMikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) e o filósofo Nikolai Berdiaiev(1874-1948) que escreveu: A liberda-de é um princípio espiritual. O grandeinquisidor, em Os irmãos Karamazov

de Dostoievski, lança a Jesus: Poderiaster agarrado o poder e a espada deCésar. Por que não o fizeste? O únicomeio eficaz de coagir todo o mundo ate adorar sem contestação tu rejeitaste.E isso em nome da liberdade! As se-mentes espalhadas por tantos busca-dores da verdade profundamente to-cados germinaram no mundo todo.Muitos talvez ainda não tenham con-seguido realizar a libertação da alma,mas as barreiras artificiais e as tradi-ções estabelecidas desmoronam e elesconseguem perceber o que está den-tro de si mesmos. Com o arado deprata do puro e profundo desejo desuas almas, eles procuram o tesouroescondido em seus corações.

A REDAÇÃO

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Baixo-relevo

sobre uma

parede da igreja

St. George,

Jourjeff-Polsky.

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Ele acreditava no bem, mas

só amava a si mesmo

O Breve conto sobre o anticristo, doescritor russo Vladimir Soloviev, abreos olhos do leitor para que ele se exami-ne profundamente e queira penetraraté a causa da sua existência apartadade Deus. É o desmascaramento apoca-líptico do eu em sua suprema ilusão.

Breve conto faz parte de uma obraintitulada Três diálogos sobre guerra,progresso e o final da história do mundo,na qual está incluído o Breve conto so-bre o Anticristo. A ação se dá na Eu-ropa, em um período de guerras exte-riores e interiores, de transtornos polí-ticos em conseqüência de uma invasãoasiática. Ao sair dessa crise, a Europase torna uma federação de estados maisou menos democráticos: os EstadosUnidos da Europa. Uma nova culturanasce, embora continue não respon-dendo à questão da vida e da morte,nem do destino do mundo e da huma-nidade. Nesses tempos de reorienta-ção, aparece na vanguarda da cena umpersonagem notável, filósofo e escri-tor, que se tornou célebre em todos oslugares graças à sua ação social. Solo-viev o descreve como um ardente espi-ritualista: um homem de grande clare-za de espírito, que sempre apontavapara a verdade, o bem, Deus, o Mes-sias. Crente, mas só amava a si mesmo.Ele acreditava em Deus, mas sem de-sejá-Lo, sem tê-Lo claramente escolhi-do no mais profundo de sua alma. Eleacreditava no bem, mas o olho da eter-

nidade sabia que esse homem se incli-naria diante do poder do mal e se dei-xaria tentar, não pelas ilusões dos sen-tidos, as paixões sórdidas ou a fascina-ção do poder, mas pura e simplesmentepor seu incomensurável orgulho.

Ele via a si mesmo como o Cristo

Ponderado, altruísta, caridoso, umformidável amor-próprio sustenta suavida e seus atos. Convencido de seragradável a Deus, ele se considera co-mo o segundo grande ser do universo,o único filho de Deus. Esse homemextraordinário é o anticristo: ele via asi mesmo como o Cristo. Porém, oato inspirado na grandeza moral deCristo e sua unidade absoluta perma-neceram, para essa mente obscurecidapelo amor-próprio, completamente in-compreensíveis. O anticristo justificasua aparição com as seguintes pala-vras: O Cristo era um reformador dahumanidade, enquanto que eu fuichamado a ser um benfeitor tanto da-quela parte dos homens já redimidosquanto da parte incorrigível da hu-manidade. Eu vou dar a todos os ho-mens tudo o que eles precisam. Cristo,como moralista, dividiu os homenspela distinção entre o bem e o mal; euos unirei por meio de bens que ambos– os bons e os maus – precisam. Eu se-rei o verdadeiro representante daque-le Deus que deixa brilhar seu sol sobreos bons e sobre os maus, que manda a

O

chuva sobre justos e injustos.No conto O grande inquisidor,

Dostoievski coloca um paralelo à figu-ra do anticristo de Soloviev. O grandeinquisidor diz a Jesus: Colocamos afelicidade do homem imediatamenteantes de ti. Nós construímos para oshomens um reino de paz e felicidade.

Só tens alguns eleitos, enquanto quenós trazemos a paz a todos. Nós provi-denciaremos para toda a humanidadeuma felicidade calma e tranqüila, afelicidade para as fracas criaturas quesão os homens.

O anticristo aguarda um chamadoinconfundível de Deus para que tome

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Árvore do

conhecimento

do bem e do mal,

século XIX.

em mãos a tarefa da libertação da hu-manidade, assim como a confirmaçãoexplícita de que ele é o filho mais ve-lho, o bem-amado, primogênito deDeus. Mas nada disso acontece. Quan-do sua presunção começa a ser abala-da, ele avalia que não é ele, mas o gali-leu o verdadeiramente primeiro e últi-mo. Ele imagina o que deveria fazer edizer se se encontrasse repentinamen-te diante d´Ele. Ele, o gênio brilhante,o super-homem, deveria dobrar o joe-lho diante d´Ele? Não, jura ele, nunca!Um ódio feroz se desencadeia nele.Cheio de furor, ele deixa sua casa e seafasta na noite escura, caminhando apassos largos até perto de um despe-nhadeiro rochoso. Devo chamá-lo eperguntar-lhe o que fazer? Uma ima-gem o olha, cheia de meiguice e triste-za, mas ele a expulsa dizendo: Ele tevepiedade de mim? Não! Ele não se ma-nifestou! Então ele se precipita no abis-mo. Uma figura envolta numa luz ne-bulosa o recebe em seus braços, seusolhos penetram sua alma com umaagudez quase insustentável. Uma vozmetálica, sem alma, vinda do interiorou do exterior, não se sabe, diz: Tu ésmeu filho amado, que muito me apraz.O anticristo se sente preenchido deuma força gelada.

Ele mostra o quanto é genial

Soloviev retoma as palavras daBíblia: Este é meu filho amado... porironia. Não é o eu que é o filho deDeus, mas se o eu compreende quedeve se render à força divina, ele liber-ta a nova alma. E é quando ela se uneao Espírito que pode realmente serdito: Esse é o meu Filho amado, emquem me comprazo (Mateus,3, 17).

Após o episódio do precipício, oanticristo relata sua experiência em

um livro que mostra o quanto ele égenial e como soube unir o mais subli-me idealismo à capacidade de acharsoluções práticas. O mal, porém, nãoreside na tentativa de fazer tais sínte-ses, mas na maneira de realizá-las: Etudo isso se encontrará harmonizado ereunido com tanta genialidade e arteque a cada pessoa, mesmo pensando eagindo com parcialidade, será fácilencarar tudo de seu ponto de vista par-ticular e aceitar o postulado sem serobrigada a sacrificar a verdade ou, porcausa dela, fazer qualquer esforço afim de elevar-se sobre seu ego ou desis-tir de suas unilateralidades[...] semvisar a uma correção de pontos de vis-ta e aspirações errôneas, ou a um com-plemento de atitudes parciais.

Imitar é muito diferente de seguir

O anticristo quer estabelecer o rei-no de Deus sobre a terra. J. van Rij-ckenborgh escreve: Toda via religiosanatural de nossa época nada mais é doque essa imitação, perfeitamente com-preensível, porém uma ingênua imita-ção da Imitatio Christi! Mas por maiscompreensível e perdoável que issopossa ser, não deixa de ser também amaior traição que poderíamos cometer,porque imitar é muito diferente deseguir. Só o seguir a Cristo leva à liber-tadora Vida unificadora. A imitação[...]é apenas uma aparência bem intencio-nada. Mas uma aparência – e este é oseu aspecto desastroso – destinada asimular a realidade, encenada para serjulgada como sendo a realidade!

Soloviev descreve a maneira pelaqual o anticristo adquire popularida-de. Fundamentado em suas idéias, elese torna presidente e, por fim, é eleitoimperador. Ele tenta convencer as pes-

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soas por suas boas ações e envolvê-lasem sua causa. Após trazer soluçõesaos problemas políticos e sociais, elese foca na religião. Ele percebe que ofalso profeta que colocou a seu serviçodespertou medo e antipatia entre oscristãos. Constata, igualmente, que ostextos do Novo Testamento que falamdo príncipe deste mundo são mais am-plamente lidos e comentados.

“Para nós, o Cristo é o que há demais precioso”

Por isso, convoca a reunião de umconcílio em Jerusalém. Ele tem aintenção de pedir aos cristãos de todasas confissões para reconhecê-lo comoseu líder, não por obrigação, mas simpor amor sincero. Ele pergunta: O queé para vós a coisa mais preciosa do cris-tianismo, para que meu zelo se concen-tre nessa direção? Ele pede aos cristãoscatólicos que o reconheçam como seuúnico protetor e defensor, aos protes-tantes, como seu guia supremo e aoscristãos ortodoxos, como seu verda-deiro líder e senhor. Os que estão deacordo devem tomar lugar a seu lado.Uma maioria de fiéis responde nessesentido.

Apenas um pequeno grupo, comseus pastores, não se submete a seupedido. O anticristo faz novamente amesma pergunta e eles respondem: Acoisa mais preciosa no cristianismo é,para nós, o próprio Cristo – somenteele e tudo que vem dele! Pois sabemosque nele está incorporada a plenitudedivina. É desse modo que o anticristoé desmascarado. O falso profeta elimi-na dois dos pastores com um fogo ful-minante do céu. O imperador vocife-ra: Assim, pela mão de meu pai, todosos inimigos perecerão. O pequeno gru-po decide cortar todas as relações com

o inimigo de Deus e parte para as coli-nas desertas perto de Jericó onde se esta-belecem para orar. Eles compreendemque, como é dito no Evangelho de João(17,21), chegou o tempo em que deveser cumprido o último pedido de Cris-to para seus discípulos: que eles se tor-nem um, como ele é um com seu Pai.

Soloviev desejava que todas as reli-giões se unissem para fazer o anticris-to fracassar. É por isso que ele fazemigrar o grupo para “um lugar ele-vado”, enquanto o anticristo e seusadeptos desaparecem em uma erup-ção vulcânica.

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Vladimir Soloviev foi um dos princi-pais filósofos e poetas da “idade de pra-ta” da civilização russa, por volta dofim do século XIX, época que marcouo fim dos valores espirituais tradicio-nais. A concepção que esse autor faziado mundo inspirou os simbolistas deseu país.

m vinte anos ele teve tempo de daruma idéia muito precisa de sua mensa-gem. Ele estudou filosofia na Uni-versidade de Moscou e foi membro daAcademia Espiritual. A sua primaEkaterina Vladimirovna Romanova,ele escreveu: O mundo da espirituali-dade está desmoronando. O cristianis-mo é a verdade absoluta, mas tomouuma forma irracional; é por isso queele já não fala aos homens de nossotempo. No Oriente como no Ocidente,o conteúdo sem forma, ou a forma semconteúdo, já não podem esforçar-se poruma síntese. Durante seu discursoinaugural na qualidade de conferencis-ta na Universidade de Moscou, ele de-clara: A realidade visível não deve serlevada a sério, ela não é a verdadeiranatureza. Não é nada além de umamáscara, o véu de Isis. Essa idéia do-mina todas as suas exposições. Paraaprofundar seu pensamento, ele vaipara Londres e, no British Museum,tem uma visão, que é como a repetiçãode um sonho de sua primeira infância.Ele vê Sophia, a sabedoria divina, e re-cebe interiormente a missão de ir ao

Egito, onde Sophia lhe aparece pelaterceira vez.

Em 1881 foi assassinado o Tzar Ale-xandre II. A profunda onda de reno-vação, ainda imperceptível, já abrirauma passagem na Rússia, e o tzarcomeçava a seguir o movimento namedida do possível. Ele havia começa-

“O que vemos não é a

natureza original”

8

E

Ó, amiga eterna,embora meu cantar seja fraco,ouve o que minha musa te diz:O mundo é mentira,a dura matériarecobre a pedra original.Assim me foi dito. E exposta a mima beleza do Ser eterno,uno e único.Três vezes tu me apareceste.Não fizeste surgir uma idéia, masa profunda realidade de minha vida.Vieste para responderao chamado de meu coração.

Vi que tudo não era senão um.A doce imagemde minha eterna amigae o brilho de sua sublime luzofuscam meu coraçãoe me envolvem completamente.

O mundo é futilidade,mas sob o véu da matériadescobri a pedra original.E embora o tempo ainda me reja,eu vi a plenitude de Deus,seu Ser eterno.

9

O arcanjo

Miguel, Museu

de Arte e de

História, Zagorsk,

século XV.

do a fazer reformas liberais e, em 1861,aboliu a servidão. Vladimir Solovievdefendeu o assassino e pleiteou porseu perdão e sua reinserção social. Issoé conseqüência lógica de sua visãocristã. Para ele, a pena de morte nãocorresponde aos caminhos de Deus.O novo tzar rejeita o recurso de co-mutação da pena e ordena a Solovievque se abstenha durante um certotempo de ensinar em público. Eleaproveita a ocasião para seretirar. Convencido desuas concepções, con-tenta-se em levaruma vida muitosimples, com ren-da irregular. Semdúvida ele aindapode publicar,mas se mantémcompletamenteafastado da uni-versidade e dasletras. Ele não seperturba comisso e segue reso-lutamente a suameta. Ele mostra àIgreja e ao Estado“que o objetivo de suacolaboração é o ideal per-feito de humanidade diviniza-da”, e o quanto eles estavam amboslonge dessa via.

“Deve haver outra vida, uma vida verdadeira”

Em uma carta a Ekaterina, ele escre-ve: Tudo o que consideramos comosendo vida verdadeira é mentira, poisela deve ser totalmente diferente, auten-tica. A origem dessa vida está em nósmesmos. Se não estivesse, todas as men-tiras à nossa volta nos contentariam, enão procuraríamos nada melhor [...] A

verdadeira vida está em nós, mas nossapersonalidade e nosso egoísmo a asfi-xiam e a corrompem. É preciso per-guntar como ela é em toda sua purezae de que modo alcançá-la. Todas essascoisas foram reveladas há muito tempopelo verdadeiro cristianismo. Em umaoutra carta: Toda mudança deve serinterior, provir do espírito e do coração[...] Para a maioria das pessoas, exceto

para os espíritos predestinados, ocristianismo não é nada além

de uma crença simplista eapenas consciente, um

vago sentimento. Elenão se revela à inte-

ligência, não háimpacto sobre ainteligência ...Agora sua tare-fa é derramar-se em nova for-ma, que corres-ponda a seu e-terno conteúdo.Quando viver-

mos na convicçãodo verdadeiro cris-

tianismo, quando orealizarmos na vida

diária, tudo mudará aolhos vistos. Suponha, es-

creve ele ainda a sua prima,que uma parte, mesmo pequena, dahumanidade, animada de uma con-vicção consciente, firme e séria, prati-que a doutrina do amor e da irrestritaoferenda de si mesma [...] o erro e omal poderiam resistir ainda muitotempo? Mas, acrescenta ele, provavel-mente isso ainda durará por umtempo.

Vladimir Soloviev considera que areconciliação com Deus é o único alvoda vida, e por isso ele se dedica a issotanto quanto pode. Ele fala e escrevesobre a evolução do homem; sobre o

dever de se libertar das opressões; so-bre o ser humano dotado de razão,encerrado em uma personalidade físi-ca; sobre o cosmos e o Homem-Deusno centro da história do mundo; sobrea filosofia do cristianismo e o cristia-nismo na filosofia. Ele busca a síntesede todos esses assuntos.

“A amiga eterna, ou celestial”

Essas múltiplas abordagens levan-tam uma questão: em qual fonte se ba-seia Soloviev? Seus poemas dão a res-posta ao serem reflexos de suas con-cepções e suas motivações interiores.No poema intitulado Três encontros,ele diz que sua visão da Sophia, a sabe-doria divina, foi determinante em suavida, e que ele devotou todo o seuamor à sabedoria assim personificadapor uma mulher de uma beleza sobre-natural, sua amiga “eterna”, ou “celes-tial”. Com isso, o amor terreno per-deu, para ele, todo o significado. ASanta Sofhia foi, para nossos ancestrais,uma entidade celeste que os fenôme-nos do mundo inferior encobriam. Erao espírito luminoso da humanidaderenascida, o anjo protetor da terra, aaparição da forma final vindoura daDivindade [...] A esse sentimento reli-gioso que se revelava a nossos ances-trais, a essa idéia autêntica, nacional,porém universal e absoluta, devemosagora dar uma expressão racional.Trata-se de dar forma à Palavra vi-vente que a antiga Rússia recebeu eque é dotada de uma força muito elo-qüente para a nova Rússia.

As idéias de Soloviev sobre a Sophianão eram novas em sua época. O filó-sofo Sergei Bulgakow a descreveu co-mo a alma do mundo espiritual, opensamento que emana de Deus e reli-ga o mundo a seu Criador. Muitas ca-tedrais e templos levam seu nome.

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Retificação:No artigo sobre os vinte e cinco anos da revista Penta-grama de setembro de 2003, omitimos um elementoimportante na história da literatura do LectoriumRosicrucianum: o surgimento do mensário intituladoNieuw Religieuze Oriëntering, samengesteld en onderleiding van J.van Rijckenborgh (Nova Orientação Re-ligiosa, composto sob a direção de J. van Rijckenborgh)como indica a página do índice. Uma informaçãoanterior revela que “essa era a revista da SociedadeRosacruz, ilegal sob a ocupação alemã. A partir desetembro de 1940, dia de sua interdição pelos alemães,a voz da Rosacruz não deixou de se fazer ouvir, sobdiferentes denominações, em nosso país e no estran-geiro. Essa revista foi nosso último disfarce antes dalibertação e, visto seu sucesso, a mais apreciada”. Elaapareceu durante oito anos e muitos alunos dessestempos heróicos encadernaram seus números.

A REDAÇÃO

Asclépio.

Escultura em

bronze.

Museu de

Medicina, Kiev.

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O justo passa, porém, sua luz

permanece

O grande inquisidor é uma lenda con-tada por Ivan Karamazov, um dospersonagens principais do romance deDostoievski, “Os irmãos Karamazov”.Ivan está profundamente decepciona-do com o mundo onde vive e se afas-tou da religião estabelecida. Essa obraapresenta a vida humana com seus al-tos e baixos, as paixões e as tensões deuma inteligência altamente evoluída,uma reflexão religiosa profunda e umaabertura à vida mística.

van renegou a Igreja e busca estabe-lecer sua vida em bases novas, maisamplas. “Tudo é permitido!” Se há umDeus – e isso não lhe parece impossí-vel – ele o rejeita resolutamente por-que Ele não põe um fim ao imenso so-frimento dos homens. A infelicidadedas crianças inocentes, as incontáveisatrocidades que lhe são relatadas, le-vam-no a esta conclusão radical: seexiste uma salvação depois da morte,ela não justifica os inimagináveis sofri-mentos dos quais padece o povo russo.

Ivan relata a lenda do grande inqui-sidor a seu irmão, Aliocha, um místi-co. Parece que ele escolheu esse assun-to para incitar seu irmão a maior refle-xão e consciência. E esse assunto con-tém suficientes elementos que autori-zam e obrigam a quebrar todos osconceitos dogmáticos. O homem deveultrapassar as limitações deste mundo.

A história se passa na Espanha doséculo XVI. Jesus volta à terra e fazmilagres. Ele é aprisionado. Uma noi-

te, o grande inquisidor vai vê-lo paraconversar. Rejeitaste a única via quepode dar a felicidade aos homens, lan-ça-lhe no rosto. Jesus se mantém emsilêncio. O grande Espírito se dirigiu ati no deserto. Há algo mais verdadei-ro do que os três pedidos que ele te feze que tu rejeitaste? O grande inquisi-dor faz alusão às “três tentações nodeserto”. Os evangelhos relatam, comefeito, que Jesus jejuou durante qua-renta dias no deserto e que depoisSatã veio lhe dizer: Se és filho de Deus,ordena que estas pedras se tornempães. Jesus recusou respondendo: Es-tá escrito: Não somente de pão vive ohomem, mas de toda palavra que saida boca de Deus (Mat. 4:3-4).

“Eu te darei todas as coisas”

Em seguida Satã transportou-opara o telhado do templo e lhe disse:“Se és o filho de Deus, joga-te lá em-baixo pois está escrito: Ele dará ordensa seus anjos a teu respeito, e eles te car-regarão nas mãos de medo que trope-ces numa pedra. E Jesus respondeu:Não tentarás o Senhor teu Deus”(Mat. 4:5-6).

Satã o transportou ainda ao alto deuma alta montanha para lhe mostrartodos os reinos do mundo e sua gló-ria, e lhe disse: Eu te darei todas ascoisas se te prosternares e me adorares.Jesus lhe disse: Afasta-te, Satã! Poisestá escrito: Tu adorarás o Senhor teuDeus, e servirás somente a ele. EntãoSatã o deixou. E eis que anjos vieram

I

12

para perto de Jesus para servi-lo(Mat. 4:7-11).

“O ser humano é mais fraco do que pensas”

Estas três propostas anunciam ofuturo completo do gênero humano.Vês as pedras nesse deserto ermo e ar-dente?, pergunta o grande inquisidor.Transforma-as em pães; a humanidadete será reconhecida e te seguirá comoum rebanho obediente. Para não pri-vá-la de sua liberdade, rejeitas essaproposta. Afinal o que é essa liberdade,essa obediência que se compra compão, perguntarás? Tu lhe prometes opão do céu, mas, aos olhos do gênerohumano, que é fraco, eternamente re-belde e ingrato, é esse pão comparávelao pão terrestre? Tu rejeitas o único meioefetivo de constrangê-lo a te adorarsem contestação. E tu o fazes em nomeda liberdade! Eu te digo, o homem nãotem maior preocupação do que encon-trar o mais depressa possível alguém aquem ceder sua liberdade. Somenteaquele que tranqüiliza sua consciênciaa mantém sob domínio. Em vez de lhedar uma sólida razão para ter a cons-ciência em paz, tu não lhe ofereces se-não uma coisa extraordinária, misterio-sa e vaga. Uma coisa que ultrapassasuas forças. Tu ages como se não amas-ses os homens. Eu te juro que eles sãomais fracos e mais vazios do que pen-sas. Podem eles fazer o que tu fazes?

Culpado do sofrimento da humanidade

E para acabar, ele lança a Jesus: Tupodias agarrar o poder e a espada de

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César. Por que os recusaste? Se tu ti-vesses seguido o terceiro conselho doGrande Espírito, terias satisfeito todosos desejos dos homens sobre a terra.Eles teriam tido então alguém paraadorar e a quem confiar suas consciên-cias. Segundo o grande inquisidor, Je-sus não somente fracassou, mas tor-nou-se culpado do sofrimento doshomens. Ele superestimou suas capa-cidades. Por essa razão o grandeinquisidor lhe prediz que eles se afas-tarão de seu ensinamento, pois o fardolhes é demasiadamente pesado. Quepoderão fazer os fracos que não podemsuportar o que suportam os fortes?Que poderá fazer a alma fraca quenão pode assumir as tarefas difíceis dosfortes? Só vieste para os eleitos? Se essefor o caso, é um mistério, e nós não ocompreendemos...

A uma escola espiritual fidedignasão dirigidas as mesmas perguntas e asmesmas censuras. Ela também não quermudar “as pedras em pães”, e pedeque se busque o pão espiritual. Ela falada liberdade da alma, mas, para os queestão voltados exclusivamente para amatéria, isso é incompreensível. Quequer dizer “mudar as pedras em pão”?Acabar por se conformar à vida terres-tre? Isso é a conseqüência derradeira.Não se deve hesitar entre as exigênciasinteriores e exteriores, mas sentir-seem casa no mundo. É preciso viverjuntos, fraternalmente unidos e ali-mentados pela natureza; fazer calar aconsciência; afastar as forças domundo espiritual na terra; ancorar arealeza no mundo. Não são essesesforços louváveis? O grande inquisi-dor faz o impossível para alcançar essameta.

Eram as guerras necessárias?

Segundo o grande inquisidor, Jesusrejeitou a via da conciliação. Por queele não quis instaurar a paz se dessaforma ele poderia prevenir as guerras eevitar o sofrimento de milhões deseres humanos? Jesus, no entanto,agiu como devia. A Luz não se barga-nha. Seu caminho não é o do aperfei-çoamento do mundo, mas da elevaçãoda humanidade para um plano espiri-tual superior em vista de sua integra-ção ao plano de Deus. Infelizmente,demasiados chefes religiosos quiseramestabelecer seus “reinos na terra” e aLuz se retirou. O mundo que vemos ànossa volta não é o mundo original.Há dois campos de vida: o humano eo divino. Do campo de vida humano épreciso retornar ao campo de vidadivino, o mundo do homem original.Todos os que descobrem o caminhoque leva a ele se dão conta de que aspessoas se ocupam, geralmente, so-mente do aspecto exterior das coisas…e do quanto eles mesmos, durante

O retorno do

filho pródigo.

Ilustração em

manuscrito anô-

nimo do século

XIX. Rússia.

O grande inquisidor tem a palavra fácil. Em suaépoca, a Igreja era tão poderosa e seus métodos tãoimpiedosos que era preciso olhar duas vezes antes dese confessar abertamente seguir o caminho do cristia-nismo interior, ou, segundo a Igreja, ser um herético.Isso era para os mais corajosos. Essa época era com-parável à do comunismo que reinava em alguns paí-ses. O Estado, todo poderoso, intervinha em tudo, ea liberdade pessoal era rara. Todos espionavam,tanto crianças como adultos, para tentar salvar-se ouobter alguma vantagem. Daí os imensos sofrimentose uma extrema dificuldade para escolher abertamen-te a liberdade espiritual interior.

muito tempo, examinaram e julgaramapenas esse lado das coisas. O eu nãose conhece, nem penetra o eu dosoutros. Forças poderosas, e quemudam rapidamente, constituem avida e a sociedade. Elas provocam omedo e a incerteza. A matéria, assimcomo as idéias e os sentimentos queela gera, formam um véu praticamen-te impenetrável que separa o serhumano da realidade divina. O planodivino não prevê a conciliação destaforma de existência. Uma vez que ohomem deve fazer crescer a sua almaeterna no decorrer de uma ininterrup-ta confrontação com o impiedosomundo das forças contrárias, não háinteresse em transformar as pedras empães. Quão difícil isso parece, até paraos olhos do grande inquisidor! A luzchama continuamente para despertar,para o conhecimento de si mesmo edo mundo, e acima de tudo para oretorno ao mundo divino. No entan-to, poucas pessoas estão prontas paraseguir esse caminho. O grande inqui-sidor lança ao rosto de Jesus: Falta-te

amor para com os homens em seu con-junto. Ao contrário de ti, nós almeja-mos o bem da humanidade, queremosestabelecer o reino da paz e da felicida-de. Tu te interessas apenas pelos eleitos;nós queremos a paz para todo omundo. Queremos trazer uma felici-dade tranqüila aos humanos, que sãofracos, pois assim foram criados.

O grande inquisidor representaa consciência coletiva

Muitas pessoas se esforçam paraobter felicidade, bens, poder, conside-

Camafeu com a

imagem de

Dostoievski. São

Petersburgo.

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Dostoievski, para expor esse conflito,cria o personagem do grande inqui-sidor, representante do autoritarismo,do dogmatismo e das horríveisintervenções da Igreja, essa institui-ção que não admitia e continua nãoadmitindo os “heréticos”. O inquisi-dor que conduz o interrogatóriovive também em cada ser humanocondicionado. O eu desempenhaesse papel se é formado de tal modoque não consegue se desvencilhar denada. Esse papel é compartilhadopelo “ser aural”, que alimenta e sustenta o eu. Assim, a alma se tornaprisioneira do intelecto que a sub-mete às perguntas e se esforça porretê-la no interior de seus próprioslimites. O intelecto aniquila o únicopoder regenerador da alma. O grande inquisidor representa, portanto, o intelecto astuto que sóconhece sua própria “sabedoria” enada percebe fora disso. É precisodeixar o intelecto de lado para no-vamente dar à alma sua liberdade.

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ração, prazer. Elas estão sob a influên-cia do grande inquisidor que repre-senta também a consciência coletiva.Ele gostaria de triunfar, mas não con-segue. E quando os homens sofrem,ele deve sofrer com eles. Apesar detodos os seus esforços, às vezes gigan-tescos, ele não consegue trazernenhuma paz ao mundo. Seu sonhode felicidade, de prazer e de realizaçãopermanece sempre uma ilusão. Ogrande inquisidor não está em condi-ção de penetrar o mistério do planodivino. Ele não compreende por queesse Plano permanece sempre atual eexistem seres que reagem responden-do a ele. Esse mistério permaneceoculto no microcosmo onde as expe-riências de uma série de encarnaçõesse somam até que uma maturidadeacaba sendo alcançada, maturidadenecessária para reconhecer e seguir ocaminho da natureza divina. Pareceque o ser humano é, de fato, chamadopara uma liberdade superior, umaliberdade fundamentada em um cres-cimento no decorrer da vida terrena,crescimento que implica altos e bai-xos. O espírito do mundo, do qual ogrande inquisidor é um aspecto, nãoconhece o núcleo divino que o chamaà vida e que aguarda sua resposta hátempos imemoriáveis.

Quando o grande inquisidor aca-bou de falar, Jesus se aproximou deleem silêncio, beijou seus lábios exan-gues e desapareceu na cidade escura.Lábios exangues! Palavras sem força,emitidas por autoridades que tateiamna noite! Palavras muito antigas, quebrilham para todos os olhos e têmgrande poder sobre a economia e apolítica! Seus lábios são exangues já

que suas palavras não possuem a forçada renovação. A alma do peregrinovence esses obstáculos exteriores einteriores. Jesus, a nova alma, saientão da velha prisão da personalida-de e percorre “as ruas e lugares escu-ros da cidade” para realizar aí suaobra, a salvação do gênero humano.

“Como homem sem pecado podestransmitir Luz aos malfeitores”

Dostoievski não revela o segredodessa lenda. Ele mostra a chaga quecorrói a existência humana e busca ofundamento sobre o qual se realizariaa união de todos os homens. Ele fazum monge dizer: Age incansavelmen-te. Toma sobre ti os males causadospelo mal. Suporta-os e teu coraçãoencontrará a paz. Deves compreenderque és tu mesmo culpado. Se fossessem pecado, poderias ser um exemploluminoso para aquele que faz o mal.Não o foste. Se lhe houvesses dado aluz, essa luz teria também iluminadoo caminho a outros. E aquele que fossecometer um erro talvez o tivesse evi-tado graças à tua luz. E mesmo quevejas que aquele que iluminaste nãobusca a salvação, permanece firme enão duvida da força da luz celeste.Parte da idéia de que a alma deleencontrará a salvação – talvez nãoagora, porém mais tarde. E se esse nãofor o caso, então seus filhos a encontra-rão, pois tua luz jamais se apagará,mesmo após tua morte. O justo passa,porém sua luz permanece.

Karl von

Eckartshausen.

Biblioteca

Rudomino,

Moscou.

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A promessa espiritual da

Europa oriental

Há um caminho abrupto e espinhosoque conduz ao coração do universo.Eu posso vos dizer como encontraraqueles que estão em condição de vosmostrar a entrada secreta que, somen-te ela, dá acesso ao interior. Para osque avançam há uma recompensainefável: a força de ser um benfeitor eum salvador para a humanidade. Pa-ra os que falham, haverá outras exis-tências, com outras chances de êxito. Helena Petrovna Blavatsky, 8 maio de 1891.

que já não foi escrito sobre as últi-mas transformações da Europa ori-ental! Certos observadores conside-ram a raça eslava como um exemplopara os novos tempos, quando o co-ração se aliará ao intelecto, pois o co-ração, rendendo-se à oferenda doamor de Cristo, abre em si uma fonteque inspira o intelecto. Assim seanuncia, em sua essência, o novo de-senvolvimento da Europa oriental.Como resultado de um profundosofrimento e um profundo desejo delibertação, essa realidade eclode nocoração do homem que sabe resolvero conflito dilacerante entre o tempo ea eternidade. É precisamente sobre es-se ponto que o leste e o oeste podemse encontrar. A Europa oriental pro-duziu visões grandiosas, desenvolveuo sentido do humano, o conhecimen-to intuitivo e a abertura. No ocidente,conhecemos as coisas pelos sentidos e

pela razão. Mas como podemosconhecer uma pessoa? Alguém recep-tivo dirá: pelo coração. O que faz quesejamos humanos é o coração. Umrusso, em Paris, disse um dia: Ledes osmesmos textos que nós, mas os ledescom a cabeça, e nós, com o coração.

A Europa oriental se encontrousob a influência da Igreja cristã maistarde do que o ocidente. Foi somentepor volta do século X que se manifes-taram sinais de evolução espiritualinspirada pelos textos gregos.

No século XI foram descobertaslendas e biografias relativas a Teodó-sio. No século XIV surgiu o testemu-

O

nho dos Irmãos Leigos que levavamuma vida de devoção, de renúncia e deausteridade, afastados do mundo.Embora tendo peculiaridades locais,sua ascese diferia muito pouco dasque eram praticadas no restante daEuropa.

A prece do coração

O “coração”, como está escrito naBíblia, se aplica aos sentimentos eidentidade dos europeus orientais.Especialmente os russos vivem poserdtsu, a partir do coração. E “a precedo coração” ocupa um lugar único.No coração está o homem. Aí todosos fios se unem. Aí se manifesta maisfortemente a individualidade. Issopode parecer estranho para um oci-dental que coloca o centro da indivi-dualidade na cabeça. O coração, dizTeófano, o Eremita, mantém a ener-gia de todas as forças da alma, as for-ças animais e físicas. Amar a Deus detodo o coração significa buscá-lo comtoda a alma e com toda a razão.

Uma das palavras de Cristo queinspira em especial a alma eslava é:Sem mim nada podeis. Os homenssão incapazes de realizar uma açãoque dure eternamente. Eles vivemuma vida arriscada. O que fazer paralibertar a alma da prisão da matéria?Os pais da espiritualidade russa consi-deravam a libertação como um “esta-do do coração”. Em uma cultura

onde a oração tinha mais valor do queo alimento, eles definiam o “estado deprece” (katastasis) como uma ligaçãoininterrupta, concomitante com vidacomum. O estado de prece é sinôni-mo de vida espiritual. É o estadoconstante do coração.

O coração humano permanece umprofundo mistério; é a parte oculta dohomem que somente Deus conhece.Como conhecer o estado do própriocoração? Então os pais da igreja res-pondem: pela pureza que dá a com-preensão direta de si mesmo, a com-preensão emocional do próprio cora-ção e do coração dos outros: é a car-diognosia dos staretzi, dos pais espiri-tuais. Eles lêem os corações como li-vros abertos, sem achar isso milagroso,

Edição russa das

obras de Platão.

1780. Biblioteca da

Rússia, Moscou.

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mas como a condição normal de umaalma purificada pelo amor.

O homem moderno já não sabe escutar

Escutar tornou-se contrário à for-ma de vida ocidental. O homem mo-derno ocidental está submerso nos es-tímulos do mundo exterior. Ele per-deu a faculdade de escutar a inspira-ção do coração e recebe a inspiração

do exterior. Ele escuta todas as vozes,menos a do coração, a única que im-porta. Os staretzi dizem a esse tipo dehomens: Quando o Mestre diz “Dá-me teu coração”, isso quer dizer:“Meu filho, dá-me o que há de maisprofundo em ti, tua origem, o princí-pio que dirige tua vida sensorial, afe-tiva, cerebral. Retorna à origem”.

Encontramos também esse princí-pio, por exemplo, entre os ducoborze(ducho bor: os que lutam pelo espírito)seguidores de um movimento do sé-culo XVII localizado na Ucrânia. Es-tritamente vegetarianos, pacíficos masopostos a toda ingerência do Estado,eles foram perseguidos durante déca-das. Eles abandonaram a Ucrâniaatravés do Cáucaso. Aspirando à paze à verdade, doaram suas posses e des-truíram suas armas para não desobe-decer ao mandamento “Não mata-rás”. Graças à intervenção de Tolstoi,um grupo de nove mil ducoborzespode deixar a Rússia em 1898 e emi-grar para o Canadá, enquanto quedoze mil dentre eles permaneceramno Cáucaso.

Edição russa

anônima das obras

de Hermes

Trismegisto.

C.a. 1810-1820.

Coleção

Vielhgorsky.

A esfinge russa,

retrato de H.P.

Blavatsky em

The Phoenix de

Manly Hall.

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Manuscrito de

H.P. Blavatsky.

Os ducoborzes, que foram chama-dos os tolstoianos no Canadá, instala-ram-se em Quebec, na província deSaskatchewan, e mais tarde na Co-lumbia Britânica. Eles viviam e traba-lhavam em comunidades. Não tinhamigrejas e achavam a Bíblia menos im-portante do que “o livro vivente” quecada um carrega em si mesmo, pois alei inscrita no coração é um guia me-lhor que todas as regras exteriores.Aquele que se conforma a essa lei seaproxima passo a passo da perfeiçãoespiritual e estabelece o Reino na ter-ra. Para eles, todos os homens são porprincípio filhos de Deus. Eles reco-nheciam também Jesus Cristo como oFilho de Deus; que sua sabedoria pro-vém do Espírito, que indicavam comoDeus-Espírito; que sua vida, sua mor-te e sua ressurreição só têm sentido co-mo uma realização no coração de cadadiscípulo. Aquele que o busca verdadei-ramente ouvirá a voz interior. Seguir aCristo significa dar a vida a Deus.

Os ducoborzes são os representan-tes de um cristianismo original decaráter gnóstico. Eles chamam a aten-ção sobre a luz interior de cada um econsideram o pensamento purificadocomo o espelho da verdade. Eles fo-ram reabilitados por Michail Gor-batchev, que lhes deu terras perto dacidade de Tula, cento e oitenta quilô-metros ao sul de Moscou.

Não há religião mais elevadaque a verdade

Ao fundar a Sociedade Teosófica,em 1875, Madame Blavatsky abriuuma brecha no materialismo. Ao ladoda Igreja, com seu céu e seu além, H.P.Blabatsky, a perspicaz e intrépida rus-sa, instituiu a ciência do lado ocultodas coisas. O lema de A doutrina se-creta (1888) é: Não há religião mais

elevada que a verdade. Por volta de1850, ela encontrou um mestre hinduque a influenciou grandemente. Ele apôs em contato com uma cultura mi-lenar, profundamente enraizada nohinduismo e no budismo. Ela em-presta a essas fontes antiqüíssimas otermo “Brahma Vidya”: Teosofia. Noentanto, não era sua intenção introdu-zir no Ocidente os ensinamentos daÍndia. Ela escreveu: Minha meta édemonstrar que a natureza não é umamera combinação acidental de áto-mos, mostrar o lugar correto do ho-mem no plano do universo, salvar dadegradação as verdades muito antigasque estão na origem de todas as reli-giões, desvendar em certa medida seudenominador comum para que final-mente seja visto que a cultura de hojejamais abordou a essência oculta danatureza.

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O editor

russo N.J.

Novikov.

Os amantes da Verdade

H.P. Blavatsky estudou as corren-tes gnósticas dos primeiros séculos denossa era, nas quais destacou umaquantidade incrível de informaçõesfundamentais. Segundo ela, a palavra“teosofia” era utilizada já desde o sé-culo III d.C. pelos filaleutos, osamantes da Verdade, grupo de filóso-fos alexandrinos. Ela demonstrou queos textos e ensinamentos gnósticosprovinham, em grande parte, de fon-

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Podemos ser talvez tentados a ver agrande Rússia como separada da Euro-pa. Porém, na realidade, não se podedissociá-las. A partir do século X, as tri-bos selvagens que povoavam as imensasestepes, as montanhas e as bacias flu-viais, foram convertidas para o cristia-nismo, um cristianismo oriental, pitores-co, heteróclito, ao mesmo tempo euro-peu, através de Roma, e bizantino,através de Constantinopla. No meiodesse povo excitado por demônios e paixões, os religiosos e os monges aspirama uma vida numa espiral mais elevada,à claridade, ao espaço, à pureza.Sempre houve intercâmbios intensosentre o Oriente e o Ocidente. Os tsarespertenciam, pelo sangue, às dinastiaseuropéias. Nos séculos XVIII e XIX, ofrancês era a língua oficial da corterussa. Os soldados de Napoleão e osexércitos do tsar Alexandre usavam uni-formes quase idênticos. Uma grandeparte da Polônia atual estava sob aautoridade da Rússia. A união alfande-gária alemã e a Santa Aliança (meadosdo século XIX) eram disseminadas pro-fundamente na Rússia.A vida espiritual, no Leste, recebeu asmesmas influências que em todos oslugares da Europa. No século XVIII, as

lojas maçônicas, muito em voga, contri-buíram para o desenvolvimento doaltruísmo, da liberdade individual e dasensibilidade espiritual. Sob o reino deCatarina, a Grande, homens ilumina-dos como, por exemplo, o editor NicolasNovikov e o rosacruz Johann Schwarzempenharam-se em elevar a consciênciacoletiva. Eles aspiravam ao advento dohomem interior livre. Foi preciso come-çar pela abertura mental e a educação:tornar acessível a todas as camadas dapopulação o conjunto das maiores obrasdo pensamento europeu. Novikov e seusamigos editaram 440 obras, fundaramescolas, universidades, hospitais, institui-ções de prestígio. Em 1781, foi realizadaa publicação do jornal “Aurora”, na grá-fica de Novikov, em referência à “Au-rora”, obra-prima de Jacob Boehme. Detodas as formas possíveis, as pessoas fo-ram instruídas sobre as duas naturezasno homem e no cosmo. Nos mercadosde livros, vendiam-se obras de Arnold,de Gichtel, de Saint-Martin e de muitosoutros. Karl von Eckartshausen era en-tão o místico mais influente, muitoapreciado pelos pensadores, pelos rosa-cruzes e pelos franco-maçons. Seu livro“A nuvem sobre o santuário” impressio-nou tanto o tsar Alexandre I que este

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tes pré-cristãs, cujo conteúdo, jáconhecido há longo tempo e ensinadonas Escolas de Mistérios de todos ostempos, Jesus revelou. Ela não consi-derava Jesus como um Deus exteriorcom características humanas, mascomo o protótipo do homem interioreterno. Na obra A doutrina secreta ela escreveu: A Pistis Sophia é umtexto de importância extraordinária,um verdadeiro evangelho gnóstico,atribuído irrefletidamente a Valen-tino, mas que é, segundo todas as pro-

babilidades, um texto pré-cristão.Sobre o conteúdo, ela escreve: A Al-ma sempre foi o único assunto dereflexão, e o conhecimento da Alma, aúnica meta dos antigos Mistérios. Aqueda da Pistis Sophia, salva pela suasizígia, isto é, Jesus, é vista como odrama sempre recorrente do sofrimen-to da personalidade ignorante que sópode ser salva pelo Homem Imortal(Individualidade ou Ser), ou melhordizendo, pelo seu intenso desejo porAQUILO.

teve uma repentina inclinação para omisticismo. Eckartshausen, por sua vez,havia sido muito influenciado pelo ensaiosobre as características da Igreja interiordo místico russo, o Coronel Lopukhin.Os dois homens sentiam que participa-vam de uma Igreja interior que agrupa-va todos os que, tendo reconhecido aLuz, aspiravam a ela continuamente.Tendências reacionárias, assim como apressão das grandes guerras, da revoluçãoe dos distúrbios na Europa, contribuírampara que esses impulsos espirituais fossemrelegados a segundo plano. No final doséculo XIX, houve uma renovação espiri-tual com músicos como Scriabin, e artistascomo Jacek Malczewski, Karel Janacek eJan Preisler, ligados à corrente simbólicaque fascinou a Europa. Eles tentaramabordar a verdade universal de umavida superior da alma.Desde a queda do muro de Berlim e doregime comunista, a Europa ocidental,encurralada entre a internet e a intelec-tualidade, espreita os novos impulsos es-pirituais vindos com o vento da semprecontemplativa Europa oriental. Impulsosque suprimindo a pretensa separaçãoauxiliam todo ocidental a encontrarfinalmente sua verdadeira essência: ohomem alma vivente e liberto.

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Tradução da Fama

Fraternitatis por

Turgueniev (1796-

1818). Biblioteca

da Rússia e

Central State

Archive of Ancient

Acts. Coleção F.F.

Mazurin.

“Ela é a única disponível”

Helena Petrovna Blavatsky lançouuma ponte entre a antiga sabedoriaoriental e o materialismo nascente doOcidente. Ela mostrou que existe ou-tra coisa fora posse, poder e “busi-ness”. Com seu extraordinário dina-mismo e sua incansável pena, ela podeàs vezes parecer irritante. Um de seusmestres respondeu a alguém que per-guntou se outra pessoa não podiafazer esse trabalho: Ela é a única dis-ponível.

Em seu tempo de ortodoxias auto-complacentes, de formas de pensarconvencionais, de lugares comunsvazios de sentido, ela parecia total-mente fora de contexto. Como umprofeta dos tempos antigos, fogosacomo Elias, imponente como Isaías,misteriosa como Ezequiel, ela nãohesitava em seus julgamentos impie-dosos sobre as abordagens pueris,hipócritas e pseudo-científicas domistério da vida. Sua mensagem pro-vinha de um passado formidável e nãose dirigia aos tempos presentes, po-

rém aos tempos futuros da humanida-de inteira, pois o presente estava ven-dado pelas trevas do materialismo. Aúnica luz provinha do passado lon-gínquo. Ela, sem falhar, trouxe suamensagem e deu testemunho daGnosis num século que se tornouagnóstico.

Importantes demolidores daautopresunção

Alunos de Blavatsky, como Helenae Nicolas Roerich, deram forma, a seumodo, à missão dos novos tempos: acriação de uma igreja ígnea sobre aterra. Na época das rebeliões que pre-cederam a revolução russa, Gurdjiev eOuspensky emigraram para o Oci-dente. Ambos são considerados porum grande número de pesquisadorescomo importantes demolidores daautopresunção intelectual.

O homem é um microcosmo, diziaOuspensky. Esse modelo reduzido daprodigiosa macro-engenharia é ligadoà energia do universo que o alimenta.A Via Láctea é constituída de cin-qüenta milhões de estrelas e o cérebrohumano de quase o mesmo númerode células. Porém, sentimo-nos umaréplica dessa gigantesca mecânica?Percebemos algo dessas forças uni-versais que correm em nós? Cadacélula de nosso cérebro tem umapequena parcela de pensamento e éconectada a três ou quatro outras célu-las cerebrais é uma outra idéia deOuspensky. O homem só utiliza umapequeníssima parte de seu cérebro,pois as ligações mecânicas entre célulassão medíocres. Se as conexões fossemconvenientes, o ser humano poderia seprevalecer de um nível de consciênciamais elevado, aproximando a cons-ciência do sol. Poder-se-ia então falarde um estado de ligação, estado cha-

mado “atenção”. Essa atenção pode irmuito longe, pode se estender no uni-verso inteiro. O estado mais elevado équando a consciência corre nas veias eo verdadeiro alimento, os éteres supe-riores verdadeiramente nutritivos,pode ser provado.

Que é a essência da liberdade?

A Europa oriental luta para libertaro espírito das amarras que desdemuito tempo o prendem à terra.Nesse imenso combate, o Oriente e oOcidente ofertam um ao outro omelhor que podem alcançar no planoespiritual. Muitos exemplos de servi-ço desinteressado, de compaixão, deamor pela humanidade, despertam opesquisador.

T. Spidlik disse, em 2001, duranteuma conferência que tratava do esta-do atual da espiritualidade russa: A

liberdade é irracional, além da lógica.Os filósofos do Iluminismo pensavamque o comportamento humano depen-desse do entendimento. Porém, segun-do Dostoievski, o ser humano nemsempre segue a lógica do entendimen-to. A partir do momento em que sesente livre, ele prefere ser louco. Aliberdade é demoníaca. Todos os quequiseram seguir sem obstáculos ocaminho da liberdade fizeram a expe-riência de ultrapassar os limites dosseres mortais e de tornar-se “demô-nios”. Eles conheceram um fim trági-co. Na história da família Karamazov,do célebre romance de Dostoievski, opai se recusa a por um limite a suavida sexual e é finalmente morto porseu próprio filho. Ivan, seu outro filho,não quer conter seus fantasmas eenlouquece. Dimitri, tornado cegopela sua paixão desenfreada, acaba naprisão. Tal é o resultado do demônioda liberdade. Ela libera o homem afim de melhor destruí-lo. Há umaperspectiva mais positiva?

O mais jovem irmão Karamazov,Aliocha, o único a ser verdadeiramen-te livre no meio desses seres interde-pendentes e prisioneiros de si mes-mos, entra, à sua maneira muito pes-soal, na liberdade interior.

Não humano, porém humano-divino

Claro, a natureza deve ser vencida eos homens devem ser totalmente li-vres. Eles já não devem ser unicamen-te humanos, porém, divinos, huma-no-divinos. Conseguimos isso dandoao Ser crístico, onipresente e quepreenche tudo, todo o espaço de nos-so coração, pois em todos os cora-ções, tanto orientais como ocidentais,reside a essência divina do homem,encerrada como uma semente.

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Grigori Savvitch Skovoroda (1722-1797) era um filósofo e místico daUcrânia. Com a idade de 75 anos efavorecido pela hospitalidade de umde seus discípulos, ele pegou uma enxa-da e cavou uma cova estreita: Já étempo de terminar este perambular,disse ele, que aqui seja meu túmulo eque seja inscrito: O mundo me perse-guiu, mas não me capturou. No diaseguinte, encontraram Skovorodamorto em seu quarto, as mãos cruza-das sobre o peito, a cabeça apoiada so-bre rolos de papel cobertos com suacaligrafia. Esses textos foram editadosquase cem anos após sua morte. Sko-voroda é uma figura lendária. LeonTolstoi e outros pensadores de suaépoca o tinham em alta estima. Algunsanos atrás, seu nome foi dado à Uni-versidade de Kharkov, antiga capitalda Ucrânia.

rofundamente crente, Skovorodafoi também um espírito livre. Ele de-nunciou sem titubear os abusos de seutempo. Corajosamente, ousou opor-se ao ensinamento tradicional da Igre-ja, justamente ele que a princípio que-ria ser padre. No seu ardente desejo deverdade, ignorou sempre o medo.

Em 1765, ele abandonou sua carrei-ra de professor para percorrer oscaminhos. Daí por diante e até o finalde sua vida, ele não teve mais domicí-lio fixo. O que é a vida? – escrevia ele– O sonho de um turco obcecado pelo

ópio. Um sonho pavoroso que dá doresde cabeça e gela o coração. O que é avida? Um vaguear. Abre-se um cami-nho, sem saber nem por que, nem paraonde. Skovoroda se torna uma espéciede mendigo. Em sua mochila, ele tinhauma Bíblia hebraica; mais tarde, tam-bém pegou uma flauta e um cajado. Àsvezes permanecia algum tempo comum ou outro de seus numerosos ami-gos, depois, bruscamente, seguianovamente seu caminho. Ele cantavacanções e contava estórias nas praçasde mercado, nas casas pobres, e davapalestras para seus companheiros. Seuascetismo tomava formas sempre aus-teras sem que diminuísse a vivacidadede sua alma. Ele consagrava muitotempo à oração. Guiado por uma mãoinvisível, seguia seu caminho.

“O mundo inteiro dorme”

Durante todos esses anos de errân-cia, sua criatividade filosófica flores-ceu. No curso do caminho, escreveuseus Diálogos. Ele tentou chegar a umacompreensão do mundo e da humani-dade através de suas experiências inte-riores. Freqüentemente sentia-se men-

“O mundo me perseguiu, mas

não me capturou”

P

Skovoroda rejeitava completamen-te a exegese literal da Bíblia: “Maisvale não ler e não entender do queler sem olhos, ouvir sem ouvidos etransmitir absurdidades”.

Skovoroda,

1794.

talmente transportado acima de suaslimitações. Em uma carta, ele contauma de suas experiências místicas: Eupasseava no jardim. A primeira coisaque senti em meu coração, é que esta-va liberto de tudo. Eu tinha um senti-mento de liberdade, de força nova.Tive a experiência de um toqueextraordinário que me preenchia comuma força desconhecida. Uma doceefusão, repentina e indescritível, pre-encheu minha alma, e tudo em mim seinflamou. O mundo desapareceu aosmeus olhos e já não tive senão um sen-timento de amor, de paz, de eternida-de. Lágrimas inundavam meu rosto,derramando em meu corpo todo a har-monia quente do coração.

Essas experiências íntimas, bem co-mo sua vida exterior, levaram Skovo-roda a ver que o mundo todo dorme.Esse sono é o suplício do mundo. Emsuas canções, há muitas alusões à vidasecreta, que só depende da sensibilida-de. Ele descobriu à sua volta todo osofrimento do mundo, com suas lágri-mas ocultas. O mundo parece encan-tador, mas ele tem no coração um ver-me que o rói sem parar. Ó mundo, risna minha frente, mas no fundo de ti,soluças em silêncio.

“Contemplar a trilha divina”

Skovoroda mostrou que a vidaocorre em dois níveis: em superfície eem profundeza. Para fazer coincidiresses dois níveis, é preciso compreen-

der que a vida em superfície escoa eque a vida em profundeza é “emDeus”. Se queres conhecer algo de ver-dade, considera antes a carne, isto é:olha o aspecto exterior das coisas. Des-cobrirás ali a assinatura de Deus que terevelará uma sabedoria secreta e des-conhecida. Essa compreensão supe-rior, essa percepção da trilha divina é ofruto de uma iluminação do espírito,acessível àquele que se desprende deseus sentidos. Quando o espírito deDeus [entrou em nosso coração], quan-do nossos olhos foram iluminados pelaverdade, vemos então o duplo aspectode todas as coisas; cada criatura parecese desdobrar.[...] Quando, com essenovo olho, contemplamos Deus, então

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vemos tudo, como num espelho divino,tudo que já estava n´Ele e tudo o quejamais vimos.

E, em primeiro lugar vemos a nósmesmos. O autoconhecimento dáacesso a dois “níveis” do ser. Ele reve-la, além da vida corpórea e psíquica, avida espiritual. Dela nasce também asabedoria. Se não temos a medida denós mesmos, de que nos serve tomar ados outros? A origem de toda ciênciaestá oculta no homem. Nele está escon-dida a fonte de toda a sabedoria. E ofilósofo acrescenta: Eu sei que meucorpo é formado segundo um planoeterno. Só se vê o corpo terrestre, não sevê o corpo espiritual. Conhecer a simesmo e conhecer a Deus é a mesmacoisa. Aquele que coloca sobre si mes-mo um olhar justo conhece o Cristo.

Skovoroda descobre que os concei-tos de bem e de mal são complemen-tares. São as duas metades de um todo;o Senhor criou a vida e a morte, o beme o mal, a riqueza e a pobreza, e os doissão somente um. A fim de que a “forçaredentora” entre em ação no mal, épreciso renunciar à dualidade, vencê-la pelo Espírito. Esse é o caminho datransformação: Faz surgir do erro averdade divina, para que ela se desdo-bre na profundeza de sua eternidade.Aquele que persevera no seu esforçolibertar-se-á da vida empírica parapercorrer o caminho da transformação.

“Toda carne é tua sombra e tua coberta”

Não gosto da vida limitada pelamorte, proclama Skovoroda, e conti-nua: A “vida” cotidiana é a própriamorte... Sua alma aspirava à metamor-fose, e o pressentimento que tinha detal aventura lhe deu uma coragem ina-balável. Deixa aqui a matéria emdecomposição e passa da terra ao céu,

do mundo corruptível ao mundo origi-nal [...] Não preciso do sol visível. Voupara um outro sol, que me alimenta eme reconforta.[...] Ele está no centro demeu ser, na profundeza de meu cora-ção. Ó tu, pura suavidade de minhaalma, tu és meu segredo, e toda carne étua sombra e tua coberta.

O homem “completo” não tomaparte da existência vegetativa do ho-mem comum. Ele não é, para este últi-mo, mais que um sonho. Profunda-mente enraizado no ser se encontramo “reino de Deus” e o “reino do ma-ligno”. Esses dois reinos, assim escreveSkovoroda, causam em cada homemum eterno conflito interior. O homemtem a faculdade de se harmonizar como amor divino e a de se submeter a suaira. O verdadeiro ser só se revela aoespírito humano como Cristo pelarealização da vida secreta em Cristo.

A respeito do coração, Skovorodaescreve: O que há de mais elevado nohomem reside no coração. É o homemverdadeiro... há também dois cora-ções... o coração espiritual contém e en-globa tudo em suas profundezas, e na-da pode contê-lo. Ele dava uma grandeimportância ao fato de não ver Deusfora de si mesmo, como algo exterior,mas de senti-lo em seu coração, comosua essência íntima, como sendo elemesmo uma idéia de Deus. Quando oser exterior se torna interior, ele reco-nhece a essência da existência, Deus.Skovoroda insiste no fato de que ohomem interior não é uma idéia abs-trata, mas um novo homem, em quemtudo o que era antigo se transformou,esse novo homem que está em todohomem e que cada um deve libertar.

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Edição russa

da obra de

Gichtels.

Fo

ntes

27

“A verdadeira religião não é o saber,

mas o agir”

período intermediário entre o sé-culo XIX e o XX foi verdadeiramentea idade de prata da Europa oriental(em relação ao século XIX, considera-do a idade de ouro). Artistas, compo-sitores, escritores e pensadores, muitasvezes sob a inspiração do Ocidente,ficaram famosos, embora a Europaocidental só tivesse conhecimento depoucos dentre eles. Muitos perderama vida durante a revolução sangrentade 1917. Outros foram expulsos peloregime comunista ou então forammortos e suas obras destruídas, mani-puladas para torná-las conformes aorealismo socialista. Esse processo foitão radical que até sua lembrançadesapareceu. Entre 1953 e 1964, houveuma leve retomada e depois, em con-seqüência da perestróica de 1986,algumas reabilitações. Livros que ha-viam sido conservados foram reedita-dos. Foi assim que apareceu, em 1993,a obra intitulada Duas vidas de Kon-kordia Jevgenjevna Antarova.

É quase impossível descrever a pro-fundeza e o grande alcance do livroem quatro partes intitulado Duas vi-das de K. J. Antarova. Além disso, otexto de seu manuscrito é difícil de ler.Mas talvez consigamos traduzir dele o

O

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K. J. Antarova nasceu no dia 13 deabril de 1886, em Varsóvia (uma gran-de parte da Polônia pertencia, então, àRússia). Com onze anos ela perdeu seupai e, três anos mais tarde, sua mãe.Embora logo não tivesse meios de sub-sistência, não abandonou o liceu,porém viveu dando aulas particulares.Após seu exame final, ela entrou paraum monastério. Ao se dar rapidamenteconta de que não era seu caminho,decidiu ir a São Petersburgo para estu-dar e inscreveu-se em História eFilologia. Na época, era o que havia demais ambicioso para uma mulher.Terminou seus estudos em 1904 e obte-ve uma cátedra, porém, sonhava emser atriz ou cantora. Tomou aulas decanto no conservatório de SãoPetersburgo e ensinou num centroprofissionalizante. Essa moça atraentee cheia de talentos, porém esgotada eque muitas vezes não tinha o quecomer, teve de ser hospitalizada. Em1907 ela foi convocada pelo teatroMarinski e, no ano seguinte, foi contra-tada pelo Bolchoi para papéis impor-tantes. A doença interrompe sua carrei-ra e ela começa a escrever. Graças ameu mestre Stanislavski, foi para mimcomo um renascimento. Agora apren-di a criar por mim mesma; ele foi a luzque iluminou meu caminho de artista,escreve ela em Sobre a via criativa.Tanto essa obra como Duas vidas per-maneceram no estado de manuscritoaté os anos noventas.

Louvado aquele que segue o caminho.Ele atravessa as trevas na senda estreita,iluminado pela flama de seu coração.Louvado aquele que resguarda sua pureza, pois a alegria e o amor divino o acompanham.

espírito e expor algumas de suasidéias. O livro apresenta-se como umapaixonante romance de aventurasque se passa alternativamente na Rús-sia, Europa central, Europa ocidental,Índia e América. Os personagens seamam, sofrem, lutam, vencem, se per-dem, morrem. O personagem princi-pal faz a ligação entre eles. Ele é o eixoem torno do qual todos gravitam: avida una, a centelha divina eternamen-te livre e vivente. Todos procuram es-se personagem central para servi-lo. Ocaminho da libertação é possível parao mundo todo. Não se pode julgar umhomem, mas é possível, através dele,reconhecer as próprias faltas e fraque-zas e renunciar a elas. A felicidade só seencontra na força da eternidade que

ressoa no próprio coração. Não é dadoao homem entrar repentinamente naesfera da harmonia e da sabedoria.Todo ser humano, no entanto, se amao próximo, pode pensar na glória daLuz dentro de si mesmo e adorar essaLuz nas pessoas que ele encontra. An-tarova faz um mestre dizer: A únicaverdadeira religião não é o que se sabeou compreende, porém o que é posto

Como Atlas, Adão

carrega a luta dos

homens pela vida.

Século XIX.

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Perestróica quer dizer renovação. Essa palavra serefere à mudança econômica, social e cultural queo presidente Michail Gorbatchov inaugurou naUnião Soviética. Glasnost é uma palavra ligada aessa idéia e que traduz a abertura necessária paraconseguir uma maior liberdade que a da antigaUnião Soviética.

Uma ponte em

São Petersburgo.

Camafeu da

coleção

P. Slazman.

em prática na vida diária [...] Nãoacredites que sejamos seres superiores...nós também seguimos o caminho, comotu. Sofrimento e desgosto fizeram cres-cer nosso coração, a inquietude e os tor-mentos alargaram nossa consciência![...] Não estou tranqüilo. Sigo incansa-velmente os que me estenderam asmãos cheias de compaixão e de amor.Minha fidelidade se conforma à deles,exatamente como tua fidelidade refle-te a dos seres sublimes. Nessa busca semfim pela perfeição está encerrada a leido universo inteiro. Quando teu cora-ção, preenchido de alegria, penetranesse ciclo eternamente vivo; quandopensas que és feliz e que conheces aLuz... segue-me com perfeita fidelida-de, até o último momento.

Acreditar e depois agir

Os conceitos fidelidade e até o últi-mo momento voltam incessantemente.A fidelidade, isto é, acreditar e depoisagir, é a condição para poder explorara senda da libertação. A fidelidade é ne-

cessária enquanto falta compreensão.Porém, pela fidelidade chega-se aoamor. Um grau mais elevado de fideli-dade que a expressão até o último mo-mento traduz é: o candidato ou alunodeve entregar-se sem reserva às conse-qüências da senda que está diante dele.

Antarova, em sua narrativa, enume-ra certas condições que os mestres queela descreve impõem aos alunos: auto-domínio, intrepidez, tato, vegetaria-nismo e promessa de uma obediênciavoluntária. Essa promessa pode pre-servar o aluno de cometer, por igno-rância, atos que poderiam frear seuprogresso e até torná-lo impossível.Quando tiveres adquirido essas quali-dades, poderás retornar ao mundo pa-ra aí trabalhar e servir aos homens.Não se adquire as referidas qualidadespelo estudo, porém desenvolvendo ovivente amor que cada um carregadentro de si. A terra é um campo detrabalho. O trabalho que deve ser rea-lizado pode parecer ociosidade, masisso não tem importância. O que im-porta é a luz que esse trabalho temcondição de liberar nos seres. Porém,cuidado! O corpo e seu ambiente nãosão as conseqüências da encarnaçãoatual, mas do carma de milhares deanos. É impossível libertar-se das con-dições exteriores por uma simples deci-são da vontade. Somente a força deamor abre a via exterior e interior. So-mente ela transforma a tristeza diáriaem alegria irradiante [...] A atividadecriativa do coração se manifesta navida cotidiana e aceita todas as condi-ções inevitáveis. A purificação ocorreunicamente pelo amor, pela misericór-dia e pelo perdão. Isso não quer dizerque é preciso deixar o mal acontecer episar nos pés de outrem, porém, muitasvezes, lutar, ensinar, dominar-se, cair elevantar, vencer os obstáculos e, princi-palmente, vencer tudo graças ao amor.

30

31

Leon Tolstoi – a trilha de

um pesquisador

O escritor russo Leon Tolstoi é o típi-co pesquisador, um “habitante da fron-teira”. Embora as circunstâncias lhepermitam não ter preocupações mate-riais e até viver no luxo, ele não seresigna a isso. Com a consciência ator-mentada pelo sentimento das realida-des sociais e a dúvida religiosa, eletenta descobrir a verdadeira vocaçãodo homem.

ensador profundo, filósofo e teólo-go, ele voltou toda a sua vida para aperturbadora questão da existênciahumana. Ele se sentia prisioneiro dascontradições da vida e de seus dile-mas: viver de acordo com sua posiçãosocial ou viver como um simples cam-ponês; aproveitar dos gozos senso-riais, porém submeter-se a seu domí-nio; cuidar de sua família enquantotem necessidade de solidão; entregar-se à heresia ou à piedade ortodoxaprofunda. Existiria uma saída? Toda asua vida foi uma busca nesse sentido!

Apesar de seu temperamento difí-cil, ele foi admirado por muitos. Suasobras foram publicadas no mundotodo e continuam sendo lidas e apre-ciadas. Alguns de seus romances fo-ram adaptados para o cinema.

Leon Nikolaievitch Tolstoi nasceudia 28 de abril de 1828, o segundo decinco crianças. Sua mãe, a princesaVolkonskaia, morreu quando ele ti-nha dois anos e seu pai, o conde N. I.Tolstoi, morreu quando ele tinhanove anos. Junto com seus irmãos e

irmãs, ele foi criado por uma tia, umamulher carinhosa e excelente educa-dora que, por assim dizer, “inflamounele o amor ao próximo”. Ele cresceuna propriedade paterna como umnobre afortunado.

Depois de seus exames e três anosde estudos universitários, ele retornaa suas terras e se consagra a explorá-las. Em 1851, liberta seus camponesesda servidão, mas suas idéias não sãocompreendidas. Para conseguir umcontato direto com os camponeses,ele viaja pelo Cáucaso. Permanece umperíodo entre os cossacos, os quaisviviam muito perto da natureza e queele acha muito diferentes das pessoas“civilizadas” de seu próprio meio.

Ele põe tudo em dúvida

Em setembro de 1851 aparecemInfância, seu primeiro relato, que fazparte de uma trilogia, depois Adoles-cência (1854) e Juventude (1857).Quando moço, ele escreve num jornalonde descreve as situações complica-das e muitas vezes desconcertantesque atravessa. Ele tenta, assim, aplicara sentença “conhece-ti a ti mesmo”.Durante aqueles anos, permanecemuito introvertido. Ele põe tudo emdúvida, inclusive a si mesmo. Nocomeço de seu jornal, fala com fran-queza de seu temperamento incons-tante e também do despertar de seussentidos. Por vezes moralizador, re-preende-se fortemente e busca conti-nuamente melhorar.

P

Tolstoi arando.

Ilya Repin,

1844-1930.

Em Adolescência (1854), ele escre-ve: No decorrer do ano em que leveiuma existência solitária e virtuosa, in-teiramente concentrada sobre mimmesmo, eu me fiz perguntas abstratassobre o destino do homem, sobre o fu-turo, sobre a imortalidade da alma.Meu espírito, fraco e infantil, ocupava-se, com o zelo da inexperiência, em re-solver perguntas às quais só podiam res-ponder homens que haviam alcançadointeriormente os níveis mais elevados.

Tolstoï tomou parte na guerra daCriméia. Ele ficou muito afetado com

isso e horrorizado pelas maldades eatrocidades que daí resultaram, e ascondenou violentamente. Em 1856,abandona o exército e, um ano depois,escreve: Ontem, uma conversa sobre odivino e a fé deu-me a surpreendenteidéia de me consagrar à sua realizaçãoem minha vida. A idéia de fundar umareligião que correspondesse ao nívelatual dos seres humanos, uma religiãocristã purificada dos dogmas e da mís-tica, uma religião prática. Ele só se in-teressa pela vida e pelo sentido que elapode ter; para ele, a questão principalé: como viver da justa maneira?

Ele cria uma escola e ele mesmo ensina

Progressivamente ele se aperfeiçoaem sua profissão de escritor. Em 1856,começa a escrever a história de um ca-valo e descreve o comportamento deum rebanho pouco antes de ser con-duzido ou abatedouro. Ele mostrasua sensibilidade e sua compreensãodos sofrimentos dos animais. Não éde se surpreender que tenha se torna-do vegetariano.

Durante esse tempo, os russosafortunados interessam-se pelo queocorre no estrangeiro, pelo progressoda cultura e das técnicas ocidentais.Com essa idéia em vista, Tolstoi, em1857, vai para a Suíça, a França e a Ale-manha. Ao retornar, estabelece um ex-tenso programa pedagógico para osfilhos de seus camponeses. Funda umaescola, ensina a classe e cria o que foichamado de abecedário popular, umlivro de ensino elementar que se espa-lhará, mais tarde, por toda a Rússia.Em 1860, sai do país para aprofundar

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Desenho

anônimo de

Tolstoi, estudante

na universidade

de Kazan, Rússia.

suas visões pedagógicas. Em 1862 –com trinta e quatro anos – ele se casacom uma jovem de dezessete anos,Sofia Andrejevna Behrs, que será seuapoio indispensável. Eles terão oitofilhos. Porém, quando Tolstoi colocacada vez mais em cheque seu estilo devida, as relações do casal se tornammais difíceis. Ele começa por consa-grar-se à escrita de longos romances,

como Guerra e Paz, Anna Karenina eRessurreição. Todos apresentam umaspecto autobiográfico e social, eabordam a questão de saber comodevemos viver, assunto que sempre opreocupou.

O ideal em conflito com o caos interior

À media que envelhece, ele se focacada vez mais sobre o problema da fé.Para ele, a fé implica três deveres:obrigações perante si mesmo, obriga-ções perante seu próximo e obriga-ções perante Deus. Esse ideal colidecom um sentimento de dilaceramentointerior: Por que tudo é tão belo emmeu espírito e se torna tão feio no papel e em minha vida?

Como te chamas?, perguntam-me.Pensam que me prendo a um nome,mas isso não faço.Desprendi-me de tudo,não tenho nome, nem lugar, nem pátria.Absolutamente nada.

Qual é meu nome? Homem!

Qual é minha idade?Não conto os anos; não posso contá-los,pois sempre fuie sempre serei.

Quem é teu pai?Não tenho nem pai nem mãe.Deus é meu pai ea terra, minha mãe.

Ah, contigo, não há nada a dizer!

Peço-te também para não falarescomigo.Tu me incomodas com tua fala.

Para onde vais?

Para onde Deus me leva.

(Extraído de Ressurreição, de Leon Tolstoï)

33

Para propagar suas convicção empúblico, ele faz aparecer rapidamente,um após o outro, Confissão (1879),Crítica da religião dogmática (1880),Concordância e relatos dos quatro evan-gelhos (1880), e O que acredito (1883).Confissão é o relato de seu combateinterior para se libertar da Igreja. Eleataca de frente o dogmatismo da Igrejaortodoxa. Era preciso muita coragem,pois era uma Igreja de Estado. A pu-blicação de seus escritos é finalmenteproibida e Tolstoi faz, ele mesmo, có-pias para difundi-los. Em Confissão,ele escreve: Veio-me à mente que só vi-vo se creio em Deus. Agora como ou-

trora: só preciso pensar em Deus evolto a viver. Basta esquecer-me delepara perder a vida. Conhecer Deus eviver são a mesma coisa. Deus é a vida.

Eu creio que Ele está em mim

Tolstoi formula sua fé da seguintemaneira: Acredito em Deus, em quemvejo o espírito, o amor e o princípio detudo o que é. Eu acredito que Ele estáem mim, como eu estou n´Ele. Acre-dito que a vontade de Deus jamais seexpressou tão claramente quanto noensinamento de Cristo. Acredito que osentido da vida consiste, para cada um

34

Página de

Juventude, romance

autobiográfico de

Tolstoi, 1857.

35

de nós, em fazer crescer o amor deDeus. No livro O que acredito, eleafirma: Cristo não determina nenhu-ma vida pessoal após a morte, porémuma vida comum integrada ao presen-te, ao passado e ao futuro da humani-dade inteira, a vida do filho do ho-mem. Dar um sentido, qualquer queseja, à vida pessoal é um erro se não forfundado na renúncia do eu em prol doserviço ao homem, à humanidade, aofilho do homem. E mais adiante:Cristo nos chama não para algo deruim, mas para um mundo melhor doque este[...] Ele ensina uma vida onde,sem falar da libertação da perda davida pessoal, haverá aqui, nestemundo, menos dor e mais alegria.Cristo, que revela seu ensinamento,diz que o verdadeiro interesse domundo é esquecer a vida do mundo.Tolstoi está, aqui, muito próximo daidéia de que o eu não pode adquirir asalvação. O homem deve buscar umcaminho onde ele nada reclama para oeu. É sobre essa única senda que alibertação é possível. Tolstoi esforçou-se por colocar essa concepção em prá-tica mediante seus atos, liberto detodas as impurezas.

À medida que envelhece, ele levauma vida sóbria e retirada como, se-gundo ele, convém a um crente. Elerenuncia em sua maior parte a seusbens e se torna vegetariano. Permane-ce em contato com sua família, porémse retira, de tempos em tempos, parauma casa sem conforto, nas vizinhan-ças de seus domínios. Sua posição reli-giosa atrai muitas pessoas com as mes-mas opiniões, que se autodenominam“tolstoianos”, formam comunidades,recusam ter de lidar com o Estado enão pagam seus impostos. Muitos sãoperseguidos ou aprisionados. Porém,por causa de sua grande popularidade,o Tsar poupa Tolstoi. Muito rapida-

mente, depois da tomada do poderpelos bolcheviques, esses grupos deoposição, como os de Tolstoi, são ex-terminados. Mais tarde, em Purleigh eWhiteways, na Inglaterra, foram esta-belecidas comunidades tolstoianasonde se tentou praticar um comunis-mo puro.

“...o que Deus escreveu no coração humano”

Suas opiniões religiosas aparecemclaramente em seu romance Ressurrei-ção. Ele escreve: Seu extravio provémdo fato de que os homens tomam comolei o que não é verdadeiro. Por outrolado, o que Deus escreve em seus cora-ções eles não aceitam como lei. Esseromance dá oportunidade à Igrejaortodoxa de expulsar Tolstoi de suasfileiras em 1901. No mesmo ano, elerecusa o prêmio Nobel de literatura.Durante seus últimos dias, já não querser nada senão servidor de Deus. Eleestá cercado de muitos discípulos, masse considera sempre um pesquisador.Em abril de 1910, escreve a um cam-ponês: A vida me agrada desde quepossa cumprir o testamento de Cristona medida de minhas forças. Isso signi-fica amar a Deus e a meu próximo. Eamar a Deus significa amar todos oshomens como amamos nossos irmãos eirmãs. Isso, e somente isso, é minha meta.

Nessa época Tolstoi se retira cadavez mais da sociedade. No final, elerenuncia a suas posses e abandona fa-mília, cultura e discípulos. No dia 7 denovembro de 1910, falece em conse-qüência de uma pneumonia. Em suacarta de adeus, declara: Não posso vi-ver no conforto e faço como os idososde meu tempo tinham o hábito de fa-zer: abandonavam a vida do mundopara passar seus últimos dias na solidãoe na paz.

36

A noite caía e acediam-se as velas. Rabi José disse: “Jehir Or, Faça-se Luz!Porém o que é luz? Ela alumia e me sinto iluminado. O escuro nos pressionapesadamente, nos aprisiona ao mundo do mal ao nos mostrar, por exemplo,um mundo que não aceita como verdade o que nossos sentidos percebem.Pode haver luz numa sala, mas, em nós mesmos, é a escuridão. E se a eterni-dade brilha em um ser, a sala pode estar no escuro, no entanto ela não deixade ser iluminada pela Luz do mundo”.

“Cada alma humana é uma parcela de Deus”

Como o rabi contava

37

saddik é uma denominação hassídi-ca para um líder espiritual de umgrupo de hassidim. Quando um tsad-dik fala, ele sempre escolhe um assun-to sobre a existência comum paramostrar a ligação com a eternidade eexplicar o sentido da vida. No meio doséculo XVIII surgiram na Ucrânia, naBielo-Rússia e na Polônia, toda espé-cie de relatos hassídicos que refletem asabedoria dos tsaddikim e a vida nareligião judaica. O hassidismo tem porfundamento a religião hebraica e apa-receu sob a forma de uma corrente re-formadora que devia conduzir à expe-riência espiritual do divino. Ele se de-senvolveu como oposição ao formalis-mo religioso esclerosante. Foi especial-mente às classes inferiores sempre pre-sas em situações difíceis que o hassi-dismo voltou a dar uma vida religiosa.O escritor e filósofo Martin Buber(1878-1965) define o hassidismo comouma doutrina relacionada essencial-mente a uma vida cheia de entusias-mo, a uma alegria fervorosa. Buber ex-plica a origem do hassidismo e se es-força por revivificá-lo. Sobre essa ori-entação ele dá uma concepção vivente,até para pessoas que não são judias.

A centelha divina se sente no exílio

O fundador do hassidismo no sécu-lo XVII, Israel bem Eliezer, é conheci-do sob o nome de Baal Shem Tov(aquele que leva o bom nome) ou BaalShem. Para ele, a oração que se elevado coração é a resposta do servidor aochamado de Deus. Ele ensinava quetudo, embaixo como em cima, é umaunidade. Além disso, ele afirmava co-mo a Tabula Smaragdina: Assim comoé embaixo também é em cima, e assimcomo é em cima também é embaixo.Para ele, os homens são responsáveispela criação e por sua libertação. A

shekhina, a centelha divina, prova emcada um de nós o suplício de um con-tínuo exílio. Todos os seres humanossão habitados por uma alma que seextraviou. Em muitos seres, ela perma-nece e, passando de forma para forma,se esforça por se realizar. Aquela que nãoconsegue se purificar permanece enre-dada no “mundo da confusão”. Essaidéia autenticamente gnóstica corres-ponde às palavras de Paulo na Epístolaaos Romanos (8,19): A criação aguar-da com ardente expectativa a manifes-tação dos filhos de Deus.

Não se conhece nenhum escrito deBaal Shem. Também não existia nenhum“aprendizado” racional para o grupo,em rápida expansão, de seus adeptos.O mais importante era o ensinamentooral e sobretudo a atitude de vida deBaal Shem, assim como a de seus cola-boradores. Essas eram as linhas dire-trizes daqueles que queriam seguir ocaminho. Eles mostravam aos discípu-los que o coração “devia inflamar-se en-tregando-se a Deus”, a fim de transcen-der o tempo e viver verdadeiramente“aqui e agora”. “A consagração da vi-da diária” é uma prática tipicamentehassídica, segundo Martin Buber.

Aceitação do sofrimento na alegria

Entre os hassidim, trata-se sobretu-do de ação. Todos os que fazem verda-

O Baal Shem

retorna. H.N.

Werkman

(1882-1945).

Stedelijk

Museum,

Amsterdam.

Os primeiros cristãos, assim comoos cátaros, reconheciam a perfeitaigualdade do homem e da mulher.Não era o caso do hassidismo:uma mulher não era autorizada aestudar as santas escrituras, edevia submeter-se totalmente aohomem. Filmes e livros tratamdesse aspecto do hassidismo.

T

deiros esforçoschegam direta-mente à contem-plação, à Luz.Para que isso sejapossível, Deus re-tirou-se de suacriação a fim deque, através dela,mediante um de-sejo consciente,cada um o apre-

enda e o ame. Na criação decaída seencontram as centelhas da divindade(shekhina) e os seres humanos semprepodem, mediante sua vida, conseguir sereligar a seu Criador, alcançar Deus.Os hassidim comprovam isso cada diae conhecem uma imensa alegria inte-rior. Apesar da doença, da pobreza eda morte dos que eles amam, é na ale-gria que aceitam o sofrimento. Devoresponder-te que jamais me aconteceude sofrer, disse um tsaddik. Seus alu-nos, no entanto, sabiam que haviamuito desgosto e miséria em sua vida,porém compreendiam suas palavras.

Essa alegria viva, essa aceitação lúci-da, eles a exprimiam também pela dan-ça. Os hassidim dançavam de alegria ede dor, pois sabiam que cada passo eranão somente uma prece por auxílio ereconhecimento, mas também umpoderoso e luminoso segredo dotadode força mágica. É o que Davi expres-sa em seus salmos. Quando pronunciasuma palavra divina, penetra com todoo teu corpo nessa palavra, ensinavaRabi Moshé de Kobryn. Um alunolhe perguntou: Como o grandehomem pode entrar no pequeno? Elerespondeu: Nós não falamos daqueleque se crê maior que a palavra.

A compreensão do aluno

A Palavra que se eleva no Espírito é

uma arca de Noé que pega e leva oservidor no caminho. Um aluno quenão sabia como se preparar para setornar um servidor foi mandado em-bora por Rabi Smelke de Nikolsburg,para uma hospedaria de uma cidadeafastada. O aluno observou o hospe-deiro taciturno que, com o maior cui-dado, esfregava louças e utensílios,enquanto permanecia mergulhado naoração. Então o aluno compreendeu.E Rabi Smelke explicou a seus alunosque o homem deve ser como umreceptáculo que recebe deliberada-mente o que lhe é destinado, sejavinho ou vinagre. Essas palavras refle-tem a doutrina de Baal Shem: Pensaque és unicamente um receptáculo eque teus pensamentos e tuas palavrasrepresentam o mundo em expansão. E,quando aceitas em teus pensamentos etuas palavras a Luz de Deus, que tuaprece seja: Faça que a abundânciacheia de bênçãos do mundo do pensa-mento aflua sobre o mundo da pala-vra. Pois nada no mundo se encontrafora da unidade divina.

O amor é o bem mais elevado paraos hassidim. O amor de Deus e, é cla-ro, o amor de todas as criaturas. Esseaspecto de sua espiritualidade apareceatravés de todos os relatos destinadosa sustentar os pesquisadores. Um paiveio se queixar a Baal Shem que seufilho era tarado e anormal, Baal Shemrespondeu: “tenha mais amor”.

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Sansão e o leão.

Skorina, Rússia

branca.

É somente a observância sem distinçãode todas as ações, é somente a dedica-ção da vida comum a Deus, como porexemplo, os altos e baixos, somente aconsagração das ligações naturais como mundo que liberam força. É unica-mente pela libertação diária que sealcança o dia da libertação suprema.

Cada alma é uma centelha da alma original

Um dia alguém perguntou a RabiSmelke como observar o mandamentode amar a seu próximo, se lhe haviamfeito mal. Foi-lhe respondido: Com-preende bem a palavra: ama a teu pró-ximo como a ti mesmo. Afinal, todas asalmas são uma única alma. Cada umaé uma centelha da Alma original, queé tudo em todas, como tua alma estáem todas as partes de teu corpo. Podeacontecer que tua mão se engane e quedê um golpe em ti mesmo. Tomarias,então, um pau para corrigir tua mãoporque a ela faltou inteligência, e aomesmo tempo agravar o teu sofrimen-to? Acontece o mesmo com o teu pró-ximo, com o qual fazes uma únicaalma, e que te prejudica por falta deinteligência. Se reages contra ele, agra-vas mais o teu sofrimento. O aluno in-sistiu: Mas, se vejo alguém que se irri-ta contra Deus, como poderei amá-lo?Rabi Smelke retorquiu: Não sabes tuque a Alma original provém de Deus eque cada alma humana é uma parcelade Deus? E não tens piedade de verque uma dessas santas centelhas foipega na armadilha e vai asfixiar-se?

A via de retorno à vida original éuma evolução que exige paciência,doação de si e certeza contínua da fé.A um hasside que se queixava de que,apesar de todos os seus esforços paraaprender, de suas preces e de praticar abondade, não notava em si nenhumprogresso, foi respondido sob a formade parábola: De Elias aprendemos queo homem carrega a Torah como umboi o seu jugo e um burro o seu fardo.Veja como tiram o boi do estábulo pa-ra ir lavrar o campo e como o trazemde volta dia após dia. Nada muda paraele, mas o campo lavrado dá a sua co-lheita. A pura fé é transmitida e refor-

çada mediante a santa flama do desejoe sobretudo mediante a humildade.Em relação a isso nos é transmitida aseguinte parábola tradicional: Umaprendiz de ferreiro queria ser autôno-mo. Ele comprou uma bigorna, ummartelo, um fole e se pôs a trabalhar.Mas não conseguiu fazer nada. Entãoo velho ferreiro lhe disse: Tens tudo oque precisas, menos a centelha!

Em todas as suas ações, o homemsegue um objetivo. Baalschem ensina-va a seus alunos qual meta era a maiselevada que sua própria libertação, eque direção era preciso tomar paraalcançá-la. Martin Buber resumeassim essa doutrina: Cada um deter-mina o destino do mundo por suasações e gestos, e isso em uma medidaimpossível de ser concebida. Por todosos indivíduos, pelo homem realizado,por aqueles que nos guiam, o mundodeve ser completado. Eles são sempreaguardados com grande expectativa.

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Os tsaddikim eram os lideres dascomunidades hassídicas. A palavratsaddik é geralmente traduzida porjusto, mas significa: aquele que éjusto e sem mácula, aquele que éencontrado bom. O termo hassidimprovém de um grupo de judeus daPalestina, do segundo ou terceiroséculo após Jesus Cristo, que se opu-nham ao helenismo. Na Alemanhada Idade Média, existia um grupode místicos hassidim. Por volta de1700, houve na Polônia um movi-mento messiânico que reivindicavaa Cabala e se atribuía o hassidismo,em ligação com o movimento místi-co judeu de Israel bem Eliezer ouBesht, mais conhecido sob o nomede Baal Shem Tov, o Mestre domaravilhoso nome divino ou o possuidor do bom nome.

“A liberdade é um impulso interior que surge tão logo

limitações são impostas. Muitas vezes essa liberdade é um

bem natural, simples e evidente, porém pode também

ser um fardo inconveniente que é jogado fora de bom

grado e na esperança de aliviar o destino.”

(Nikolai Berdiaiev)