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1 Dilemas da responsabilização política na Europa oriental pós - 1989 Elitza Bachvarova Doutoranda / PPGHC/UFRJ Mestrado /The University of Chicago [email protected] Resumo A construção da cidadania e do estado de direito formam o ideário histórico dos regimes democráticos, constituindo tarefas que ganham urgência no decorrer dos processos de redemocratização. As políticas públicas através das quais a ‘democracia’ e/ou a ‘cidadania’ vem a adquirir sentidos práticos – política, econômica e socialmente – são previsivelmente variáveis, como resultado dos processos de transição e da estrutura das sociedades onde elas ocorrem. Até que ponto a transição traz uma mudança substancial nas relações de poder depende em grande medida do conteúdo das políticas de ‘accountability’ (responsabilização) e a elaboração do significado do passado se torna um fator importante com respeito ao efetivo exercício de poder dos cidadãos nos processos decisórios do seu país. Na Europa Oriental pós-1989 as lutas pela responsabilização tiveram impacto importante nas formas de lidar com o passado repressivo e na preferência dos governos de transição pela “lustração” como método de superar o legado do ancien régime com resultados bastante ambíguos para a consolidação democrática. Palavras-chave: Responsabilização, transição política, lustração. Abstract The constitution of citizenship and the rule of law form the historical ideals of democratic regimes, becoming critical during periods of re-democratization. The public policies through which 'democracy' and / or 'citizenship' come to acquire practical significance - politically, economically and socially – vary, predictably, according to the concrete transition processes and the structure of the societies where they are articulated. To what extent the transition brings a substantial change in power relations depends largely on the policies of 'accountability,' with the elaboration of the meaning of the past being an important factor for the effective exercise of power by the citizens in the decision-making of their country. In post-1989 Eastern Europe, the struggles for accountability have had a major impact on the mode of dealing with the political past and the long political repression. These struggles bear on the successor governments' preference for “lustration” as a method for overcoming the legacy of the ancien régime. The result of such choices for the consolidation of democracy in the region has been highly controversial. Key words: Accountability; political transition; lustration.

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Dilemas da responsabilização política na Europa oriental

pós - 1989

Elitza Bachvarova

Doutoranda / PPGHC/UFRJ Mestrado /The University of Chicago

[email protected]

Resumo

A construção da cidadania e do estado de direito formam o ideário histórico dos regimes democráticos, constituindo tarefas que ganham urgência no decorrer dos processos de redemocratização. As políticas públicas através das quais a ‘democracia’ e/ou a ‘cidadania’ vem a adquirir sentidos práticos – política, econômica e socialmente – são previsivelmente variáveis, como resultado dos processos de transição e da estrutura das sociedades onde elas ocorrem. Até que ponto a transição traz uma mudança substancial nas relações de poder depende em grande medida do conteúdo das políticas de ‘accountability’ (responsabilização) e a elaboração do significado do passado se torna um fator importante com respeito ao efetivo exercício de poder dos cidadãos nos processos decisórios do seu país. Na Europa Oriental pós-1989 as lutas pela responsabilização tiveram impacto importante nas formas de lidar com o passado repressivo e na preferência dos governos de transição pela “lustração” como método de superar o legado do ancien régime com resultados bastante ambíguos para a consolidação democrática. Palavras-chave: Responsabilização, transição política, lustração.

Abstract

The constitution of citizenship and the rule of law form the historical ideals of democratic regimes, becoming critical during periods of re-democratization. The public policies through which 'democracy' and / or 'citizenship' come to acquire practical significance - politically, economically and socially – vary, predictably, according to the concrete transition processes and the structure of the societies where they are articulated. To what extent the transition brings a substantial change in power relations depends largely on the policies of 'accountability,' with the elaboration of the meaning of the past being an important factor for the effective exercise of power by the citizens in the decision-making of their country. In post-1989 Eastern Europe, the struggles for accountability have had a major impact on the mode of dealing with the political past and the long political repression. These struggles bear on the successor governments' preference for “lustration” as a method for overcoming the legacy of the ancien régime. The result of such choices for the consolidation of democracy in the region has been highly controversial. Key words: Accountability; political transition; lustration.

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1. O Pano de Fundo Político

O passado não está morto. Nem mesmo já passou1 .

William Faulkner

As instituições da justiça de transição abordam formas sistemáticas de violência, que foram

implícita ou explicitamente autorizadas no regime anterior, os crimes e abusos cometidos em

grande escala por um grupo social significativo. Por isso, a escala e a identidade dos

perpetradores e das vítimas envolvidas são de importância crucial. Um problema central

associado a este decorre do envolvimento maciço de todos, ou da aquiescência, que é típico de

uma repressão política que foi sistemática e prolongada, mas não muito violenta. Esta

situação, inevitavelmente, envolve uma cooptação generalizada, quando não a concordância

explícita dos cidadãos. Isso é especialmente crítico para o caso dos antigos regimes

socialistas.

Lidar com um passado de violência e repressão nunca é fácil, mas no oecumene da ex-União

Soviética, após a queda do Muro de Berlim em 1989, as questões de responsabilização que

foram levantadas estão longe de ser resolvidas, quer em termos de sua abordagem como de

seu objetivo, e muito menos no que diz respeito às respostas. O colapso daqueles regimes, na

ausência manifesta tanto de uma intervenção militar, como de uma oposição organizada e/ou

uma sociedade civil desenvolvida2, permanece como um grande enigma para leigos e

estudiosos, assim como o é a obscura transição, apesar da volumosa literatura sobre esses

temas.

Além disso, a transição envolveu muito mais do que a reconstrução política e institucional de

uma nova governança e do estado de direito. Ela trouxe reformas revolucionárias na

economia, introduzindo um “novo” princípio constitucional através da re-consagração da

propriedade “privatizada”. Esta foi, então, uma “transição” que, na terminologia antiga, seria

uma “revolução”, por qualquer ótica. E, em um gesto de nostalgia, o colapso foi até assim

batizado – como na sua versão tcheca, mais conhecida como a “revolução de veludo”. Na

Alemanha, houve um golpe de estado “palaciano” que começou em 9 de Novembro de 1989 –

o dia do destino (“Schicksaltag” em alemão) – quase 200 anos após o 18 Brumaire de

Napoleão Bonaparte, que acabou com a Revolução Francesa, 70 anos após a rebelião

Espartaquista liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, e meio século após a

1 “The past is not dead. It is not even past”. W. Faulkner, Réquiem for a Nun. 2 A exceção foi a Polônia e seu movimento de oposição Solidarnosc (Solidariedade), na década de 1980. Mas foi uma exceção apenas a esta regra, e certamente não constituiu nenhuma exceção quanto à dinâmica da queda daquela que foi a única ditadura militar socialista da região.

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Kristallnacht. Não houve derramamento de sangue (exceto na violenta desintegração da

Iugoslávia e na execução de N. Ceausescu na Romênia), o que era sem precedentes na história

da região e, por outro lado, houve uma revolução sem “revolucionários” ou “cidadãos”. Mas

se os heróis não eram fáceis de identificar, não se tinha qualquer dúvida sobre quem era o

“inimigo do povo” – de Berlim a Ulan Bator na Mongólia, o clamor era pelo fim da polícia

secreta e pela abertura dos dossiês pessoais, que o regime meticulosamente compilou. No

entanto, apenas o arquivo da Stasi3 da Alemanha Oriental tornou-se prontamente disponível,

após ter sua sede principal tomada de assalto no início da transição. Todos os demais países

levaram quase duas décadas para ter acesso parcial a esses arquivos que, do início até hoje,

estiveram no centro de todas as iniciativas de justiça transicional – desde julgamentos e

lustrações, passando por comissões da verdade e inquéritos históricos bilaterais, por intrigas

políticas, pela luta partidária, pela chantagem e até por um próspero mercado de influência – 3 O Império Oculto da polícia secreta da Alemanha Oriental: Ministério da Segurança do Estado, (Sigla: Stasi) Missão: "Criar e manter um sistema para fazer uma vigilância total sobre tudo". Poderes: O Chefe de Segurança, o último dos quais foi Erich Mielke, antes de ser deposto e preso, tinha a totalidade das Forças Armadas à sua disposição e tinha o direito de dar ordens a funcionários públicos em todo o país. Número de agentes: 90 mil em tempo integral, além de cem mil a um milhão em tempo parcial. Mais de 3.000 operadores abriam cartas e escutavam conversas telefônicas. Orçamento: O equivalente a US$ 2 bilhões em 1989, cerca de 1,3% do orçamento nacional. Arquivos: Mais de seis milhões de registros, abrangendo mais de um terço da população de 17 milhões, além de cerca de dois milhões de registros sobre os alemães ocidentais. O registro (dossiê) relativo a uma única pessoa, por exemplo, podia conter mais de 50 volumes. Outros bens: 76 mil pistolas e 125 mil submetralhadoras. Mais de 12 mil automóveis. Status: Colocado fora de existência através de votação em 13 de dezembro de 1989. Por comparação, a antiga União Soviética tinha 17 vezes a população da Alemanha Oriental, mas apenas 5,4 vezes mais oficiais de carreira (488 mil) no seu Comitê de Segurança do Estado, ou KGB, sendo que os números soviéticos incluíam guardas de fronteira e agentes de inteligência atuando no estrangeiro, bem como agentes domésticos. Neste caso, o tamanho da rede do Stasi e a profundidade da sombra que lançava sobre os cidadãos dão uma dimensão própria à experiência da Alemanha Oriental. De todos os sistemas de segurança interna que operavam na Europa Oriental comunista, nenhum conseguia penetrar mais profundamente no coração da vida das pessoas, coletar informações mais abrangentes e semear uma desconfiança mais profunda do que o Stasi. Depois do exército, o Stasi foi o segundo maior empregador da Alemanha Oriental. "Considerando só os números, o que aqui existia aqui foi maior do que o que estava em operação durante a era nazista", disse o dissidente Pastor Gauck, que chefiou a comissão nomeada pelo governo para guardar os arquivos do Stasi que se referiam à polícia secreta nazista, a Gestapo. "O nível de crueldade não foi pior, mas a penetração nos elementos básicos da sociedade foi bem mais organizada. Havia mais pessoas e mais dinheiro investido no aparato de vigilância." O que fez o Stasi tão onipresente - e tão único - foi o seu sucesso no recrutamento de um exército de informantes em tempo parcial, estimado como tendo entre cem mil e um milhão de cidadãos comuns - advogados, médicos, escritores, alunos, amigos, vizinhos, e mesmo cônjuges - que alimentavam a sede insaciável da organização por informações. Eles forneciam detalhes que vão desde a localização da tábua de passar roupa no apartamento da vítima, até o que uma dissidente vestia quando saiu para jogar fora o lixo, ou os mais profundos segredos médicos ou sexuais de uma pessoa. Na verdade, a lista daqueles que traíram amigos, colegas ou parentes ao passar informações ao Stasi contém os nomes de muitos dos que antes eram admirados como heróis, por atitudes contra o regime de Erich Honecker que, na época, pareciam corajosas e arriscadas. "A eficiência dessa penetração foi muito alemã - perfeita, exata", disse Gauck em entrevista ao The Times. Fontes: Dentre outras, o Los Angeles Times, Associated Press, Nezavisimaya Gazeta, Izvestia, Argumenty i Fakty, TASS; a Federal Research Program Division da Biblioteca do Congresso dos EUA /Area Handbook series, 1971-90; TYLER MARSHALL. Regional Outlook - “Secret Files Haunting Eastern Europe”, The New York Times, 21 de janeiro de 1992; (MAIER,Ch:1997)

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enquanto, ao mesmo tempo, diminuía o interesse popular por este monumento faraônico à

desumanidade burocrática militante, embora este nunca se apagasse de todo.

Estes são alguns dos referenciais da história recente, no decorrer da qual vários setores da

população e as elites da transição do Leste Europeu tentaram entender o passado e o presente,

que pareciam difíceis de desenredar da teia formada pelas relações sociais herdadas do

passado, os mitos e os hábitos políticos. De acordo com as circunstâncias específicas,

iniciativas conhecidas de justiça transicional, com seu foco nas violações dos direitos

humanos e nas comissões da verdade supra-políticas, não eram nem populares nem fáceis de

organizar dentro do processo de mudanças expressivas na sociedade, então em curso.

É neste contexto político muito complexo e confuso que podem ser analisadas alguns

desenvolvimentos como a lustração e outros, visando abordar a repressão e as injustiças do

antigo regime.

Lidar com o passado na Europa Oriental, especialmente o passado mais recente, tem

significado menos uma busca para desvendar os fatos históricos ou a verdade das vítimas, do

que uma estigmatização do passado e dos grupos mais identificados com os seus males. Uma

busca e luta que, paradoxalmente, envolve partes das elites que se beneficiarem em cheio dos

privilégios exclusivos dos quais gozavam antes de 1989.

Após 1989, as escolhas das abordagens de justiça transicional e, em particular, a preferência

pela lustração, foram condicionadas pela natureza da repressão comunista, pela legitimidade

do antigo regime, pela estrutura e pelo lugar ímpar ocupado pela polícia política na vida das

pessoas de todas as classes sociais, antes de 1989. Consequentemente, a questão do livre

acesso aos dossiês secretos dos cidadãos impactou decisivamente a experiência e o imaginário

político das sociedades do Leste Europeu4.

Diferente da vitimização sob regimes autoritários (Apartheid, juntas militares) que resultaram

em assassinatos, torturas e desaparecimentos, como Tina Rosenberg (1996) coloca, "a

repressão na América Latina era profunda, na Europa Oriental e Central era extensa". Na

América Latina, um grupo claramente definido de vítimas (os torturados, desaparecidos ou

assassinados) sofreu nas mãos de um grupo fácil de identificar de vitimizadores (membros do

exército e da polícia, esquadrões da morte). Como os abusos dos direitos humanos da era

comunista eram menos sangrentos e mais insidiosos do que os crimes dos regimes ditatoriais,

um sentimento de culpa e desconfiança generalizada penetrou no tecido das sociedades do

4 Apesar dos muitos mitos associados aos arquivos pessoais da polícia, Lavínia Stan argumenta convincentemente que o acesso aos arquivos secretos permite que cidadãos comuns reescrevam sua história pessoal, num processo que vai um passo além dos relatórios finais divulgados pelas comissões da verdade.

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Leste Europeu, criando um clima que os métodos de justiça transicional, como a lustração,

não fizeram nada para dissipar. Na medida em que a maioria dos cidadãos tinha apoiado

tacitamente os regimes, embora todos tivessem experiência com a arbitrariedade do poder do

Estado e muitas vezes se vissem cúmplices, de bom grado ou não, das atividades oficiais, a

clara identificação de quem eram as vítimas mantêm-se altamente problemática. Com

algumas exceções, tais como os processos criminais contra ex-guardas e oficiais da Alemanha

Oriental por ter matado pessoas que tentavam atravessar o Muro de Berlim, ou os processos

contra a liderança romena, a questão principal era, e ainda é, o conluio de massa (o silêncio,

as denúncias, a colaboração), e não tanto crimes individuais ou graves violações de direitos

humanos. Não há alegações recentes de massacres e desaparecimentos; por outro lado,

práticas como a tortura têm uma longa história burocrática, e não apareceram como um novo

instrumento de terror de Estado pela primeira vez nos países do Leste Europeu. (Cohen

1995:42)

Os esforços da justiça transicional foram ainda mais complicados pelo caráter de massa dos

partidos comunistas do leste europeu, cujos membros correspondem em média a 10 por cento

da população adulta total, ou 15 por cento da população ativa. (L. Stan 2006:396) Se

considerarmos também os parentes imediatos dos membros do partido, entre um terço e a

metade de todos os europeus do Leste estavam intimamente ligados ao partido-estado, e

tinham interesse em apoiar o regime e assim continuar usufruindo dos privilégios e benefícios

significativos da filiação partidária. Como observou Enriquez-Gonzalez (2001:222), "isso

acarretou um sentimento difuso de cumplicidade social com as autoridades. Cumplicidade não

significa consentimento, mas implica numa colaboração efetiva que fomenta o relativismo

moral." As estruturas da polícia secreta que operavam na Europa Oriental comunista eram

todas modeladas nos padrões da KGB soviética e, em muitas atividades, eram diretamente

subordinadas à mesma. Elas englobavam departamentos de inteligência doméstica, incluindo

departamentos de propaganda e desinformação (assim referidos nos documentos internos),

espionagem internacional e contraespionagem. Os serviços secretos eram incumbidos de

proteger a nomenklatura dirigente dos cidadãos comuns. Com base num extenso trabalho

feito nos arquivos da polícia búlgara, M. Methodiev produziu um estudo histórico pioneiro

onde analisa a evolução da organização para aquilo que ele chama apropriadamente de

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"máquina de legitimização" do regime. Depois de 1989, os serviços secretos comunistas

foram formalmente desmantelados5.

A questão do que fazer com a vasta parcela da população que era membro do partido e que

estava em posições de comando foi debatida em cada país do leste europeu. A lustração foi a

opção preferida.

2. Algumas Experiências com a Lustração

O “bom expurgo” não existe, mesmo que seja polidamente chamado de ‘lustração’.6

Timothy Garton Ash

De acordo com E. Brahm (2004), o termo "lustração" deriva do latim para "a purificação pelo

sacrifício ritual." Na literatura da justiça transicional, ele se refere a medidas legais através

das quais aqueles associados ao regime passado são desqualificados em massa, e não

individualmente. A prática foi amplamente utilizada na Europa Oriental pós-soviética, onde a

maioria dos países adotou alguma forma de lustração para excluir de cargos públicos, por

períodos de tempo variados, ex-funcionários do partido comunista e aqueles que colaboraram

com a polícia secreta. Membros do partido comunista, informantes da polícia e figuras

públicas comprometidas com o regime anterior eram os alvos da legislação de lustração. Os

processos mais abrangentes ocorreram na antiga Checoslováquia e na Albânia. No entanto, a

prática descrita como lustração ocorreu em outros contextos, desde expurgos após a II Guerra

Mundial na Europa até a proscrição dos membros do partido Baath7, instituída pelos Estados

Unidos após a invasão do Iraque em 2003.

A legislação de lustração foi destinada a fornecer um quadro legal para impedir que pessoas

ligadas ao antigo regime voltassem a exercer o poder, e tinha por objetivo simbolizar a

ruptura completa com o passado e o comunismo.

Uma vez que o critério para identificação das pessoas sujeitas à lustração tinha sido

estabelecido como uma categoria política, e não em virtude de crimes individuais, ou seja,

5 Muitas vezes, o fechamento do departamento político da polícia secreta foi, como no caso da Bulgária, uma iniciativa dos próprios partidos comunistas – devidamente renomeados como partidos socialistas – o que lhes permitia continuar a ser uma parte do processo de transição, quando não chegava a dirigi-lo completamente. Em toda a região, o arquivo secreto continuou a ser um pomo de discórdia entre a classe política, com medo de que suas redes de contatos antigas pudessem ser expostas e sofressem interferências. 6 There is no such thing as a good purge, even if it is politely called ‘lustration’. 7 Nenhum expurgo fora da Europa Oriental e da antiga União Soviética foi, entretanto, chamado explicitamente de ‘lustração’. A des-Baathificação no Iraque não foi intitulada dessa forma, embora tenha sido inspirada pelos programas pós-comunistas.

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"culpa por associação", outras formas genéricas de crime foram adicionadas. Diferentemente

de outras experiências com a justiça de transição na América Latina, África do Sul ou na

Alemanha pós-nazista, em alguns países da Europa Oriental as definições dos crimes muitas

vezes ultrapassavam a dimensão política, para incluir as dimensões econômica e social, a fim

de melhor refletir o abuso do poder pelas cliques dirigentes do ancien régime. Elas foram

concebidas para tornar mais aceitável a política de lustração, que em todos os lugares foi

altamente controvertida.8

Historicamente, "lustração" era o termo usado pelo serviço de segurança Checa, Statni

Bezpecnosti (StB), para realizar controles de lealdade dos cidadãos ao Partido Comunista,

durante os 40 anos em que esteve no poder. O "lustrace" pós-1989 foi ressuscitado para

descrever o processo de eliminação dos membros da velha nomenklatura e seus agentes e

colaboradores. Este "ritual de purificação", também foi chamado de ‘limpeza política’, como

nos infames “expurgos” stalinistas da década de 1930 ou naqueles feitos pelo Partido

Comunista após 1945, quando os regimes comunistas se estabeleceram nos países do Leste

Europeu. (Bertschi 1994; Cohen 1995:48-49)9.

Infelizmente, a questão mais importante - a de transparência no processo de privatização, que

praticamente pauperizou os países durante a transição, transformando o poder político de uma

parte da velha elite em poder econômico, manteve-se um "segredo público", fora de qualquer

responsabilização e controle público. Nesse clima, o processo de lustração foi muito

controvertido. O painel do Ministério do Interior Checo, encarregado de fazer as listas dos

nomes, designava as pessoas como "StB positivo" ou "StB negativo" sendo que o mecanismo

de seleção dependia das informações dos arquivos da infamada polícia. Como consequência, a

lista publicada continha os nomes de nada menos que 140 mil agentes da polícia secreta,

incluindo indiscriminadamente agentes, colaboradores, pessoas que se recusaram a colaborar

ou que foram chantageadas, e até vitimas. (Cohen 1995:26)

8 Por exemplo, o chamado Relatório Ruli responsabilizava dirigentes comunistas albaneses não somente por suas ações políticas, mas também pelos crimes econômicos perpetrados no país mais pobre da Europa. Uma leitura fascinante, o relatório documenta que, entre 1989 e 1990, a família do ditador Enver Hoxha armazenou "2 toneladas de carne, 7 toneladas de salame, 523 litros de óleo, 3,1 toneladas de manteiga, 321 litros de raki (aguardente), bebidas alcoólicas e vinho, 250 litros de cerveja, 5,3 toneladas de frutas e produtos cítricos, 114 quilos de azeitonas...” (L Stan 2006:392-393). Tratamento médico privilegiado, férias no exterior, entre muitas outras vantagens, estavam disponíveis apenas para os membros da nomenklatura e seus familiares. Os partidários da lustração apostavam na indignação popular, expondo assim os privilégios materiais das elites comunistas para conseguir apoio para os seus projetos de reforma. 9 Provavelmente, por causa das associações sinistras, a palavra lustração não foi traduzida nas línguas locais no resto da Europa Oriental onde esta política foi decretada e, portanto, ela tinha uma conotação de novidade e sofisticação.

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É, contudo, importante notar as diferenças entre ‘lustração’ e ‘expurgo’. Todos os programas

de lustração foram promulgados através de leis parlamentares - leis de lustração (dedicadas

especificamente à proscrição (vetting), como nos casos da Checoslováquia, Hungria, Polônia,

Bulgária, Albânia e Lituânia), leis eleitorais (como na Lituânia, onde as leis eleitorais tiveram

efeitos de lustração) ou leis de cidadania (como na Letônia e na Estônia, onde rigorosos

requisitos de cidadania negavam aos não-Bálticos de língua russa o direito de serem eleitos ou

nomeados para cargos públicos na nova democracia). Por contraste, os expurgos foram

iniciados através de decretos executivos ou de decisões adotadas e impostas por forças de

ocupação. Enquanto a legislação pós-comunista de lustração foi debatida e votada nos

parlamentos, os expurgos foram decididos sem consulta à oposição. A lustração é uma medida

administrativa e não-judicial para abordar o passado recente.

A diferença entre uma lustração decidida pelo parlamento e expurgos iniciados pelo executivo

é que é muito mais fácil mudar decretos executivos do que emendar uma lei que foi votada

por representantes de uma grande variedade de interesses. Outra diferença importante é que

todos os programas de lustração foram implantados com o objetivo explícito de fortalecer a

democracia, um objetivo que não é de forma alguma desejado pelos expurgos políticos.

Assim, o fato de que os programas de lustração foram promulgados durante as transições para

a democracia fez com que essas leis fossem amplamente divulgadas. Esse não foi o caso de

muitos expurgos promovidos por regimes não democráticos. Na Europa Oriental os lustrados

tiveram a possibilidade de recorrer aos tribunais em nível nacional e internacional, ao

contrário das vítimas de expurgos, cujas sentenças eram frequentemente definidas

liminarmente.10

Os estudiosos têm argumentado que as diferentes formas que a lustração tem tomado nos

diversos países foram influenciadas pela história do comunismo em cada um deles, e pela

natureza da transição.

De uma maneira geral, a lustração tem sido altamente insatisfatória com relação aos

resultados, no que diz respeito tanto ao avanço da causa de revelação da verdade como a da

responsabilização. Ela se propunha a resolver uma questão muito complexa – a da culpa

coletiva – por meios de punição coletiva, como apontado por grupos de direitos humanos

(Bertschi: 1994; Farley: 2003; Andrieu: 2010). Sem investigações independentes ou a

possibilidade de recurso contra os abusos e enganos, essa política resultava em condenação

10 L Stan Blog: http://laviniastan.wordpress.com/2010/12/

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imediata e não necessariamente por ações concretas.11. Além disso, as listas dos indivíduos

proscritos tinham de ser compiladas quase exclusivamente com base nos infames arquivos

policiais dos antigos serviços de segurança.

Como apontado pelos muitos adversários da lustração, o uso de dossiês policiais como a

principal fonte para identificar colaboradores é inaceitável porque: 1) a culpa ou inocência das

pessoas não é necessariamente atestada somente por eles, uma vez que eles são vulneráveis a

manipulação, e são suscetíveis à falsificação; 2) a colaboração com a polícia pode ter sido

forçada; 3) mais importante, os opositores, muitos dos quais ex-dissidentes que cumpriram

longos anos de cadeia, argumentam que a utilização dos arquivos policiais para orientar a

limpeza política permite que a polícia secreta acabe tendo a última palavra, num drama longo

e sinistro. (Farley: 2003; Cohen: 1995:48-49).

A chamada "descomunização" foi feita na Europa Oriental ad hoc, guiada pelos ventos

políticos do momento, e tanto os julgamentos como as lustrações se omitiram quanto às

questões mais amplas do passado comunista. O uso dos arquivos da polícia para a chantagem

política dos adversários tornou-se prática corrente.

Mas existem outras objeções mais sérias a esta experiência com a justiça de transição, com

implicações de longo prazo na política do leste europeu.

A lustração é um método particularmente inepto de revelar a verdade, e funcionava mais

como "policiamento do passado" (Cohen 1995). A simples divulgação dos nomes dos

colaboradores não é tão instrutiva como analisar em profundidade por que a colaboração de

fato ocorreu (Leebaw 2008). As leis relativas à verificação dos antecedentes (vetting laws) são

implantadas como instrumentos políticos. Elas são usadas para eliminar adversários políticos

dos governos emergentes. Vazamentos de informações no momento certo podem minar

candidaturas políticas lançando sombras sobre os adversários12. Para os ex-comunistas, o

11 Na Bulgária, as ex-autoridades foram de fato processadas nos termos da legislação de lustração por ter doado fundos búlgaros aos movimentos comunistas do terceiro mundo. Esta foi simplesmente uma decisão política, que não constituía um crime quando foi feita. 12 Na Polônia, por exemplo, muita lama tem sido jogada na política com base nos arquivos da polícia secreta. Os conteúdos dos arquivos da polícia secreta foram divulgados antes de terem sido devidamente avaliados por comissões independentes. Na corrida para a eleição presidencial de 2000 na Polônia, as figuras mais proeminentes do Solidarnosc, Lech Walesa e Aleksander Kwasniewski, ambos candidatos, foram acusados de serem colaboradores, antes de serem inocentados pela Corte de Verificação de Antecedentes (Vetting Court) da Polônia. Em fevereiro de 2005, a Polônia foi abalada quando o jornalista Bronislaw Wildstein publicou na internet uma lista não verificada com mais de 240 mil nomes de ex-agentes secretos da polícia política e da inteligência militar comunistas, de informantes secretos, de candidatos a cargos na policia, bem como de vítimas. A lista não distinguia entre perpetradores e vítimas, expondo assim todos os nela nomeados à suspeita de que haviam colaborado com os serviços de segurança do velho regime, e despertando a preocupação de que os dados incompletos pudessem ser usados para fins políticos ou vingança pessoal. Wildstein defendeu as suas ações como legítimas dizendo que "este não é o nosso passado, este é o nosso presente. Essas pessoas estão presentes e desempenham papéis importantes na nossa realidade," (Stan 2006:396; Cohen 1995).

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apoio à lustração não significa apoio a um reexame honesto do passado, mas principalmente

uma estratégia preventiva destinada a proteger suas carreiras políticas pós-comunistas,

tentando evitar medidas jurídicas e uma responsabilização individualizada mais radical13

(L.Stan: 2006:404).

Todas as formas de punição coletiva reproduzem características dos piores crimes do Estado,

afirma Cohen (1995: 27). Ao concentrar-se na "colaboração" com a polícia, ocorre uma eficaz

mudança política de foco, tirando-o da nomenklatura do partido – que claramente não era

formada por colaboradores, e sim pelos dirigentes e beneficiários do sistema – e levando-o

para os incipientes movimentos democráticos – cujos membros, em alguns casos, podem ter

sido implicados com a policia secreta, por bons ou maus motivos, (Farley: 2003). Esta se

provou uma estratégia eficaz para enfraquecer a oposição política, seguindo os velhos cânones

policiais de antes de 1989.

Outra falha do processo, relacionada à primeira, decorre da centralidade dos dossiês da polícia

secreta. As sociedades do Leste Europeu tendem a considerar os agentes secretos como mais

culpados e desprezíveis do que as autoridades comunistas, apesar do fato comprovado de que

era exclusivamente a nomenklatura que planejava as várias campanhas de repressão, tortura e

intimidações. A burocracia da polícia secreta apenas executava as diretrizes. Assim, enquanto

as demandas populares se dirigiam ao acesso aos dossiês pessoais compilados pelas polícias

secretas, os arquivos vitais do partido ficaram em segundo plano. O acesso a eles continua

sendo difícil.14 A estrutura do regime era tal que não permitia que os serviços de segurança se

tornassem independentes da hierarquia partidária e virassem um polo de poder mais

autônomo. A veracidade dos muitos mitos e meias verdades relacionados aos arquivos da

polícia vai levar anos para ser desvendada.15 O que pode claramente se perceber é que a

13 Na Bulgária, a "descomunização" foi iniciada num congresso do Partido Comunista, onde o partido se renomeou como "socialista". Mais tarde, o partido financiou a realização do único documentário sobre o campo de trabalhos forçados no país. Esta estratégia preventiva foi usada em várias ocasiões, e foi muito bem sucedida, especialmente porque os partidos "azuis" (de linha liberal-democrata) nunca investiram na produção cultural, exceto para produzir suas próprias memórias. 14 Os arquivos secretos contêm quase nada sobre os funcionários do Partido Comunista que planejaram a rede de espionagem dos próprios cidadãos. Quem foi o responsável por que, e a quem se reportava, é um tipo de informação que só pode ser obtido através do acesso aos arquivos do Partido e a verificação cruzada de múltiplas fontes de informação. Isso era tanto mais difícil porque na década de 1960 os partidos comunistas da Europa do Leste ordenaram a destruição de todos os arquivos secretos contendo material sobre informantes que eram membros do partido, e proibiu expressamente oficiais da polícia de abordar os membros do partido sem a aprovação da direção do partido (Methodiev: 2008). Posteriormente, a liderança do partido, e não a polícia secreta, passou a manter os registros dos membros do partido em contato com a polícia política ou espionando no exterior para ela. 15 Um dos mitos políticos mais importantes, visando intimidar a população antes e depois de 1989, foi o de que havia um arquivo secreto sobre absolutamente todos. Apesar de falsa, essa crença foi essencial para tornar o acesso aos arquivos policiais com os dossiês uma das principais demandas populares e uma referência para a

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desconfiança e alienação característica da vida sob o ancien régime junto com a falta de

transparência na tomada de decisões eram o legado tóxico que impactou negativamente tanto

a política da transição como a do presente.

Conforme um estudioso de justiça social e penal destaca: "a história revela sombras de

conluios, e não grupos de transgressores facilmente identificáveis; o que conta é o silêncio do

cidadão comum (frente às injustiças e à repressão),” (Cohen 1995:38).

Nas palavras do jornalista de oposição Checo Jan Urban:

"O silêncio era o que importava, não os filhos da mãe em si... E todo o barulho atual em torno

da lustração é simplesmente uma maneira de manter o silêncio sobre o silêncio... Não estamos

à procura de fatos, mas caçando fantasmas.” (Idem 1995:38)

Os danos causados pelo antigo regime – a perda da dignidade humana, a destruição da

solidariedade, o veneno da desconfiança – certamente não podem ser reparados pelos meios

legais tradicionais. A demanda das vítimas por reconhecimento não pede simplesmente um

registro factual ou jurídico, mas necessita da dignidade na política. O problema é que as mais

profundas queixas da maioria das pessoas são intraduzíveis para o modelo criminal. (Idem)

Ao se focalizar na lustração e até mesmo nos raros julgamentos que tratam de questões

políticas, os europeus do Leste estão tentando usar meios legais para desfazer uma tragédia

humana, e é essencialmente por isso que o processo tem falhado.16

política de lustração e/ou a chantagem política. Como já foi bem estabelecido por estudos fidedignos, a polícia secreta selecionava os alvos com cuidado. As estruturas da polícia política comunista no leste europeu permitiam espionar um número sem precedentes de cidadãos, mas não chegaram a cobrir toda a população, tanto porque não era necessário seguir os cidadãos que obedeciam ao regime, como porque seria muito caro. Como outras organizações que trabalham numa economia centralizada e planejada, a polícia secreta recebia um plano com quotas e metas, que se esforçava para cumprir, alocando recursos criteriosamente entre as diversas operações, num esforço para otimizar o seu retorno. Comparadas com outras unidades econômicas, as unidades da polícia secreta tinham acesso a recursos relativamente generosos, mas também estavam sob pressão para utilizar esses recursos de forma eficiente. Mesmo quando uma pessoa chamava a atenção da polícia secreta, os policiais primeiro avaliavam o caso para confirmar se o indivíduo em causa mostrava de fato uma atitude hostil ao regime. Não existem estimativas sobre a percentagem de casos investigados que terminavam com a abertura de um registro secreto individual, mas os arquivos secretos romenos, por exemplo, incluem um número significativo de casos que acabaram sendo abandonadas por falta de provas. Certamente parecia que a polícia política monitorava tudo e todos, aparentando saber os detalhes mais íntimos sobre a vida pessoal. Na realidade, a percepção de onipotência e onipresença foi cuidadosamente fabricada pelos departamentos de desinformação, especializados em exagerar o alcance das agências de segurança, bem como o apoio da nação ao regime - o outro lado da mistificação, (Stan 2010; Methodiev: 2008). 16 “O quanto já foi descoberto da verdade parece ser, pelo menos por agora, uma questão subjetiva. Preocupado em desmascarar pelo menos alguns espiões, eles negaram aos acusados o devido direito de recorrer, e ignoraram a preocupação de que numerosos informantes não foram recrutados das fileiras do partido comunista, e sim nas fileiras da oposição anticomunista, o alvo primário da polícia secreta.” “Preocupado em processar os comunistas e espiões principais, eles têm negligenciado o fato de que o regime contava com a colaboração diária de milhares de cidadãos comuns. As vítimas e os algozes foram considerados como duas categorias distintas, quando na verdade, em mais de uma ocasião, esses grupos se sobrepunham, permitindo que os indivíduos atravessassem as fronteiras. Na Europa Oriental, uma busca honesta da verdade também foi muito dificultada pela falta de vontade política para manter a justiça transicional separada da política

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Em contrapartida, as poucas Comissões da Verdade gozavam de maior prestígio.

3. Comissões da Verdade no Leste Europeu

Depois de 1989, apenas a Alemanha, os Estados Bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia e a

Romênia têm utilizado as comissões da verdade como métodos para tratar dos crimes dos

regimes comunistas. Essas cinco comissões têm semelhanças e diferenças importantes em

termos de sua estrutura organizacional, objetivos e atividades.

As comissões da verdade pós-comunistas eram de natureza política, sendo criadas pelo

Parlamento (na Alemanha) ou os Presidentes (na Estônia, Letônia, Lituânia e Romênia), a fim

de simbolizar uma ruptura radical com o passado repressivo e qualificar os regimes que

perpetraram as violações como "regimes criminosos" e não simplesmente "regimes de

criminosos".

As comissões da verdade foram empregadas em países onde o regime repressivo comunista

era mais fortemente associado à ocupação estrangeira (soviética). Nessas circunstâncias, a

reconciliação tinha uma prioridade baixa.

A comissão alemã,17 organizada a mando de um Parlamento ansioso por estabelecer

continuidades e descontinuidades na trágica história do país ao longo do século 20, se

concentrou em preparar um relato completo dos abusos da SED – “Partido de União

Socialista” (o partido comunista alemão no poder de 1949 a 1989). Seus equivalentes bálticos

foram criados por presidentes que tinham uma agenda anticomunista clara, e estavam

interessados em educar as suas sociedades e o público ocidental sobre os horrores que a

Estônia, a Letônia e a Lituânia sofreram nas mãos de seus ocupantes alemães e soviéticos. Por

contraste, a comissão romena, criada por um presidente populista, disposto a ganhar capital

político com um discurso anticomunista, foi de natureza política, um meio para o presidente

aumentar sua legitimidade, condenar oficialmente o regime comunista, e prejudicar a

reputação de adversários de esquerda. (Stan: 2009:5;8)

do presente. Em outras palavras, a região tem lutado contra os demônios do presente em nome da erradicação dos demônios do passado,” (L. Stan 2006:404). 17 A comissão alemã teve a agenda mais ampla: “analisar as estruturas, estratégias e instrumentos da ditadura do SED, em particular a questão da responsabilidade pela violação dos direitos humanos e civis e a destruição da natureza e do meio ambiente”, "avaliar a importância da ideologia, fatores de integração e práticas disciplinares", "examinar a violação de acordos e padrões internacionais de direitos humanos e os padrões e as formas de aparecimento da opressão em várias fases; identificar grupos de vítimas e analisar as possibilidades de restituição material e moral", "ilustrar o papel e a identidade das igrejas nas diversas fases da ditadura do SED", "julgar a significância das condições internacionais, em especial a influência da política soviética na Alemanha Oriental", "examinar a significância da relação" entre os dois estados alemães, e, finalmente, "incluir a questão das continuidades e analogias de comportamento, pensamento e estruturas na história alemã do século 20, especialmente o período da ditadura nacional-socialista” (Lei nº 12/2597) em Stan 2009:4.

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Em geral, a transição no Leste Europeu e as tentativas de chegar a termos com a história

política dos países da região foram complicadas e altamente alienantes, em aspectos

importantes. Nessa região, a principal questão subjacente à experiência da justiça de transição

não tinha a ver com a política da memória, como conceituada na América Latina e em outros

lugares.

“A preocupação dos cidadãos que vivem na região não era tanto a de que o passado

continuasse a dividi-los, e sim a de que o passado não tivesse passado, como dizia Faulkner.”

(L. Stan 2009:12)

4. Conclusão

A Justiça Transicional tem influência importante sobre como os Estados criam e impõem um

senso de continuidade ao longo do tempo e como essa continuidade influencia a vida

democrática.

Há mais de uma percepção do passado; a percepção é sempre distorcida para atender à agenda

do presente, como a experiência histórica demonstra. Para crimes do estado – muito mais do

que para qualquer crime não ideológico – a memória pessoal está profundamente contaminada

pela passagem do tempo político. A memória é um produto social que reflete a agenda e a

posição social de quem a invoca. Ela tem papel importante para a estruturação da

responsabilização política nos regimes democráticos contemporâneos. Nas palavras de Jie

Hyuan Lim: “Memórias coletivas não são fixas, mas flutuantes. Elas se movem de acordo

com a corrente de negociações contínuas entre os registros históricos disponíveis e as agendas

sócias e políticas atuais.”

De acordo com Spitzer (1991), os regimes e as transições podem ser distinguidos pelo modo

de seleção do que é importante para a narrativa-mestre do passado. No que ele chama de um

"regime de continuidade", como, por exemplo, a forma stalinista de controlar o passado, a

história é deliberadamente distorcida para se conformar às exigências políticas da elite

dirigente.

“Regimes de continuidade... tendem a ser centrípetos – a verdade é moldada para um único

centro, um núcleo homogêneo de crenças que não devem ser questionadas ou perturbadas. O

passado é continuamente adaptado e revisto para refletir a agenda política atual.” (em Cohen

1995: 49-50)

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Como diz uma piada cínica russa, “a única coisa que sempre muda é o passado.” Alguns

eventos são "apagados" da história, mas eles também podem ser restaurados quando as ideias

ou as pessoas são reabilitadas. Essa experiência ajuda a explicar, até certo ponto, porque a

lustração é tão característica de tais sociedades.

"Esta é exatamente o tipo de política a ser esperada em regimes habituados ao trabalho de

reescrever a história, e que passaram por sequências anteriores de convulsão social, seguida

de expurgos, e seguida depois pela faina de reescrever a história. Num dia alguém está no

poder e é favorecido; no dia seguinte algum outro”. (Idem: 48)

A alternativa é o "regime de descontinuidade", onde prevalece o esquecimento seletivo, mas

que não é dirigido centralmente. Pelo contrário, o padrão nesse caso é a multiplicidade de

narrativas, que competem dentro de uma espécie de "mercado". Aqui, o esquecimento é um

subproduto da mudança social rápida: “Uma ‘história’ de Disneylândia pós-moderna, uma

incapacidade de assimilar o presente. O passado não é deliberadamente apagado e reescrito no

sentido orwelliano, mas evapora literalmente na cacofonia do presente.” (Idem).

O processo é mais sutil nas sociedades de mercado pós-modernas. Muitas vezes, não é uma

questão de "o quê", mas de "como" se lembrar. Como H. Arendt observou há muito tempo

atrás, em relação à resposta dos alemães à experiência do nazismo, havia uma tendência

persistente a transformar os ‘fatos’ em ‘opiniões’. O passado, então, acaba se desintegrando,

sem a necessidade de censura governamental. Ele pode também se tornar um objeto de

consumo, numa busca frenética por criar um mundo achatado e presentista. Como Jacques Le

Goff protestava, "a memória tornou-se um best-seller na sociedade de consumo" (1992:95). E,

nas questões de legitimidade do Estado, como é frequentemente o caso com a política da

União Europeia, “a indústria da memória pública permanecerá ativa” (Adelman 2009:398).

Quaisquer que sejam as virtudes cívicas de abordar as tragédias e as injustiças do passado, a

memória social não seria suficiente, por si só, para evitar as suas repetições. Como adverte

Ch. Maier: “O excesso de memória não é um sinal de maior certeza histórica, mas um recuo

da política transformadora. Ele atesta a perda de orientação quanto ao futuro.” (1993:14).

Mas a multiplicidade inerente da memória e a pluralidade dos discursos sobre o passado

podem contribuir para criar uma sociedade civil mais democrática e uma prática mais

transparente e inclusiva de tomada de decisões políticas, na condição de que seja lembrado

que a responsabilidade por atos e crimes não é fluida, e sim concreta. Em última análise, ela é

individual, mesmo naquelas experiências que estão sendo atribuídas hoje às “ditaduras

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populares” (Lim: 2010), onde a linha de divisão ética e política passa não somente entre as

pessoas do país, mas principalmente através de cada uma delas.

Assim, a “responsabilização” vem expandir seu sentido político e histórico para incluir o lado

da “answerability,”– a capacidade de “responder”, a “respondabilidade.” Mas, responder a

quem?

A “respondabilidade”/answerability pressupõe a capacidade de ouvir as vozes dos outros,

todas e quaisquer. "O Outro é a minha justiça," observou Derrida. “Nesse caso, a

responsabilização histórica deve incluir crucialmente o “ouvir” as vozes e o “responder” às

pessoas cujas vidas foram marcadas pelo passado brutal... A responsabilização histórica,

assim, se tornaria a responsabilidade pela memória presente do passado” (Lim 2010:8) Ela

não se preserva sem lutas e riscos em qualquer época.

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