13294.pdf
-
Upload
danielphbhistoria -
Category
Documents
-
view
212 -
download
0
Transcript of 13294.pdf
-
7/25/2019 13294.pdf
1/6
9
Nas guas do tempo
Meu av, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado
em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, so-
mente raspando o remo na correnteza. O barquito cabe-
cinhava, onda c, onda l, parecendo ir mais sozinho
que um tronco desabandonado.
Mas vocs vo aonde?Era a aflio de minha me. O velho sorria. Os den-
tes, nele, eram um artigo indefinido. Vov era dos que
se calam por saber e conversam mesmo sem nada fala-
rem.
Voltamos antes de um agorinha, respondia.Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe no era.
Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantidoera que, chegada a incerta hora, o dia j crepusculando,
ele me segurava a mo e me puxava para a margem. A
maneira como me apertava era a de um cego desbenga-
lado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo
frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita,
todo ele musculneo. O av era um homem em flagranteinfncia, sempre arrebatado pela novidade de viver.
-
7/25/2019 13294.pdf
2/6
10
Entrvamos no barquinho, nossos ps pareciam ba-
ter na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava,
ensonada. Antes de partir, o velho se debruava sobre
um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mo em
concha. E eu lhe imitava.
Sempre em favor da gua, nunca esquea!
Era sua advertncia. Tirar gua no sentido contrrio
ao da corrente pode trazer desgraa. No se pode con-
trariar os espritos que fluem.
Depois viajvamos at ao grande lago onde nosso
pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interdi-
tas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventa-
va de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira
entre gua e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre
as guas nenufarfalhudas, ns ramos os nicos que
prepondervamos. Nosso barquito ficava ali, quieto,sonecando no suave embalo. O av, calado, espiava as
longnquas margens. Tudo em volta mergulhava em
cacimbaes, sombras feitas da prpria luz, fosse ali a
manh eternamente ensonada. Ficvamos assim, como
em reza, to quietos que parecamos perfeitos.
De repente, meu av se erguia no concho. Com o ba-lano quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado,
acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com deci-
so. A quem acenava ele? Talvez era a ningum. Nunca,
nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de ou-
tro mundo. Mas o av acenava seu pano.
Voc no v l, na margem? Por trs do cacimbo?Eu no via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
-
7/25/2019 13294.pdf
3/6
11
No l. l. No v o pano branco, a dan-
ar-se?
Para mim havia era a completa neblina e os rece-
veis alns, onde o horizonte se perde. Meu velho, de-
pois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu
silncio. E regressvamos, viajando sem companhia de
palavra.
Em casa, minha me nos recebia com azedura. E
muito me proibia, nos prximos futuros. No queria que
fssemos para o lago, temia as ameaas que ali mora-
vam. Primeiro, se zangava com o av, desconfiando dos
seus no propsitos. Mas depois, j amolecida pela
nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira:
Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ga-
nhvamos vantagem de uma boa sorte...
O namwetxo moha era o fantasma que surgia noi-te, feito s de metades: um olho, uma perna, um brao.
Ns ramos midos e saamos, aventurosos, procuran-
do o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu
av nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude,
se tinha entrevisto com o tal semifulano. Inveno dele,
avisava minha me. Mas a ns, miudagens, nem nospassava desejo de duvidar.
Certa vez, no lago proibido, eu e vov aguardva-
mos o habitual surgimento dos ditos panos. Estvamos
na margem onde os verdes se encaniam, aflautinados.
Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas.
O primeiro homem? Para mim no podia haver homemmais antigo que meu av. Acontece que, dessa vez, me
-
7/25/2019 13294.pdf
4/6
12
apeteceu espreitar os pntanos. Queria subir margem,
colocar p em terra no firme.
Nunca! Nunca faa isso!O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assis-
tira a um semblante to bravio em meu velho. Descul-
pei-me: que estava descendo do barco mas era s um
pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
Neste lugar, no h pedacitos. Todo o tempo, apartir daqui, so eternidades.
Eu tinha um p meio-fora do barco, procurando ofundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei
cho para assentar o p. Sucedeu-me ento que no
encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida
pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a
fora que me sugava era maior que o nosso esforo.
Com a agitao, o barco virou e fomos dar com as costasposteriores na gua. Ficmos assim, lutando dentro do
lago, agarrados s abas da canoa. De repente, meu av
retirou o seu pano do barco e comeou a agit-lo sobre
a cabea.
Cumprimenta tambm, voc!Olhei a margem e no vi ningum. Mas obedeci ao
av, acenando sem convices. Ento, deu-se o espan-tvel: subitamente, deixmos de ser puxados para o
fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em
imediata calmaria. Voltmos ao barco e respirmos os
alvios gerais. Em silncio, dividimos o trabalho do re-
gresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu:
No conte nada o que se passou. Nem a ningum,ouviu?
-
7/25/2019 13294.pdf
5/6
13
Nessa noite, ele me explicou suas escondidas ra-
zes. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a
voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele
falou assim: ns temos olhos que se abrem para dentro,esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece,meu filho, que quase todos esto cegos, deixaram dever esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, essesque nos acenam da outra margem. E assim lhes causa-mos uma total tristeza. Eu levo-lhe l nos pntanos
para que voc aprenda a ver. No posso ser o ltimo aser visitado pelos panos.
Me entende?Menti que sim. Na tarde seguinte, o av me levou
uma vez mais ao lago. Chegados beira do poente ele
ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual
demora. O av se inquietava, erguido na proa do barco,palma da mo apurando as vistas. Do outro lado, havia
menos que ningum. Desta vez, tambm o av no via
mais que a enevoada solido dos pntanos. De sbito,
ele interrompeu o nada:
Fique aqui!E saltou para a margem, me roubando o peito no
susto. O av pisava os interditos territrios? Sim, frenteao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa
ficou balanando, em desequilibrismo com meu peso
mpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrio de
uma nuvem. At que, entre a neblina, ele se declinou
em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com mui-
to espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordode ver uma gara de enorme brancura atravessar o cu.
-
7/25/2019 13294.pdf
6/6
14
Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fa-
zendo sangrar todo o firmamento. Foi ento que deparei
na margem, do outro lado do mundo, o pano branco.
Pela primeira vez, eu coincidia com meu av na viso
do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo,
mesmo ao lado da apario, o aceno do pano vermelho
do meu av. Fiquei indeciso, barafundido. Ento, lenta-
mente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho
do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus
olhos se neblinaram at que se poentaram as vises.Enquanto remava um demorado regresso, me vi-
nham lembrana as velhas palavras de meu velho av:
a gua e o tempo so irmos gmeos, nascidos do mes-
mo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio
que no haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora
a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os
brancos panos da outra margem.