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  • o processoENRIQUE PICHON-RIVIERErupal

    martinsfonte Co

  • Enrique Pichon-Rivire

    O PROCESSO GRUPAL

    Traduo MARCO AURLIO FERNANDES VELLOSOe MARIA STELA GONALVES (3 artigos finais)

    Reviso da traduo MARIA STELA GONALVES

    Martins FontesSo Paulo 2005

  • sIndice

    Prlogo 1

    Uma nova problemtica para a psiquiatria 9 A noo de tarefa em psiquiatria 33 Prxis e psiquiatria 39Freud: um ponto de partida da psicologia social 45 Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupai 49 Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva 63 Grupos familiares. Um enfoque operativo 73 Aplicaes da psicoterapia de grupo 85 Discurso pronunciado como presidente do Segundo Congresso

    Argentino de Psiquiatria 95 A psiquiatria no contexto dos estudos mdicos 101 Apresentao ctedra de psiquiatria da Faculdade

    de Medicina da Universidade Nacional de La Plata 111 Prlogo ao livro de F. K. Taylor, Uma anlise da

    psicoterapia grupai 115 Tcnica dos grupos operativos 121 Grupos operativos e doena nica 139 Grupo operativo e modelo dramtico 161 Estrutura de uma escola destinada a psiclogos sociais 169 Discpolo: um cronista de seu tempo 183 Implacvel interjogo do homem e do mundo 193

  • A Ana Pampliega de Quiroga, cujo afeto e colaborao so

    a necessria companhia na tarefa.

  • Uma teoria da doena 197Uma teoria da abordagem da preveno no mbito do grupo

    fam iliar 213Transferncia e contratransferncia na situao grupai 221Questionrio para Gentemergente 229Entrevista em Primera Plana 233Contribuies didtica da psicologia social 237Conceito de ECRO 249O conceito de porta-voz 257Histria da tcnica dos grupos operativos 271

  • Prlogo

    Connaissance de la m ort

    J e te saluem on cher petit et vieux

    cim etire de m a villeo j'appris jou er avec les morts.C'est ici o j'a i voulu m e rvler le secret de notre courte existence travers les ouvertures d'anciens cercueils solitaires.

    E. P ic h o n -R iv iere1

    O sentido deste prlogo esclarecer alguns aspectos de meu esquema referencial, questionando sua origem e sua histria, em busca da coerncia interior de uma tarefa que mostra nestes escritos, com temtica e enfoques heterogneos, seus diferentes momentos de elaborao terica.

    Como crnica do itinerrio de um pensamento, ele ser necessariamente autobiogrfico, na medida em que o esquema de referncia de um autor no s se estrutura como uma organizao conceituai, mas se sustenta em alicerce motivacional, de experincias vividas. atravs delas que o investigador construir seu mundo interno, habitado por pessoas, lugares e vnculos que, articulando-se com um tempo prprio, num processo criador, iro configurar a estratgia da descoberta.

    Eu poderia dizer que minha vocao pelas Cincias do Homem surge da tentativa de resolver a obscuridade do

    1. Poema escrito em 1924. [Conhecimento da morte / Eu te sado / meu querido, pequeno e velho / cemitrio de minha cidade ! onde aprendi a brincar / com os mortos. / Foi aqui que eu quis que m e fosse revelado o segredo de / nossa curta existncia /' atravs da abertura / de antigos caixes solitrios. (N. do T.)]

  • 3diato. Os mistrios no esclarecidos no plano do imediato (a que Freud chama "romance familiar") e a explicao mgica das relaes entre o homem e a natureza determinaram em mim a curiosidade, ponto de partida de minha vocao para as Cincias do Homem.

    O interesse pela observao dos personagens prototpicos, que nas pequenas populaes adquirem uma significao particular, estava orientado, ainda no conscientemente, para a descoberta dos modelos simblicos, atravs dos quais se torna manifesto o interjorgo de papis que configura a vida de um grupo social em seu mbito ecolgico.

    Algo do mgico e do mtico desapareceria, ento, diante do desvelamento dessa ordem subjacente, porm explo- rvel: a da inter-relao dialtica entre o homem e seu meio.

    Meu contato com o pensamento psicanaltico foi anterior ao ingresso na Faculdade de Medicina e surgiu como a descoberta de uma chave que permitiria decodificar aquilo que era incompreensvel na linguagem e nos nveis de pensamento habituais.

    Ao entrar na Universidade, orientado por uma vocao destinada a qualificar-me para a luta contra a morte, o confronto desde cedo com o cadver, que paradoxalmente o primeiro contato do aprendiz de mdico com seu objeto de estudo, significou uma crise. Ali reforou-se minha deciso de trabalhar no campo da loucura, que, mesmo sendo uma forma de morte, pode ser reversvel. Os primeiros contatos com a psiquiatria clnica abriram-me o caminho para um enfoque dinmico, o que me levaria progressivamente, a partir da observao dos aspectos fenomnicos da conduta desviada, descoberta de elementos genticos, evolutivos e estruturais que enriqueceram minha compreenso do comportamento como uma totalidade em evoluo dialtica.

    A observao, no mbito do material trazido pelos pacientes, de duas categorias de fenmenos nitidamente diferenciveis para o operador (o que se manifesta explicita-

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    mente e o que subjaz como elemento latente), permitiu incorporar, de forma definitiva, em meu esquema de referncia, a problemtica de uma nova psicologia que desde o incio se dirigia ao pensamento psicanaltico.

    O contato com os pacientes, a tentativa de estabelecer com eles um vnculo teraputico, confirmou o que de alguma maneira fora intudo: que por trs de toda conduta "desviada" subjaz uma situao de conflito, sendo a enfermidade a expresso de uma tentativa falida de adaptao ao meio. Em sntese, a doena era um processo compreensvel.

    Desde os primeiros anos de estudante trabalhei em clnicas particulares, adquirindo experincia no campo da tarefa psiquitrica, na relao e na convivncia com internos. Esse contato permanente com todo tipo de paciente e seus familiares permitiu-me conhecer em seu contexto o processo da enfermidade, particularmente os aspectos referentes aos mecanismos de segregao.

    Tomando como ponto de partida os dados sobre estrutura e caractersticas da conduta desviada que me eram proporcionados pelo tratamento dos enfermos, e orientado pelo estudo das obras de Freud, comecei minha formao psicanaltica. Isso culminou, anos mais tarde, em minha anlise didtica, realizada com o dr. Garma.

    Atravs da leitura do trabalho de Freud sobre "a Gra- diva" de Jensen, tive a vivncia de ter encontrado o caminho que me permitiria obter uma sntese com base no denominador comum dos sonhos e do pensamento mgico, entre a arte e a psiquiatria.

    Durante o tratamento de pacientes psicticos realizado segundo a tcnica analtica e pela indagao quanto a seus processos transferenciais, tornou-se evidente para mim a existncia de objetos internos, multplices "im ago", que se articulam num mundo construdo segundo um processo progressivo de internalizao. Esse mundo interno confi-

  • Prlogo 5

    gura-se como um cenrio no qual possvel reconhecer o fato dinmico da internalizao de objetos e relaes. Nesse cenrio interior, tenta-se reconstruir a realidade exterior, mas os objetos e os vnculos aparecem com modalidades diferentes pela passagem fantasiada a partir do "fora" para o mbito intra-subjetivo, o "dentro". um processo comparvel ao da representao teatral, no qual no se trata de uma repetio sempre idntica do texto, mas em que cada ator recria, com uma modalidade particular, a obra e o personagem. O tempo e o espao inserem-se como dimenses na fantasia inconsciente, crnica interna da realidade.

    A indagao analtica desse mundo interno levou-me a ampliar o conceito de "relao de objeto", formulando a noo c^vnado, que defino como uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mtua inter-relao com processos de comunicao e aprendizagem.

    Essas relaes intersubjetivas so dirigidas e estabelecem-se com base em necessidades, fundamento motiva- cional do vnculo. Tais necessidades tm um matiz e intensidade particulares, nos quais j intervm a fantasia inconsciente. Todo vnculo, assim entendido, implica a existncia de um emissor, um receptor, uma codificao e decodifica- o da mensagem. Atravs desse processo comunicacional, torna-se manifesto o sentido da incluso do objeto no vnculo, o compromisso do objeto numa relao no linear, mas dialtica, com o sujeito. Por isso insistimos que em toda estrutura vincular (e com o termo estrutura j indicamos a interdependncia dos elementos) o sujeito e o objeto interagem, realimentando-se mutuamente. Ness interao ocorre a internalizao dessa estrutura relacional, que adquire uma dimenso intra-subjetiva. A passagem ou internalizao ter caractersticas determinadas pelo sentimento de gratificao ou frustrao que acompanha a configurao inicial do vnculo, que ser ento um vnculo "bom " ou um vnculo "mau".

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    As relaes intra-subjetivas, ou estruturas vinculares internalizadas, articuladas num mundo interno, condicionaro as caractersticas de aprendizagem da realidade. Na medida em que o confronto entre o mbito do intersubjeti- v o e o mbito do intra-subjetivo seja dialtico ou dilemtico, essa aprendizagem ser facilitada ou dificultada. Ou seja, depender de que o processo de interao funcione como um circuito aberto, com uma trajetria em espiral, ou como um circuito fechado, viciado pela estreotipia.

    O mundo interno define-se como um sistema, no qual interagem relaes e objetos, numa mtua realimentao. Em sntese, a inter-relao intra-sistmica permanente, enquanto se mantm a interao com o meio. Formularemos os critrios de sade e doena a partir das qualidades da interao externa e interna.

    Esta concepo do mundo interno e a substituio da noo de instinto pela de estrutura vincular (entendendo- se o vnculo como uma proto-aprendizagem, como o veculo das primeiras experincias sociais, constitutivas do sujeito como tal, com uma negao do narcisismo primrio) condu- zem necessariamente definio da psicologia, num sentido estrito, como psicologia social.

    Mesmo que essas ponderaes tenham surgido de uma prxis e estejam sugeridas, em parte, em alguns trabalhos de Freud (Psicologia das massas e anlise do ego), sua formulao implicava romper com o pensamento psicanaltico ortodoxo, ao qual aderi durante os primeiros anos de minha tarefa, e para cuja difuso contribu com meu esforo constante. Acredito que essa ruptura tenha significado um verdadeiro "obstculo epistemolgico", uma crise profunda, em cuja superao levei muitos anos, e que, talvez, s hoje, com a publicao destes escritos, essa superao esteja sendo realmente conseguida.

    Esta hiptese poderia ser confirmada pelo fato de que, a partir da tomada de conscincia das modificaes significa-

  • Prlogo 7

    tivas de meu quadro referencial, me voltei mais intensamente para o ensino, interrompendo o ritmo anterior de minha produo escrita. S em 1962, no trabalho sobre "Emprego de Tofranil no tratamento do grupo familiar", em 1965, com "Grupo operativo e teoria da enfermidade nica", e em 1967, com "Introduo a uma nova problemtica para a psiquiatria", obtive uma formulao mais totalizadora de meu esquema conceituai, ainda que alguns aspectos fundamentais desses trabalhos estejam relacionados entre si, e muito especialmente nos mais recentes, ou seja, "Propsitos e metodologia para uma escola de psiclogos sociais" e "Grupo operativo e modelo dramtico", apresentados respectivamente em Londres e Buenos Aires, no Congresso Internacional de Psiquiatria Social e no Congresso Internacional de Psicodrama, no ano de 1969.

    A trajetria de minha tarefa - que pode ser descrita como a investigao da estrutura e do sentido do comportamento, na qual surgiu a descoberta de sua ndole social - configura-se como uma prxis que se expressa em um esquema conceituai, referencial e operativo.

    A sntese atual dessa investigao pode evidenciar-se pela postulao de uma epistemologia convergente segundo a qual as cincias do homem dizem respeito a um objeto nico: "o homem-em-situao" suscetvel de uma abordagem pluridimensional. Trata-se de uma intercincia, com uma metodologia interdisciplinar que, funcionando como unidade operacional, permite um enriquecimento da compreenso do objeto de conhecimento e uma mtua reali- mentao de suas tcnicas de abordagem.

    E. P-R.

  • Uma nova problemtica para a psiquiatria1

    A histria da psiquiatria aparece demarcada, em diferentes pocas, pelas especulaes de alguns investigadores quanto possibilidade de haver um parentesco entre todas as doenas mentais, a partir de um ncleo bsico e universal. No entanto, essas tentativas, viciadas por uma concepo or- ganicista da equao etiolgica (origem da doena), excluem da patologia mental a dimenso dialtica em que, atravs de saltos sucessivos, a quantidade se transforma em qualidade. A concepo mecanicista e organicista leva, por exemplo, no caso da psicose manaco-depressiva, a estabelecer uma diviso entre formas endgenas e exgenas, sem indicar a correlao existente entre ambas. Freud, por sua vez, sustenta que a relao entre o endgeno e o exgeno deve ser vista como relao entre o disposicional e os elementos vinculados ao destino do prprio sujeito. Ou seja, h uma complementaridade entre disposio e destino. Acrescentamos a essa idia que, quando se insiste no fator endgeno ou no compreensvel psicologicamente, os psiquiatras ditos clssicos

    1. Acta psiquitrica y psicolgica de Amrica Latina, 1967,13. (Nmero em homenagem ao autor.)

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    deixam transparecer sua incapacidade de detectar o m ontante de privao, que ao exercer impacto sobre um limiar, varivel em cada sujeito, completa o aspecto pluridimensio- nal da estrutura da neurose ou da psicose. Ao considerar endgena uma neurose ou psicose, nega-se de forma implcita a possibilidade de modific-la. O psiquiatra assume o papel de condicionante da evoluo do paciente e entra no jogo do grupo familiar que tenta segregar o doente, por ser este o porta-voz da ansiedade grupai. Em sntese: o psiquiatra transforma-se no lder da resistncia mudana em nvel comunitrio e trata o paciente como um sujeito "equivocado", do ponto de vista racional.

    Nos ltimos anos, ao uso instrumental da lgica formal acrescentou-se o da lgica dialtica e o da noo de conflito, em que os termos no se excluem, mas estabelecem uma continuidade gentica com base em snteses sucessivas. A operao corretora ou teraputica levada a termo seguindo o trajeto de um vnculo no linear, que se desenvolve na forma de uma espiral contnua, atravs da qual se resolvem as contradies entre as diferentes partes do mesmo sujeito. Inclui-se assim uma problemtica dialtica no processo corretivo ou no vnculo com o terapeuta, que funciona como enquadramento geral, permitindo investigar contradies que surgem no interior da operao e do contexto em que ela ocorre.

    A fragmentao do objeto de conhecimento em domnios particulares, produto da fragmentao do vnculo, seguida de um segundo momento integrador (epistemolo- gia convergente), cumprindo-se assim dois processos de sinais contrrios, que adquirem complementaridade atravs da experincia emocional corretora. Pode-se tambm afirmar que se trata de dois momentos de um mesmo processo, tanto na doena como na correo. Se esse acontecer posto em movimento pelo terapeuta, ser impedida, segundo a eficcia de sua tcnica, a configurao de situaes

  • Uma nova problemtica para a psiquiatria 11

    dilemticas, gnese de todo estancamento, e a formao de esteretipos de uma conduta que assume caractersticas de desvio por falta de ajuste dos momentos de divergncia e convergncia.

    A dificuldade de integrao desses dois momentos dada pela inevitvel presena, no campo da aprendizagem, do obstculo epistemolgico. Esse obstculo, que na teoria da comunicao representado pelo rudo e na situao triangular pelo terceiro, transforma a espiral dialtica da aprendizagem da realidade num crculo fechado (esteretipo), que atua como estrutura patognica. O perturbador de todo o contexto de conhecimento o terceiro, cuja presena em nvel do vnculo e do dilogo condiciona os mais graves distrbios da comunicao e da aprendizagem da realidade. Da deriva minha definio de vnculo, substituindo a denominao freudiana de relao de objeto. Todo vnculo, como mecanismo de interao, deve ser definido como uma Gestalt, que ao mesmo tempo bicorporal e tripessoal. (Gestalt como Gestaltung, nela introduzindo-se a dimenso temporal.)

    Dessa Gestalt vai surgir o instrumento adequado para apreender a realidade dos objetos. O vnculo configura uma estrutura complexa, que inclui um sistema transmissor-re- ceptor, uma mensagem, um canal, sinais, smbolos e rudo. Segundo uma anlise intra-sistmica e extra-sistmica, para obter eficcia instrumental necessria a similitude no esquema conceituai, referencial e operativo do transmissor e do receptor; do contrrio, surge o mal-entendido. Toda a minha teoria da sade e da doena mental centra-se no estudo do vnculo como estrutura. A adaptao ativa realidade, critrio bsico de sade, ser avaliada segundo a operativi- dade das tcnicas do ego (mecanismos de defesa). Seu uso pluridimensional, horizontal e vertical, adaptativo, operacional e gnosiolgico, em cada aqui e agora, ou seja, de uma forma situacional, atravs de um planejamento instrumental,

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    deve ser tomado como sinal de sade mental, que se expressa atravs de um limitado desvio ou bias* do modelo natural. Isso possvel atravs de uma primeira fase, que podemos chamar terica, realizada atravs de tcnicas de percepo, penetrao, depositao e ressonncia (empatia), em que o objeto reconhecido e mantido a uma distncia tima do sujeito (alteridade). por isso que tanto a qualidade como a dinmica do conhecimento condicionam uma atividade na qual se reconhece um estilo prprio de abordagem e de criao do objeto. Abordagem que tende a apreend-lo e modific-lo, constituindo-se assim o juzo de realidade, critrio de sade e doena mental, atravs de uma permanente referncia, verificao e avaliao no mundo externo. A adaptao ativa realidade e a aprendizagem esto indissoluvelmente ligadas. O sujeito sadio, medida que apreende o objeto e o transforma, tambm modifica a si mesmo, entrando num interjogo dialtico, no qual a sntese que resolve uma situao dilemtica se transforma no ponto inicial ou tese de outra antinomia, que dever ser resolvida nesse contnuo processo em espiral. A sade mental consiste nesse processo, em que se realiza uma aprendizagem da realidade atravs do confronto, manejo e soluo integradora dos conflitos. Enquanto se cumpre esse itinerrio, a rede de comunicaes constantemente reajustada, e s assim possvel elaborar um pensamento capaz de um dilogo com o outro e de um confronto com a mudana.

    Essa descrio refere-se superestrutura do processo. O campo da infra-estrutura, depsito de motivos, necessidades e aspiraes, constitui o inconsciente com suas fantasias (motivao), que so o produto das relaes dos mem-

    bros do grupo interno entre si (grupo interno como grupo mediato e imediato internalizado). Esse fenmeno pode ser

    * Em ingls no original. (N. do T.)

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    estudado no contedo da atividade alucinatria, em que o paciente ouve a voz do lder da conspirao inconsciente em dilogo com o self, a quem controla e observa, j que uma parte projetada dele mesmo. Outro fato curioso do desenvolvimento da psiquiatria que at hoje se insistia exclusivamente na relao com o objeto perseguidor projetado, abrindo-se um campo to vasto quanto o anterior ao se descobrir uma patologia do vnculo bom, e a dimenso grupai do contedo inconsciente, perceptvel atravs da noo de grupo interno, em permanente inter-relao com o externo. Encontramos na fantasia motivacional, como fizemos na alucinao, uma escala de motivos, necessidades e aspiraes que subjazem no processo da aprendizagem, da comunicao e das operaes que tendem obteno de gratificao em relao com determinados objetos. A ao e a deciso aliceram-se nessa constelao de motivos e o ganho est mais relacionado com a apreenso do objeto do que com a descarga de tenses, como foi descrito por Freud. A aprendizagem e a comunicao, aspectos instrumentais da conquista do objeto, possuem uma subestrutura motivacional.

    A conduta motivacional, a mais ligada ao destino do sujeito, consta tambm dessa dupla estrutura, na qual se pode observar que o aspecto direcional primrio est ligado s etapas iniciais do desenvolvimento. O processo universal que promove a motivao o da recriao do objeto, que adquire em cada sujeito uma determinao individual, surgida da conjugao das necessidades biolgicas e do aparato instrumental do ego. O aspecto direcional secundrio, escolha de tarefa, par, etc., passa pelo filtro grupai, que decide a escolha em definitivo. A descoberta da motivao constitui a maior contribuio de Freud, que relacionou os fenmenos do "aqui e agora" com a histria pessoal do sujeito. Isso se chama "sentido de sintoma".

    A dupla dimenso do comportamento, verticalidade e horizontalidade, torna-se compreensvel por uma psicolo-

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    gia dinmica, histrica e estrutural, distanciada da psiquiatria tradicional, que se movimenta somente no campo do fenomnico e descritivo. A dupla dimenso condiciona aspectos essenciais do processo corretivo. A correo obtida atravs da explicao do implcito. Essa concepo coincide com o esquema que alguns filsofos, economistas e socilogos relacionaram ao econmico-social, falando de uma superestrutura e de uma infra-estrutura, situando a necessidade como ncleo dinmico de ao. No mbito do processo teraputico, a resoluo da fissura entre as duas dimenses conseguida atravs de um instrumento de produo, expresso em termos de conhecimento que permite a passagem da alienao ou da adaptao passiva num bias progressivo adaptao ativa realidade. Em nossa cultura, o homem sofre a fragmentao e disperso do objeto de sua tarefa, criando-se ento, para ele, uma situao de privao e anomia que lhe torna impossvel manter um vnculo com esse objeto, com o qual conserva uma relao fragmentada, transitria e alienada.

    Ao fator insegurana diante de sua tarefa vem acrescentar-se a incerteza diante das mudanas polticas, sendo ambas sentimentos que repercutem no contexto familiar, no qual a privao tende a se globalizar. O sujeito v-se impotente no manejo de seu papel, e isso cria um baixo limite de tolerncia s frustraes, em relao com seu nvel de aspiraes. A vivncia de fracasso inicia o processo de enfermidade, configurando uma estrutura depressiva. A alienao do vnculo com sua tarefa desloca-se para vnculos com objetos internos. O conflito internaliza-se em sua totalidade, passando do mundo externo ao mundo interno com seu modelo primrio da situao triangular. Essa depresso, que aparece com os caracteres estruturais de uma depresso neurtica ou neurose de fracasso, submerge o sujeito num processo regressivo para posies infantis. O grupo familiar, em estado de anomia diante da doena de um

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    de seus membros, incrementa a depresso do sujeito. Estamos no ponto de partida que, num processo de regresso, vai articular-se com uma estrutura depressiva anterior, reforando-a. E o momento, nesta exposio, de considerar a vigncia de outras depresses e analis-las na direo do desenvolvimento, no sentido inverso quele seguido no processo teraputico que parte do aqui e agora.

    Tomarei como esquema de referncia aspectos da teoria de M. Klein, Freud e Fairbaim para tornar compreensvel minha teoria da enfermidade nica. Levarei em considerao as duas primeiras posies do desenvolvimento: a instrumental esquizoparanide e a depressiva (patogenti- ca existencial), qual acrescento outra: a patorrtmica (temporal), que inclui os diferentes tempos em que se manifestam os sintomas gerados na posio patogentica ou depressiva, estruturada com base na posio instrumental esquizoparanide. Atravs de todo esse trajeto permanecerei conseqente com minha teoria do vnculo. Porm, antes de prosseguir na descrio das posies, vamos estudar os ingredientes da causao de uma neurose ou psicose, ou, usando a formulao de Freud: a equao etiolgica. Entendo que os princpios que regem a configurao de uma estrutura patolgica so: 1) policausalidade, 2) pluralidade feno- mnica, 3) continuidade gentica e funcional, 4) mobilidade das estruturas, 5) papel, vnculo e porta-voz, 6) situao triangular.

    Como primeiro princpio devemos destacar o da policausalidade ou equao etiolgica, processo dinmico e configured onal, expresso em termos do montante de causao. Em detalhe, os parmetros so: fator constitucional, dividido em dois anteriores: o gentico propriamente dito e o preco- cemente adquirido na vida intra-uterina. A influncia sofrida pelo feto atravs de sua relao biolgica com a me j inclui um/ator social, visto que a segurana ou insegurana da me est relacionada com o tipo de vnculo que esta man-

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    tm com seu parceiro e a situao de seu grupo familiar. Levando em considerao a situao triangular, vemos que ela opera desde o incio. Ao fator constitucional se acrescenta, no desenvolvimento, o impacto no grupo familiar. A interao desse fato com o fator anterior tem como resultado aquilo que se chama disposio ou fator disposicional (segundo Freud, fixao da libido numa etapa de seu percurso), lugar ao qual se volta no processo regressivo com a finalidade de se instrumentar, como aconteceu no momento disposicional. O regresso promovido pelo fator a tu al no qual o montante disposicional entra em complementaridade com o conflito atual, descrito por mim como depresso desencadeante, iniciando-se a uma regresso que marca o comeo da doena.

    Pluralidade fenomnica. Este princpio baseia-se na considerao de trs dimenses fenomnicas da mente com suas respectivas projees, denominadas em termos de reas: rea um, ou mente; rea dois, ou corpo; rea trs, ou mundo exterior. Essas trs reas, fenomenicamente, tm importncia enquanto o diagnstico feito em funo do predomnio de uma delas, ainda que uma anlise estratigrfica demonstre a existncia ou coexistncia das trs reas comprometidas nesse processo em termos de comportamento, porm em diferentes nveis. isso que constitui o comportamento na forma de uma Gestalt ou Gestaltung em permanente interao das trs reas. No entanto, levamos em conta que o processo ordenador, ou seja, o planejamento, em termos de estratgia, ttica, tcnica e logstica, funciona a partir do self situado na rea um, ou seja, que nenhum com portamento lhe estranho. Qualquer outra investigao que negasse esta totalidade totalizante cairia numa flagrante dicotomia.

    As reas so utilizadas na posio instrumental esquizo- paranide que se segue depresso regressiva, para situar

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    os diferentes objetos e vnculos de sinais opostos num clima de divalncia, com a finalidade, como j dissemos, de preservar o bom e controlar o mau, impedindo assim a fuso de ambas as valncias, o que significaria a configurao da posio depressiva e a apario do caos, do luto, da catstrofe, da destrutividade, da perda, da solido, da ambivalncia e da culpa. Se a posio instrumental no est paralisada, funciona na base do splitting, configurando os vnculos bom e mau, com seus respectivos objetos. Aqui aparece a fundamentao de uma nosografia gentica estrutural e funcional em termos de localizao dos dois vnculos nas trs reas, com todas as variveis que podem existir. Por exemplo, a ttulo de ilustrao: nas fobias, agorafobia e claustrofobia, o objeto mau, paranoide ou fobgeno, est projetado na rea trs e atuando; isso configura a situao fbi- ca, em que tanto o objeto mau (fobgeno-paranide) como o objeto bom, sob a forma de acompanhante fbico esto situados na mesma rea. Por um lado, o paciente teme ser atacado pelo objeto fobgeno, preservando, por outro lado, o objeto acompanhante depositrio de suas partes boas, por meio do mecanismo de evitao. Assim no se juntam, evitando a catstrofe que se poderia produzir diante do fracasso da evitao. Toda uma nosografia poderia manifestar-se em termos de rea comprometida e valncia do objeto parcial. Essa nosografia, muito mais operacional do que as conhecidas, caracteriza-se pela compreenso na operao corretora, nos termos j assinalados, e por sua mobilidade ou passagem de uma estrutura a outra, constituindo o quarto princpio que pode ser observado durante o adoecer e durante o processo corretivo.

    Continuidade gentica e funcional. A existncia de uma posio esquizoparanide com objetos parciais, ou seja, o objeto total cindido, pressupe a existncia de uma etapa prvia em relao com um objeto total, com o qual se estabe-

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    lecem vnculos de quatro vias. A ciso ou splitting produz-se no ato do nascimento, e todo vnculo gratificante far que o objeto seja considerado bom. o que Freud chama (erradamente, a meu ver) instinto de vida (Eros), enquanto a outra parte do vnculo primrio e de seu objeto, com base em experincias frustrantes, se transforma em objeto mau, num vnculo persecutrio, o que de novo Freud considera instinto, neste caso, instinto de morte, agresso ou destruio (Thanatos).

    Como se v, no meu entender, os instintos de vida ou de morte so, de fato, uma experincia em forma de comportamento em que o social est includo atravs de m omentos gratificantes ou frustrantes, produzindo-se a insero da criana no mundo social. Ela adquire atravs dessas frustraes e gratificaes a capacidade de discriminar entre vrios tipos de experincias como primeira manifestao de pensamento, construindo assim uma primeira escala de valores. A diviso do objeto total tem como motivao impedir a destruio total do objeto, que, ao cindir-se em bom e mau, configura os dois comportamentos primrios em relao com o amar e ser amado, e odiar e ser odiado, ou seja, dois comportamentos sociais que determinam o comeo do processo de socializao na criana, que tem um papel e um status no interior de um grupo primrio ou familiar. Retomando o ponto de partida da protodepresso, com o aparecimento do splitting como primeira tcnica do ego, introduzimo-nos na posio esquizoparanide, descrita por Fairbairn e M. Klein de forma paralela aos meus primeiros trabalhos sobre esquizofrenia.

    Com o surgimento dessa tcnica defensiva, configuram-se dois vnculos: uma situao de objeto parcial em relao de divalncia (e no de ambivalncia como definiu Bleuler), processos de introjeo e projeo, de controle onipotente, de idealizao, de negao, etc. Levando em conta esse conceito da posio esquizoparanide, possvel revisar

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    o conceito de represso, to importante na teoria psicanal- tica e ponto de partida da divergncia entre Freud e P. Janet. Freud sustentava que o processo de represso era uma estrutura nica e caracterstica na gnese das neuroses; Janet, no entanto, entendia que o processo primrio podia ser definido em termos de dissociao. Penso que a questo fica resolvida ao se considerar que a represso um processo complexo que inclui a dissociao ou splitting, processos de introjeo e projeo, e de controle onipotente, etc.

    Por exemplo, o fracasso deste ltimo constitui o que Freud chama a volta do reprimido, que o negado, o fragmentado, o introjetado e projetado, podendo voltar a qualquer das trs reas ou dimenses fenomnicas em que a mente situa os vnculos e objetos para seu melhor manejo. Nesse voltar, o reprimido vivido pelo self como o estranho e o alienado. A ansiedade dominante na posio esquizoparanide a ansiedade persecutria ou paranoide de ataque ao ego, como produto de uma retaliao pela projeo da hostilidade2 que volta agigantada ou realimentada, como um bumerangue, sobre o prprio sujeito. Essa ansiedade paranoide volta como se procedesse de objetos humanos ou deslocamentos, depositrios da hostilidade da qual o ego se liberou pela projeo. A essa ansiedade, a nica descrita anteriormente, acrescento a outra, proveniente das vicissitudes do vnculo bom, ou dependncia de objetos depositrios dessa qualidade de sentimentos. As alternativas sofridas por esse vnculo tm como produto outro tipo de ansiedade, diferente da persecutria, com a qual, no entanto, muitos a confundem: o sentimento de "estar merc do depositrio".

    A ansiedade paranoide e o "sentimento de estar merc" (ansiedade depressiva da posio esquizide) so coe-

    2. A hostilidade emerge como produto da frustrao.

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    xistentes e cooperantes em toda estrutura neurtica normal. A antiga diferenciao entre ansiedade, angstia e medo desaparece medida que inclumos a dimenso do inconsciente ou do implcito. As definies de ansiedade e angstia estavam viciadas pelo conceito de relao an-objetal.

    A posio esquizoparanide vincula-se crescente idealizao do objeto bom, conseguindo o ego, por meio de sua tcnica, a preservao do objeto idealizado. A medida que se incrementa a idealizao do bom, aumentam o controle e o afastamento do mau e persecutrio, tornando-se o primeiro um objeto invulnervel. Essa situao de tenso entre os dois objetos em diferentes reas torna necessria a emergncia de uma nova tcnica diante do carter insuportvel da perseguio: a negao mgica onipotente.

    Entre os outros processos que operam, devemos assinalar a identificao projetiva. Nesse mecanismo, o ego pode projetar parte de si mesmo com diferentes objetivos: por exemplo, as partes ms, para livrar-se delas, assim como para atacar e destruir o objeto (irrupo). Podem-se tambm projetar partes boas, por exemplo, para coloc-las a salvo da maldade interna ou melhorar o objeto externo atravs de uma primitiva reparao projetiva. Nesse momento, podemos compreender aquilo que chamo situao depressiva esquizide ou neurtica. Ela produzida pela perda do controle do depositrio e do depositado. Essa depresso no deve ser confundida com a depresso da posio depressiva bsica. Nesta, observamos a presena de um objeto total, vnculos de quatro vias, ambivalncia, culpa, tristeza, solido em relao imagem do prprio sujeito. Na depresso esquizide observa-se o vnculo com um objeto parcial, com depositao dos aspectos bons. E uma depresso vivida fora, sem culpa, em uma situao divalente e com sentimento de estar m erc.

    O sentimento bsico da depresso esquizide a nostalgia. M. Klein a descreveu, sem perceber sua estrutura diferenciada, quando se referiu situao de despedida nor-

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    mal. A parte boa colocada no objeto viajante ou depositrio afasta-se da pertena do ego. Este fica enfraquecido, e a partir desse momento no deixar de pensar em seu destino; e ainda que a preocupao manifesta seja pelo depositrio, sua preocupao est vinculada ao estado das partes dele prprio que se desprenderam, criando-se uma situao de naufrgio permanente.

    A nostalgia algo diferente da melancolia. O termo, criado por Hofer, uma condensao das palavras gregas nostos - (vooTo) retorno - e algos - (akyo) dor.

    O splitting permite ao ego emergir do caos e ordenar suas experincias. Est na base de todo pensamento se consideramos que a discriminao uma das primeiras manifestaes deste comportamento da rea 1.

    Posio depressiva. A posio esquizoparanide, ao obter um manejo bem-sucedido das ansiedades dos primeiros meses, leva a criana pequena a organizar seu universo interno e externo. Os processos de splitting, introjeo e projeo permitem-lhe ordenar suas emoes e percepes, e separar o bom (objeto ideal) do mau (objeto mau). Os processos de integrao tornam-se mais estveis e contnuos, surgindo um novo momento do desenvolvimento: a posio depressiva caracterizada pela presena de um objeto total e um vnculo de quatro vias. A criana sofre um processo de mudana sbita e a existncia de quatro vias no vnculo causa nela um conflito de ambivalncia, do qual emerge a culpa. A maturao fisiolgica do ego traz como conseqncia a organizao das percepes de origem mltipla, assim como o desenvolvimento e a organizao da memria. A ansiedade dominante, ou medo, refere-se perda do objeto, devido coexistncia no tempo e no espao de aspectos maus (destrutivos) e bons, na estrutura vincular3.

    3. Que abrange o ego, o vnculo e o objeto.

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    Os sentimentos de luto, culpa e perda formam um ncleo existencial junto solido. A tarefa do ego, nesse m omento, consiste em imobilizar o caos possvel ou iniciante, recorrendo ao nico mecanismo ou tcnica do ego pertencente a essa posio: a inibio. Essa inibio precoce, mais ou menos intensa em cada caso, ir constituir uma pauta estereotipada e um complexo sistema de resistncia mudana, com perturbaes da aprendizagem da comunicao e da identidade. A regresso a partir de posies mais elevadas do desenvolvimento a esses pontos disposicionais, que adquirem o contexto daquilo que M. Klein chamou de neurose infantil traz como conseqncia a reativao desse esteretipo que denominamos depresso bsica, com a paralisao das tcnicas instrumentais da posio esquizide. Se o processo regressivo do adoecer consegue reativar o splitting e todos os outros mecanismos esquizides, com a reestruturao de dois vnculos com objetos parciais, um totalmente bom e outro totalmente mau, configuram-se ento as estruturas nosogrficas, segundo a localizao desses objetos nas diferentes reas.

    s duas posies descritas por M. Klein e Fairbairn (estruturas predominantemente espaciais), acrescentamos o fator temporal para construir a estrutura tetradimensional da mente. A situao patorrtmica expressa-se em paradas, velocidades ou ritmos que constituem momentos de estruturao patolgica, que vo da inibio e desacelerao dos processos mentais ao plo explosivo, onde tudo acontece com as caractersticas das crises colricas infantis (e de onde tomaro sua configurao). Se essa bipolaridade chega a predominar na maneira de ser e de expressar-se das ansiedades e das tcnicas do ego que tendem a control-las e elabor-las, encontramo-nos no amplo campo da enfermidade paroxstica (epilepsia).

    Na equao etiopatognica da neurose e psicose, devemos considerar o que acontece no processo do adoecer e do

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    recuperar-se, durante a operao corretora com o psicote- rapeuta, assim como a reparao dos aspectos instrumentais do par aprendizagem-comunicao. a essa perturbao - uma estrutura com vigncia na posio depressiva do desenvolvimento, e com antecedentes constitucionais - que se retorna (partindo da depresso desencadeante) no process o regressivo. A funcionalidade desse processo deve ser descrita em termos de "voltar ao lugar onde as tcnicas do ego foram eficientes"; mas ao imobilizar e dificultar a estrutura depressiva, esta se torna rgida, repetitiva (esteretipo), permanecendo, de forma latente, como posio bsica. Essa estrutura atuou como ponto disposicional no momento do desenvolvimento, e, se houve um bom controle dos medos bsicos, ficou estancada como estrutura prototpica que constitui o ncleo patogentico do processo do adoecer. Isso o que eu chamo de depresso bsica (depresso do desenvolvimento, acrescida da depresso regressiva com aspectos da protodepresso).

    Denomino depresso desencadeante a situao habitual de comeo, cujo denominador comum foi expresso por Freud em termos de privao de ganhos vinculados em nvel de aspirao. Esse fator pode ser retraduzido quando se estuda sua estrutura, em termos de depresso por perda ou privao. No s em termos de satisfao da libido e seu estancamento, mas tambm em termos de privao de objeto, ou situao em que o objeto aparece como inatingvel por impotncia instrumental de origem mltipla. A impossibilidade de estabelecer um vnculo com o objeto acarreta primeiro fantasias de recuperao, nas quais o fantasiado est em relao com os instrumentos do vnculo (exemplo: caso. do membro-fantasma na amputao de um brao; negao da perda do membro). Isso constitui a defesa imediata diante da perda que, contudo, no resiste confrontao com a realidade e faz o sujeito mergulhar na depresso. Ao impor-se a cruel verdade da perda, inicia-se a re-

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    gresso e elaborao do luto que configuram a complexidade fenomnica e gentica da depresso regressiva.

    Em sntese, a estrutura da pauta depressiva da conduta est assentada na situao de ambivalncia diante de um objeto total. Dessa situao de ambivalncia surge a culpa (amor e dio diante de um mesmo objeto, num mesmo tem po e espao). A ansiedade depressiva deriva do medo da perda real ou fantasiada do objeto, o conflito de ambivalncia, produto de um vnculo qudruplo (o sujeito ama e sente-se amado, e odeia e sente-se odiado pelo objeto), paralisa o sujeito devido a sua intrincada rede de relaes. A inibio centra-se em determinadas funes do ego. A tristeza, a dor moral, a solido e o desamparo derivam da perda do objeto, do abandono e da culpa. Diante dessa situao de sofrimento surge a possibilidade de uma regresso a uma posio anterior, operativa e instrumental para o controle da ansiedade da posio depressiva. O mecanismo bsico a diviso do ego e seus vnculos, e o surgimento do medo do ataque ao ego, seja a partir da rea 2 (hipocondria) ou a partir da rea 3 (parania). Aparece tambm um medo depressivo diante do objeto bom depositado, com sentimento de estar merc e de nostalgia.

    As neuroses so tcnicas defensivas contra as ansiedades bsicas. So as mais bem-sucedidas e prximas do normal e esto distanciadas da situao depressiva bsica prototpica. As psicoses so tambm formas de manejo das ansiedades bsicas, assim como a psicopatia. As perverses so formas complexas de elaborao da ansiedade psictica, e seu mecanismo centra-se no apaziguamento do perseguidor. O crime uma tentativa de aniquilar a fonte de ansiedade projetada a partir da rea 1 para o mundo exterior, enquanto esse mesmo processo, quando internalizado, configura a situao de suicdio. A "loucura" a expresso de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofrimento. Esse montante e o nvel de ca-

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    pacidade so especficos para cada ser humano e constituem seus pontos disposicionais, seu estilo prprio de elaborao.

    Depresso iatrognica. Denominamos depresso iatro- gnica o aspecto positivo da operao psicoterpica, que consiste em integrar o sujeito atravs de uma dosificao operativa de partes desagregadas e fazer que a constante universal de preservao do bom e controle do mau funcione em nveis sucessivos, caracterizados por um sofrimento tolervel, por diminuio do medo da perda do bom e uma diminuio paralela do ataque durante a confrontao com a experincia corretora. Na adjudicao sucessiva de papis que a se realiza, o psicoterapeuta deve ter a flexibilidade suficiente para assumir o papel adjudicado (transferncia), no o atuando (acting in do terapeuta), mas introduzindo-o (interpretao) em termos de uma conceitualizao, hiptese ou fantasia acerca do acontecer subjacente do outro, estando atento para sua resposta (emergente), que, por sua vez, deve ser retomada num contnuo, como um fio de Ariadne em forma de espiral. Agora j podemos formular o que deve ser considerado como unidade de trabalho, nico mtodo que, por suas possibilidades de predio, mais se aproxima de um mtodo cientfico, de acordo com critrios tradicionais. Critrios que, por sua vez, devem ser analisados para no se tornarem vtimas de esteretipos, que, atuando a partir de dentro do ECRO, de maneira quase inconsciente, funcionam da parte do terapeuta como resistncia mudana. A unidade de trabalho composta por trs elementos que representam o ajuste da operao: existente-interpre- tao-emergente. O emergente expresso no contexto da operao e tomado pelo terapeuta como material. Quando o contedo multifacetado e, em seguida, atua fora pelo paciente, configura-se o acting out, diante do qual o terapeuta no ter de emitir juzo segundo uma tica formal,

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    mas funcional, relacionando-o com o aqui e agora que inclui aspectos positivos vinculados com a aprendizagem da realidade ou da reparao das comunicaes. Se o terapeuta julga o paciente em termos de bom, mau, imoral, etc., pe em risco sua possibilidade de compreenso.

    No processo corretor, atravs de fenmenos de aprendizagem, comunicao e sucessivos esclarecimentos, diminuem os medos bsicos e possibilita-se a integrao do ego, produzindo-se a entrada em depresso e a emergncia de um projeto ou prospectiva que inclui a finitude como situao prpria e concreta. Aparecem mecanismos de criao e transcendncia. Ento a posio depressiva d oportunidade ao sujeito de adquirir identidade, base do insight, e facilita uma aprendizagem de leitura da realidade por meio de um sistema de comunicaes, base da informao. Em sntese, as conquistas da penosa passagem pela posio depressiva, situao inevitvel no processo corretor, incluem a integrao que coincide com a diminuio dos medos bsicos, reativados pelo processo desencadeante, a diminuio da culpa e da inibio, o insight, a movimentao de m ecanismos de reparao, criao, simbolizao, sublimao, etc., que tm como resultado a construo do pensamento abstrato, que, por no arrastar o objeto subjacentemente existente, acaba sendo mais til, flexvel, capaz de avaliaes em termos de estratgia, ttica, tcnica e logstica de si mesmo e dos outros.

    O planejamento e a prospectiva, juntamente com as ltimas tcnicas citadas, constituem o que Freud chama de processo de elaborao que se segue ao insight. Esse processo, uma vez ativado, persiste ainda que se interrompa o vnculo com o terapeuta, continuando-se a elaborao depois da anlise (after analysis). Isso acontece quando o processo corretor seguiu uma estratgia adequada. Paradoxalmente, o momento dos maiores ganhos para a autocon- duo. Com a depresso iatrognica, fechamos nosso esque-

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    ma das cinco depresses: protodepresso, de desenvolvimento, desencadeante, regressiva, iatrognica. Elas constituem o ncleo bsico do acontecer da enfermidade e da cura.

    Retomando os componentes da causao configura- cional, depois do princpio de continuidade gentica estrutural e funcional atravs de cinco depresses, irei referir-me ao quarto princpio: mobilidade e interao das estruturas. J assinalamos o carter funcional e significativo das estruturas mentais que adquirem a fisionomia do que chamamos doena mental. Uma anlise seqencial e estratigrfica prova-nos o carter complexo e misto de cada uma delas, dife- renciando-se umas das outras pelo carter dominante da colocao dos medos bsicos em cada rea, atravs de vnculos significativos. Geneticamente, observa-se no desenvolvimento o mesmo que no processo de adoecer e no processo corretor. As estruturas so instrumentais e situacio- nais em cada aqui e agora do processo de interao. As discusses bizantinas dos psiquiatras devem-se, em grande parte, a um mal-entendido, j que a estrutura que foi vista em um momento de observao pode variar no tempo e no espao, considerando-se que a relao vincular com o pesquisador determina a configurao de estruturas com esse carter funcional, instrumental, situacional e vincular, figurando este ltimo em relao com o tipo especfico de codificao e decodificao, aprendizagem, etc. Por isso sustentamos esse princpio em seus aspectos fenomenolgico e gentico, estrutural e clnico.

    Quinto princpio: vnculo, papel, porta-voz: j definimos o conceito de vnculo como uma estrutura complexa de interao, no de forma linear, mas em espiral, fundamento do dilogo operativo, em que a cada giro h uma realimen- tao do ego e um esclarecimento do mundo. Quando essa estrutura se estanca pelo montante dos medos bsicos, paralisam-se a comunicao e a aprendizagem: estamos na

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    presena de uma estrutura esttica e no dinmica, que impede uma adaptao ativa realidade.

    O conceito de papel, incorporado psicologia social e desenvolvido por G. H. Mead, o grande precursor dessa disciplina, que baseou todo o seu desenvolvimento terico no conceito de papel, de sua interao, o conceito de mim, de outro generalizado, que representaria o grupo interno como produto de uma internalizao dos outros, padece, no entanto, de uma limitao que resolvemos incorporando idia de grupo interno ou mundo interno do sujeito a internalizao chamada ecolgica. Consideramos que a internalizao do outro no se faz como a de um outro abstrato e isolado, mas inclui os objetos inanimados, o hbitat em sua totalidade, que alimenta intensamente a construo do esquema corporal. Defino este ltimo como a representao tetradimensional que cada um tem de si mesmo em forma de uma Gestalt-Gestaltung, estrutura cuja patologia compreende os aspectos da estrutura espao-temporal da personalidade.

    A noo popular de "querncia", ou "pago", vai muito alm das pessoas que a integram, e isso observado nas reaes das situaes de migrao: o medo da perda paralisa o migrante campons no momento em que tem de assumir um papel urbano, provocando sua marginalizao. Retomando o conceito de papel, consideraremos algumas situaes que se apresentam com maior freqncia nos grupos operativos. O campo do grupo operativo est povoado por papis prescritos ou estabelecidos, que definimos em termos de pertena, afiliao, cooperao, pertinncia, comunicao, aprendizagem e tel, os quais, representados na forma de um cone invertido, convergem como papis ou funes para provocar na situao de tarefa a ruptura do esteretipo.

    Pode-se dizer que, no acontecer do grupo, determinadas pessoas vo assumir esses papis correspondentes de

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    acordo com suas caractersticas pessoais: porm, nem tudo se realiza em termos de uma tarefa positiva.

    Outros papis, de certa maneira prescritos por sua freqncia, so assumidos por membros do grupo, como os papis de porta-voz, sabotador, bode expiatrio e, quando algum deles vem associado a comando, o papel de lder (o lder autocrtico, democrtico ao qual acrescento o demaggico, cuja estranha ausncia nos pesquisadores nos chama a ateno). Os membros do grupo podem assumir os papis prescritos, e, quando a adjudicao ou assuno do papel se realiza adequadamente dentro dos limites do lugar que ocupam, sua funcionalidade aumenta. Certos papis, como o de conspirador ou sabotador, so geralmente eleitos pelo extragrupo e introduzidos no intragrupo com uma misso secreta de sabotar fundamentalmente a tarefa e o esclarecimento. Essas infiltraes, em forma de conspirao, devem ser tomadas como um fato natural e so as foras que atuam a partir de fora, introduzidas no interior do grupo com a finalidade de sabotar a mudana, ou seja, so representantes da resistncia mudana. Papis por delegao, s vezes com infinitos degraus, mas que desembocaro em outro grupo, o qual, como grupo de presso, assume na comunidade o papel da resistncia mudana e do obscurantismo.

    O nvel de cooperao nos pequenos grupos pode ser operativo, porm tambm o , principalmente, nos grupos maiores. Quando as lideranas adquirem um campo maior, identificao cooperativa soma-se a identificao chamada cesariana, que pode exercer um papel na histria quando as situaes grupais esto em perigo, ou so incapazes de compreender o processo histrico, e quando o medo reativado por situaes de insegurana e perigo torna-se persecutrio. O movimento regressivo dirigido por um lder cesariano tenta ento controlar o grupo ou tomar o poder. As identificaes deste tipo entre os membros de um grupo ou comunidade, massa e lder, conduzem idia de que a

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    desgraa que caiu sobre a comunidade foi produzida exclusivamente por uma conspirao de certas pessoas ou grupos, aos quais adjudicado o papel de responsveis e de bodes expiatrios. Porm, freqente encontrar um fio condutor que vai da liderana ao "bode expiatrio", no qual ambos desempenham uma espcie de role-playing, em que um o bom e o outro o mau.

    Situao triangular

    O complexo de Edipo, tal como foi descrito por Freud, com suas variantes negativas e positivas, pode ser compreendido de uma maneira muito mais significativa se recorrermos sua representao espacial em forma de um tringulo, colocando no ngulo superior o filho, no ngulo inferior esquerdo, a me, e no ngulo inferior direito, o pai.

    Seguindo a direo de cada lado do tringulo, temos uma representao de quatro vnculos. Por exemplo: a criana, num primeiro nvel, ama e sente-se amada pela me; num nvel subjacente, odeia e sente-se odiada pela me; no outro lado est a relao da criana com o pai, na qual, num primeiro nvel, odeia e sente-se odiada e, num segundo nvel, ama e sente-se amada. O que poucas vezes assinalado o parmetro que opera desde a vida pr-natal. a estrutura vincular entre me e pai, na qual um ama e sente-se amado pelo outro, ou odeia e sente-se odiado pelo outro. Fazendo abstrao dos participantes, este vnculo teria tambm quatro vias; mas, na realidade, visto simultaneamente a partir de cada um dos extremos, complica-se mais ainda, porque tanto um como outro adjudicam e assumem papis originrios de cada um dos membros do casal. O montante de adjudicaes e assunes depender do papel de ser amado e ser odiado. Essa totalidade, verdadeira selva de vnculos, forma uma totalidade totalizante, ou

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    seja, uma Gestalt em que a modificao de um dos parmetros acarreta a modificao do todo.

    Cerca de 80% dos trabalhos que tratam da criana e de seus vnculos referem-se relao com a me; o pai aparece como uma personagem escamoteada, mas por isso mesmo operativa e perigosa. a noo do terceiro, que definitivamente nos leva a definir a relao bipolar ou vnculo como sendo de carter bicorporal, mas tripessoal.

    O terceiro, na teoria da comunicao, representado pelo rudo, que interfere numa mensagem entre emissor e receptor, conceito este que, ao ser aplicado em qualquer situao de conflito social, nos faz de novo encontrar a situao triangular como estrutura bsica e universal. Partem de cada ngulo, por deslocamentos sucessivos, pessoas que desempenham papis semelhantes com relao a idade e sexo; dessa maneira, separamo-nos progressivamente do endogrupo endogmico para o extragrupo exogmico, que representa a sociedade. No endogmico, o tabu do incesto orienta as linhas de parentesco com suas proibies e tabus, e dessa maneira passamos da psicologia individual, com sua situao endopsquica, psicologia social, que trata das inter-relaes no endogrupo ou intragrupais, e finalmente sociologia, quando tratamos das inter-relaes intergrupais. E o campo do exogrupo, mbito especfico da sociologia.

    Se consideramos a funo partindo desses parmetros, podemos falar de comportamento econmico, poltico, religioso, etc., num nvel grupai ou comunitrio, cuja anlise e evoluo se realizam partindo das seis funes descritas: pertena e afiliao, cooperao e pertinncia, aprendizagem, comunicao e tel, cooperando nos nveis correspondentes aos dos campos das cincias sociais mencionadas e dirigidas para uma situao de mudana que pode ser descrita nos nveis individual, psicossocial, comunitrio e nas direes dos comportamentos.

  • A noo de tarefa em psiquiatria1(em colaborao com o dr. A. Bauleo)

    A noo de tarefa na concepo de psicologia social por ns proposta permite-nos um posicionamento diante da patologia e, por sua vez, uma estrutura de linhas de ao.

    Para isso, distinguiremos trs momentos abrangidos por essa noo: a pr-tarefa, a tarefa e o projeto. Esses momentos apresentam-se numa sucesso evolutiva, e seu surgimento e interjogo constante podem situar-se diante de cada situao ou tarefa que envolva modificaes no sujeito.

    Iremos desenvolvendo cada um desses momentos sabendo, desde j, que so proposies relativas a posies teraputicas, e como tais devem ser admitidas, isto , como proposies.

    Na pr-tarefa situam-se as tcnicas defensivas, que estruturam o que se denomina resistncia mudana e que so mobilizadas pelo incremento das ansiedades de perda e ataque.

    Essas tcnicas so empregadas com a finalidade de postergar a elaborao dos medos bsicos; por sua vez, estes ltimos, ao se intensificarem, operam como obstculo episte- molgico na leitura da realidade. Ou seja, estabelece-se uma

    1. 1964 .

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    distncia entre o real e o fantasiado, que sustentada por aqueles medos bsicos.

    A pr-tarefa tambm aparece como campo no qual o projeto e a resistncia mudana seriam as exigncias de sinais opostos e criadoras de tenso; a busca de sadas para essa tenso obtida atravs de uma figura transacional, resoluo transitria da luta: aparece o "como se" ou a im postura da tarefa. Tudo feito "como se" se tivesse executado o trabalho especificado (ou a conduta necessria).

    Os mecanismos defensivos atuantes no momento da pr-tarefa so os caractersticos da posio esquizoparanide (M. Klein), instrumental e patoplstica (P.-Rivire); mecanismos que operam como meios de expresso e configurao das estruturas patolgicas (neurose, psicose, perverses, etc.). Alm disso, nessa pr-tarefa que se observa um jogo de dissociaes do pensar, atuar e sentir, como que fazendo parte tambm dos mecanismos enunciados anteriormente.

    Podemos estipular que o "como se" aparece atravs de condutas parcializadas, dissociadas, semicondutas - poderamos dizer - , pois as partes so consideradas como um todo. impossvel a integrao dos aspectos manifestos e latentes numa denominao total que os sintetize.

    O problema da impostura nos apresentado nessas semicondutas da pr-tarefa. Se a significao est reduzida e o sujeito no apresenta a opacidade que sua presena requer, h uma certa transparncia. Com a falta de totalidade, efetua-se em seu corpo a decantao significativa. O sujeito uma caricatura de si prprio, seu "negativo". Falta-lhe a revelao de si mesmo, sua denominao como homem. A situao se lhe apresenta com um sabor de estranheza, e essa estranheza que o desespera; para super-la recorre a comportamentos estranhos a ele como sujeito, porm coerentes com ele enquanto homem alienado.

    Entrega-se ento a uma srie de "tarefas" que lhe permitem "passar o tempo" (mecanismo de postergao, atrs

  • A noo de tarefa em psiquiatria 35

    do qual se oculta a impossibilidade de suportar frustraes de incio e trmino de tarefas, causando, paradoxalmente, uma constante frustrao).

    Os mecanismos de defesa so somente elementos formais, cujo contedo (tarefa e projeto para cada sujeito) est dissolvido neles. O sujeito aparece como mais uma estrutura daqueles mecanismos e seus fins esgotam-se em cada manifestao.

    Portanto, o que se observa so maneiras ou formas de no entrar na tarefa.

    O momento da tarefa consiste na abordagem e elaborao de ansiedades, e na emergncia de uma posio depressiva bsica, na qual o objeto de conhecimento se torna penetrvel pela ruptura de uma pauta dissociativa e estereotipada, que vinha funcionando como fator de estanca- mento da aprendizagem da realidade e de deteriorao da rede de comunicao.

    Na tarefa, aquela posio depressiva requer elaborao, processo cuja significao central est em tornar "consciente o inconsciente", e no qual se observa uma total coincidncia das diferentes reas de expresso fenomnica.

    O sujeito apareceria com uma "percepo global" dos elementos em jogo, com a possibilidade de manipul-los e com um contato com a realidade no qual, por um lado, lhe acessvel o ajuste perceptivo, ou seja, o situar-se como sujeito, e por outro lado, lhe possvel elaborar estratgias e tticas mediante as quais pode intervir nas situaes (projeto de vida), provocando transformaes. Essas transformaes, por sua vez, modificaro a situao, que se tornar ento nova para o sujeito, e assim o processo comea outra vez (modelo da espiral).

    Na passagem da pr-tarefa para a tarefa, o sujeito efetua um salto, ou seja, a acumulao quantitativa prvia de insight realiza um salto qualitativo durante o qual o sujeito

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    se personifica e estabelece uma relao com o outro diferenciado.

    No contexto da situao teraputica, corretora, a situao transferencial e contratransferencial ocorre, principalmente, no mbito da pr-tarefa do sujeito. Se confunde a pr-tarefa com a tarefa, o terapeuta entra no jogo da neurose transferencial e atua nela. A tarefa do terapeuta transforma-se em pr-tarefa, ao ter ele mesmo resistncia a entrar em sua tarefa especfica, por evitar o problema essencial do tornar-se responsvel, do "compromisso", do ser consciente e do projet o. (Resistncias ideolgicas prxis.)

    Conclui-se ento que as noes de pr-tarefa, tarefa e projeto apareceriam como elementos para situar uma atitude teraputica.

    Seria esquemtico resumir, sob a noo de tarefa, tudo o que implica modificao em dupla direo (a partir do sujeito e para o sujeito), envolvendo assim a constituio de um vnculo.

    Trata-se de estabelecer uma noo que englobe, ao examinar um sujeito, sua relao com os outros e com a situao. A noo "trabalho" tem a conotao ideolgica de ser feito por algum, modificando algo. Sua indeterminao faz que diversas concepes filosficas, teolgicas e metafsicas tenham falado a respeito dele. Para ns tambm um elemento ideolgico, mas sua incluso em nossa concepo psicossociolgica tem por finalidade, como eu disse anteriormente, elaborar, atravs de esquemas adequados, certas situaes prticas. O estabelecer pr-tarefa, tarefa e projeto como momentos situacionais de um sujeito, permite- nos uma aproximao e um diagnstico de orientao. Pois em cada um desses momentos configuram-se um pensar, um sentir e um agir, cuja discriminao central para toda terapia. Mas isso, por sua vez, nos leva a pensar que, se situamos o sujeito em cada uma dessas situaes, em direo a algum com quem est relacionado, no ser necessrio

  • A noo de tarefa em psiquiatria 37

    estabelecer o porqu e o para qu da situao total e de cada momento particular. E assim que, tanto em relao situao geral como diante de ns mesmos enquanto observadores, temos de agir logo sobre esses mecanismos, j queo porqu e o para qu da situao assim se nos apresentam:

    Por outros Para outros

    Etiopatogenia Diagnstico ProfilaxiaProfilaxia Tratamento

    Por ltimo, diremos que estabelecer pr-tarefa, tarefa e projeto consiste na busca de noes que, partindo da suposio do homem-em-situao (Lagache), permitam estabelecer melhor a relao entre os dois limites dessa suposio, para poder operar no campo prtico.

  • Prxis e psiquiatria1

    1) A prxis da higiene mental, tarefa essencialmente social, nutre-se das principais teorias provettientes de diferentes posturas ideolgicas. Segundo seu esquema referencial, qual a contribuio desse mesmo esquema para a higiene mental?

    Chama a minha ateno o uso de uma linguagem que entra em flagrante contradio com o aspecto da semntica e da tarefa. Ao perguntar se a prxis da higiene mental, tarefa essencialmente social, se nutre das principais teorias provenientes de diferentes posturas ideolgicas, poderamos responder dizendo que no existe uma prxis da higiene mental. Talvez exista uma confuso entre mtodos de higiene mental. De qualquer maneira, ainda que o problema formal esteja repleto de mal-entendidos, a "tarefa essencialmente social" centra o problema no sobre os mtodos da HM, mas sobre os mtodos ou estratgias de como mudar a estrutura socioeconmica da qual emerge um doente mental. H mais de vinte anos venho sustentando que o doente mental o porta-voz da ansiedade e dos conflitos

    1. Reportagem realizada pela Revista Latinoamericana de Salud Mental,1966.

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    do grupo imediato, ou seja, do grupo familiar. E essas ansiedades e conflitos que so assumidos pelo doente so de ordem econmica e acabam acarretando um sentimento crnico de insegurana, um ndice de ambigidade considervel e, principalmente, um ndice de incerteza tambm crnico, submetido a ziguezagues, de acordo com a situao histrica de cada momento. O paciente, se for analisado detidamente, est denunciando: ele o "alcagete" da subestrutura da qual ele se tomou responsvel e que traz como conseqncia o emprego de tcnicas de marginalidade ou segregao (internamento em hospital psiquitrico), em que num interjogo implcito, mas certamente no explcito, o psiquiatra assume o papel de resistncia mudana, ou seja, de mantenedor da cronicidade do paciente. Ele est inexoravelmente comprometido com a situao e, dessa maneira, leal sua classe social. Poderamos chegar a uma interpretao mais profunda, com o risco de atrair a repulsa dos psiquiatras como comunidade, se empregarmos a palavra smbolo, j que alguns acreditam que ela foi uma inveno de Freud. O doente mental, ento, o smbolo e depositrio do aqui e agora de sua estrutura social. Cur-lo transform-lo ou adjudicar-lhe um novo papel, o de "agente de mudana social". Assim, estamos em plena militncia, todos esto comprometidos atravs de uma ideologia com revestimentos cientficos. Quanto s principais teorias provenientes de diferentes "posturas", so simplesmente ideologias. A psicoterapia tem como finalidade essencial a transformao de uma situao frontal numa situao dialtica, que percorre um trajeto com a forma de uma espiral permanente, atravs de uma tarefa determinada. Ali sim, encontramos o verdadeiro sentido da prxis, no qual teoria e prtica se realimentam mutuamente atravs dessa sucesso, resultando na criao de um instrumento operacional que configura uma situao que poderamos denominar "operao-esclarecimento". O que chamamos ECRO, esque-

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    ma conceptual, referencial e operativo, o produto da sntese de correntes aparentemente antagnicas, mas principalmente ignoradas, situao que cria, por exemplo, pelo desconhecimento da psicanlise, um clima sonolento e de bi- zantinismo. Finalizando essa resposta, direi que o psiquiatra, em geral, tem todas as caractersticas de uma personalidade autoritria etnocntrica, que pensa sempre em termos absolutos e no dialticos; e naqueles que aparentemente pensam dessa forma dialtica, suas proposies chegam a estereotipar-se de tal modo, "como se as tivessem estudado de memria", transformando-se paradoxalmente em pessoas que, devendo ter adquirido flexibilidade e personalidade democrtica, se comportam da mesma maneira que os primeiros, de forma autoritria, absoluta, sem aberturas, chegando alguns deles a situar-se na mais covarde das posies, que difcil de pronunciar, e que se intitula ecleticismo.

    2) Complementam-se essas idias com as provenientes de outras escolas?

    Se considerarmos o homem como um ser total e totali- zante em pleno desenvolvimento dialtico, as idias com as quais se prope atuar sobre ele so emergentes das prprias contradies do paciente e absorvidas pelo terapeuta, configurando-se uma situao alienada e realimentada por ambos os personagens. Toda compreenso do paciente mental deve partir da compreenso vulgar, ou seja, de uma psiquiatria da vida cotidiana. O grau de profundidade a que se pode chegar depender do instrumental operacional e situa- cional empregado por cada psiquiatra, j que no final das contas no existem prognsticos em relao s enfermidades, mas sim prognsticos em relao a cada terapeuta.

    3) Considera possvel o trabalho em comum de investigadores de diferentes ideologias cientficas no campo da sade mental?

    Sou um veterano da investigao grupai, sempre que o grupo seja manejado com tcnicas operativas centradas na

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    tarefa (a doena mental), e no se gaste o tempo da tarefa no pingue-pongue da pr-tarefa, nas discusses interminveis sobre ideologias cientficas. A tarefa deve estar centrada no como obter uma maior sade mental numa comunidade especfica, situada no tempo e no espao.

    4) No campo concreto da prxis, e de acordo com seus princpios tericos e com suas experincias, que medidas prticas considera oportunas para uma educao sanitria em higiene mental?

    Primeiramente, eu faria que o estudante de psiquiatria entendesse o sentido real da prxis e no o dissociasse em campos concretos e princpios tericos. O melhor meio didtico para formar psiquiatras fazer que a tarefa esteja centrada no na doena mental, mas na sade mental. O termo higiene est viciado por um materialismo ingnuo, e os grupos de trabalho, repetimos, devem estar centrados nos fatores que condicionam um certo modo de sade m ental (no na forma absoluta de sade mental como valor mximo e absoluto). Trata-se de quantidades de sade m ental que, atravs de saltos dialticos, transformam a quantidade em qualidade, j que a sade mental medida principalmente em termos de qualidade de comportamento social e suas causas de manuteno ou deteriorao esto relacionadas com situaes sociais como os fatores socioeco- nmicos, estrutura de famlia em estado de mudana e principalmente nesse ndice de incerteza que se torna persecutrio e que perturba o comportamento social, j que o que se quer obter uma adaptao ativa realidade, na qual o sujeito, na medida em que muda, muda a sociedade, que, por sua vez, atua sobre ele no interjogo dialtico em forma de espiral, na medida em que se realimentando em cada passagem realimenta tambm a sociedade qual pertence. Aqui est o erro mais freqente: o de considerar um paciente "curado" quando capaz apenas de cuidar de seu asseio pessoal, adotar boas maneiras e, principalmente, no de-

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    monstrar rebeldia. Este ltimo sujeito, desde j, com sua conduta passiva e parasitria, continua filiado alienao.

    5) Qual sua opinio quanto a uma orientao em higiene mental relacionada com as estruturas socioeconmicas e culturais?

    Creio que em minhas opinies anteriores esto mais implcitas as respostas a esta pergunta. O que, por sua vez, me faz perguntar a mim mesmo: possvel que exista algum psiquiatra que ainda duvide disto?

  • Freud: um ponto de partida da psicologia social1

    Sigmund Freud assinala claramente sua posio diante do problema da relao entre psicologia individual e psicologia social ou coletiva em seu trabalho Psicologia das massas e anlise do ego. Na introduo desse livro, em geral to mal compreendido, diz: "A oposio entre psicologia individual e psicologia social ou coletiva, que primeira vista pode nos parecer muito profunda, perde grande parte de sua significao quando a submetemos a um exame mais minucioso. A psicologia individual concretiza-se, sem dvida, no homem isolado e investiga os caminhos atravs dos quais ele tenta alcanar a satisfao de seus instintos, porm, s muito poucas vezes, e sob determinadas condies excepcionais, lhe dado prescindir das relaes do indivduo com seus semelhantes. Na vida anmica individual, aparece integrado sempre, efetivamente, o outro como modelo, objeto, auxiliar ou adversrio, e desse modo a psicologia individual ao mesmo tempo, e desde o princpio, psicologia social, num sentido amplo, mas plenamente justificado. "

    Freud refere-se logo s relaes do indivduo com seus pais, com seus irmos, com a pessoa objeto de amor e com

    1. 1965.

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    seu mdico, relaes que tm sido submetidas a investigaes psicanalticas e que podem ser consideradas como fenmenos sociais. Esses fenmenos estariam em oposio queles denominados por Freud narcsicos (ou autsticos, por Bleuler)2. Podemos observar, de acordo com as contribuies da escola de Melanie Klein, que se trata de relaes sociais externas que foram internalizadas, relaes que denominamos vnculos internos, e que reproduzem no mbito do ego relaes grupais ou ecolgicas. Essas estruturas vinculares que incluem o sujeito, o objeto e suas mtuas inter - relaes se configuram com base em experincias muito precoces; por isso, exclumos de nossos sistemas o conceito de instinto, substituindo-o pelo de experincia. Mesmo assim, toda vida mental inconsciente, ou seja, o domnio da fan ta sia inconsciente, deve ser considerada como a interao entre objetos internos (grupo interno), em permanente inter - relao dialtica com os objetos do mundo exterior.

    Freud insiste na necessidade de uma diferenciao dos grupos, mas afirma que de qualquer maneira as inter-rela- es entre indivduos continuam existindo, e que para sua compreenso no necessrio recorrer existncia "de um instinto social primrio e irredutvel, podendo o comeo de sua formao ser encontrado em crculos mais limitados, por exemplo, na famlia".

    Em outro pargrafo, diz Freud: "Basta pensar que o ego entra, a partir desse momento, na relao de objeto com o ideal do ego por ele desenvolvido, e que, provavelmente, todos os efeitos recprocos (que poderamos assinalar como regidos pelo princpio de ao recproca funcionando em form a

    2. Poderamos objetar aqui que essa oposio no existe, pois todo narcisismo secundrio, na medida em que no vnculo interno, que pode ter uma aparncia narcsica, o objeto foi previamente introjetado. Ou seja, dada uma estrutura vincular, " o outro", o objeto, est sempre presente atravs de tal vnculo, ainda que seja escamoteado sob a aparncia de um narcisismo secundrio.

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    de espiral) desenvolvidos entre o objeto e o ego total, conforme nos foi revelado na teoria das neuroses, se reproduzem agora no interior do ego."

    Esse conjunto de relaes internalizadas, em permanente interao, e sofrendo a atividade de mecanismos ou tcnicas defensivas, constitui o grupo interno, com suas relaes, contedo da fantasia inconsciente.

    A anlise destes pargrafos mostra-nos que Freud alcanou, por momentos, uma viso integral do problema da inter-relao homem-sociedade, sem poder desapegar-se, no entanto, de uma concepo antropocntrica, que o impede de desenvolver um enfoque dialtico.

    Apesar de perceber a falcia da oposio dilemtica entre psicologia individual e psicologia coletiva, seu apego "mitologia" da psicanlise, teoria instintivista, e seu desconhecimento da dimenso ecolgica, impediram-lhe a formulao do vislumbrado, isto , de que toda psicologia, num sentido estrito, social.

  • Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupai1

    Minha contribuio neste Colquio Internacional sobre Estados Depressivos trata do uso instrumental e situa- cional de uma droga antidepressiva (Tofranil), empregada durante o transcurso de tratamentos psicoterpicos individuais e grupais. O objetivo principal do uso da droga facilitar a mobilizao de estruturas ou pautas estereotipadas (esteretipos) que se apresentam e operam com as caractersticas de resistncias ao progresso do processo teraputico. As ansiedades diante da mudana ou aprendizagem, de tipo depressivo e paranoide, promovem a estruturao do esteretipo ("mais vale um pssaro na mo do que dois voando"). A oportunidade de um colquio sobre estados depressivos fundamenta-se no fato de que, finalmente, a psiquiatria aparece progressivamente centrando-se ao redor da gnese, estrutura e vicissitudes de uma situao depressiva bsica. Acredito ser necessrio esclarecer previamente, em termos gerais, o texto e contexto do quadro ou esquema de referncia com o qual penso e opero. Assim, farei primeiro uma rpida crnica do desenvolvimento biogrfico desse esquema referencial.

    1. Acta Neuropsiquitrca Argentina, 6,1960.

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    IConstruo de um esquema conceituai, referencial e operativo (ECRO)

    Minhas investigaes sobre uma situao depressiva bsica (1938) partiram de dois campos ou quadros de trabalho em contnua interao:

    1) de uma prtica contnua como psicoterapeuta de casos individuais e de grupos, e 2) de uma vasta experincia paralela anterior e, amide, combinada com ela, empregando tratamentos biolgicos: choque hipoglicmico, con- vulsoterapia, sono prolongado, etc. No ano de 1946, publiquei a primeira sntese pessoal sobre uma teoria geral das neuroses e psicoses, introduzindo os conceitos de pluralidade fenomnica, de unidade funcional e gentica (enfermidade nica) e de policausalidade.

    Sustentava ento: "Atravs da psicanlise de esquizofrnicos e epilpticos, e apoiado pelas observaes realizadas durante os tratamentos biolgicos, tornou-se evidente um ncleo psictico central, bem delimitado e do qual partem todas as outras estruturas como maneiras ou tentativas de resolver tal situao bsica. Essa situao configura-se com os elementos que caracterizam o estado depressivo, com seus conflitos e mecanismos especficos", "... que a situao assim estabelecida... situao bsica das psicoses e configurada no sentido de uma estrutura melanclica, o ponto de onde se inicia a elaborao de outras situaes que vo configurar todos os outros tipos clnicos descritos. Em termos gerais, poderamos dizer que esta a nica enfenni- dade; todas as demais estruturas so tentativas feitas pelo ego para 'desfazer-se dessa situao depressiva bsica...'. Criada essa situao penosa, o ego tende a livrar-se dela recorrendo a um novo mecanismo de defesa que a projeo. Se for projetada no corpo, configura-se a segunda estrutura, que a

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    hipocondraca. Tudo o que o hipocondraco diz de seus rgos uma transposio da situao anterior, podendo-se dizer que, enquanto o melanclico um sujeito perseguido por sua conscincia, o hipocondraco o por seus rgos... Se a projeo for feita no exterior, configura-se a terceira estrutura: a estrutura paranoide... A frmula j expressa de que o melanclico um sujeito perseguido por sua conscincia e o hipocondraco por seus rgos, acrescentaremos que o paranoide o por seus inimigos interiores projetados" (3 ,4 ,5)*.

    Indagaes posteriores, em continuidade a estas, permitiram-me a construo de um esquema conceituai, referencial e operativo cujas caractersticas podemos, grosso modo, assim definir:

    1) A resposta depressiva deve ser considerada como pauta total de conduta diante de situaes de frustrao, perda, privao, tendo alm disso um carter unitrio em seu aparecimento, estrutura e funo.

    2) Uma situao depressiva infantil est includa no desenvolvimento normal (M. Klein [2]), junto a outras situaes: es quizide e epileptoide.

    3) A situao depressiva bsica opera no desenvolvimento de toda doena mental (situao patogentica viven- cial). O fator disposicional pode ser expresso em termos de graus de fracasso na elaborao da situao depressiva infantil (luto). A regresso, durante o processo da enfermidade, reativa a posio depressiva infantil (situao patogentica), assim como promove o emprego da posio esquizide (situao patoplstica e instrumental), como tambm da situao epileptoide (situao patorrtmica temporal).

    4) Outra situao depressiva a ser descrita aquela que est includa em todo processo teraputico. A resoluo das

    * Esses nmeros remetem bibliografia no final do captulo.

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    divises ou cises do ego e de seus vnculos, ou seja, o processo de integrao, s possvel atravs desta nova passagem por uma situao depressiva (grau de insight conseguido; a conseqncia, junto com o processo de re-disso- ciao).

    5) A estrutura da pauta de reao inclui o conflito de am bivalncia diante de um objeto total. Da surgem o sentimento de culpa e a inibio ou desacelerao de determinadas funes do ego. A tristeza, a dor moral, o sentimento de solido e desamparo derivam da perda de objeto e da culpa. A possibilidade de reparar e sublimar esto seriamente im pedidas.

    6) Diante dessa situao de sofrimento surge a possibilidade de uma regresso a uma posio anterior, operativa e instrumental, para o controle da ansiedade (situao esquizide). O mecanismo bsico aqui a diviso ou dissociao (split) do ego e de seus vnculos, com a conseqente emergncia da ansiedade paranoide que substitui a culpa. A situao epileptoide e patorrtmica assinala as formas nas quais o tempo se manifesta atravs do manejo das ansiedades bsicas ou medos.

    7) As neuroses so tcnicas defensivas contra ansiedades bsicas, psicticas. Essas tcnicas so as mais bem -su- cedidas e as mais prximas do normal, e esto afastadas da situao depressiva bsica prototpica. As psicoses so tam bm formas de manejo de menor sucesso que as anteriores, como as psicopatias, que tm como caracterstica privativa o mecanismo de delegao. As perverses manifestam-se como formas complexas de elaborao das ansiedades psicticas e seu mecanismo geral centra-se em torno do apaziguamento do perseguidor. O crime constitui a tentativa de aniquilar a fonte de ansiedade mxima projetada no mundo externo, enquanto esse processo centrado no prprio sujeito configura a conduta suicida.

    8) O sofrimento inerente posio depressiva est vin-

  • Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grtipal 53

    culado ao incremento do insight (autognose), ou seja, o conhecimento e compreenso da realidade psquica interna e externa. O fracasso da elaborao da posio depressiva (luto), alm das conseqncias assinaladas, acarreta inevitavelmente o predomnio de defesas que carregam em seu bojo o bloqueio das emoes e da atividade da fantasia. Impedem, principalmente, o aparecimento de um certo grau de autognose necessrio a uma boa adaptao realidade. (As defesas manacas que emergem em certos casos condicionam a superficialidade manifestada pelo ego, impedindo de certa maneira seu fortalecimento e aprofundamento durante o processo teraputico.)

    9) Rickman afirma (6) que no existe uma psiquiatria sem lgrimas e que melhor enfrentar concretamente o que se relaciona com a vivncia depressiva sem, claro, descuidar dos outros aspectos que tm relao com o processo de progresso. Alm disso, no contexto de toda psiquiatria dinmica a indagao e o processo teraputico so inseparveis. O paciente, diz Rickman, s poder nos revelar os mais profundos nveis de seu sofrimento sob a condio de experimentar, ao mesmo tempo que acontece o processo de indagao, um alvio de seu prprio sofrimento devido ao prprio processo de indagao (temos aqui um modelo daquilo que denominado indagao ativa operativa dentro do campo da psicologia).

    10) Esse esquema referencial foi depois completado com o enquadramento grupai da situao depressiva, assim como com as noes de porta-voz da ansiedade do grupo (o paciente), de pauta grupai estereotipada, de depresso bsica grupai, de grupo operativo, de coincidncia do processo de comunicao, esclarecimento, aprendizagem e treinamento centrado na tarefa e no processo teraputico. Uma espiral dialtica assinala a direo desse complexo processo.

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    IIPsicoterapia individual e Tofranil (uso instrumental e situacional da droga)

    H. Azima (1950) vem estudando, em particular, as m odificaes psicodinmicas provocadas pela administrao de Tofranil, tentando encontrar uma explicao dos efeitos desta droga. Observou o seguinte: 1) Uma mudana na direo das preocupaes. Estas passam dos objetos internos para os externos. 2) Uma diminuio do sentimento de culpa. 3) Uma diferente orientao dos impulsos agressivos e, em certos casos, sua liberao sob a forma de exploses agressivas. 4) Uma reorganizao secundria das cargas de objeto. 5) Euforia e conduta hipomanaca em pacientes classificados como manaco-depressivos. 6) Necessidade de certa intensidade de depresso para a obteno desses efeitos; as manifestaes depressivas leves no so influenciveis pelo Tofranil. 7) Diminuio da necessidade de beber lcool. 8) Uma mudana centrada, unicamente, no estado depressivo. 9) Nenhuma modificao das caractersticas bsicas da personalidade, anteriores ao estado depressivo (1).

    Apoiado nessas observaes, Azima pe em evidncia uma mutao do equilbrio da agressividade em relao ao superego. Essa reorganizao traz como conseqncia uma sedao do estado depressivo, mas essa mudana no equilbrio psicodinmico parece ser transitria e necessita, alm disso, para se produzir, de uma certa intensidade de depresso.

    O Tofranil representa at o momento o nico timolp- tico e, em conseqncia, novas orientaes em psicofarma- cologia. Ao manter o humor e elevar o impulso vital, desenvolve uma ao seletiva sobre o ncleo central da depresso, sem os efeitos de um sedativo, ou de um estimulante ou euforizante.

    A indagao sobre a ao dessa droga antidepressiva (Tofranil) - que realizei com a ajuda de meus colaborado-

  • Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupai 55

    res, os doutores F. Taragano, G. Vidal, A. Marranti e A. Benchetrit - tinha como ponto de referncia a considerao da situao depressiva bsica j descrita. Tambm se incluiu o conceito de que a enfermidade traz implcita, como causa ou conseqncia, uma perturbao da aprendizagem e da comunicao.

    O montante de ansiedade predominantemente depressiva seria responsvel pela pauta estereotipada de conduta anormal. A ansiedade diante da mudana, tornada possvel pela ao especfica do esclarecimento, provoca, por outro lado, a resistncia mudana, que em termos gerais denominada reao teraputica negativa. O Tofranil atua baixando o montante de agresso, de ansiedade, de ambivalncia e de culpa. Dessa maneira, sua ao possibilita uma mudana, produzida pelo esclarecimento do campo de trabalho. Produz-se a abertura de um crculo vicioso anterior, criando-se as condies para a emergncia de uma espiral dinmica de aprendizagem e de comunicao. A transferncia negativa diminui (ao diminuir a hostilidade) e a tarefa entre paciente e psicoterapeuta orienta-se para um nvel de maior integrao. A vivncia da monotonia ou estereotipia toma-se consciente em sua estrutura e motivaes. Observa-se um grande progresso no insight e o paciente chega a vivenciar a entrada numa posio depressiva necessria a todo tratamento realmente eficaz. Expressa de diferentes maneiras que sente que coisas dispersas comeam a juntar-se, que adquirem vida e agora as compreende melhor (integrao).

    Para ilustrar essa situao prototpica de todo tratamento, vou utilizar o caso analisado por um de meus colaboradores, o dr. Guillermo Vidal. Trata-se de uma doente de trinta e cinco anos, casada, que faz uma consulta queixando-se de depresses peridicas, quase sempre durante o inverno, coincidindo com a estao do ano em que seu marido mais viaja. Seu primeiro episdio depressivo ocorreu em conseqncia do primeiro parto. Normalmente dura-

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    vam de trs a quatro meses. Aplicaram-lhe vrias vezes insulina e eletrochoque. Comea seu tratamento psicanaltico em maio de 1959, em estado de depresso leve. Logo depois de umas curtas frias, em julho, ocorre a sexta crise depressiva. A depresso desenvolve-se lenta e progressivamente, acompanhada de uma grande inibio psicomotora. A doente mostra-se impermevel s interpretaes que lhe so feitas. perceptvel o tom choroso e montono em que fala. Diz: "Eu me sinto muito mal." "Eu no posso nem me levantar da cama." " impossvel trabalhar." "Quero ajudar minhas filhas e no posso." "No posso, no posso", repete insistentemente. Como o quadro se agrava ostensivamente e a doente quase no pode vir para a consulta, o terapeuta decide administrar-lhe Tofranil em doses progressivas, at cinco drgeas dirias. Isso foi numa sexta-feira; no dia seguinte, sbado, no foram registradas maiores variaes. Porm, na segunda-feira, quando j havia tomado oito drgeas, a doente aparece mudada. Diz: "No sei o que se passa comigo. E como se no pudesse continuar triste. Ou ento, agora estou triste mas no angustiada. Sinto-me simplesmente cansada. No posso precisar bem o que est acontecendo comigo." Com certa estranheza assiste ao seu prprio acontecer. Dois dias depois, a transformao manifesta-se com mais clareza; expressa-a assim: "Doutor, hoje me sinto bem ." "Im agine que ontem noite pude ter relaes com meu marido, e de forma natural (a doente era frgida), coisa que nunca havia acontecido antes..." "Alm disso, acontece-me uma coisa estranha, agora como se de repente eu compreendesse tudo o que voc me disse antes no decorrer da anlise, e as coisas dispersas se juntassem todas e recuperassem a vida, e eu as compreendesse melhor. No sei francamente o que me est acontecendo."

    Na semana do incio do fratamento com Tofranil, a paciente acha-se praticamente recuperada, melhor ainda do que nos intervalos anteriores, com a vivncia de que com

  • Emprego do Tofranil em psicoterapia individual e grupal 57

    preendeu muitas coisas (insight) e de que outra mulher. Poder-se-ia dizer que, subitamente, cristalizara o efeito de cinco meses de tratamento psicanaltico. A doente tomou no total cem drgeas de Tofranil.

    IIIPsicoterapia grupai (grupo familiar).Uso instrumental e situacional do Tofranil

    A loucura a expresso de nossa incapacidade para suportar e elaborar um montante determinado de sofrimento. Esse nvel de tolerncia especfico para cada um de ns e depende, em grande parte, da dificuldade relativa em superar a depresso infantil bsica, tecida de frustraes, aspiraes, demandas biolgicas excessivas, provocando a emergncia da agresso (birras), de ansiedades depressivas e paranides (os medos), da ambivalncia, da culpa, de inibies, etc.

    A emergncia de uma neurose ou psicose no mbito de um grupo familiar significa que um membro desse grupo assume um novo papel, transforma-se no porta-voz ou depositrio da ansiedade do grupo. A estrutura grupai altera- se, ocorrem perturbaes no sistema de adjudicao e assuno de papis, aparecem mecanismos de segregao do doente, o prognstico do caso depende, em grande parte, da intensidade desses mecanismos de segregao. O doente alienado por seu grupo imediato.

    Uma d