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www.cers.com.br OAB XI EXAME 1ª FASE Filosofia Bernardo Montalvão 1 DOGMÁTICA HERMENÊUTICA A CIÊNCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA INTERPRETAÇÃO Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”. DIVERSOS AUTORES. Bíblia Sagrada (Antigo Testamento. Novo Testamento. Evangelhos. Atos dos Apóstolos). Tradução: Antônio Pereira de Figueiredo, notas de José Alberto de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Encyclopedia Britanica, 1987, p.. Por Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo 1 . 1. INTRODUÇÃO A expressão “hermenêutica” deriva do nome de um deus grego: Hermes, o deus capaz de traduzir a língua dos deuses para a língua dos mortais e vice-versa. Por isso, entre os gregos, a figura de Hermes era associada à imagem de uma porta, da porta de casa. “Pois a porta é o lugar de fronteira entre a casa e a rua, entre o espaço público e o espaço privado, entre a família e a sociedade, entre o sangue e a política, enfim, entre o dentro e o fora” 2 . Logo, interpretar não é, apenas, aquilo que o intérprete diz a partir de sua própria circunstância de vida, pois, nesse caso, interpretar seria dar uma opinião. Nem tampouco é, apenas, esclarecer o significado de algo a partir das circunstâncias externas (políticas, econômicas, ideológicas etc.) nas quais o intérprete se vê emaranhado, pois, 1 Professor de Filosofia do Direito do CERS (Complexo de Ensino Renato Saraiva). Professor-Assistente na disciplina de Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor de Introdução ao Estudo do Direito da Universidade Salvador - UNIFACS; Professor de Processo Penal da Universidade Católica do Salvador - UCSAL; Mestre em Direito Público pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós- Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL. Analista Previdenciário da Procuradoria Federal Especializada do INSS. 2 SOUZA, Elton Luiz Leite de. Filosofia do direito, ética e justiça: filosofia contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris, 2007, p. 234. nesse caso, interpretar implicaria em castrar por completo a autonomia de vontade dele. “Interpretar, portanto, é colocar na fronteira que separa/une a nossa subjetividade da objetividade da coisa a ser interpretada. Nesse sentido, interpretar é uma arte” 3 . Eis o problema da interpretação: ela se encontra em uma zona de tensão, em uma fronteira entre duas línguas. Uma fronteira que separa, mas que também une essas duas línguas. Cabe agora, então, enfrentar o problema da interpretação. 2. O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO O problema da interpretação, e com a interpretação jurídica isto não é diferente, é que ela convive com dois usos de linguagem: onomasiológico (uso corrente ou não técnico) e semasiológico (uso técnico). No uso onomasiológico, emprega-se o significante corrente no sentido comum, ou seja, no sentido compartilhado pelos usuários da linguagem cotidiana. Por sua vez, no uso semasiológico, utiliza-se ou um significante técnico, pertencente a certo dicionário especializado, ou um significante corriqueiro que foi redefinido, ou seja, um signo trivial com significado específico. Os usos onomasiológico e semasiológico podem coincidir, mas nem sempre isto ocorre 4 . Ou seja, uma mesma palavra pode ser empregada da mesma maneira pelos dois diferentes usos que se pode fazer da linguagem. A partir desta circunstância fica claro que estes usos não se encontram completamente separados, antes se implicam. Isto é, o uso técnico da linguagem toma como ponto de partida o uso cotidiano. E esta relação entre os usos da linguagem acarreta a possibilidade sempre presente de dúvida quanto ao significado deste ou daquele vocábulo empregado pela norma jurídica. Disto decorre, o problema da Hermenêutica Jurídica. O problema de superar a possibilidade sempre presente de dúvida 3 SOUZA, Ob. cit., p. 235. 4 FERRAZ JR, 2007, p.255.

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DOGMÁTICA HERMENÊUTICA – A CIÊNCIA DO DIREITO COMO TEORIA DA INTERPRETAÇÃO

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine”. DIVERSOS AUTORES. Bíblia Sagrada (Antigo Testamento. Novo Testamento. Evangelhos. Atos dos Apóstolos). Tradução: Antônio Pereira de Figueiredo, notas de José Alberto de Castro Pinto. Rio de Janeiro: Encyclopedia Britanica, 1987, p..

Por Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo1. 1. INTRODUÇÃO A expressão “hermenêutica” deriva do nome de um deus grego: Hermes, o deus capaz de traduzir a língua dos deuses para a língua dos mortais e vice-versa. Por isso, entre os gregos, a figura de Hermes era associada à imagem de uma porta, da porta de casa. “Pois a porta é o lugar de fronteira entre a casa e a rua, entre o espaço público e o espaço privado, entre a família e a sociedade, entre o sangue e a política, enfim, entre o dentro e o fora”2. Logo, interpretar não é, apenas, aquilo que o intérprete diz a partir de sua própria circunstância de vida, pois, nesse caso, interpretar seria dar uma opinião. Nem tampouco é, apenas, esclarecer o significado de algo a partir das circunstâncias externas (políticas, econômicas, ideológicas etc.) nas quais o intérprete se vê emaranhado, pois,

1 Professor de Filosofia do Direito do CERS (Complexo de

Ensino Renato Saraiva). Professor-Assistente na disciplina de

Teoria do Direito junto à Faculdade de Direito da Universidade

Federal da Bahia (UFBA). Professor de Introdução ao Estudo do

Direito da Universidade Salvador - UNIFACS; Professor de

Processo Penal da Universidade Católica do Salvador - UCSAL;

Mestre em Direito Público pela UFBA (Universidade Federal da

Bahia). Pós-Graduado Lato Sensu em Ciências Criminais pela

Fundação Faculdade de Direito vinculada ao Programa de Pós-

Graduação da UFBA. Graduado em Direito pela Universidade

Católica do Salvador - UCSAL. Analista Previdenciário da

Procuradoria Federal Especializada do INSS. 2 SOUZA, Elton Luiz Leite de. Filosofia do direito, ética e

justiça: filosofia contemporânea. Porto Alegre: Núria Fabris,

2007, p. 234.

nesse caso, interpretar implicaria em castrar por completo a autonomia de vontade dele. “Interpretar, portanto, é colocar na fronteira que separa/une a nossa subjetividade da objetividade da coisa a ser interpretada. Nesse sentido, interpretar é uma arte”3. Eis o problema da interpretação: ela se encontra em uma zona de tensão, em uma fronteira entre duas línguas. Uma fronteira que separa, mas que também une essas duas línguas. Cabe agora, então, enfrentar o problema da interpretação. 2. O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO O problema da interpretação, e com a interpretação jurídica isto não é diferente, é que ela convive com dois usos de linguagem: onomasiológico (uso corrente ou não técnico) e semasiológico (uso técnico). No uso onomasiológico, emprega-se o significante corrente no sentido comum, ou seja, no sentido compartilhado pelos usuários da linguagem cotidiana. Por sua vez, no uso semasiológico, utiliza-se ou um significante técnico, pertencente a certo dicionário especializado, ou um significante corriqueiro que foi redefinido, ou seja, um signo trivial com significado específico. Os usos onomasiológico e semasiológico podem coincidir, mas nem sempre isto ocorre4. Ou seja, uma mesma palavra pode ser empregada da mesma maneira pelos dois diferentes usos que se pode fazer da linguagem. A partir desta circunstância fica claro que estes usos não se encontram completamente separados, antes se implicam. Isto é, o uso técnico da linguagem toma como ponto de partida o uso cotidiano. E esta relação entre os usos da linguagem acarreta a possibilidade sempre presente de dúvida quanto ao significado deste ou daquele vocábulo empregado pela norma jurídica. Disto decorre, o problema da Hermenêutica Jurídica. O problema de superar a possibilidade sempre presente de dúvida

3 SOUZA, Ob. cit., p. 235.

4 FERRAZ JR, 2007, p.255.

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quanto ao significado da norma jurídica. Sendo assim, para que serve a hermenêutica? 3. FINALIDADE DA HERMENÊUTICA. A hermenêutica se presta, assim, a que finalidade? A esclarecer o significado de um signo. Mas se a hermenêutica se presta a tanto, surge, então, uma nova pergunta: o significado do signo é descoberto ou determinado? Se se admitir que ele seja descoberto, então, conclui-se que a hermenêutica não constrói o significado do signo, antes o declara. Porém, se o ponto de partida adotado é que a hermenêutica determina, positiva, impõe o significado ao significante, então, forçoso é reconhecer que ela o constrói. Pode-se falar, assim, em duas diferentes finalidades para hermenêutica, as quais, por sua vez, correspondem a duas distintas concepções de linguagem, são elas: a) a descoberta do significado, que corresponde à concepção substancialista ou idealista de linguagem; b) e a construção do significado, a que se refere à perspectiva convencionalista da linguagem. Uma concepção substancialista imagina que a linguagem representa a realidade ou o pensamento. A seguir, no momento oportuno, se verá como isso se apresenta no campo específico da hermenêutica jurídica. Enquanto que uma concepção convencionalista pressupõe que a linguagem é um acordo celebrado entre os usuários dela. Usuários estes que teriam a capacidade limitada de manipular os significantes, os significados e as relações entre eles. Como se vê, quando se atribui à hermenêutica a finalidade de descoberta do sentido, assume-se o risco de se sustentar uma concepção naturalista ou a-histórica de interpretação. Isto porque, se a hermenêutica serve para investigar e descobrir o significado escondido do signo, em maior ou menor medida, o que se admite é que ela tem capacidade de chegar ao significado perfeito e completo do texto.

Ora, o que é perfeito, não precisa mudar, não deve mudar. Tem-se, então, uma linguagem estática. Esse foi o intento de Justiniano no que toca ao seu Corpus Juris Civilis5. Todavia, quando se confere à hermenêutica o objetivo de construção do significado do signo, o hermeneuta chama para si a tarefa de defender uma perspectiva normativista ou histórica de interpretação. Afinal, se a hermenêutica serve para edificar ou construir significados, imperioso é, então, admitir que ela não tenha a capacidade de chegar ao significado perfeito e completo do texto. O que é imperfeito, muda constantemente, em um ciclo que nunca chega ao fim. Eis, então, que se tem uma linguagem dinâmica. Uma vez compreendida as finalidades possíveis da hermenêutica, cabe agora a seguinte q ‘pergunta: qual é a finalidade da hermenêutica jurídica? A resposta a esta pergunta parte da seguinte pressuposição: a hermenêutica jurídica apresenta aspectos que lhes são peculiares, não podendo, portanto, ser tratada da mesma forma que as demais espécies de hermenêutica. Em outros termos, se a hermenêutica é gênero, a hermenêutica jurídica é uma de suas espécies. Não a única, é lógico. Mas, sim, uma delas. O que há, então, de específico na hermenêutica jurídica? 4. HERMENÊUTICA JURÍDICA: A DISCUSSÃO. A depender da finalidade que se atribua à interpretação, se descreverá as peculiaridades próprias da hermenêutica jurídica de diferentes modos. Dito de outro modo, não há uma só concepção acerca do que venha a ser hermenêutica jurídica e de quais são as suas principais características. A doutrina é muito controversa acerca do tema. Por isso, com o intuito de apresentar algumas abordagens em torno do assunto, a seguir se fará uma apertada exposição de algumas concepções. A apresentação destas concepções não tem, é lógico, o intuito de exaurir as correntes doutrinárias acerca da matéria. Pelo contrário, o objetivo é apenas exemplificar algumas

5 FERRAZ JR, 2007, p.265.

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concepções e, a partir delas, evidenciar a discussão. Sendo assim, inicialmente, se descreverá a polêmica que marcou o assunto no século XIX. Feito isto, se apresentará o pensamento de Kelsen em torno da questão. A seguir, será feita uma apertada síntese do raciocínio de Miguel Reale. Após o que, se explicará a lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr. O que se quer alcançar com estas exposições? Demonstrar erudição? Não, definitivamente não. O que se deseja é explicitar o óbvio: não existe a concepção correta de interpretação, pois se a interpretação é a fronteira entre os usos de linguagem, é a zona de tensão entre o sujeito que conhece (o intérprete) e o objeto que é conhecido (o texto, a lei, a norma, o contrato etc.), então ela não é ponto de partida nem é ponto de chegada, mas a ponte entre duas margens. 4.1. VOLUNTAS LEGIS OU VOLUNTAS LEGISLATORIS? “É hoje um postulado universal da ciência jurídica a tese de que não há norma sem interpretação, ou seja, toda norma, pelo simples fato de ser posta, é passível de interpretação”6. Logo, a pretensão de Justiano de que fosse proibida a interpretação das normas de seu Corpus Juris Civilis, em verdade, não é uma exceção ao postulado, mas, sim, a pretensão de que apenas a interpretação do imperador fosse considerada vinculante. É muito recente a consciência de que a hermenêutica jurídica não é um amontado de técnicas de interpretação esparsas, mas, sim, um saber teórico. Essa conscientização científica acerca hermenêutica só veio a ocorrer no início do século XIX. O certo é que a hermenêutica jurídica é marcada, desde então, por uma profunda controvérsia entre duas concepções de interpretação, são elas: a objetiva e a subjetiva.

6 FERRAZ JR, 2007, p.265-66.

A concepção objetiva é aquela que assinala que a interpretação se presta a descobrir a vontade da lei, a voluntas legis, o que pressupõe uma linguagem capaz de representar o evento real, a realidade do conflito. Por outro lado, a concepção subjetivista é aquela que sustenta que a interpretação objetiva descobrir a vontade do legislador, ou seja, a voluntas legislatoris. Parte-se, aqui, da pressuposição de que a linguagem representa o pensamento do legislador. Antes de avançar no assunto, é conveniente destacar o cuidado que se deve ter ao empregar os termos, subjetiva e objetiva. Isto porque a doutrina oscila ao empregá-los. Há quem compreenda como concepção objetiva aquela em que o intérprete deva se manter vinculado estritamente ao texto de lei, não tendo qualquer margem de liberdade. Se adotada esta definição para concepção objetiva, note-se que o significado da concepção, neste segundo sentido, seria completamente diferente do mencionado anteriormente. O mesmo se pode dizer em torno da concepção subjetiva, vez que há quem entenda esta concepção como aquela em que se permite ao intérprete certa margem de liberdade ao realizar a interpretação. Apresentada a controvérsia doutrinária acerca da melhor compreensão das concepções, convém ressaltar que em volta delas ainda há mais uma advertência a ser feita. É preciso chamar atenção que a discussão entre as duas concepções se dá dentro da perspectiva idealista de linguagem, ou seja, da perspectiva que confere à linguagem a capacidade de representar com exatidão alguma coisa. Esta alguma coisa pode ser ou o pensamento, ou a realidade. Nesse sentido, é possível compreender a divergência entre voluntas legislatoris e voluntas legis a partir da capacidade de representação da linguagem. Quando se defende que a interpretação jurídica busca descobrir a voluntas legislatoris, em verdade, o que de defende é que a linguagem tem a capacidade de representar o pensamento do legislador. Por outro lado, quando se sustenta que a interpretação jurídica busca descobrir a

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voluntas legis, em verdade, o que se pressupõe é que a linguagem tenha a capacidade de representar a realidade, uma vez que, neste caso, o texto da lei teria a capacidade de representar com precisão o conflito a ser decidido. Feitos tais esclarecimentos fica fácil, agora, com apoio na doutrina de Karl Engish7 e na lição de Tercio Sampaio Ferraz Jr, apontar as críticas que a concepção objetiva dirige à vertente subjetivista: “1. pelo argumento da vontade, afirmando que a “vontade” do legislador é mera ficção, pois o legislador é raramente uma pessoa fisicamente identificável; 2. pelo argumento da forma, pois só as manifestações normativas trazidas na forma exigida pelo ordenamento têm força para obrigar, sendo, em consequência, aquilo que se chama de legislador, no fundo, apenas uma competência legal(a autorização conferida pela norma imediatamente superior no ordenamento jurídico); 3. pelo argumento da confiança, segundo o qual o intérprete tem de emprestar confiança à palavra da norma como tal, a qual deve, em princípio, ser inteligível por si; 4. pelo argumento da integração, pelo qual só a concepção que leve em conta os fatores objetivos em sua contínua mutação social explica a complementação e até mesmo a criação do direito pela jurisprudência”8. Por seu turno, os subjetivistas criticam a outra concepção dizendo o seguinte: “1. O recurso à técnica histórica de interpretação, aos documentos e às discussões preliminares dos responsáveis pela positivação da norma é imprescindível, donde a impossibilidade de ignorar o legislador ordinário;

7 ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6ª

edição. Tradução: João Baptista Machado. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.183-197. 8 FERRAZ JR, 2007, p.268.

2. os fatores (objetivos) que eventualmente determinassem a chamada vontade objetiva da lei (voluntas legis) também estão sujeitos a dúvidas interpretativas: com isso, os objetivistas criariam, no fundo, um curioso subjetivismo que põe a vontade do intérprete acima da vontade do legislador, tornando-se aquele não apenas ‘mais sábio’ que o legislador, mas também ‘mais sábio’ do que a própria norma legislada; 3. seguir-se-ia um desvirtuamento na captação do direito em termos de segurança e de certeza, pois ficaríamos à mercê da opinião do intérprete”9. Eis, então, o problema. Qual das concepções teria razão? Seria este um problema insolúvel? O certo é que esta polêmica remete o estudioso de hermenêutica jurídica ao desafio kelseniano10: é possível falar em interpretação verdadeira? A hermenêutica jurídica pode ser teorizada como um saber científico?

4.2. DESAFIO KELSENIANO: INTREPRETAÇÃO AUTÊNTICA E DOUTRINÁRIA Se interpretar juridicamente é decodificar conforme regras de uso, forçoso é admitir que há na interpretação um aspecto arbitrário, uma vez que ela é voltada a por fim à uma sucessão de interpretações que decodificam interpretações. Ou seja, a interpretação jurídica não pode dar ensejo a uma sucessão indefinida de interpretações, ela tem que produzir como resultado uma interpretação final. Esse aspecto, aliás, caracteriza a interpretação dogmática e, ao mesmo tempo, constitui o seu problema teórico, o problema de criar uma teoria que justifique o caráter dogmático da interpretação jurídica. É por conta deste problema que Kelsen se coloca a questão de “saber se é possível uma teoria científica da interpretação jurídica que permita ao jurista falar da verdade de uma interpretação”11. A partir da observação da obra

9 FERRAZ JR, 2007, p.269.

10 FERRAZ JR, 2007, p.270.

11 FERRAZ JR, 2007, p.262.

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“Teoria Pura do Direito”, nota-se que Kelsen não fornece a partir dela nenhuma base para a hermenêutica dogmatica12. Porém, ele afirma que há dois tipos de interpretação, são elas: a doutrinária e a autêntica13. A interpretação autêntica é a que é realizada por órgãos competentes (pelo órgão autorizado por uma norma imediatamente superior). Por exemplo, é a interpretação feita pelo magistrado no exercício de suas funções. A interpretação doutrinária, por seu turno, “é realizada por entes que não têm a qualidade de órgão competente”14. Por exemplo, quando o doutrinador emite a sua interpretação acerca de certo texto de lei. Em suma, a interpretação doutrinária não é vinculante, não obriga, ao passo que a interpretação autêntica tem este poder. Ou seja, da interpretação autêntica resulta uma norma, a norma específica que é declarada a partir da norma genérica. Por outro lado, da interpretação doutrinária decorre uma sugestão, uma recomendação. Em outras palavras, enquanto a interpretação autêntica define (estabelece limites, fronteiras) o sentido do conteúdo da norma, sendo esta definição o produto de um ato de vontade, a interpretação doutrinária. Percebe-se, a partir do exposto, que, para Kelsen, é “possível denunciar, de um ângulo filosófico (zetético), os limites da hermenêutica, mas não é possível fundar uma teoria dogmática da interpretação”15. Nas palavras de Wittgenstein, “sobre o que não se pode falar, deve-se calar”16. Mas, qual é a compreensão de Miguel Reale em torno do problema hermenêutico?

12

KESLSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição.

Tradução: João Baptista Machado. São Paulo: Martins

Fontes, 1999, p. 395-397. 13

KESLSEN, Ob. cit., p. 387-391. 14

FERRAZ JR, 2007, p.263. 15

FERRAZ JR, 2007, p.265. 16

FERRAZ JR, 2007, p.264.

4.3. A COMPREENSÃO DE MIGUEL REALE EM TORNO DO PROBLEMA HERMENÊUTICO. De acordo com Miguel Reale, a norma jurídica deve ser entendida pela hermenêutica jurídica atual em termos de: “a) um modelo operacional de uma classe ou tipo de organização ou de comportamentos possíveis; b) que deve ser interpretado no conjunto do ordenamento jurídico; c) implicando a apreciação dos fatos e valores que, originariamente, o constituíram; d) assim como em função dos fatos e dos valores supervenientes”17. A norma deve ser entendida como modelo operacional, ou seja, como modelo útil a decidir conflitos. Este modelo, por sua vez, é hábil ou a controlar comportamentos (normas de conduta) ou a regular outras normas (normas de organização). Logo, como quer Hart18, não há apenas normas de comportamento, mas, também, normas de organização, normas de normas. Normas de organização que se subdividem em normas de reconhecimento, normas de modificação e normas de julgamento. Essa é, aliás, uma das maiores críticas dirigidas por Hart à Kelsen, vez que, segundo aquele, este apresenta uma teoria sobre a norma jurídica incompleta. Ademais, a norma jurídica que deve ser interpretada no conjunto do ordenamento jurídico. É dizer, a norma deve ser interpretada sistematicamente. A norma jurídica não pode ser interpretada em tiras19. E, além disso, o intérprete deve levar em consideração os fatos e valores que, originariamente, constituíram a norma. Em outras palavras, a norma deve ser interpretada a partir dos fatos e valores relevantes no momento de sua constituição, isto é, de acordo com a vontade do legislador.

17

REALE, Ob. cit., p. 289. 18

HART, Herbert. O Conceito de Direito. 3ª edição.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p.111. 19

GRAU, Eros Roberto. Ensaio sobre

interpretação/aplicação do direito. São Paulo:

Malheiros, 2012, p..

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Porém, segundo Miguel Reale, a norma deve ser interpretada não apenas segundo a vontade do legislador, mas, também, em função dos fatos e dos valores supervenientes à sua elaboração. Ou seja, a norma deve ser interpretada também segundo a vontade da lei, segundo os fatos e os valores relevantes no momento em que ela é aplicada. Logo, a partir da lição de Miguel Reale, a hermenêutica jurídica atual deve combinar as duas correntes acima explicitadas, voluntas legis e voluntas legislatoris. Em suma, a hermenêutica jurídica atual, de acordo com Miguel Reale, deve possuir uma dupla visão da norma, retrospectiva (voluntas legislatoris) e prospectiva (voluntas legis). É a partir dessa dupla visão que deve aparecer o significado concreto da norma, “reconhecendo-se ao intérprete um papel ativo e criador no processo hermenêutico, o que se torna ainda mais relevante no caso de se constatar a existência de lacunas no sistema legal”20. Mas será que o melhor caminho é esse? Será que interpretar é uma questão de descobrir alguma coisa? Será que a linguagem tem a capacidade de representar algo? Não seria a interpretação uma tradução? 4.4. INTERPRETAÇÃO E TRADUÇÃO: UMA ANALOGIA ESCLARECEDORA Traduzir é transpor o texto de uma língua para outra21. Admitindo que o legislador se utilize de uma língua e que o conflito a ser decidido seja derivado de um ruído na comunicação realizada a partir de outra língua, nota-se a contribuição que a teoria da tradução pode prestar à hermenêutica jurídica. O legislador se utiliza de uma linguagem técnica ou normativa. Os participantes do conflito se valem de uma linguagem normal ou cotidiana, língua natural. Logo, o problema é: como fazer a tradução de uma língua para outra? Há três hipóteses de tradução: “(a) se as regras básicas de ambas as línguas coincidem,

20

REALE, Ob. cit., p. 289. 21

FLUSSER, Vilem. Para uma teoria da tradução.

Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, volume 19,

fascículo 73, 1969, passim.

é possível traduzi-las uma para outra; (b) se a coincidência é apenas parcial, ocorre uma transferência que exige adaptação; (c) se não coincidem, elas são incomunicáveis”22. No primeiro tipo de tradução, ela é feita por correspondência, pois há entre as duas línguas, por exemplo, vocábulos que se equivalem. Na segunda modalidade, a tradução é feita mediante adaptação, admitindo-se, assim, uma margem reduzida de liberdade ao intérprete. E, no terceiro tipo de tradução, ela, em princípio, seria impossível. No entanto, neste último caso, é possível uma transposição indireta. Ou seja, lança-se mão de uma terceira língua que possa ser utilizada como um canal de acesso entre as duas outras. O que é preciso é que esta língua contenha, entre as suas regras secundárias, as regras básicas das outras. O certo é que, nesta terceira espécie de tradução, ela se dá mediante a “recriação do sentido por meio de uma língua intermediária”23. A língua hermenêutica é esta língua intermediária que permite a tradução da língua normativa para língua cotidiana. Logo, o problema da hermenêutica jurídica não é a descoberta de um significado ou de uma vontade (voluntas legis ou legislatoris) – a língua não é capaz de representar nada - mas, sim, a construção dele e, a seguir, a sua atribuição à norma jurídica para fins de decisão do conflito jurídico. Fica evidente, então, a relação entre poder e saber, entre hermenêutica jurídica e poder.

5. HERMENÊUTICA JURÍDICA E PODER Segundo Alysson Leandro Mascaro, até mesmo “a teoria de Kelsen, quando trata a respeito da interpretação, expõe o problema nevrálgico da hermenêutica jurídica: ela é um procedimento de poder”24. Não se pode negar que o profissional do Direito não se desvencilha da sua biografia de vida. “Ele é alguém que tem convicções, experiências, ideologia, compromissos políticos, econômicos, culturais, religiosos, de classe social. Daí que o jurista nunca analisa a norma a partir do nada.

22

FERRAZ JR, 2007, p.274. 23

FERRAZ JR, 2007, p.275. 24

MASCARO, Ob. cit., p. 158.

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Ele lê a norma de acordo com a sua visão de mundo”25. Como assinala Hans-Georg Gadamer, a hermenêutica não é uma atividade descompromissada, não é uma ingênua operação lógico-dedutiva, antes se mostra como um ato existencialmente interessado. A norma jurídica não é apenas um texto. Ela, a norma jurídica, não se originou a partir do nada. Além disso, convém lembrar que o intérprete da norma também não é um ser sem experiências e condicionantes. “O jurista interpreta a norma a partir de sua situação existencial, de seu tempo, de suas circunstâncias sociais”26. Em suma, “toda compreensão é uma pré-compreensão. Compreender é um aprender-com, ou seja, é uma tomada de entendimento a partir de uma determinada situação, construída socialmente”27. Logo, não se interpreta primeiro para decidir depois, antes o contrário, decide-se primeiro para depois se interpretar.

6. MÉTODOS HERMENÊUTICOS Os métodos de interpretação, na realidade, não são métodos, mas, sim, regras técnicas que objetivam a obtenção de um resultado. A partir delas buscam-se “orientações para os problemas de decidibilidade dos conflitos. Esses problemas são de ordem sintática, semântica e pragmática”28. Essas regras subdividem-se em três categorias: a primeira, orientada à textualidade da norma e sua relação com as demais normas; a segunda, que aponta para o contexto da norma; e uma terceira, que realçam os objetivos da norma jurídica. Dentro do primeiro grupo, encontram-se as regras gramatical, lógica e sistemática. A interpretação gramatical dedica-se à análise do texto, seja em seu aspecto morfológico, seja em seu prisma sintático, seja em sua dimensão semântica. Já a interpretação lógica “procede de acordo com as ferramentas que clarificam o

25

MASCARO, Ob. cit., p. 159. 26

MASCARO, Ob. cit., p. 159. 27

MASCARO, Ob. cit., p. 159. 28

FERRAZ JR, 2007, p.289.

sentido e a compreensão do texto”29. E, a interpretação sistemática, é aquela que é realizada a partir da ideia de que a norma não se encontra isolada no ordenamento jurídico, antes estando emaranhada em meio a certo contexto normativo. Na segunda categoria, podem ser encontradas as regras histórica, sociológica e evolutiva. A histórica é aquela que busca entender as circunstâncias, que em determinado contexto histórico, provocaram a formação da norma jurídica. A sociológica objetiva “buscar, na sociedade, as causas que geraram base à formação da norma”30. E, a evolutiva, é a que procura “entender as mudanças, as correções de sentido, novos entendimentos ou rupturas no que tange à hermenêutica da norma jurídica”31. Enfim, no que toca à terceira modalidade, há duas regras, são elas: a teleológica e a axiológica. A primeira tem por finalidade a busca, a partir das normas e das situações jurídicas, da compreensão de seus propósitos. Ou seja, ela tenta descobrir o objetivo que o ordenamento jurídico busca alcançar com a norma jurídica que está sendo interpretada. Já a segunda regra, a axiológica, que tenta compreender quais são os valores que se encontram relacionados à norma jurídica.

7. TIPOS DE INTERPRETAÇÃO Três são os tipos de interpretação, segundo o seu resultado, são eles: especificadora, extensiva e restritiva. A especificadora é aquela que fixa os limites de um determinado conceito jurídico. A restritiva é a que delimita a compreensão da norma, de maneira a diminuir as hipóteses de aplicação dela. E a interpretação extensiva é a que amplia o campo de possibilidades hermenêuticas de uma norma jurídica32.

29

MASCARO, Ob. cit., p. 162. 30

MASCARO, Ob. cit., p. 163. 31

MASCARO, Ob. cit., p. 163. 32

MASCARO, Ob. cit., p. 164-165.

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Bernardo Montalvão

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8. FUNÇÃO SOCIAL DA HERMENÊUTICA A função social da hermenêutica jurídica é enfraquecer as tensões sociais, “na medida em que neutraliza a pressão exercida pelos problemas de distribuição de poder, de recursos e de benefícios escassos. E o faz, ao torná-los conflitos abstratos, isto é, definidos em termos jurídicos e em termos juridicamente interpretáveis e decidíveis”33. A “hermenêutica possibilita uma espécie de neutralização (manter sobre controle) dos conflitos sociais, ao projetá-los numa dimensão harmoniosa – o mundo do legislador racional – no qual, em tese, tornam-se todos decidíveis. Ela elimina, assim, as contradições, mas as torna suportáveis. Portanto, não as oculta propriamente, mas as disfarça, trazendo-as para o plano de suas conceptualizações”34. Em suma, a hermenêutica jurídica “conforma o sentido do comportamento social à luz da incidência normativa. Ela cria assim condições para decisão”35.

QUADRO SINÓTICO:

QUESTÃO: 01) SEGUNDO KELSEN, O QUE É INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA: a) é a interpretação original. b) é a interpretação doutrinária. c) é a interpretação feita pelo órgão autorizado pela norma jurídica. d) é a interpretação que busca a vontade da lei.

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FERRAZ JR, 2007, p.323. 34

FERRAZ JR, 2007, p.323. 35

FERRAZ JR, 2007, p.323.

e) é a interpretação que busca a vontade do legislador. 02) ACERCA DA HERMENÊUTICA JURÍDICA, É CORRETO AFIRMAR: a) Segundo a Escola de Exegese, a interpretação busca descobrir a vontade da lei. b) Segundo Miguel Reale, a interpretação jurídica não é um saber científico. c) Segundo Tercio Ferraz, a interpretação jurídica é uma tradução. d) Segundo Eros Grau, interpretação é algo separado da aplicação.

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GABARITO 1. C 2. C