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Paulo Todescan Lessa Mattos

RESUMO

Este artigo sustenta que as características da formação do Es-

tado regulador brasileiro, antes de se apresentarem relacionadas a disputas entre economistas neoclássicos e econo-

mistas keynesianos, estariam vinculadas a disputas entre interpretações do Brasil que tomam como foco de análise a

dinâmica política da relação entre Estado e sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Estado regulador; interpretações do Brasil; Celso

Furtado; Fernando Henrique Cardoso.

SUMMARY

This article suggests that the formative particularities of the

Brazilian regulatory State, before being understood as disputes between neoclassical and Keynesian economists, would

be related to disputes between interpretations of Brazil which take as a guideline the political dynamics of the relation

between State and society.

KEYWORDS: Regulatory State; interpretations of Brazil; Celso Furtado;

Fernando Henrique Cardoso.

NOVOS ESTUDOS 76 ❙❙ NOVEMBRO 2006 139

[1] Agradeço a todas as críticas e co-mentários que recebi, especialmentede Marcos Nobre, Jean Paul Rocha,Tiago Cortez,José Rodrigo Rodriguez,José Arthur Giannotti e Charles Sabel.

[2] Ver Francisco de Oliveira,“A eco-nomia brasileira: crítica à razão dua-lista”. Estudos Cebrap, nº 2, 1972, pp.3-82;José Luís Fiori,O vôo da coruja —para reler o desenvolvimentismo brasi-leiro. Rio de Janeiro: Record, 2003, e“O nó cego do desenvolvimentismobrasileiro”. Novos Estudos Cebrap, n.º40, nov. de 1994, pp. 125-44.

[3] Ver Celso Furtado. Desenvolvi-mento e subdesenvolvimento. 3a ed. Riode Janeiro: Fundo de Cultura, 1965,pp.175-85.

A existência de um modelo de Estado regulador nãoconstitui uma novidade no Brasil, apesar de muitos preferirem quali-ficá-lo de Estado planejador ou Estado desenvolvimentista. No pro-cesso de desenvolvimento do sistema capitalista, o Estado planejadordesenvolvimentista2 surge em países periféricos a partir da necessidadede industrialização. Em geral, esses países são de industrialização tar-dia e não conseguem criar, no contexto de organização política e atua-ção da classe empresarial nacional, poupança interna para o desenvol-vimento da economia de forma não dependente do capital externo.3

É certo que a compreensão do fenômeno do planejamento econô-mico no Brasil implica a análise das economias subdesenvolvidas quepassaram por processos de industrialização tardia e a percepção desuas características particulares.Contudo,é necessário ir além de umaexplicação vinculada apenas ao fenômeno do planejamento econô-mico e, igualmente, que não se restrinja tão somente à participaçãodireta do Estado no setor produtivo de bens e serviços com o objetivode conduzir o desenvolvimento econômico. Isso porque a principal

A FORMAÇÃO DO ESTADO REGULADOR1

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[4] A ação regulatória do Estado po-de ser considerada como um con-junto de técnicas administrativas deintervenção sobre a economia. Aodefinir o conteúdo da regulação, aAdministração pode escolher dife-rentes técnicas para gerar efeitossobre a economia. Cada técnica temuma lógica própria que está relacio-nada ao tipo de estrutura ou relaçãoeconômica a ser regulada e aos objeti-vos da regulação, considerando osefeitos almejados (política industrial,correção de “falhas de mercado”,estí-mulo ao desenvolvimento regional,estímulo à concorrência, etc.). Tendoem vista que a escolha de tais técnicasé feita pela Administração (e não li-vremente pelos agentes no mercado)e que constituem formas de interven-ção (externas) sobre a dinâmica (in-terna) de funcionamento da econo-mia, preferi adotar genericamente aexpressão “regulação” para caracteri-zar qualquer forma de intervenção doEstado sobre a economia. Nesse sen-tido, formas de planejamento econô-mico ou formas de correção de “falhasde mercado”,por exemplo,podem serconsideradas técnicas administrati-vas distintas de regulação da econo-mia. No mesmo sentido, ver: MichaelPior e Charles Sabel.The Second Indus-trial Divide: Possibilities for Prosperity.New York: Basic Books, 1984.

característica do Estado planejador no Brasil é de ordem política,con-forme sugerido a seguir.

Neste trabalho, procurarei contextualizar a formação do Estadoregulador no Brasil e em seguida apresentar, em linhas gerais, trêsmodelos de compreensão da organização da burocracia estatal paraintervenção do Estado na economia.Em primeiro lugar,o modelo jurí-dico-institucional concebido no âmbito do pensamento autoritárioclássico;em segundo,o modelo analítico proposto por Fernando Hen-rique Cardoso;e,em terceiro,o modelo analítico formulado por CelsoFurtado e sua aproximação com a análise de Cardoso,tendo em vista areconstrução levada a cabo por Francisco de Oliveira.Feito isso,o pró-ximo passo será contextualizar o modelo do novo Estado reguladorcaracterizado pela reforma do Estado conduzida pelo governo Fer-nando Henrique Cardoso; e, depois, contextualizar os impassesenfrentados pelo governo Lula por não dispor de um modelo alterna-tivo aos modelos anteriores.

Não é minha preocupação analisar neste trabalho as vantagens oudesvantagens do modelo x ou y de regulação4 da economia brasileira,porquanto meu interesse principal está voltado para a análise das inter-pretações do Brasil que estariam na base da formação da burocracia esta-tal concebida para organizar setores da economia brasileira no processohistórico de industrialização do país.Desse modo,procurarei defendera seguinte tese:as características da formação do Estado regulador bra-sileiro, antes de se apresentarem relacionadas a disputas entre econo-mistas neoclássicos e economistas keynesianos,estariam vinculadas adisputas entre interpretações do Brasil que tomam como foco de aná-lise a dinâmica política da relação entre Estado e sociedade.

Nessa perspectiva,as especificidades do caso brasileiro se tornarãomais evidentes se,no estudo da formação do Estado regulador no Bra-sil, o foco de nossa análise for deslocado das técnicas administrativas(técnicas econômicas e modelos econômicos para regular) para ascondições de exercício de poder no interior dos novos loci de poderdecisório institucionalizados com a criação de uma nova burocraciaestatal (incluindo aí as empresas estatais).É nessa medida que podemser pensadas de forma dinâmica a organização da burocracia estatal nopaís e as condições (incluindo os seus aspectos jurídicos) em queforam tomadas as decisões sobre regulação da economia.

Esse é o sentido político da análise pretendida. O mesmo sen-tido analítico foi proposto por Celso Furtado em Dialética do desen-volvimento:

continuamos a falar de planejamento econômico como se se tratasse de umproblema de opção entre técnicas elaboradas por hábeis economistas,quando o planejamento pressupõe a formulação de política e uma atitude

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[5] C. Furtado. Dialética do desenvol-vimento. Rio de Janeiro: Fundo deCultura, 1964, pp. 77-78. Em sentidopróximo, ver: F. de Oliveira, op. cit; eJosé Luís Fiori, op. cit.

[6] Ver Eli Diniz.Empresário, estado ecapitalismo no Brasil: 1930-1945. Riode Janeiro: Paz e Terra, 1978; OtávioIanni, Estado e planejamento econômi-co no Brasil (1930-1970).Rio de Janei-ro:Civilização Brasileira,1971;CarlosEstevam Martis. Capitalismo deEstado e modelo político no Brasi. Rio deJaneiro: Graal, 1977.

[7] Para uma relação dos órgãos cria-dos entre 1930 e 1968, ver: AlbertoVenâncio Filho. A intervenção do Es-tado no domínio econômico: O direitopúblico econômico no Brasil. Rio de Ja-neiro: Renovar, 1998. Para uma rela-ção dos órgãos criados entre 1956 e1985,ver:Adriano Nervo Codato.Sis-tema estatal e política econômica no Bra-sil Pós-64. São Paulo: Hucitec, 1997,pp. 347-49.

[8] Ver Luciano Coutinho e Henri-Philippe Reichstul. “O setor produti-vo estatal e o ciclo”.In:Carlos EstevamMartins (org.).Estado e capitalismo noBrasil. São Paulo: Hucitec-Cebrap,1977, pp. 58-59.

com respeito ao grau de racionalidade que se deseja alcançar em política eco-nômica. Ora, não cabe pensar em política senão em termos de fatores quecondicionam o exercício do poder,o que exige superar os “modelos analíticos”e abordar a atividade humana concreta dentro de uma realidade histórica.5

PENSAMENTO AUTORITÁRIO

A partir do primeiro governo Vargas, ganha ímpeto o processo deindustrialização do país:adotam-se mecanismos de proteção de seto-res da economia nacional, forma-se uma nova burocracia estatal pararegular a economia brasileira e criam-se empresas estatais para impul-sionar o desenvolvimento industrial6. Surge nesse quadro uma sériede órgãos federais de coordenação e planejamento econômico, autar-quias especializadas para a regulação de setores específicos da econo-mia e empresas estatais que,articuladas aos órgãos reguladores,cana-lizam os investimentos produtivos necessários à industrialização.7

De fato, a partir dos anos 1930, o principal aspecto que marca oprocesso de industrialização brasileiro é a coordenação dos investi-mentos no setor produtivo estatal. A necessidade de tal tipo de coor-denação implicou a adoção de novas técnicas administrativas de regu-lação da economia, que não se limitavam apenas às usuais técnicas deadministração fiscal e monetária. Mais do que isso, eram técnicas decriação e acumulação de capital produtivo,de centralização e interme-diação de capital financeiro, ao lado de técnicas de coordenação dosinvestimentos por meio de empresas estatais e privadas.Desde então,o setor produtivo privado passou a se desenvolver estreitamente enla-çado com o setor produtivo estatal.8

Dado esse contexto, cabe observar que, a partir dos anos 1930, odesenvolvimento da economia brasileira esteve voltado para a institu-cionalização de processos de industrialização. Assim, o desenvolvi-mento ocorreu centrado, essencialmente, no Estado, ou melhor, combase na forma pela qual o Estado planejou o desenvolvimento econô-mico através de empresas estatais e,principalmente,por meio da arti-culação entre capital estatal e capital privado.

A compreensão das especificidades desse tipo de política industrialdepende,pois,da análise de como os órgãos e empresas estatais criadosnesse período atuaram no plano político e de como foram tomadas asdecisões relativas à articulação entre capital estatal e capital privado paraa realização de investimentos no setor produtivo nacional.As condiçõesde regulação da economia e do desenvolvimento econômico passaram adepender da forma pela qual as decisões são tomadas ou,em outras pala-vras,de como se dá o exercício de poder no interior da burocracia estatal.

Nos anos 1930,a formação e institucionalização do Estado regu-lador brasileiro foram marcadas pelo pensamento autoritário naciona-

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[9] Ver F. de Oliveira, “Viagem aoolho do furacão: Celso Furtado e odesafio do pensamento autoritáriobrasileiro”.In:F.de Oliveira.A navega-ção venturosa: ensaios sobre Celso Fur-tado. São Paulo: Boitempo Editorial,2003. pp. 59-82; C. Furtado. Brasil:tempos modernos. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1968; e Fernando HenriqueCardoso. “O regime político brasi-leiro”. Estudos Cebrap, nº 2, out. 1972,pp.84-118.

[10] Para uma análise das proposiçõesde reformas jurídicas na Era Vargas —principalmente no que diz respeito aodireito público —, período em que seacentuou a intervenção do Estado naeconomia por meio da criação deórgãos de planejamento e de fiscaliza-ção da implementação de políticassetoriais,ver:Bilac Pinto.Regulamenta-ção efetiva dos serviços de utilidadepública. Rio de Janeiro: Forense, 1941;Francisco Campos. Direito administra-tivo.Rio de Janeiro:Imprensa Nacional,1943;Oliveira Vianna,Instituições políti-cas brasileiras: fundamentos sociais doEstado.São Paulo: José Olympio,1949.Ver também as propostas de AlbertoTorres, que influenciaram intelectual-mente Oliveira Vianna:Alberto Torres.A organização nacional. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, 1914. Para umaanálise das mesmas reformas no planoda história do direito, ver: José Rei-naldo Lima Lopes. O direito na história.São Paulo: Max Limonad, 2000. Parauma análise do pensamento políticoautoritário que está na base da forma-ção do estado regulador na PrimeiraRepública do Brasil, ver: Bolivar La-mounier. “Formação de um pensa-mento político autoritário na PrimeiraRepública — Uma interpretação”. In:Boris Fausto (dir.). História da civiliza-ção brasileira. O Brasil republicano — 2.Sociedade e instituições (1889-1930).Riode Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, pp.345-74.

[11] Ver E. Diniz, op. cit., pp. 71-72.

[12] Nesse sentido,Raymundo Faorodescreveu a formação dos estamentosburocráticos no Brasil no seu livroclássico Os donos do poder — Formaçãodo patronato político brasileiro (Rio deJaneiro:Editora Globo,1958,p.267).

[13] “O processo político em um paíssubdesenvolvido com as característi-cas indicadas tende a apresentar-sesob a forma de uma permanente lutapelo poder, entre os grupos que com-

lista9.Centralizado no Estado,o modelo de organização da economiarefletiu, na época, um pensamento autoritário que, ao fazer a críticado pensamento liberal, não rompia com as relações de poder e domi-nação vigentes. Autores como Francisco Campos, Oliveira Vianna,Azevedo do Amaral e Alberto Torres10, entre outros, deram suporteteórico ao modelo de Estado adotado nessa época. Revelando umaconcepção autoritária de Estado forte e centralizado11, esse modeloacabou por internalizar no processo político a oligarquia, reprodu-zindo relações patrimonialistas.12

Diferentemente dos casos norte-americano e europeu, em que, napassagem do Estado liberal para o Estado regulador, houve uma dis-puta ampla de grupos sociais que resultou numa forma particular deorganização da burocracia estatal, no Brasil não houve propriamenteconflito social. Aqui, luta de poder se restringiu aos grupos dominan-tes com acesso aos canais de circulação de poder político e controle damáquina estatal.13

De fato,a formação da burocracia estatal brasileira e a expansão doprocesso de criação de empresas estatais estiveram diretamenteassociadas a uma relação de subordinação, ou de aliança, dos tecno-cratas com a burguesia representante do capitalismo local e multina-cional14. E esta relação teria se intensificado e se sofisticado com achegada de uma nova classe social ao poder: os militares associadosaos tecnoburocratas.15

Esse processo foi descrito por Peter Evans em Dependent develop-ment, estudo crítico que faz uma síntese do debate sobre o processo deformação da burocracia estatal desenvolvimentista no Brasil.16

Segundo Evans,o Estado planejador no Brasil não se teria constituídopor meio de nacionalizações, permitindo a substituição negociada deuma burguesia industrial nacional pelo Estado (como ocorreu naFrança e na Inglaterra,por exemplo)17. Ele observa que,no contexto daindustrialização européia, diferentemente do caso brasileiro, houveuma disputa política entre grupos sociais, incluindo aí a classe traba-lhadora organizada em sindicatos de expressiva representação polí-tica. E mais: na Europa, a democracia representativa foi assumidacomo o melhor sistema político para o desenvolvimento econômicoassociado ao crescimento da intervenção do Estado na economia. NoBrasil, país que adotou uma matriz de desenvolvimento dependentedo capital multinacional,a associação entre democracia e acumulaçãocapitalista não teria condições de se sustentar.18

Esse argumento pode ser ilustrado, empiricamente, a partir deduas constatações. Em primeiro lugar, o fato de o Estado reguladorbrasileiro ter se desenvolvido diretamente associado a regimes autori-tários, cujo exemplo culminante foi o regime ditatorial-militar de1964-1985,período em que se verificaram o enfraquecimento do Con-

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põem a classe dominante, em razãoda extraordinária importância quetem o controle da máquina estatal.Inexistindo um processo endógenono sistema, capaz de provocar a for-mação da consciência de classe damassa trabalhadora industrial, estegrupo permanece tão disponívelquanto os assalariados de classe mé-dia para serem trabalhados por ideo-logias da classe dominante, a serviçode suas facções internas em luta” (C.Furtado, Dialética do desenvolvimento,ed.cit.,p.83).

[14] Para uma avaliação da evoluçãoe coordenação dos investimentos pri-vados nacionais e internacionais, edos investimentos estatais nos seto-res produtivos da economia brasi-leira, ver: Luciano Coutinho e Henri-Philippe Reichstul, op. cit. Desde ogoverno Kubitschek, e mais especifi-camente no período militar, até 1972,há um aumento significativo dadependência dos investimentos pro-dutivos de capital internacional. So-bre a evolução da relação entre empre-sariado nacional e Estado no Brasil,ver: Eli Diniz e Renato Raul Boschi.Empresariado nacional e Estado no Bra-sil. Rio de Janeiro: Editora ForenseUniversitária, 1978.

[15] Para uma análise conceitual datecnocracia e da tecnoburocracia e dosentido político das relações de poderburocrático nesse momento histó-rico, ver: Carlos Estevam Martins,“Tecnocracia e burocracia”. EstudosCebrap, nº 2, out. de 1972, pp. 119-46.

[16] Ver Peter Evans. Dependent Deve-lopment — The Alliance of Multinational,State, and Local Capital in Brazil.Prince-ton: Princeton University Press, 1979,p.50.

[17] Idem, p. 47.

[18] Idem, p. 49.

[19] Na linha da análise de Evans, éigualmente útil a caracterização queJosé Luiz Fiori faz desse modelo deEstado regulador próprio de econo-mias capitalistas dependentes . VerJosé Luís Fiori,op.cit.

[20] O Judiciário sofreu também li-mitações na sua capacidade de con-trole da ação regulatória do Estado.Tais limitações decorreram das carac-terísticas políticas da centralizaçãono Executivo e, principalmente, dos

gresso e a supressão dos direitos políticos. Em segundo, o fato de oscanais de circulação de poder político terem se concentrado,essencial-mente, na figura do presidente da República, tornando-se ele o chefeda administração direta e o responsável pela formulação de políticaspúblicas a serem executadas pelos órgãos da administração indiretaou pelas empresas estatais.

Nesse trabalho, Peter Evans focaliza principalmente o advento darelação entre desenvolvimento econômico e autoritarismo. Sua pes-quisa procura mostrar que o tipo de autoritarismo,de forte cunho cen-tralizador, posto em prática pela ditadura militar no período de 1964-1985, reforçou no país a dependência econômica e a exclusão social.Isso porque as políticas públicas,definidas tanto nos gabinetes minis-teriais como por uma tecnoburocracia especializada, eram resultadodas relações de poder da aliança entre tecnocratas, elites locais e mul-tinacionais, e sempre beneficiaram esses grupos em detrimento dasclasses excluídas ou sem acesso aos canais de circulação do poder polí-tico. Nesse sentido, os argumentos que davam suporte à formulaçãode políticas públicas atendiam à racionalidade de legitimação de qual-quer conteúdo,desde que atendesse aos interesses dos grupos partici-pantes da aliança.19

Esse quadro permite a compreensão da enorme centralização depoder decisório na figura do presidente da República, na burocraciaministerial e nas autarquias e empresas estatais a esta última subordi-nadas, fato que caracterizou a implantação do projeto autoritário deEstado regulador inaugurado por Vargas.

Um efeito claro dessa centralização — para além da limitação doscanais de circulação de poder político e de participação mais ampla noprocesso decisório de grupos na “sociedade civil” — é a pouca impor-tância que o Poder Legislativo desempenhou nesse modelo.20 Essasconstatações seguem uma tendência de análise que se manifestouentre cientistas sociais brasileiros, especialmente na década de 1970,quando analisaram a organização da burocracia estatal e o processo deindustrialização e desenvolvimento econômico no Brasil, buscando,em geral, caracterizar um modelo jurídico-institucional de Estadoregulador autoritário.

“ANÉIS BUROCRÁTICOS”

Um exemplo sofisticado de análise crítica do modelo jurídico-ins-titucional do Estado regulador no Brasil é o conceito de “anéis buro-cráticos” do Estado. Formulado por Fernando Henrique Cardoso,esse conceito buscou analisar a organização política da sociedade bra-sileira e o papel desempenhado pelo Estado no processo de industria-lização enquanto Estado planejador desenvolvimentista.

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reflexos desse fenômeno na forma deoperacionalização da dogmática jurí-dica, conforme procurei discutir emartigo que trata do conceito de discri-cionariedade administrativa no direitobrasileiro (ver: Paulo Todescan LessaMattos. O novo Estado regulador noBrasil: direito e democracia. São Paulo:Tese de doutorado, Departamento deFilosofia e Teoria Geral do Direito daUniversidade de São Paulo, 2004; eidem, “Autonomia decisória, discri-cionariedade administrativa e legiti-midade da função reguladora doestado no debate jurídico brasileiro”.Revista de Direito Público da Economia,Belo Horizonte, Editora Fórum, vol.12, out./dez. 2005, pp. 169-95).

[21] Ver Fernando Henrique Cardo-so. O modelo político brasileiro e outrosensaios. 2a ed. São Paulo: DifusãoEuropéia do Livro, 1973, p. 94.

[22] Ver C. Furtado. Dialética do de-senvolvimento, ed. cit., p. 83.

[23] Ver R. Faoro, op. cit., pp. 261-71.

Do ponto de vista jurídico-institucional,o Estado regulador brasi-leiro revelou na sua formação características do movimento de fortale-cimento próprias ao modelo de desenvolvimento econômico keyne-siano. Nesse sentido, o crescimento da burocracia estatal com vistasao planejamento racional de várias esferas da vida social e,em particu-lar, da economia, também ocorreu no Brasil, especialmente por meioda criação de órgãos de planejamento econômico,autarquias especia-lizadas e empresas estatais.

Todavia, a legitimidade da ação estatal no processo brasileiro deindustrialização teria sido justificada a partir do próprio Estado e nãoa partir da “sociedade civil”. Conforme escreve Cardoso,

no caso brasileiro, desde os primórdios da ação planejadora, no GovernoDutra e,especialmente,no segundo governo de Vargas,o plano surgiu como oresultado de um diagnóstico de carências formulado por técnicos,guiados porvalores de “fortalecimento nacional”, mas num quadro de apatia da “socie-dade civil” e,especialmente,dos políticos profissionais.21

A formação do Estado regulador brasileiro significou,pois,a cons-tituição de uma nova burocracia e uma nova classe: os funcionáriospúblicos tecnocratas. A partir do próprio Estado, essa nova classe játeria sido mobilizada no primeiro governo Vargas.E o suporte políticoda nova burocracia teria se amparado nas políticas populistas22 quemobilizaram as massas a partir do dinamismo econômico próprio dosresultados econômicos gerados pelo Estado regulador.

Dessa maneira, tanto com Vargas no Estado Novo, acentuando-se com Dutra, novamente com Vargas em seu segundo governo,quanto com Kubitschek e, depois, com os militares a partir de 1964,o apoio político à atuação do Estado dependeu em grande parte deresultados econômicos que garantissem a adesão ou a ausência dequestionamento de setores da “sociedade civil” não representadosou pouco representados.

Segundo Cardoso,o Estado reguladorbrasileiro,por não estar fun-dado na representação de interesses da sociedade civil, teria represen-tado na sua formação uma acomodação apenas dos interesses daadministração tradicional, clientelista, nos seus vários níveis de orga-nização de poder.Tal argumento está em linha com a tônica da análisefeita por Raymundo Faoro em Os donos do poder, ao afirmar que, dianteda tecnocracia nascente no plano de um Estado centralizador com fei-ções autoritárias,o patrimonialismo teria permanecido como caracte-rística da formação da burocracia estatal brasileira e os estamentosburocráticos teriam se institucionalizado.23

O passo adiante de Cardoso em relação à análise de formação dosestamentos burocráticos de Faoro está na idéia de que, com o forta-

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[24] Ver F. H. Cardoso, op. cit., pp.99-100.

[25] Idem, pp. 101-02.

[26] Ver idem, Autoritarismo e demo-cratização, Rio de Janeiro: Paz e Terra,1975, p. 208.

lecimento da nova burocracia estatal planejadora, as alianças entreinteresses políticos e econômicos se organizaram de forma maissofisticada. E essa sofisticação teria ocorrido essencialmente por-que se formaram no interior da burocracia estatal “ilhas de raciona-lidade” que permitiram justificar políticas públicas em nome de cri-térios “meramente” técnicos. Entretanto, como essas “ilhas deracionalidade” se formaram dentro de uma estrutura administrativatradicional, caracterizada pelo clientelismo político, elas acabarampor não servir ao “interesse público”, mas aos interesses privadosque se organizaram no interior do Estado e foram catalisados a par-tir do próprio Estado.

Nessa perspectiva, o planejamento econômico, enquanto técnicaadministrativa de intervenção do Estado na economia — sem afastarou discutir aqui a sua importância no plano técnico-econômico —,teria tido no Brasil funções políticas importantes na organização deinteresses políticos e econômicos das classes dirigentes. No entanto,essa organização foi interna ao próprio Estado, estando ausente naformação da burocracia brasileira a representação de partidos declasse, de sindicatos e de associações não-governamentais.24

A análise que Cardoso faz desse fenômeno dos “anéis burocráti-cos” altera-se quando entra em foco o regime político pós-64. Nessemomento, teria ocorrido uma quebra do populismo como instru-mento de mobilização e sustentação política a partir do Estado e, aomesmo tempo, surge um novo sistema no qual as decisões políticaspassaram a ser tomadas pelas Forças Armadas enquanto corporação(uma burocracia de base técnica).25 Após Castelo Branco,com a perdade função dos partidos políticos e o enfraquecimento do Legislativo,osistema de “anéis burocráticos” apresenta grau maior de sofisticação;as relações políticas centralizam-se ainda mais no interior do Estado ena figura dos funcionários públicos tecnocratas.

Conforme escreve Cardoso, as qualidades requeridas para fazerparte de um “anel”

não advêm da existência de solidariedades ou da possibilidade de busca derecursos políticos comuns entre camadas ou frações de classe mais amplas,masda definição, nos quadros dados pelo regime, de um interesse específico quepode unir, momentaneamente ou, em todo caso, não permanentemente, um“círculo de interessados” na solução de um problema:uma política energéticaou rodoviária,o encaminhamento de uma sucessão estadual,a defesa de umapolítica tarifária etc.O que os distingue de um lobby é que são mais abrangen-tes (ou seja, não se resumem ao interesse econômico) e mais heterogêneos emsua composição (incluem funcionários, empresários, militares, etc.) e, espe-cialmente, que para ter vigência no contexto político-institucional brasileiro,necessitam estar centralizados ao redor do detentor de algum cargo.26

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[27] Idem, p. 213.

[28] Idem, p. 207.

[29] Sobre o papel do Legislativo nocontexto político de formação doconteúdo das políticas econômicasdurante o governo Kubitschek —antes, portanto, de seu enfraqueci-mento no contexto da ditadura mili-tar de 1964-1985 —,ver:Maria Victo-ria de Mesquita Benevides.O GovernoKubitschek: desenvolvimento econômicoe estabilidade política, 1956 — 1961.Riode Janeiro: Paz e Terra, 1976; e CelsoLafer. JK e o programa de metas (1956-1961): processo de planejamento e sis-tema político no Brasil. Rio de Janeiro:Editora FGV, 2002.

[30] Ver F. H. Cardoso, Autoritarismoe Democratização, ed. cit., p. 207.

[31] Conforme aparecem nas análi-ses de Gilberto Freyre, Sérgio Buar-que de Holanda ou mesmo de Ray-mundo Faoro.

A diferença central entre a organização dos “anéis burocráticos” noEstado regulador de orientação populista e nesse Estado regulador auto-ritário está numa dissolução ainda maior de qualquer tipo de legitima-ção das políticas públicas a partir da “sociedade civil”. Se no períodoanterior já não havia no Brasil uma força legitimadora essencialmentedemocrática,visto que as políticas populistas induziam o apoio populara partir do Estado,no regime político pós-64,especialmente de 1968 emdiante,teria havido a exclusão da “representatividade em geral,e a popu-lar em especial,como fonte legitimadora do Estado”.27

Outra diferença importante está no fato de que o regime pós-64representou a montagem de um modelo de desenvolvimento indus-trial ainda mais dependente do capital multinacional. Assim, novasforças privadas, beneficiárias diretas do regime — “os setores indus-triais exportadores, os setores contratistas de obras, os setores extra-tivo-exportadores, o grande capital multinacional e o capital finan-ceiro mobilizado para sustentar a nova etapa da acumulação e docrescimento econômico”28 —, irão se articular aos funcionários doEstado (civis e militares) para garantir seus interesses.Ou seja,as rela-ções clientelistas que, antes, por meio dos partidos políticos29, aindatinham alguma força no Legislativo, agora se darão diretamente nointerior dos ministérios e das autarquias a eles subordinadas, sob atutela da Presidência da República no exercício de uma espécie de“função moderadora”.30

A contribuição de Cardoso é importante porque mostra como oautoritarismo no Brasil, legitimado seja por políticas populistas, sejapor altos índices de crescimento econômico,teria sido incorporado nabase de funcionamento do sistema político.E,como conseqüência dofenômeno do Estado regulador, o crescimento da burocracia estatalteria sido também incorporado como forma de garantia do exercíciode poder político autoritário pelas classes dirigentes e por aqueles aelas associadas por meio dos “anéis”.

Nesse sentido, Cardoso vai além das análises culturalistas que pro-curavam identificar as raízes socioculturais do exercício do poder:a che-fia autocrática e paternalista,a figura do “homem cordial” ou a imagemda cultura patrimonialista lusitana, etc.31. Ele procurou analisar como osistema político se organizou no Brasil em torno e a partir da burocraciaestatal,sofisticando-se e se transformando ao longo do tempo conformemudavam os grupos no poder.E o elemento central de sua análise esteveno modo de articulação de determinados segmentos da “sociedadecivil”,incluindo também aí a representação de interesses do capital mul-tinacional e financeiro,a partir da burocracia estatal.Ou seja,o problemadeixa de ser apenas sociocultural e passa a ser sistêmico, que pode serdescrito a partir da forma pela qual as instituições político-jurídicas sãoorganizadas e operadas pelas classes que estão no poder.

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[32] Ver J. L. Fiori, op. cit.

[33] Ver José Eduardo Faria. “Legali-dade e legitimidade — O Executivocomo legislador”. Revista de Informa-ção Legislativa de Brasília, a. 22, n. 86,abr/jun 1985.

A idéia de “anéis burocráticos” demonstra que não foi a partir doembate na “esfera pública” entre forças políticas distintas e variadas da“sociedade civil” que se deu a formação de uma burocracia concebidapara regular as esferas da vida social. Essa burocracia teria se consti-tuído centrada no próprio Estado e nas forças que se articularam em seuinterior; um Estado que se modernizou ao longo do tempo, adotandosofisticadas técnicas administrativas de regulação da economia. Esseseria um modelo de Estado regulador, organizado na forma de umaburocracia pouco permeável às demandas da “sociedade civil”.Trata-se,essencialmente, de um Estado autoritário, pois apenas os grupos deinteresse que dão suporte ao grupo político no poder têm acesso aoscanais de comunicação com os burocratas formuladores das políticaspúblicas.É dessa maneira que tais grupos garantem seus interesses.

O grande problema nessas circunstâncias é a legitimidade daspolíticas públicas consubstanciadas a partir da ação regulatória doEstado.Do ponto de vista simbólico,o exercício do poder político temde se traduzir na forma de políticas “em benefício da sociedade”.Tenhao governo sido eleito democraticamente ou não, o aspecto central doexercício do poder está na questão de como legitimar o conteúdo daspolíticas definidas em nome do “interesse público”.

No caso brasileiro, a legitimidade dos governos populistas ou dosgovernos ditatoriais foi sempre buscada na forma de políticas que ten-taram organizar parte dos setores da “sociedade civil” sem representa-ção no Estado. Por exemplo, no populismo, a política trabalhista deVargas; no regime militar, as propagandas do “Brasil Grande” e do“Brasil Potência”.32

A legitimidade, portanto, nunca seria associada a justificativasracionais e públicas do conteúdo das políticas adotadas e tampoucoconformada a partir da representação de interesses dos vários setoresda “sociedade civil”. As políticas representaram sobretudo os interes-ses dos que estavam inseridos na estrutura de relações de poder dos“anéis burocráticos”.

Mais importante, contudo, é entender que o Estado regulador seinstitucionalizou no Brasil de tal maneira que conduziu à prevalênciade um tecnocratismo,por meio do qual assumimos que “questões téc-nicas” não implicam “questões políticas”. No contexto histórico dosnossos regimes políticos autoritários, essa separação entre técnica epolítica foi utilizada de modo a justificar no interior da burocraciaestatal interesses políticos que, diante da realidade dos “anéis buro-cráticos”,sempre estiveram muito distantes de um ideal de “interessepúblico” ou de “bem comum”. É nesse sentido que a noção de poderdiscricionário, enquanto discricionariedade administrativa, materia-lizou-se na forma de poder arbitrário.33

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[34] Ver F. de Oliveira. “Viagem aoolho do furação...”,ed.cit.,pp.64-65.

[35] Idem, p. 64.

CRÍTICA AO PENSAMENTO AUTORITÁRIO

Parece inevitável uma associação direta entre o pensamento auto-ritário brasileiro da primeira metade do século XX e a constituição domodelo de Estado regulador.No instigante ensaio “Viagem ao olho dofuracão”, Francisco de Oliveira propõe que Celso Furtado teria man-tido um diálogo velado com os expoentes do pensamento autoritáriobrasileiro, procurando reinterpretar em bases democráticas a forma-ção do Estado nacional desenvolvimentista brasileiro.34

Segundo Francisco de Oliveira, o pensamento autoritário brasi-leiro teve em sua base uma determinada interpretação do Brasil,a qualteria influenciado as análises sobre o papel do Estado regulador e,principalmente, a constituição de um modelo jurídico-institucionalde organização da burocracia estatal. Para Oliveira, as posições teóri-cas autoritárias da República Velha, que projetaram suas influênciassobre o Estado Novo de Vargas, estão em tensão com as inclinaçõesteóricas de Celso Furtado no que diz respeito à formação de uma buro-cracia estatal voltada para a organização da ordem econômica.35 Ape-sar de não existir nas obras de Furtado referência aos clássicos do pen-samento autoritário, é possível, na reconstrução de seu pensamentopolítico,desvendar o “diálogo velado” que teria mantido com os repre-sentantes daquela corrente de pensamento.

Furtado, ainda de acordo com Oliveira, teria respondido aos clás-sicos do pensamento autoritário de duas formas.A primeira,por meiode seu trabalho intelectual, ao se afastar do estilo bacharelesco, enci-clopédico — no pior sentido — e opiniático dos juristas conservado-res que deram suporte ao modelo do Estado Novo. E, ao mesmotempo, ao propor uma análise do papel do Estado na economia dis-tante das análises culturalistas que marcaram a antropologia e a socio-logia da formação da sociedade brasileira.

A discussão que Furtado propõe sobre a dinâmica dos centros dedecisão para a formulação de políticas desenvolvimentistas indica atentativa de articular análises sistêmicas, considerando a articulaçãode grupos de interesse no plano do capitalismo internacional e nocenário da organização do mercado interno. Para ele, as

decisões de um país exportador de produtos primários são,necessariamente,reflexas.O grau de autonomia é limitado,pois os grupos que controlam a eco-nomia mundial dos produtos primários sobrepõem os seus interesses aos decada país exportador considerado isoladamente. É natural, em tais casos,que os grupos de decisão em cada país exportador atuem em sincronia com ocomando internacional. Os centros de decisão que se apóiam nas indústriasligadas ao mercado interno gozam,por definição,de elevado grau de autono-mia. [...] Na medida em que estes grupos passaram a predominar no Brasil,

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[36] C. Furtado. Desenvolvimento esubdesenvolvimento,ed.cit.,pp.234-36.

[37] “As reformas surgem não comouma opção racional, e sim como oabandono de certas posições pelosgrupos que controlam o sistema depoder, ou como uma modificação darelação de forças dos grupos que dispu-tam o controle do sistema de poder.Uma vez introduzidas, as reformaspodem modificar fundamentalmenteo comportamento das variáveis econô-micas,sendo necessário redefinir todaa estrutura do modelo. Ainda assim, atécnica de modelos pode ser utilizadapara demonstrar a incompatibilidadeentre objetivos de uma suposta polí-tica de desenvolvimento,pondo a des-coberto a necessidade de reformasestruturais, e para estabelecer a ampli-tude dessas reformas, caso hajam sidodefinidos os objetivos a alcançar. Des-sa forma,supera-se o domínio da polí-tica econômica convencional paraabordar o das estratégias, visandotransformar as estruturas” (C. Furta-do. Teoria e política do desenvolvimentoeconômico. 10ª ed. São Paulo: Paz eTerra,2000,p.281)

firmou-se a mentalidade “desenvolvimentista”, que possibilitou a formula-ção de uma primeira política sistemática de industrialização [...]. Paradesenvolver-se é necessário individualizar-se concomitantemente. Emoutras palavras,a individualização não é simples conseqüência do desenvol-vimento.É fato autônomo.[...] A sincronia entre os verdadeiros interesses dodesenvolvimento e as decisões tem como pré-requisito a superação da econo-mia “reflexa”, isto é, exige a individualização do sistema econômico. Essaideologia transformou a conquista dos centros de decisão em objetivo funda-mental.E,como o principal centro de decisão é o Estado,atribui a este o papelbásico da consecução do desenvolvimento. Assim, para evitar o controledireto ou indireto de grupos estrangeiros na industrialização do petróleo, aoEstado foi cometida responsabilidade industrial neste setor. A criação debancos oficiais de desenvolvimento permitiu canalizar para as indústriasuma parcela adicional de recursos, sem os quais não teria sido possível anecessária concentração de capitais nos setores básicos.36

O Estado e os modelos jurídico-institucionais para o funciona-mento da burocracia estatal na regulação da economia estão no centroda análise de Furtado. Mas, diferentemente do pensamento autoritá-rio, o Estado não é compreendido como a síntese do interesse nacio-nal. O Estado é uma arena de circulação de poder político nos quaisgrupos de interesse se articulam na definição do conteúdo da regula-ção de mercados.

Mas, em vez de definir a priori quais os interesses nacionais a serperseguidos pelo Estado, Furtado aponta para a necessidade de refor-mas jurídico-institucionais nos centros de decisão que permitam ainstitucionalização de políticas desenvolvimentistas a partir da“sociedade civil”. Essa dimensão do pensamento de Furtado apontapara uma forma de justificação racional do conteúdo das políticas elegitimação por meio do incremento da participação de grupos deinteresse ligados à indústria representativa do mercado interno capa-zes de canalizar forças econômicas ao desenvolvimento. Nesse sen-tido,Furtado não faz uma mera defesa ideológica de um ideário nacio-nalista. A análise é sistêmica e as possibilidades de reforma passampor uma compreensão do funcionamento da burocracia estatal e dosseus canais de circulação de poder político.37

A segunda resposta de Furtado ao pensamento autoritário, igual-mente apontada por Oliveira, foi a criação das bases institucionais daOperação Nordeste e da Sudene, inserida no contexto da teoria do sub-desenvolvimento de origem cepalina.Para Francisco de Oliveira,Furtadopercebeu a necessidade de um novo pacto federativo, que descentraliza-ria o fluxo de investimentos do eixo Sul-Sudeste, na tentativa de indus-trialização do Nordeste.Mais do que uma análise do funcionamento daeconomia brasileira, ele teria oferecido uma interpretação do Brasil ao per-

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[38] F. de Oliveira, “Viagem ao olhodo furação...”, ed. cit., pp. 80-81.

[39] Os pontos de aproximação se-riam o foco de preocupação intelec-tual na organização política da buro-cracia estatal brasileira quando daintervenção do Estado na economia,e a adoção de modelos analíticos queprocuram formular críticas ao pensa-mento autoritário brasileiro e, aomesmo tempo, se afastar das análisesculturalistas que marcaram a antro-pologia e a sociologia da formação dasociedade brasileira.

ceber que a forma de organização das forças políticas no interior da buro-cracia estatal caracterizaria um modelo centralizado de reprodução dopoder político no eixo Sul-Sudeste e, conseqüentemente, de concentra-ção do capital nos atores representativos da burguesia nacional do Sul-Sudeste articulada com os interesses do capital multinacional.38

As respostas veladas apresentadas por Furtado aos clássicos do auto-ritarismo teriam inovado a forma de interpretar o Brasil. Ao pensar opapel do Estado,identificando os problemas institucionais na forma deorganização da burocracia estatal, Furtado responde a figuras comoAlberto Torres e Oliveira Vianna, que desconfiavam, por princípio, dequalquer forma institucional que pudesse representar um enfraqueci-mento do poder central.Descentralizar a forma de atuação do Estado naorganização da economia brasileira, em articulação com os estados daFederação,seria aceitável para o pensamento autoritário,desde que semautonomia. Furtado teria pensado formas de autonomia decisória e dedemocratização dos canais de circulação de poder político para querepresentantes de outros setores da sociedade brasileira pudessem par-ticipar de redes de organização da economia em níveis locais e regionais.

Por outro lado, Furtado também se afasta das análises culturalis-tas, na medida em que teria formulado uma interpretação do Brasilcentrada na forma de organização do fluxo de poder político no inte-rior da burocracia estatal.O Estado e a política passaram a ser o eixo dainterpretação furtadiana.

Mas o aprofundamento do pensamento autoritário no regimemilitar de 1964-1985 teria impedido a constituição de um novo marcojurídico-institucional para uma redefinição da forma de atuação doEstado, especialmente na sua relação com a “sociedade civil”, no pla-nejamento do desenvolvimento econômico brasileiro. Ironicamente,figuras supostamente liberais e antiplanejadoras como EugênioGudin, Roberto de Oliveira Campos (sucessor de Gudin na liderançaconservadora), Delfim Neto e Mário Henrique Simonsen acabarampor consolidar o modelo institucional autoritário centralizado de or-ganização da economia brasileira (claramente antiliberal — esta a iro-nia!),reproduzindo o pensamento clássico e as relações de poder polí-tico que marcaram a formação do Estado regulador brasileiro.

Contra esse modelo autoritário, uma nova interpretação do Brasilparece ter constituído as bases para a formação de um novo modelo jurí-dico-institucional de organização da burocracia estatal.Apesar de CelsoFurtado e Fernando Henrique Cardoso partirem de diagnósticos emodelos analíticos que por vezes se aproximam39, parece não ter sido ainterpretação furtadiana a vencedora da corrida por um modelo deEstado regulador alternativo ao modelo autoritário até então vigente,mas a interpretação do Brasil que marcou a reforma do Estado,na décadade 1990,durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

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[40] Ver Sérgio Henrique Abranches.The Divided Leviathan: State and Econo-mic Policy Formation in AuthoritarianBrazil.PhD.Dissertation,Cornell:Uni-versity of Cornell, 1978; Lourdes Sola.Idéias econômicas e decisões políticas.SãoPaulo:Edusp,1998;Luis Carlos BresserPereira. Reforma do Estado para a cida-dania. São Paulo: Editora 34, 1998; eL. C. Bresser Pereira, Jorge Wilheim,Lourdes Sola (orgs.).Sociedade e Estadoem transformação. São Paulo: EditoraUnesp;Brasília:ENAP,1999.

[41] Essa intenção foi, inclusive,declarada por Cardoso em ensaiosobre a reforma do Estado (“Notassobre a reforma do Estado”. NovosEstudos Cebrap, n.º 50, 1998, p. 10).

[42] Nesse sentido,ver resultados depesquisa empírica que realizei sobre ouso de consultas públicas na formula-ção de normas pela Agência Nacionalde Telecomunicações (Anatel). VerPaulo Todescan Lessa Mattos.“Regu-lação econômica e social e participa-ção pública no Brasil”.In:Vera Schat-tan P.Coelho e Marcos Nobre (orgs.).Participação e deliberação. São Paulo:Editora 34, 2004, pp. 313-43.

A política de desmonte do Estado planejador desenvolvimentistae a substituição deste por um novo Estado regulador parecem ter suasbases na interpretação que o próprio Fernando Henrique Cardoso,enquanto intelectual,teria do Brasil,ao lado de outros intelectuais queseguiram a mesma linha de diagnóstico.40

O novo Estado regulador — caracterizado pela criação de agênciasreguladoras independentes, pelas privatizações de empresas estatais,por terceirizações de funções administrativas do Estado e pela regulaçãoda economia segundo técnicas administrativas de defesa da concor-rência e correção de “falhas de mercado”,em substituição a políticas deplanejamento industrial — representou uma clara descentralizaçãodo poder do presidente da República e de seus ministros, ao mesmotempo em que se tentaram criar novos mecanismos jurídico-institu-cionais de participação de diferentes setores da sociedade civil no con-trole democrático do processo de formulação do conteúdo da regula-ção de setores da economia brasileira.41

Nesse sentido,a reforma do Estado na década de 1990 não teria sidoapenas uma resposta no plano técnico-econômico à crise fiscal do Estado,mas resultado de um claro movimento político de transformação do fun-cionamento da burocracia estatal,tendo por base um movimento intelec-tual de interpretação do Brasil posto em prática a partir das eleições de Fer-nando Henrique Cardoso para a Presidência da República.

A criação de uma burocracia estatal para regulação de mercados —especialmente centralizada no modelo de agências reguladoras inde-pendentes — marcou uma redefinição dos canais de circulação depoder político para a formulação de políticas públicas para setoresestratégicos da economia, tais como os de telecomunicações, energiaelétrica,gás e petróleo, transportes,água e saneamento,saúde e medi-camentos, seguros, etc.

A formulação de políticas setoriais, antes restrita aos gabinetesministeriais, aos conselhos institucionalizados no interior da buro-cracia estatal da administração direta, às decisões políticas do presi-dente da República e ao jogo de barganhas políticas com o Congresso,passou a adotar critérios técnicos e uma forma “negociada”, segundoprocedimentos juridicamente institucionalizados,com o público afe-tado pelas normas editadas pelas agências.

Dessa forma, criou-se um novo lócus de circulação de poder polí-tico, redefinindo as relações internas ao Poder Executivo na regulaçãode setores da economia brasileira e as condições de barganha políticaentre este e o Legislativo.Ao mesmo tempo,as agências se transforma-ram em uma nova arena política de participação de atores da “socie-dade civil” na elaboração do conteúdo da regulação.42

Esse novo arcabouço jurídico-institucional e suas bases concei-tuais, determinadas, a meu ver, por uma concepção do que deveria ser

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[43] Além do Código de Defesa doConsumidor (Lei nº 8.078/90) e daLei de Defesa da Concorrência (Lei nº8.884/94), ambos anteriores àsreformas realizadas na gestão do pre-sidente Fernando Henrique Cardoso,o seguinte quadro de leis compõe oque podemos chamar de “reformaregulatória”: (i) Lei de Concessão deServiços Públicos (Lei nº 8.987/95);Lei de Processo Administrativo Fede-ral (Lei nº 9.784/ 99); (iii) Lei Geralde Telecomunicações (Lei nº 9.472/97) — a qual criou a Agência Nacio-nal de Telecomunicações; (iv) Lei nº9.427/96 — a qual estabeleceu asregras para a prestação de serviços degeração e transmissão de energia elé-trica e criou a Agência Nacional deEnergia Elétrica;e (v) Lei no 9.478/97— a qual estabeleceu regras para aprestação de serviços de gás canali-zado e para o funcionamento da in-dústria do petróleo e criou a AgênciaNacional do Petróleo. Posteriormen-te foram criadas a Agência Nacionalde Vigilância Sanitária (Lei no 9.782/99), a Agência Nacional de SaúdeSuplementar (Lei no 9.961/2000), aAgência Nacional de Águas (Lei no9.984/2000), a Agência Nacionalde Transportes Aquáticos (Lei no10.233/2001) e a Agência Nacionalde Transportes Terrestres (Lei no10.233/01).Cabe mencionar tambéma criação da Agência Nacional do Ci-nema (Medida Provisória no 2.228-1/2001).

[44] Como exemplos temos as Emen-das número 5,6,7 e 8 (todas de 15/08/95), 9 (de 9/11/95) e 19 (de 4/06/98).A Emenda número 5 estabelece oregime legal de prestação de serviçosde gás natural pelos estados;a Emendanúmero 6 estabelece o regime de pes-quisa e extração de recursos minerais;aEmenda número 7 estabelece o regimelegal de transportes aéreo, aquático eterrestre; a Emenda número 8 estabe-lece o regime legal de serviços de tele-comunicações e define a criação de umórgão regulador para o setor; a Emen-da número 9 elimina o monopóliolegal de óleo e gás natural e define a

uma burocracia estatal de novo tipo, capaz de corrigir os problemassistêmicos e déficits democráticos do modelo autoritário inauguradopor Vargas, teria sido portanto uma tentativa de, na prática, concreti-zar a imagem que Cardoso construiu do Brasil enquanto intelectual.

Luiz Inácio Lula da Silva inicia o mandato como presidente em2003 não apenas diante dessa imagem como pano de fundo no ideá-rio da nova burocracia estatal, mas, principalmente, diante de umaenorme mudança legislativa43 e constitucional44 que deu suporte àsreformas de Cardoso.

AUSÊNCIA DE UM MODELO ALTERNATIVO

O governo Lula procurou contestar e criticar especialmente omodelo de burocracia estatal criado pelo governo FHC na forma dasagências reguladoras independentes. No início do primeiro mandato,em referência às competências das agências na negociação das condi-ções de reajustes de tarifas de serviços públicos (definidas nos contra-tos de concessão),Lula declarou:“O Brasil foi terceirizado.As agênciasmandam no país.[...] As decisões que afetam a população não passampelo governo”.45

A essa declaração se seguiu uma série que culminou em discussõespúblicas — amplamente divulgadas nos jornais ao longo de 2003 —sobre o modelo de agências reguladoras adotado no Brasil e sua relaçãocom o governo (administração direta). Os resultados mais concretosdessas manifestações, até janeiro de 2004, foram dois anteprojetos delei do Poder Executivo submetidos à consulta pública pela Casa Civil daPresidência da República e,posteriormente,transformados em projetode lei enviado ao Congresso47.Além disso,cabe destacar também,comomedida concreta, o decreto presidencial que, no início de janeiro de2004, demitiu o presidente da Anatel (Luiz Guilherme Schymura) eindicou para o seu lugar um conselheiro ligado ao governo Lula, colo-cando em xeque a autonomia decisória das agências reguladoras.

Na prática, o projeto de lei que altera o modelo de agências regula-doras tem como principal característica a criação de um mecanismo desubordinação das decisões ao presidente da República (na forma de“contratos de gestão”).No entanto,não oferece nenhum novo modelojurídico-institucional para a ação do Estado no desenvolvimento desetores da economia brasileira.

Para além do debate sobre as agências reguladoras, o governo Lulaprocurou criar as bases institucionais para a articulação de um retornoao desenvolvimento de políticas industriais para determinados seto-res da economia. O projeto da nova Agência Brasileira de Desenvolvi-mento Industrial (ABDI)47, concebida no contexto dos debates inter-nos ao governo Lula e canalizado pelo início de novas pesquisas sobre

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criação de um órgão regulador para osetor; e a Emenda 19, dentre outrasalterações, introduz o princípio da efi-ciência na organização e ação da admi-nistração pública e estabelece quemecanismos de participação públicadevem ser previstos no processo e emprocedimentos administrativos.

[45] Ver “Lula critica agências e dizque fará mudanças”. Folha de S.Paulo,20/02/2003, pp. A1 e A4, edição SãoPaulo.

[46] Projeto de Lei nº 3.337, de 2004,do Poder Executivo — dispõe sobre agestão, a organização e o controle so-cial das Agências Reguladoras,acrescee altera dispositivos das Leis nº 9.472,de 16 de julho de 1997,nº 9.478,de 6 deagosto de 1997, nº 9.782, de 26 dejaneiro de 1999, nº 9.961, de 28 dejaneiro de 2000, nº 9.984, de 17 dejulho de 2000,nº 9.986,de 18 de julhode 2000, e nº 10.233, de 5 de junho de2001, da Medida Provisória nº 2.228-1,de 6 de setembro de 2001,e dá outrasprovidências.

[47] Criada pela Lei n.º 11.080,de 30dezembro de 2004.

[48] Daí os ecos de pouca duração defiguras como Carlos Lessa, que insis-tiu, enquanto presidente do BNDES,até ser afastado pelo presidente Lula,no retorno ao modelo de Estado plane-jador desenvolvimentista anterior àsreformas dos anos 1990.

[49] Na minha tese de doutorado, Onovo Estado regulador no Brasil:direito e democracia (ed. cit.), procureifazer uma análise crítica do modelode Estado regulador constituído apartir da reforma do Estado nos anos1990. Ver também: Paulo Mattos.“Regulação econômica e social e par-ticipação pública no Brasil”, ed. cit.

o tema presididas por Glauco Arbix no Instituto de Pesquisa Econô-mica Aplicada (IPEA),parece um esboço de um novo modelo jurídico-institucional para o desenvolvimento econômico.

A ABDI pretende ser uma nova arena para definir estratégias elinhas gerais de ação para políticas de desenvolvimento industrial emdiferentes setores da economia. As decisões são tomadas dentro deum conselho deliberativo formado por representantes governamen-tais e da sociedade civil. Seus objetivos e metas são definidos pelogoverno federal por meio de contratos de gestão,e sua função,definidaem lei, é a de promover o desenvolvimento tecnológico e econômicoem setores da economia brasileira.

Não temos,no momento,resultados concretos de políticas defini-das no contexto da ABDI que possam ser mensuradas.No entanto,atéo momento,as tentativas do governo Lula de oferecer um novo modelode Estado planejador desenvolvimentista parecem carecer de um arca-bouço jurídico-institucional de novo tipo.48

Na “disputa pelas interpretações do Brasil”, o modelo de novoEstado regulador oferecido por Fernando Henrique Cardoso — umaalternativa ao pensamento autoritário — parece ter vencido até omomento. Não apenas porque o grupo de intelectuais que se organi-zou em torno das eleições de Fernando Henrique se apoiou numainterpretação do Brasil alternativa ao pensamento autoritário. Masessencialmente porque esse grupo conseguiu articular um modelojurídico-institucional para dar forma legal a um novo Estado regulador,efetivamente institucionalizado com as reformas legislativas e consti-tucionais dos anos 1990 — e aqui não faço nenhum juízo sobre asqualidades ou problemas de tal modelo.49

Por outro lado, Furtado teria tentado cunhar um modelo demo-crático de Estado planejador desenvolvimentista — tambémenfrentando o pensamento autoritário brasileiro. Mas esse novomodelo, como vimos, não chegou a se constituir, tendo sido inter-rompido pela ditadura militar de 1964-1985, que aprofundou omodelo autoritário.

O governo Lula parece também não ter conseguido oferecer qual-quer novo debate sobre o funcionamento e a organização da burocraciaestatal para a regulação e o desenvolvimento planejado de setores daeconomia brasileira.Com exceção da ABDI — ainda uma grande incóg-nita — parece não haver qualquer articulação em torno de novas idéias.

CONCLUSÃO

Não é minha preocupação discutir a adoção de um modelo x ou yde Estado regulador para o desenvolvimento de setores da economiabrasileira.O foco da análise está voltado para a dimensão política dos

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[50] Ver C. Furtado. Dialética dodesenvolvimento, ed. cit., pp 77-78.

[51] Ver Charles Sabel. “BeyondPrincipal-Agent Governance:Experi-mentalist Organizations, Learningand Accountability”, draft discus-sion paper prepared for WRR mee-ting, Amsterdam (May 10-14, 2004)and revised July 2004, and to appearin Ewald Engelen & Monika SieDhian Ho (eds.), De Staat van deDemocratie. Democratie voorbij deStaat, WRR Verkenning 3 (Amster-dam: Amsterdam University Press).

processos decisórios e modelos jurídico-institucionais para a regula-ção de mercados.

Nesse sentido, sendo a minha preocupação de ordem política enão estritamente econômica,50 cabe discutir quais poderiam ser ostermos desse debate, que parece retornar ao cenário político brasi-leiro, a respeito da formulação de um modelo de Estado planejadordesenvolvimentista.

Em outras palavras, o que está em jogo é saber quais são as alterna-tivas de modelos jurídico-institucionais que poderiam ser adotadospara a formação de um modelo de Estado regulador desenvolvimen-tista democrático.Que modelos informam o debate no caso brasileiro?

De um lado,temos a experiência do Estado planejador desenvolvi-mentista que vigorou até o final dos anos 1980, marcada, no planopolítico, pelo pensamento autoritário. De outro, temos a experiênciada reforma do Estado realizada nos anos 1990, que procurou descen-tralizar o processo de formulação de políticas públicas para o desen-volvimento de setores da economia,porém adotando um regime polí-tico de insulamento das agências reguladoras dos canais de circulaçãode barganha político-eleitoral, visando com isso limitar a atuação dos“lobbies” clientelistas incrustados nas burocracias ministeriais.

Em linha com a leitura que Francisco de Oliveira faz do pensa-mento político furtadiano, é possível afirmar que, no primeiro caso,teríamos uma concepção negativa da democracia, dadas as bases dopensamento autoritário brasileiro, e, no segundo, uma concepçãonegativa do Estado, dados os diagnósticos e a crítica ao pensamentoautoritário que estiveram na base da formulação das reformas ocorri-das durante os oito anos de governo FHC.

Poderiam ser reconstruídas várias experiências recentes,ocorridasfora do Brasil, descritas em trabalhos nas áreas de administraçãopública, ciência política e direito. Assim como o modelo de agênciasreguladoras independentes adotado no Brasil na década de 1990 foiimportado da experiência norte-americana, também hoje podemosobservar a importação de novos modelos de agências executivas, deagências de fomento e de modelos de gestão de parcerias público-pri-vado. Ao mesmo tempo, podemos observar a adoção de formas degovernança no controle da execução de políticas públicas por terceiros(organizações sociais) ou no controle dos empreendimentos basea-dos em contratos de gestão.

No mundo anglo-saxão e na Europa ocidental continental,muitose tem escrito nas últimas décadas sobre a reforma do Estado e a ado-ção de novos modelos institucionais para o desenvolvimento econô-mico e a democratização.51 Organismos multilaterais como o BancoMundial, a OECD, o FMI e a Comissão Européia vêm definindomodelos de reformas institucionais e de diagnóstico do funciona-

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[52] Ver Christopher Pollitt e GeertBouchaert.Public Management Reform.Oxford: Oxford University Press,2000.

[53] Nesse sentido, ver: Dani Rodrik(ed.). In Search of Prosperity: AnalyticNarratives on Economic Growth. NewJersey: Princeton University Press,2003.

mento das instituições. Os modelos geralmente advogados pelosorganismos multilaterais ou adotados por países que passaram afigurar com força política no cenário econômico internacional têmtido impacto sobre a produção intelectual relacionada à reforma doEstado e têm igualmente condicionado as reformas. Em muitoscasos, esses modelos são impostos no contexto de processos denegociação de países em crise com organismos multilaterais, como oBanco Mundial e o FMI, ou “comprados” acriticamente, como sepudessem ser escolhidos na prateleira de um shopping center e, emseguida, “consumidos”.52

Importar modelos não é uma novidade e não é algo característicoapenas de países em desenvolvimento. Os países desenvolvidostambém importam e adaptam modelos já utilizados em outros paí-ses. Ocorre que, quando os modelos importados são aplicados, éinerente ao processo político de implementação a sua adaptação àdinâmica interna da burocracia estatal de cada país. Ou os modelossão adaptados assumindo-se inteiramente os pressupostos teóri-cos que lhes deram origem, ou, na adaptação, são tomados apenascomo referência e, nesse caso, ganham novo sentido no contexto deanálise do processo histórico de formação da burocracia estatal decada país.

Recentemente, as experiências institucionais em matéria dedesenvolvimento econômico de países que alcançaram altos índicesde industrialização e de crescimento econômico, como Coréia, Chinae Índia, chamaram a atenção como modelos alternativos aos modelosdo mainstream ocidental53.

Hoje, o Brasil dispõe de diferentes instrumentos úteis às políticasde fomento ao desenvolvimento econômico,com diferentes mecanis-mos jurídico-institucionais.Porém,não possuímos um modelo únicode Estado regulador. Aqui, misturam-se modelos institucionais deregulação voltados para a correção de “falhas de mercado” e para o estí-mulo da concorrência entre empresas (agências reguladoras indepen-dentes, Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Secretaria deAcompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Secretariade Direito Econômico do Ministério da Justiça, etc.) com modelos deregulação e planejamento econômico voltados para o desenvolvi-mento setorial,exportação,inovação em matéria de pesquisa e políticaindustrial (casos do BNDES,Embrapa,Finep,Apex-Brasil,Centro deGestão e Estudos Estratégicos — CGEE, entre outras organizaçõessociais criadas como incubadoras de projetos de inovação tecnológicae industrial, e, agora, a ABDI).

Em se tratando do modelo implementado por Fernando HenriqueCardoso,na década de 1990,parece ter prevalecido uma interpretaçãodo Brasil marcada por uma noção negativa do Estado, sempre en-

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[54] Ver Jürgen Habermas, BetweenFacts and Norms. Contributions to aDiscourse Theory of Law and Demo-cracy. Cambridge: The MIT Press,1996; e Charles Sabel. “Design, Deli-beration, and Democracy: On theNew Pragmatism of Firms and PublicInstitutions”, paper apresentado naConference on Liberal Institutions,Economic Constitutional Rights andthe Role of Organizations. EuropeanUniversity Institute, Florença, de-zembro de 1995.

tendido como um órgão “capturado” por “lobbies” incrustados nasburocracias ministeriais.

No caso do modelo de Estado planejador desenvolvimentista,para além da experiência varguista e suas variações no período maisautoritário da história política brasileira, parece ter sido relevada apreocupação com o controle democrático dos processos decisóriosinternos à burocracia estatal, já que aí a preocupação principal era aeficiência econômica, entendida como crescimento econômico edesenvolvimento nacional.

Não haveria,portanto,na experiência jurídico-institucional brasi-leira, a compreensão da democracia como princípio regulador54 doprocesso de formulação de políticas econômicas e regulação de merca-dos. Faltaria uma noção positiva do Estado combinada com umanoção positiva de democracia nas experiências jurídico-institucionaisde intervenção do Estado na economia.A experiência furtadiana — noplano teórico e político — poderia ter sido o prenúncio dessa combi-nação? Talvez, mas infelizmente não se consolidou no plano teórico eteve vida curta no plano político.

Paulo Todescan Lessa Mattosé advogado,doutor em direito pela USP e pesquisador associa-

do ao Cebrap.

156 A FORMAÇÃO DO ESTADO REGULADOR ❙❙ Paulo Todescan Lessa Mattos

Recebido para publicação em 20 de maio de 2006.

NOVOS ESTUDOS

CEBRAP

76, novembro 2006pp. 139-156