3. Silva - O Dilema Pessimista Do Futuro Da Filosofia

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  • Investigao Filosfica, v. 6, n. 2, 2015. (ISSN: 2179-6742) Artigos/Articles

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    O DILEMA PESSIMISTA DO FUTURO DA FILOSOFIA Joo Carlos Silva1

    RESUMO: O artigo tem por objectivo a anlise filosfica do dilema colocado em epgrafe relativo possibilidade, sentido e valor futuros da investigao filosfica fundamental, de modo a verificar se este ou no um verdadeiro dilema e se compromete ou coloca em risco o sentido, o valor e a possibilidade futura da prpria filosofia. Para esse efeito, so analisadas todas as proposies que o constituem, assim como as relaes lgicas que elas estabelecem entre si, concluindo a investigao que se trata afinal de um falso dilema e que, por consequncia, o prognstico pessimista quanto possibilidade futura da filosofia no s no se confirma como manifestamente exagerado.

    PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Dilema. Progresso. Futuro. Pessimismo.

    Abstract: The aim of this article is to analyse the dilemma that is set in the epigraph, concerning to the future possibility, meaning and importance of the fundamental philosophical investigation, to acquire if it is or it is not, a real dilemma and if it jeopardizes or puts in check the meaning, the value and the future possibility of philosophy itself. For that purpose, all its propositions are analysed, as well as the logical relationships between themselves, concluding the investigation that, after all, it is a false dilemma and therefore, the pessimistic prognosis about a possible future of philosophy, not only doesnt confirm, as it is clearly exaggerated.

    Keywords: Philosophy. Dilemma. Progress. Future. Pessimism.

    Assuma que h um nmero finito de questes filosficas fundamentais. No futuro distante, tais questes sero ou no satisfatoriamente respondidas ou descartadas (talvez para outras disciplinas ou domnios de investigao). Se tais questes forem satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ento a filosofia enquanto projecto fundamental de resoluo de problemas no ter qualquer futuro. Se tais questes no forem satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ento ns teremos (ainda mais) uma evidncia indutiva muito forte de que elas no podem ser ser respondidas ou descartadas, caso em que devemos desistir de lhes tentar responder, pelo que a filosofia como projecto fundamental de resoluo de problemas no ter qualquer futuro.

    Em suma, quer a filosofia faa ou no progressos, o seu futuro no parece l grande coisa.

    Justin Weinberg, The Distant Future of Philosophy, Daily Nous

    Assumindo que o dilema, seja ele verdadeiro ou falso, levanta um problema 1 Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor de filosofia da Escola secundria Jorge

    Peixinho, na cidade do Montijo Portugal.

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    metafilosoficamente srio relativamente ao futuro possvel da filosofia e sua viabilidade como disciplina, assim como em relao ao prprio sentido e valor fundamentais do seu projecto cognitivo, colocando radicalmente em causa se vale ou no a pena prosseguir nessa demanda de tentar responder s questes fundamentais da filosofia, tentemos analis-lo criticamente, quer dizer, filosoficamente, a fim de apurarmos se o dilema procede ou no, e se, por consequncia, faz ou no sentido continuar a filosofar. Caso se trate de um verdadeiro dilema e o argumento que o sustenta seja cogente, isto , apresente simultaneamente premissas verdadeiras mais evidentes que a concluso e concluso vlida, ento a filosofia e os filsofos ficam em maus lenis para justificarem racionalmente a sua existncia e o seu ofcio. Caso se trate de um falso dilema, seja por as alternativas apresentadas no cobrirem por completo o campo das possibilidades, seja por aquelas serem compatveis entre si, seja por serem individualmente falsas ou duvidosas, ento a filosofia e os filsofos podem prosseguir descansados a sua misso de tentar responder s questes fundamentais que a humanidade se coloca a si mesma.

    Comecemos por examinar o valor de verdade das premissas:

    Premissa 1: Existe um nmero finito de questes filosficas fundamentais.

    Ser verdade? E se for verdade, poderemos sab-lo com certeza? Ser essa tese metafilosfica filosoficamente indiscutvel? Como poderemos saber se assim ? Ser possvel elencar um conjunto finito de questes filosficas fundamentais que abranja todas as reas da disciplina e todas as pocas da sua histria, reunindo ao mesmo tempo

    o consenso dos especialistas relativamente ao critrio da sua incluso nessa lista? Talvez sim, talvez no, dada a grande diversidade de opinies e doutrinas filosficas relativamente prpria natureza da disciplina e s questes que devem ou no ser consideradas como fundamentais. Mas claro que isso no provaria a sua no existncia, e sim apenas a falta de consenso entre os especialistas na matria para o determinarem de forma satisfatria para todos. Em todo o caso, se olharmos atentamente para o conjunto da histria da filosofia, para as suas principais reas disciplinares e para as questes centrais que, recorrente e transversalmente, tm ocupado o labor dos filsofos praticamente desde a antiguidade, provavelmente verificaremos que afinal talvez no seja preciso determinar a priori um critrio universal de fundamentalidade das questes filosficas nem ter necessariamente que obter um tal

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    consentimento por parte dos especialistas, uma vez que a inspeco histrico-sistemtica parece ser suficiente para estabelecer, se no como certeza insofismvel para alm de qualquer dvida razovel, ao menos como hiptese racionalmente muito plausvel, a ideia de que existir de facto um conjunto finito de questes filosficas fundamentais que ocuparam no passado, ocupam no presente e previsivelmente continuaro a ocupar no futuro os filsofos, constituindo, por assim dizer, o ncleo duro relativamente intemporal de cada uma das disciplinas em que a filosofia se deixa dividir, desde a lgica metafsica, da epistemologia tica, da filosofia poltica esttica, etc. Questes sobre como raciocinar ou argumentar correctamente, sobre a estrutura ltima da realidade, sobre a causalidade, sobre o determinismo e o livre-arbtrio, sobre Deus, sobre o sentido da vida, sobre como se deve viver e agir, sobre o conhecimento, sobre a a melhor forma de comunidade ou de governo, sobre conceitos e valores essenciais como o bem, a justia, a verdade, a liberdade, a felicidade, a beleza e a arte, sobre a relao entre o pensamento, a linguagem e a realidade, sobre a relao entre mente e corpo, ou sobre o qu, o porqu e o para qu de tudo isto, so algumas das questes fundamentais que podemos apurar nessa inspeco e que provavelmente reuniriam um largo consenso filosfico relativamente sua centralidade - isto se exceptuarmos o caso de alguns filsofos mais excntricos ou idiossincrticos, que nem mesmo nisto concordariam. Portanto, mesmo sendo verdade que ao longo da histria da disciplina muitas questes novas surgiram, dando inclusive origem a novas reas disciplinares medida que os prprios filsofos foram progressivamente deixando de ser construtores de sistemas gerais individuais e foram passando de generalistas a especialistas, tambm no deixa de ser verdade que existem algumas questes mais ou

    menos perenes que recorrentemente atravessam a multissecular histria da filosofia e a organizam internamente na sua diviso disciplinar, quais pontos de fuga para onde convergem ou de onde divergem todas as outras que em torno delas orbitam como questes-satlite mais ou menos secundrias. Assim, a despeito de possveis excepes quanto a qualquer nova incluso ou excluso futura desse repertrio filosfico universal e perene, se pudermos confiar indutivamente na ideia de que o futuro guardar pelo menos algumas semelhanas significativas com o passado e com o presente, tendo ns, por conseguinte, boas razes para crer que aquilo que at agora, e quase desde a origem, pese embora toda a mudana e diversidade, tem permanecido relativamente estvel e unificado, talvez se possa concluir com alguma razoabilidade que no s existiu no passado, como existe agora e provavelmente continuar a existir no futuro, de facto, um

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    conjunto finito de questes filosficas fundamentais, justificando-se por consequncia acreditar na verdade da 1 premissa, que o dilema em causa simplesmente exigia que se assumisse como verdadeira.

    Premissa 2: Num futuro distante, as questes fundamentais da filosofia ou sero satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ou no sero satisfatoriamente respondidas ou descartadas.

    Comecemos pela primeira parte da premissa. Ser que as questes fundamentais da filosofia alguma vez sero satisfatoriamente respondidas? luz do seu passado e do seu presente, no ser legtimo duvidar da verdade desta proposio? Que razes temos ns para acreditar de forma justificada que verdade que, algures no futuro, as questes filosficas fundamentais sero satisfatoriamente respondidas ou satisfatoriamente descartadas, com estas ltimas porventura remetidas para outros campos de investigao, como o caso das cincias? Por acaso alguma questo filosfica fundamental foi, at hoje, satisfatoriamente respondida? E o que poderia isso significar, ser satisfatoriamente respondida? Ser resolvida de modo indubitvel? Conseguir reunir um consenso geral por parte dos filsofos relativamente soluo encontrada? Descobrir uma resposta de tal forma solidamente justificada que estivesse para alm de qualquer dvida razovel? Encontrar uma prova ou evidncia absoluta da sua verdade? Mas, voltamos a repetir a pergunta, acaso j alguma questo filosfica fundamental foi, no passado ou no presente, respondida de alguma destas maneiras ou satisfazendo algum destes critrios? Se a resposta for negativa - e toda a evidncia histria assim o

    indica, com possvel excepo daquelas questes que se tornaram objecto da cincia e possam j ter sido resolvidas -, ento que razes podemos ter para pensar que o futuro ser diferente do passado e do presente? Se certo que no h evidncia indutiva suficiente para concluir que o no seja, tambm igualmente certo que no h evidncia indutiva suficiente para concluir que o seja, muito pelo contrrio. Na verdade, se quisermos tomar o passado como modelo de referncia daquilo que justificadamente poderemos esperar no futuro, ento parece que temos mais e melhores razes para acreditar que muito mais provvel que nenhuma questo filosfica fundamental venha alguma vez a ser satisfatoriamente respondida do que o contrrio, que todas elas ou sequer alguma delas o venha a ser, mesmo que num futuro distante. Assim, se por um lado no lgica ou epistemicamente possvel eliminar a possibilidade de que essas

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    questes venham a ser satisfatoriamente respondidas num futuro distante, tambm no possvel descartar a possibilidade de que o no venham de todo, permanecendo, por consequncia, essa mesma questo filosfica em aberto.

    E quanto a serem ou no satisfatoriamente descartadas do domnio filosfico, talvez para o cientfico? Bem, se verdade que tambm aqui temos alguns exemplos histricos de questes que foram outrora consideradas filosoficamente fundamentais e que migraram do domnio filosfico para o cientfico, to logo a cincia encontrou meios de as tentar resolver por meios emprico-formais, no menos verdade que tais exemplos histricos, tanto pela sua quantidade como pela sua qualidade e relevncia, no justificam de modo algum concluir-se que todas as questes filosficas no satisfatoriamente resolvidas estaro inevitavelmente condenadas a ser satisfatoriamente deslocadas para qualquer outra disciplina ou mbito de investigao. Para alm de existirem muitas questes filosficas fundamentais no satisfatoriamente resolvidas que ainda no foram excludas do seu domnio prprio de investigao, continuando a constituir o ncleo duro da maior parte dos projectos de investigao filosfica, mesmo aquelas que, no seu todo ou em parte, foram historicamente transferidas para fora do domnio propriamente filosfico continuam, de forma directa ou indirecta, cclica ou permanentemente a ser objecto daquela investigao, dado esta no re-conhecer fronteiras definidas em termos objectivos e poder exercer-se mesmo sobre aquelas questes que foram outrora exclusivamente suas mas tendo entretanto transitado para o domnio cientfico. o caso, por exemplo, das questes fsicas, cosmolgicas, lgicas ou psicolgicas, as quais, no obstante terem conquistado uma definio e um espao prprio no mbito da cincia, sendo investigadas por meio de uma metodologia

    cientfica que recorre a procedimentos formais e/ou empricos especficos de cada disciplina, em funo da natureza particular dos problemas ou objectos por esta tratados, no deixam por isso de ser tambm objecto de inquirio filosfica quanto aos seus fundamentos metafsicos ou meta-lgicos, implicaes epistemolgicas ou morais. Na verdade, muitas dessas questes originalmente filosficas que pareciam definitivamente arredadas do seu mbito original retornam com frequncia a este, muitas vezes por iniciativa dos prprios cientistas, ou simplesmente porque a investigao cientfica se revela impotente para lhes responder de forma satisfatria usando os seus meios prprios, deixando assim espao aos filsofos para as recuperar naquela fronteira indefinida, fluida, mvel e difusa que separa a filosofia da cincia. o caso, por exemplo, da questes da origem e estrutura fundamental do Universo, da natureza e

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    origem da vida, da natureza da mente e suas relaes com o corpo, da natureza da inferncia lgica, ou da questo de saber por que existe existe alguma coisa em vez de nada, tudo questes que foram outrora filosficas e se tornaram cientficas quando a cincia criou mtodos, definiu objectos e produziu linguagens especficas, autonomizando-se progressivamente da filosofia, mas que, por outro lado, no s so questes que habitam aquele espao virtual indeterminado na fronteira entre a cincia e a filosofia, podendo a qualquer momento ser novamente apropriadas por esta ltima, como algumas delas j o foram de facto ou nunca deixaram completamente de ser tambm objecto de investigao filosfica, circulando num eterno vai-e-vem transfronteirio entre disciplinas e domnios cognitivos apenas relativamente distintos mas no estanques ou hermeticamente fechados entre si, dada a unidade e continuidade da realidade. Portanto, no s no temos qualquer garantia apriorstica de que as questes fundamentais da filosofia que no venham a ser satisfatoriamente resolvidas venham a ser satisfatoriamente descartadas para outros domnios, como tambm no temos qualquer garantia do mesmo gnero de que mesmo aquelas que eventualmente venham a s-lo a permaneam exclusiva e definitivamente, o que, em suma, nos permite concluir que nem sabemos nem podemos saber a priori qual o caso. Ora, como a 1 parte da premissa 2 exigia que se verificasse necessariamente uma das duas alternativas, se no temos qualquer maneira de saber se assim ou no, podendo inclusive a verdade ficar indeterminada a meio caminho entre ambas, temos aqui um primeiro problema srio com a validade do dilema em causa.

    E quanto segunda parte da premissa, aquela que afirma que as questes fundamentais da filosofia ou no sero satisfatoriamente respondidas ou no sero

    satisfatoriamente descartadas para outros domnios de investigao, temos ns razes mais slidas para acreditar que alguma delas, ou que uma e s uma delas se verificar necessariamente? Uma vez mais, para alm de no termos qualquer garantia racional ou emprica de que assim ser obrigatoriamente, uma vez que no sabemos nem podemos saber agora, com base no conhecimento actual do passado e do presente, se alguma questo filosfica fundamental vir ou no a ser satisfatoriamente resolvida no futuro, da mesma forma, e pelas mesmas razes j apresentadas atrs, no podemos saber a priori se alguma vir a ser satisfatoriamente descartada para outros domnios disciplinares sem possibilidade de retorno ou indefinio de fronteiras. Em suma, tal como no podemos saber agora se no futuro distante as questes fundamentais da filosofia sero satisfatoriamente respondidas ou satisfatoriamente descartadas, do

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    mesmo modo no sabemos nem podemos saber no presente momento se as questes filosficas fundamentais no sero satisfatoriamente respondidas ou no sero satisfatoriamente descartadas para outras disciplinas ou domnios de investigao. Tampouco podemos saber a priori se algumas delas o sero ou no, quanto mais todas elas, como a premissa implicitamente pressupe. E se o valor de verdade de cada uma das proposies que compem a premissa 2 permanece assim indeterminado, o mesmo acontece com o valor de verdade do duplo dilema que cada uma delas estabelece com a sua alternativa rival, no tanto por aquela razo, uma vez que possvel saber-se a priori que apenas uma de duas alternativas verdadeira mesmo quando no sabemos qual delas , mas sim porque nem sequer sabemos se elas so verdadeiramente alternativas mutuamente exclusivas, por a verdade de uma implicar necessariamente a falsidade de outra, sendo possvel que neste caso ambas possam ser verdadeiras ou falsas, consoante os casos e aquilo que o futuro vier a revelar. Ora, se no sabemos nem podemos saber actualmente se num futuro distante as questes fundamentais da filosofia sero ou no satisfatoriamente respondidas ou descartadas, que dizer ento do valor de verdade do conjunto da premissa 2? Que no sabemos nem podemos saber actualmente qual esse valor, logo que indeterminado.

    Vamos agora premissa 3, a qual pretende ser uma concluso logicamente necessria da relao entre as anteriores:

    Premissa 3: Se as questes fundamentais da filosofia forem satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ento a filosofia enquanto projecto fundamental de resoluo de problemas no ter qualquer futuro.

    Se, como conclumos atrs, no pudermos dizer, com conhecimento de causa e certeza absoluta, que as questes fundamentais da filosofia viro a ser ou no satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ento tambm no podemos estar certos e seguros de que, seja qual for o caso, tal facto implique necessariamente que a filosofia entendida como projecto fundamental de resoluo de problemas no tenha qualquer futuro. Ou seja, se no podemos estar certos do valor de verdade das premissas, tambm no podemos estar certos do valor de verdade da concluso. Mas como no? Ento que futuro pode a filosofia ter se as suas questes fundamentais forem resolvidas ou descartadas de forma satisfatria? Nenhum, no verdade? No, errado. Pode continuar indefinidamente a tentar resolver, dissolver, eliminar ou descartar todas as outras

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    questes no fundamentais que igualmente a compem, assim como todas as outras que eventualmente venham a surgir e a ser incorporadas no seu projecto. Alm disso, se no sabemos sequer se alguma delas ou todas elas viro futuramente a ser satisfatoriamente resolvidas ou descartadas, como podemos ter a certeza de que aquela no ter qualquer futuro? Em suma, se no sabemos nem podemos saber no presente se aquelas questes viro ou no a ser satisfatoriamente respondidas ou descartadas, tambm no sabemos nem podemos saber no presente se a filosofia enquanto projecto de resoluo de problemas ter ou no futuro. Mas como pode ela ter futuro se as suas questes fundamentais forem satisfatoriamente respondidas ou descartadas? Em primeiro lugar, se o carcter satisfatrio dessas solues intradisciplinares ou deslocamentos interdisciplinares no for absoluto, indubitvel, incontroverso e definitivo; em segundo lugar, se existirem, forem sendo descobertas ou criadas muitas outras questes mais ou menos perifricas ou secundrias que possam alimentar indefinidamente a investigao filosfica; em terceiro lugar, mesmo que se chegue verdadeira soluo ou dissoluo, se no existir um critrio absolutamente consensual e indiscutvel que prove ou demonstre sem qualquer margem para dvida a todos os espritos racionais que assim , que esse o caso; em quarto lugar, se estivermos enganados quanto ao valor de verdade da primeira premissa e no for verdade que o nmero das questes filosoficamente fundamentais finito, podendo ser indefinido ou infinito; em quinto lugar, se no for verdade que as questes fundamentais da filosofia so, por natureza, humanamente irresolveis ou humanamente indemonstrveis - questo que tambm falta resolver ou demonstrar filosoficamente de forma satisfatria e cuja soluo condicionaria decisivamente o valor do prprio dilema em causa, e por consequncia o juzo de valor resultante da sua anlise filosfica -, uma vez que, se porventura essas questes no pudessem, por princpio, ser satisfatoriamente respondidas, ento s nos restaria exclu-las do mbito filosfico e ocuparmo-nos com outras questes no fundamentais, migrarmos ns prprios para outra disciplina ou simplesmente desistirmos de as tentar resolver, no verdade? No, tambm no verdade. E isto porqu? Porque mesmo que soubssemos a priori que essas questes no poderiam ser satisfatoriamente respondidas isso no implicaria necessariamente o abandono da filosofia enquanto projecto fundamental de resoluo de problemas. Mas porqu? Porque, por um lado, como j foi dito atrs, existem, e previsivelmente sempre existiro, muitas outras questes no fundamentais em nmero mais do que suficiente (at porque crescente e sempre em aberto) para alimentar e, portanto, justificar a continuidade e permanncia da

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    investigao; em segundo lugar, porque perfeitamente possvel prosseguir indefinidamente uma demanda pelo prazer da prpria demanda, mesmo que se saiba partida que ela no tem concluso possvel, dado que ela pode conter em si mesma virtualidades humanas, morais, cognitivas, emocionais, prticas, existenciais, estticas, ou outras, que o justifiquem plenamente enquanto tal, tanto por aquilo que proporcionam aos prprios investigadores como a todos aqueles que possam, directa ou indirectamente, usufruir do seu trabalho. E isto leva-nos ultima premissa, a qual, semelhana da anterior, tambm pretende ser uma concluso logicamente necessria da relao entre as anteriores:

    Premissa 4: Se tais questes no forem satisfatoriamente respondidas ou descartadas, ento ns teremos (ainda mais) uma evidncia indutiva muito forte de que elas no podem ser ser respondidas ou descartadas, caso em que devemos desistir de lhes tentar responder, pelo que a filosofia como projecto fundamental de resoluo de problemas no ter qualquer futuro.

    Ora, como j frismos atrs, se no podemos saber partida nem se tais questes vo ou no ser satisfatoriamente respondidas ou descartadas, nem sequer, seja qual for o caso, se essas alternativas so ou no verdadeiramente incompatveis ou logicamente contraditrias, isto , se a verdade de uma implica ou no necessariamente a falsidade da outra, ou seja, por outras palavras, se a lgica formal insuficiente neste caso para assegurar uma concluso que no seja apenas dedutivamente vlida mas tambm verdadeira, posto que a incompatibilidade lgica entre as alternativas de um dilema

    depende da impossibilidade real da sua simultaneidade, dependendo esta, por sua vez, no s do valor de verdade de cada uma das alternativas, mas tambm do significado e referncia exactos do que nelas se diz, ento por maioria de razo no podemos estabelecer com segurana, ainda que meramente indutiva ou probabilstica, que o facto de tais questes no terem sido at agora, ou mesmo num futuro distante, satisfatoriamente respondidas ou descartadas nos fornece razo suficiente para acreditarmos que jamais o sero, e que, por conseguinte, a melhor atitude a tomar desistirmos de lhes tentar responder. E isto, em primeiro lugar, porque o facto de no termos conseguido, durante um tempo X e at ao momento Y, seja qual for o seu valor real, resolver ou descartar satisfatoriamente essas questes no nos garante de todo que elas no possam ser satisfatoriamente resolveis ou descartveis, mas to s que nesse

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    perodo de tempo e at data referida no o foram, podendo perfeitamente vir a s-lo no futuro. Talvez se possa mais facilmente compreender a fraqueza desta inferncia se usarmos um argumento de analogia com a cincia ou a tecnologia: imagine-se o que seria se os nossos antepassados de h mil ou dois mil anos atrs tivessem decidido concluir que, dado o imenso tempo histrico e pr-histrico passado, se at ali nunca a humanidade tinha sido capaz de compreender de forma racionalmente satisfatria o porqu de certos fenmenos naturais, como sismos, terramotos ou vulces, ou perceber e curar certas doenas e pragas, ento nunca o seria capaz de fazer no futuro; ou concluirem, no sculo XIX, que se at a esse sculo o Homem nunca tinha conseguido voar ou ir at Lua, ento tambm nunca o conseguiria fazer no futuro. Logo, continuando a raciocinar indutivamente, fosse qual fosse o caso, sempre que nos deparssemos com um problema que no tnhamos conseguido resolver num tempo finito T, isso dar-nos-ia razo suficiente para desacreditarmos de todo e ao mesmo tempo na existncia de uma soluo para o dito e na nossa capacidade para o resolver, justificando assim, por consequncia, racionalmente a deciso de desistirmos de o tentar resolver. Transpondo este argumento de volta filosofia, caso o aceitssemos como vlido, teramos assim a justificao racional indutiva para descrena cptica na possibilidade e valor da filosofia, logo para a abandonarmos sua sorte por morte declarada ou anunciada. Mas quando que seria exactamente o momento para o fazermos, quer dizer, quando que estaramos filosoficamente justificados a concluir essa dupla impossibilidade de resposta ou transferncia satisfatrias das questes fundamentais da filosofia e, portanto, racionalmente autorizados a desistir de lhes tentar satisfatoriamente responder ou descartar? Quando estivessemos cansados de o tentar? Quanto tempo seria esse tempo, afinal, para podermos concluir, de forma tambm ela filosoficamente satisfatria, que no seria possvel resolver ou descartar as questes fundamentais da filosofia? Um sculo? Um milnio? 10 milnios? Mas ser esse verdadeiramente o caso? Como podemos ns saber se, mesmo admitindo que seja verdade que as questes fundamentais da filosofia (Quais? Todas? Algumas? Muitas? Nenhuma?) no tenham sido at hoje, e at um qualquer futuro distante indeterminado, satisfatoriamente respondidas ou descartadas, isso nos d alguma garantia filosfica tambm ela minimamente satisfatria de que nunca o sero nem podero s-lo num futuro ainda mais distante, se continuarmos a tentar responder-lhes? Ser filosoficamente sensato, prudente e razovel concluir tal coisa? Ser esta resposta filosoficamente satisfatria? Mas no ser esta mesma questo uma questo

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    fundamental da filosofia? E se o for, uma vez que compromete tanto terica como praticamente todo valor e viabilidade futura da disciplina, no ser esta mesma soluo auto-refutante? Pois se ela prescreve como filosoficamente satisfatria uma determinada soluo para uma questo decisiva ou central que coloca em causa o prprio sentido e existncia da disciplina, ento pelo menos falso que nenhuma questo filosfica fundamental seja susceptvel de resposta satisfatria. E no ser este mesmo contra-exemplo prova cabal suficiente para refutar por reduo ao absurdo o prprio dilema em questo? E se pelo menos uma questo fundamental da filosofia, neste caso, uma sobre si mesma, a sua possibilidade, utilidade e valor, pode ser satisfatoriamente respondida por si prpria, porque no ho-de outras ou todas as questes fundamentais da filosofia s-lo igualmente? Claro que no podemos partida estar certos de que assim ou de que assim no , exigindo essa mesma resposta uma investigao filosfica virtualmente interminvel para saber qual verdadeiramente o caso, tanto para esta mesma questo como possivelmente para todas as outras. E se no sabemos nem podemos saber partida se o so ou no, nem se sero ou no satisfatoriamente descartadas para outros domnios, isso deve porventura induzir-nos crena nessa impossibilidade, ou, pelo contrrio, deve inspirar-nos a continuar procura de saber qual a verdadeira resposta para elas? Se porventura desistirmos de tentar responder-lhes, alguma vez saberemos qual a resposta satisfatria que procuramos para elas ou se estas sero ou no susceptveis de resposta satisfatria? Como poderemos ns saber a resposta para estas questes se acreditarmos partida que elas no tm resposta possvel e que o melhor que temos a fazer desistir de as procurar? No ser este argumento uma pescadinha de rabo na boca, um raciocnio circular, uma petio de princpio e/ou

    uma profecia auto-realizada? Como a resposta a estas questes parece ser, face aos argumentos aduzidos, suficientemente bvia para precisar de ser explicitada, resta-nos apenas considerar a concluso final do dilema para darmos por concluda a nossa anlise:

    Concluso: Em suma, quer a filosofia faa ou no progressos, o seu futuro no parece l grande coisa.

    Assim, a fim de evitarmos repeties e redundncias desnecessrias, face ao exposto atrs, julgamos ter encontrado razes filosoficamente satisfatrias mais do que suficientes para que nos seja permitido duvidar do valor filosfico do Dilema Pessimista

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    do Futuro da Filosofia, dado o mesmo apresentar todos os indcios de que se trata afinal de um falso dilema, tanto no seu todo como nas suas partes, no havendo assim boas razes filosficas para se acreditar na verdade ou validade da sua concluso, havendo antes, pelo contrrio, muito boas razes filosficas para se acreditar que tambm aqui o anncio da sua morte manifestamente exagerada. E isto porque, mesmo sem possuirmos a priori quaisquer garantias absolutas de alguma vez o virmos a conseguir, seja para tentar defender a possibilidade e valor da filosofia, seja para tentar defender a sua impossibilidade e vacuidade, como no temos outro remdio que no seja filosofarmos, como bem notou Aristteles, ento tambm aqui, seja qual for o caso, s o poderemos eventualmente saber se filosofarmos, pelo no se vislumbra outra alternativa filosoficamente satisfatria que no seja continuarmos indefinidamente a filosofar para tentar saber a resposta a esta e a todas as outras questes filosoficamente fundamentais, o que, a ser verdade, parece simultaneamente desmentir o prognstico pessimista do dilema e abrir uma optimista janela de esperana indefinida para o futuro da filosofia.