A Defesa do poeta, Natália Correia

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"A defesa do poeta" - Natália Correia Senhores jurados sou um poeta um multipétalo uivo um defeito e ando com uma camisa de vento ao contrário do esqueleto. Sou um vestíbulo do impossível um lápis de armazenado espanto e por fim com a paciência dos versos espero viver dentro de mim. Sou em código o azul de todos (curtido couro de cicatrizes) uma avaria cantante na maquineta dos felizes. Senhores banqueiros sois a cidade o vosso enfarte serei não há cidade sem o parque do sono que vos roubei. Senhores professores que pusestes a prémio minha rara edição de raptar-me em crianças que salvo do incêndio da vossa lição. Senhores tiranos que do baralho de em pó volverdes sois os reis sou um poeta jogo-me aos dados ganho as paisagens que não vereis. Senhores heróis até aos dentes puro exercício de ninguém minha cobardia é esperar-vos umas estrofes mais além. Senhores três quatro cinco e sete que medo vos pôs por ordem? Que favor fechou o leque da vossa diferença enquanto homem? Senhores juízes que não molhais a pena na tinta da natureza não apedrejeis meu pássaro sem que ele cante minha defesa. Sou um instantâneo das coisas apanhadas em delito de perdão a raiz quadrada da flor que espalmais em apertos de mão.

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Poesia

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"A defesa do poeta" - Natlia Correia

Senhores jurados sou um poetaum multiptalo uivo um defeitoe ando com uma camisa de ventoao contrrio do esqueleto.

Sou um vestbulo do impossvel um lpisde armazenado espanto e por fimcom a pacincia dos versosespero viver dentro de mim.

Sou em cdigo o azul de todos(curtido couro de cicatrizes)uma avaria cantantena maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidadeo vosso enfarte sereino h cidade sem o parquedo sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestesa prmio minha rara ediode raptar-me em crianas que salvodo incndio da vossa lio.

Senhores tiranos que do baralhode em p volverdes sois os reissou um poeta jogo-me aos dadosganho as paisagens que no vereis.

Senhores heris at aos dentespuro exerccio de ningumminha cobardia esperar-vosumas estrofes mais alm.

Senhores trs quatro cinco e seteque medo vos ps por ordem?Que favor fechou o lequeda vossa diferena enquanto homem?

Senhores juzes que no molhaisa pena na tinta da naturezano apedrejeis meu pssarosem que ele cante minha defesa.

Sou um instantneo das coisasapanhadas em delito de perdoa raiz quadrada da florque espalmais em apertos de mo.

Sou uma impudncia a mesa postade um verso onde o possa escrever. subalimentados do sonho!A poesia para comer.

Natlia Correia, in Poesia Completa, Publicaes Dom Quixote, Lisboa, 2000, pg. 330 e seg. Essa poesia vem acompanhada com a seguinte nota em rodap: "Compus este poema para me defender no Tribunal Plenrio de tenebrosa memria. O que no fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa inslita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a a sentena."Em 1966 condenada a trs anos de cadeia com pena suspensa pela publicao da Antologia de Poesia Portuguesa Ertica e Satrica. O livro foi editado em 1966, pela Afrodite, com seleco, prefcio e notas de sua autoria.A Natlia tinha preparado o texto A Defesa do Poeta para ler no tribunal, mas o Manuel Joo Palma Carlos, advogado dela, disse-lhe que no o fizesse. claro que os livreiros no podiam ter um nico exemplar do livro [Poesia Ertica e Satrica]. Nessa altura, tive dezenas de exemplares escondidos em minha casa, e nem o meu marido sabia disso. O Fernando Ribeiro de Mello vinha c de vez em quando buscar alguns.Curiosidade: H um disco chamado Amalia/Vinicius que regista uma gravao de um encontro em 1968 entre o poeta Vinicius de Moraes e a cantora Amlia Rodrigues. Em Dezembro de 1968, Vincius viajou para Roma, onde tencionava celebrar o Natal. Contudo, a caminho de Itlia, passou por Lisboa, onde se encontrou com Amlia, na casa desta. O disco LP com o resultado desse encontro seria editado dois anos depois, em 1970.Nesse encontro estiveram presentes tambm outros poetas, como Ary dos Santos e Natlia Correia. O encontro durou horas, mas as gravaes foram editadas para caberem numa s hora. As faixas deste disco so consideradas relquias da msica e poesia em lngua portuguesa.Este disco foi proibido pela Direco dos Servios de Censura da Emissora Nacional em 1970, e consequentemente este disco no se tornou conhecido e foi 1 dos nicos discos de Amlia Rodrigues proibido pela Censura.A gravao abaixo foi realizada num sero em casa de Amlia Rodrigues, estando presentes Vinicius de Moraes, David Mouro-Ferreira, Ary dos Santos e Natlia Correia.Ouvir o som.