A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM...

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MARLENE GOYA LOTÉRIO A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM ESTUDO SOBRE O ESVAZIAMENTO HUMANO NA PRÁTICA DO CUIDADO UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO 2010

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MARLENE GOYA LOTÉRIO

A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM ESTUDO

SOBRE O ESVAZIAMENTO HUMANO NA PRÁTICA DO CUIDADO

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2010

MARLENE GOYA LOTÉRIO

A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM ESTUDO

SOBRE O ESVAZIAMENTO HUMANO NA PRÁTICA DO CUIDADO

Dissertação apresentada como exigência

parcial para obtenção do Título de Mestre em

Educação, na Universidade Cidade de São

Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.

Margaréte May Berkenbrock Rosito.

UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO

SÃO PAULO

2010

L882f

Lotério, Marlene Goya. A formação docente no curso de medicina: um estudo sobre o esvaziamento humano na prática do cuidado / Marlene Goya Lotério --- São Paulo, 2010. 79 p. Bibliografia Dissertação (Mestrado) - Universidade Cidade de São Paulo. Orientadora Profª.Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito 1. Formação docente. 2. Curso de medicina. 3. Saúde e educação. 4. Educação humanística. I. Berkenbrock-Rosito, Margaréte May. II. Titulo.

372.37

COMISSÃO JULGADORA

_______________________________________

_______________________________________

_______________________________________

DEDICATÓRIA

Aos meus amores

Hélio Guilherme

e Gabriel,

pela ordem de chegada.

AGRADECIMENTOS

A vida é feita de encontros. Desses encontros resultam os pares, os lares, as

famílias, os núcleos de amigos e companheiros desta longa e breve jornada.

Portanto, não posso deixar de agradecer:

Às minhas origens: meus avós paternos e maternos que, com coragem e

determinação, percorreram meio mundo, para chegar a esta terra que os acolheu.

Terra cheia de luz e de vida, Brasil, de que devo ajudar a cuidar, a cada dia, pois

abrigou os que vieram em busca de sobrevivência.

Aos meus pais Aryko e Mário (in memoriam), que nos trouxeram do interior de

São Paulo para a “Cidade Grande”, tentando nos dar um futuro melhor. Aos meus

doze irmãos, por todo o apoio e solidariedade.

À minha orientadora, Profa. Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito, pela

paciência, por acreditar, por me “arrastar” pela mão, com a delicadeza e a firmeza

necessárias.

À Profa. Dra. Mary Rangel e ao Prof. Dr. Júlio Gomes Almeida, por aceitarem

participar da banca examinadora.

À Profa. Dra. Ecleide Cunico Furlanetto, coordenadora do Programa de

Mestrado da UNICID, e aos docentes Prof. Dr. João Gualberto de Carvalho

Meneses, Prof. Dr. Jair Militão da Silva, Profa. Dra. Célia Maria Haas, Profa. Dra.

Edileine Vieira Machado da Silva e Prof. Dr. Potiguara Acácio Pereira, que me

acolheram e contribuíram com minha formação.

À Profa. Dra. Sylvia Helena Souza da Silva Batista, pelas contribuições na

qualificação do trabalho.

Aos Professores José Lúcio e Valéria, por me confiarem essa nobre missão.

Aos meus colegas do PISCO, com os quais dividi a aprendizagem de amparo

mútuo, a cada sacolejo do ônibus.

Aos demais colegas do Curso de Medicina da UNICID, sobre os quais se

pode afirmar que, em cada encontro, existe um aprendizado.

À Profa. Dra. Tereza Telles, pelo interesse, dedicação e ajuda na revisão e

finalização do trabalho.

À Profa. Ms. Maria Luiza Soares Santos, pelas contribuições e sugestões que

enriqueceram o trabalho.

Com carinho, às secretárias do Programa de Mestrado da UNICID, Juliana e

Sheila, sempre prontas a ajudar.

Aos meus alunos que sempre me deram incentivo à pesquisa e à reflexão

sobre um dos meus objetivos de ensino: motivá-los, a cada dia, ao cuidado de si e

do outro.

Por tanto amor

Por tanta emoção

A vida me fez assim

Doce ou atroz

Manso ou feroz

Eu caçador de mim

Preso a canções

Entregue a paixões

Que nunca tiveram fim

Vou me encontrar

Longe do meu lugar

Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta

Nada a fazer senão esquecer o medo

Abrir o peito a força, numa procura

Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai

Sonhando demais

Mas onde se chega assim

Vou descobrir

O que me faz sentir

Eu, caçador de mim

Milton Nascimento

RESUMO

O objeto de estudo, neste trabalho, é a busca do sentido do cuidado nas Diretrizes

Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina, Resolução CNE/CES

n.º 4, de 7 de novembro de 2001. A partir do referencial em Educação, na

perspectiva de Freire (1997), do conceito de cuidado na perspectiva de Foucault

(2006), Heidegger (2002), Ayres (2004), investigam-se os aspectos necessários para

se pensar a formação docente. Tem como objetivos: investigar de que forma o

cuidado como categoria de análise aparece nas Diretrizes Curriculares Nacionais do

Curso de Medicina (DCN) e analisar a formação docente na perspectiva do cuidado

humano. A análise documental foi o procedimento utilizado para a coleta de dados,

implicou a assunção de uma abordagem hermenêutica, na perspectiva de Gadamer

(1999), na qual se busca a construção de sentidos e significados, a partir de

inferências. A investigação sobre as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN),

considerando o esgotamento das possibilidades tecno-científicas, na atenção à

saúde, aponta para os seguintes resultados: (a) a necessidade de uma formação

humanística capaz de mediar o uso dos conhecimentos científicos e tecnologias, de

modo a responder às necessidades de saúde de indivíduos e da coletividade. (b) o

cuidado norteia as práticas que envolvem tanto ações de Educação como de Saúde

ou mostra-se como sendo, ele mesmo, parte dessas ações.

Palavras-chave: 1. Formação docente. 2. Curso de medicina. 3. Saúde e educação.

Educação humanística.

ABSTRACT

The subject of study in this work is the meaning of care in the National

Curriculum Guidelines of the undergraduate course in Medicine, CNE / CES No. 4,

November 7, 2001. From the starting points in education from the perspective of

Freire (1997), the concept of care from the perspective of Foucault (2006), Heidegger

(2002), Ayres (2004), it investigates the issues necessary for thinking about teacher

education. Aims: to investigate how the care as a category of analysis appears in the

National Curriculum Guidelines (DCN) and analyze teacher training in human care.

Document analysis was the procedure used for data collection, involved the

assumption of a hermeneutic approach, in view of Gadamer (1999), in which it seeks

the construction of meanings, from inferences. Research on the current National

Curriculum Guidelines (DCN), whereas depletion of techno-scientific opportunities in

health care, points to the following results: (a) a humanistic able to mediate the use of

scientific knowledge and technologies, order to meet the health needs of individuals

and the community. (b) care guide practices involving both actions as Education and

Health or shows as being itself a part of those actions.

Keywords: 1. Teacher education. 2. Medicine course. 3. Health and education.

4. Humanistic education.

LISTA DE SIGLAS

AVE – Acidente Vascular Encefálico

ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica

ABP – Aprendizagem Baseada em Problemas

DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina

ESF – Equipes de Saúde de Família

IES – Instituições de Ensino Superior

MEC – Ministério da Educação e Cultura

OMS – Organização Mundial de Saúde

OPAS – Organização Panamericana de Saúde

PISCO – Programa de Integração em Saúde da Comunidade

PSF – Programa de Saúde da Família

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidades Básicas de Saúde

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

1 A NARRATIVA DA HISTÓRIA DE VIDA: UM PERCURSO AUTOFORMATIVO 19

1.1 A autoformação e a singularidade autobiográfica 21

1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do valor humano 27

1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação 31

2 O CUIDADO HUMANO: AS APROXIMAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO E

A SAÚDE 35

2.1 A linguagem, a educação e o cuidado 39

2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos 53

2.3 A formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e

estéticas do cuidado 57

3 DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE MEDICINA:

LEITURAS E INVESTIGAÇÕES 63

3.1 O contexto histórico da Reforma Curricular 64

3.2 Diretrizes Curriculares nacionais do Ensino Superior: desafios para o

Curso de Medicina 68

3.3 Cuidado e a Integralidade da Saúde 69

CONSIDERAÇÕES FINAIS 75

REFERÊNCIAS 79

ANEXO

12

INTRODUÇÃO

Neste estudo, o objetivo principal é a promoção de uma reflexão sobre o

sentido de cuidado, nas diretrizes curriculares do Curso de Medicina, buscando a

compreensão da formação docente, dos profissionais que atuam no Ensino

Superior, na área da saúde.

Devido à relevância do cuidado nos procedimentos de cura e de prevenção

de doenças, a reflexão sobre a sua natureza é essencial, sobretudo, quando se

deseja analisá-lo no contexto das práticas que envolvem saúde e educação.

Na contemporaneidade, no contexto das instituições da saúde, as

consequências do avanço tecnológico são relevantes. A preocupação excessiva

com a tecnologia propicia a formação de um abismo entre os profissionais da saúde

e os pacientes. Em decorrência disso, há, inegavelmente, o esvaziamento humano

do conceito de cuidar, nas práticas profissionais usuais entre profissional e paciente.

Nas tradições, nos costumes, nas crenças, nos mitos, no próprio cotidiano,

sabe-se que todo ser humano é dependente de cuidado, antes do nascimento até à

morte. O cuidado está, portanto, relacionado à manutenção da vida e da espécie

humana. A humanidade não sobrevive sem o cuidado.

O exercício do cuidado evidencia a natureza mais genuína do nosso ser, da

nossa humanidade. Nascemos necessitando de cuidado. Por toda a vida, se pode

perceber o cuidado – ou a falta dele, permeando todas as ações.

Esta perspectiva aponta para a importância do tema, voltado, no mundo

contemporâneo, para a compreensão do que significa o cuidado de si e do outro,

nos relacionamentos interpessoais, mais especialmente, na formação dos

profissionais da área da saúde.

A análise do conceito de cuidado, na formação do profissional da saúde,

envolve compreender quais são suas características e como aparecem nas diretrizes

que orientam a construção do processo ensino-aprendizagem. Implica, também,

13

revisitar o pensar e o fazer pedagógico no esforço de valorizar práticas que afirmem

a subjetividade dos sujeitos no desenvolvimento de competências e habilidades.

Constitui-se um grande desafio afirmar a integralidade do cuidado, dentro de

pressupostos critico-reflexivos para a formação profissional, pois isso significa rever

conteúdos e programas desenvolvidos que têm se apresentado insuficientes e

desarticulados com práticas e experiências cotidianas.

Neste entendimento, o presente estudo visa à compreensão dos significados

do conceito de cuidado e como este se apresenta nas Diretrizes Curriculares

Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Essas diretrizes, de acordo com a

Resolução CNE/CES n.º 4, de 7 de novembro de 2001, publicada no Diário Oficial

da União visam à formação dos sujeitos, em suas relações professores- alunos.

A investigação dos sentidos de cuidado humano, presentes nessas diretrizes,

focaliza a formação docente. O método e o procedimento utilizados é a análise

documental. Para a análise de dados que se pretende, torna-se necessária a

abordagem hermenêutica adequada para estudos, nos quais se buscam

investigação compreensiva e interpretação de conteúdos. Esta espécie de análise

abrange a compreensão da historicidade do problema, do proclamado no

documento, das observações do cotidiano, levando em consideração a experiência

do pesquisador. Desse modo, descobrem-se contextos significativos que modelam

possibilidades para o entendimento das questões.

Nesse procedimento investigativo, observa-se o objeto não como um ato

isolado, mas como um conjunto de atos, em etapas sucessivas, no esforço de captar

sua realidade com uma escuta sensível, fazendo leituras do que é dito e do que não

é dito, levando em consideração que, em algum momento, pode-se encontrar o

contradito nos documentos.

São próprias do enfoque da hermenêutica filosófica, a análise e a

interpretação cuidadosa. A compreensão para Gadamer (1999) é um processo de

abertura de horizontes, para se permitir encontrar, no texto, algo que diz por si

mesmo. Para esse autor, toda a compreensão tem caráter de aplicação, isto é, há

uma pergunta que o texto quer responder. Os conteúdos de sentido se apresentam

como algo presente no texto e que necessita ser descoberto.

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A concepção positivista só admite como verdadeiro o empiricamente

verificável, enquanto a hermenêutica aponta para a compreensão da verdade,

levando em consideração o conhecimento do sentido e do valor que há em

contextos historicamente situados. Por falta de requisitos históricos, muitos

fenômenos não foram vistos, por muitos anos. Atualmente, com a invenção da lente,

esses objetos ou fenômenos podem ser verificados. Isto significa que há no

processo histórico alguma coisa que é condição de possibilidade do nosso

conhecimento e compreensão.

O tema do cuidado, nesse momento histórico, se supõe necessário ser

compreendido à luz das teorias e práticas da área da saúde e em contextos do

processo ensino aprendizagem dessa formação. A relevância dessa investigação se

dá em meio a um tempo de grande e acelerado avanço tecnológico. Esse contexto

histórico situa a necessidade de compreender a qualidade da formação docente que

seja apropriada para desenvolver e sustentar a relação humanizadora,

contemplando os princípios norteadores de uma atitude de respeito e

responsabilidade na área da saúde.

Para Gadamer (1999), a vida moderna é organizada através de regulamentos,

instruções e prescrições. A adaptação aos regulamentos não pode ser feita pela

aplicação cega às regras. As modificações da realidade, acarretadas pela técnica

moderna, colocam a todos novas tarefas, no sentido de compreendermos as

relações adequadas e usos apropriados dos saberes, competências e habilidades.

Isso implica a possibilidade de um novo olhar para o conceito de cuidado e a

compreensão de significativas abordagens para repensá-lo nas práticas da saúde.

Segundo Gadamer, esse processo acarreta experiências, evidenciando que aquele

que experimenta é alguém aberto a novas experiências. Para ele, a pessoa

experimentada não é aquela que sabe tudo, mas é alguém não dogmático que,

justamente por estar aberto às experiências, está mais capacitado para voltar a fazê-

las e aprender com elas.

O enfoque gadameriano (Almeida, 2000) vê na linguagem a substancialidade

de onde brota a experiência. O ser humano pode pensar e falar. Tudo o que pensa

pode comunicar. É o ser vivo que dispõe de linguagem. A realidade do falar

acontece no diálogo em que é possível a comunicação e a compreensão.

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Na perspectiva desse autor, compreensão não significa necessariamente

estar de acordo com o que ou quem se compreende. Significa, porém, refletir sobre

o que o outro pensa, sendo o “outro”, aqui, aplicado aos autores e teóricos da

educação e da saúde, desdobrando-se o estudo em explicitações de conceitos,

interpretações e apreensões, constituindo-se o movimento dialógico da construção

de sentidos, enfatizado por Lèvinas (1993).

Esse ponto de vista orienta a leitura e a investigação das diretrizes

curriculares do curso de Medicina. Como o conceito de cuidado – fenômeno em

estudo - é compreendido pelos teóricos e autores aqui apresentados? Como os

conteúdos essenciais para o curso de Medicina se relacionam com todo o processo

saúde-doença do cidadão, família e comunidade? Como ocorre a formação docente

para sustentar as ações dos profissionais da saúde? O que significa o cuidado na

integralidade das ações?

O pensar hermenêutico não desconsidera as tendenciosidades ideológicas do

texto, a crença de que não existe conhecimento puro. Para Severino (1997, p. 65),

“a lei conceitua, mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento. Assim,

tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a tomar”.

Além da Introdução e das Considerações Finais, neste trabalho, há três

capítulos: 1- A narrativa da história de vida: um percurso autoformativo; 2- O cuidado

humano: as aproximações entre a educação e a saúde; 3- Diretrizes curriculares do

Curso de Medicina: leituras e investigações.

No primeiro capítulo, há três subdivisões: 1.1 A autoformação e a

singularidade autobiográfica; 1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do

valor humano 1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação.

De uma maneira geral, neste capítulo, abordam-se as atividades vivenciadas

na disciplina “Ética, Estética e Educação”, ministrada pela Profa. Dra. Margaréte May

Berkenbrock Rosito, no Curso de Mestrado, na Universidade Cidade de São Paulo.

A importância do método biográfico surge como reação ao domínio positivista

das ciências. Nesta disciplina, a compreensão dos processos autoformativos

depende da pesquisa da própria prática, teorizando-a. Buscam-se, nas Histórias de

Vida, elementos que elucidem os caminhos da autoformação.

16

O relato de uma história de vida singular é uma das justificativas para a

escolha do tema deste trabalho. Constrói-se a narrativa do próprio percurso e isto

pressupõe a possibilidade de um efeito formador e transformador. A narrativa

autobiográfica traz à tona a tomada de consciência sobre o processo (auto)

formativo. As dinâmicas da autoformação incluem o diálogo com as memórias e com

as narrativas, presentes na abordagem autobiográfica.

Nessa perspectiva, aponta-se para o entendimento de que as narrativas

autobiográficas provocam processos de tomada de consciência, nos quais os

indivíduos e a sociedade voltam-se à busca da emancipação.

O entendimento da forma pela qual as questões do cotidiano são

incorporadas, na formação do indivíduo, além das capacidades técnicas da

educação, passa pela reflexão sobre essa prática.

A educação e a saúde aproximam-se, quando são consideradas como

elementos fundamentais para a manutenção da vida e seu pleno desenvolvimento.

Existem várias teorias sobre o conceito de cuidado. Elas fundamentam

concepções básicas para o pensamento contemporâneo. O cuidado é uma palavra

polissêmica, variando de acordo com as culturas, as sociedades, as categorias

profissionais e ideológicas. A palavra remete à ação pensada e refletida e à

responsabilidade. É uma ação que trará alguma conseqüência positiva ou negativa.

O não-cuidado implica em desatenção e descaso, configurando o abandono e

desrespeito, que pode ser observado nas relações que refletem a incapacidade de

expressar a solidariedade.

No segundo capítulo, existem três subdivisões: 2.1 A linguagem, a educação

e o cuidado; 2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos; 2.3 A

formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e estéticas do

cuidado.

A palavra tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, o que

é justo ou injusto. Neste sentido, a palavra exerce uma considerável força de poder.

Ela preenche os ciclos da história com as ideias, os valores e os princípios que

fundamentam as conquistas das civilizações e que possibilitam avanços e

descobertas, em todos os campos do conhecimento universal.

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É inegável que o avanço científico e o tecnológico têm trazido grandes

ganhos à produção de saúde. Porém sabe-se que somente a aplicação de técnicas

e a utilização de tecnologias não têm sido suficientes para o cuidado com a saúde.

Tem-se discutido até que ponto a exclusividade da ciência e da tecnologia

tem favorecido o homem, principalmente, no que diz respeito à qualidade de vida.

O ato de cuidar não pode estar restrito à mera aplicação de técnicas. A

objetividade no cuidado transforma, em ato mecânico, aquilo que deveria ser

humano, carregado de vida.

O sujeito que cuida e ama é libertador, ele cura, ele serena o futuro e cria

esperanças. Na contemporaneidade, é necessário que se repensem valores, no

meio das práticas racionalistas e técnicas, É ainda imperativo que se resista à apatia

e à indiferença. No que se refere à formação, necessita-se insistir na abertura de

espaços, para a educação, nos quais haja o incentivo às potencialidades do ser

humano. Assim, as práticas serão técnicas, sem que sejam esquecidas a arte do ser

e a do relacionar-se com o humano.

No terceiro capítulo, há três subdivisões: 3.1 O contexto histórico da Reforma

Curricular; 3.2 Diretrizes Curriculares nacionais do Ensino Superior: desafios para o

Curso de Medicina; 3.3 O cuidado e a integralidade da saúde.

As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina

(DCN, Resolução CNE/CES n.º 4, 7/11/2001) propõem a humanização da saúde. A

resolução outorga às Instituições de Ensino Superior (IES) maior grau de autonomia

para propostas de currículos inovadores, substituindo o currículo mínimo.

Uma proposta inovadora passaria pela inclusão de uma nova visão do

cuidado, incluindo orientações necessárias para a humanização da saúde,

considerando que os currículos são fragmentados e os conteúdos são ministrados

de forma bastante tradicional.

Neste capítulo, há uma pesquisa sobre a história da formação médica. Vê-se,

nesta pesquisa que, no decorrer do tempo, a eliminação das doenças sobrepõe-se

aos cuidados à pessoa. Ou, ainda, espera-se que o indivíduo adoeça, para depois

tentar tratar a sua doença.

18

Hoje, a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos da área

da Saúde e, especificamente, do Curso de Medicina é resultado de um importante

movimento de educadores da área da saúde. A proposta de formação de

profissionais da área da saúde com perfil humanístico, crítico e reflexivo é

contemplada.

Existe a percepção da necessidade de uma formação que propicie não só o

uso de tecnologia e instrumentos sofisticados, mas também o desenvolvimento de

outras competências, como a atenção integral à saúde, tomada de decisões,

comunicação, liderança, administração e gerenciamento e educação permanente.

Pressupõe-se uma formação generalista, humanista, crítica, reflexiva,

pautada em princípios éticos, com senso de responsabilidade social e compromisso

com a cidadania, e a promoção da saúde integral do ser humano. Seria formação

crítica e reflexiva, já que a transmissão de conhecimento, por meio da educação

bancária, não é mais suficiente para os dias atuais. As escolas têm substituído ou

complementado os métodos antigos por métodos de ensino-aprendizagem

centrados no estudante e orientados para a comunidade.

A integralidade na saúde é uma das diretrizes do SUS. Ela compreende a

articulação das ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação de modo

contínuo. Neste sentido, a integralidade, pretende superar a fragmentação das

ações de saúde, tornando-as menos pontuais.

A integralidade é a percepção do sujeito histórico, social e político, dentro de

um contexto familiar que se articula com o meio social e ambiental. As ações de

cuidado devem englobar ações de saúde e de educação, como produção de saber

coletivo, levando o indivíduo à emancipação e à autonomia para cuidar de si, de sua

família e do meio em que vive.

Isto evita o esvaziamento humano do conceito de cuidar, nas práticas

profissionais usuais entre profissional e paciente. É, nessa atual conjuntura, que a

formação humanística torna-se imprescindível.

19

1 A NARRATIVA DA HISTÓRIA DE VIDA: UM PERCURSO AUTOFORMATIVO

Durante o Curso de Mestrado, na Universidade Cidade de São Paulo, na

disciplina “Ética, Estética e Educação”, uma atividade foi vivenciada pelos

participantes: a elaboração de uma “Colcha de Retalhos”, utilizando um retalho de

tecido/pano. No final do semestre, cada participante conta a história tecida no

retalho. Tais retalhos, costurados de forma coletiva, formam uma colcha.

Berkenbrock-Rosito (2007; 2008), tentando compreender como se dá a

autoformação, propõe, aos estudantes do Mestrado, a pesquisa de sua própria

prática para compreendê-la e teorizá-la, buscando, nas Histórias de Vida, elementos

que possam elucidar esse processo, investigando como seus percursos singulares

foram tramados no coletivo.

A autora encontra apoio teórico nos autores clássicos da História de Vida em

Dominicé (2006), Josso (2004, 2008), Pineau (2004), Nóvoa (1992), dimensões da

formação docente em Furlaneto (2003), Imbernón (2005), Tardif (2005), no regime

de esteticidade em Freire (1992; 1996) e no paradigma da complexidade em Morin

(1996). Ela percebe que muitas das ações, processos e conhecimentos do espaço

coletivo incorporam-se na sua formação, uma vez que escolhas e experiências

vivenciadas servem de subsídios para a formação de sua própria singularidade,

mobilizando seus saberes, que serão aplicados à sua prática de modo autônomo.

O método da Colcha de Retalhos, preconizado por Berkenbrock-Rosito, tem

como propósito transformar em objeto o conteúdo singular das Histórias de Vida.

Como exercício, propõe-se a narrativa escrita, oral, fílmica e pictórica com o objetivo

de compreender a formação docente entre o percurso singular e coletivo. Percebe-

se como ocorre a formação pessoal e a profissional no espaço coletivo, através da

História de Vida.

O método emergiu do filme How to make an American Quilt (1995). Este

método envolve estratégias para abordar o conteúdo a ser investigado.

A primeira atividade é a realização de um trabalho biográfico referente à

vivência no Ensino Superior. Parte das narrativas escritas, de três cenas marcantes

no Ensino Superior, que abordem a reflexão sobre a presença de uma formação de

autoria no decorrer do processo. Surgem as questões: Como foi a sua relação com

20

as disciplinas no Ensino Superior? Foi de autoria ou submissão? Como foi a sua

relação com o professor? Foi de autoria ou submissão? Que aluno(a) você foi?

A segunda atividade é o Trabalho de História de Vida, propriamente dito, cuja

estratégia se constitui na elaboração do Quadro da Vida, buscando “os momentos

divisores de água”, inspirados nos “momentos charneiras” (Josso, 2004), nas

categorias de espaço e tempo: vida familiar, escolar, acadêmica, profissional, livro,

filme, pessoa, relacionamento amoroso. Que episódios foram marcantes? Há o

reconhecimento de que houve uma mudança em seus referenciais da realidade?

Nesse processo, há o reconhecimento das pessoas, professores, livros que

influenciaram a sua escolha profissional? Há relação desses momentos divisores de

água com a sua maneira de ser pessoa e professor?

A narrativa escrita da atividade biográfica do Ensino Superior e o Quadro da

Vida transformam-se em narrativa pictórica. Na sala, cada participante narra a sua

experiência para o outro. Na história tecida em retalho, é possível perceber que a

singularidade não se dissipa no espaço coletivo.

A elaboração da “Colcha de Retalhos” mostrou aos participantes a

possibilidade de um processo singular que, compondo com outros processos

singulares, formam o coletivo. Percebe-se a assunção de projetos de vida que, nem

sempre, ou quase nunca, ocorrem sem conflitos interiores ou com o universo

exterior, mas que – também por isso – constituem-se em um movimento de

afirmação de valores, de crenças, e de conhecimento.

Não há facilidades no percurso da vida. É necessário que se procurem as

brechas, as frestas, os vãos para realizar a travessia. Tenta-se o alargamento

dessas brechas para que se possa passar com toda a carga cultural e a social,

dependendo de uma atitude autônoma, utilizando, como principais instrumentos, a

razão e a emoção que permitem o alargamento dessas brechas. Assim, nesse

processo, muitas vezes abre-se mão de algumas coisas para conquistar outras e,

nisto, há algo de que é necessário prescindir.

A tomada de consciência de nosso lugar no mundo, dos pontos de vista

psicológico, social, cultural, espiritual, político (Josso, 2007), permite-nos

compreender como nos relacionamos, interagimos com a vida, com o mundo, com o

coletivo. Nesse processo de busca, nessa caminhada, reavaliamos nossos valores,

21

crenças e nossas pertenças. Reafirmamos aquilo que nos pertence e que é

importante para nós.

Houve, para mim, um momento de tomada de consciência como “momento

divisor de águas”. Esse momento foi extraído no ato de resgatar circunstâncias da

minha experiência de vida, emergindo as questões do cuidado que me levam a

trilhar o caminho desta pesquisa.

1.1 A autoformação e a singularidade autobiográfica

Lembro-me, com muita clareza, da minha avó materna, acometida de um

acidente vascular encefálico (AVE), ainda muito jovem, quando vinha do Japão para

o Brasil, como imigrante. Conviveu com sequelas que lhe paralisaram o lado direito

do corpo, limitando seus movimentos e locomoção, levando, inclusive, a uma

paralisia facial que lhe dificultava a fala e a deglutição da saliva, que lhe escorria

pelo canto da boca, permanentemente. Mesmo assim, teve dez filhos e criou-os na

zona rural, trabalhando na lavoura.

Na velhice, próximo aos 70 anos, fazia rodízios nas casas dos filhos, ora

morando com um, ora com outro, para que nenhum deles fosse sobrecarregado

financeiramente, já que não possuía renda própria e que nesta fase da vida

precisava de ajuda para suas necessidades básicas.

Quando da sua estadia em nossa casa, ela era ajudada por mim e meus

irmãos. Éramos crianças e cuidar da avó era, ao mesmo tempo, diversão e

obrigação. Talvez eu tivesse, nesse período, entre nove e doze anos. Nós a

ajudávamos a ir ao banheiro, tomar banho, vestir-se, pentear-se, alimentar-se. Até a

riscar o fósforo para acender o seu cigarro. Revezávamo-nos entre os horários da

escola e outros afazeres, mas os cuidados mais complexos ficavam por minha

conta.

Eu cuidava de minha avó de modo “desinteressado”. Não esperava nada em

troca. Ela nunca me agradeceu, porque nunca precisou fazê-lo. Eu cumpria o meu

papel de bom grado; não era obrigação e não era piedade. O que eu queria mesmo

era vê-la feliz, e era muito fácil agradá-la. Ela nunca ficava de mau humor. Nunca

22

reclamava das coisas. Ria com muita facilidade, e vê-la rir era minha maior

recompensa.

Ela falava o idioma japonês. Ainda que eu não a compreendesse e ela me

compreendesse muito pouco, nós nos entendíamos. Quando não nos entendíamos,

ríamos juntas. Ela ria muito. De tudo. Quando eu lhe penteava os cabelos e a

machucava, ela gritava de dor e logo em seguida ria, compulsivamente, fazendo-me

rir também. Ela ria da dor que sentia e do susto que eu levava. Acho que ela tinha

um “espírito” de criança. E por isso eu gostava muito dela.

Apesar dessa dependência, aprendi muita coisa com ela. Aprendi a ser feliz

com a simplicidade das coisas. Ela fazia crochê, apesar de sua limitação física, e eu

aprendia apenas olhando, já que eu não compreendia suas palavras. Aprendi a ter

paciência com as coisas, pois, às vezes, eu demorava um pouco para entender o

que ela queria dizer. E tantas outras coisas que pude aprender com ela.

Quando eu tinha uns doze ou treze anos, ela teve outro AVE, ficando

acamada. Os cuidados ficaram mais complexos. Neste período, ela permaneceu na

casa do meu tio (irmão de minha mãe), onde teria cuidados de adultos. Minha tia e

minha prima cuidariam dela. Mesmo assim, ia vê-la com frequência. Em pouco

tempo, ela morreu acometida de uma pneumonia, como complicação frequente de

idosos acamados.

Enquanto escrevo essas linhas, me dou conta de que nunca soube o seu

nome, pois eu a chamava de “vó”. Talvez ela tenha morrido sem saber o meu nome

também. Embora não nos chamássemos pelos nomes, eu a conhecia na sua

integralidade. Sabia das suas necessidades e a ajudava integralmente, dentro das

minhas possibilidades.

Talvez tenha sido esse o motivo que me levou à Enfermagem: primeiro com o

curso de Auxiliar de Enfermagem, que me permitiu trabalhar na área. Trabalhando,

reafirmei minha vontade, meu sonho, e pude graduar-me em Enfermagem na

UNICID, naquela época, “Faculdades da Zona Leste”. Sempre que presto

assistência aos pacientes, cuido deles do mesmo modo que cuidava da minha avó.

Tento atender a suas necessidades, de forma integral, visando não só ao aspecto

biológico como também ao psicológico, ao social e ao espiritual.

23

Com essa atitude, tive ótimas recompensas e reforços e alguns problemas de

ordem profissional. Alguns supervisores e colegas achavam que eu agradava

demais aos pacientes, tornando-os dependentes dos meus cuidados, comparando-

me com outros profissionais. Mas esse é o meu modo de trabalhar. Preciso

compreender o paciente, conversar com ele, estabelecer um vínculo de confiança.

Isso requer ser ético e verdadeiro com ele, esclarecendo o que é possível e o que

não é possível fazer em seu tratamento. Isto, sem perder de vista o fato de que o

profissional da saúde trabalha para que o paciente se torne, gradativamente,

autônomo e independente, no que se relaciona ao autocuidado.

Outros aspectos da profissão mobilizaram minha atenção, como por exemplo,

a percepção dos rigorosos regulamentos dentro dos hospitais. Percebia a ausência

de algo que fosse significativo na prestação de cuidados adequados que

resultassem em benefícios para os pacientes. Ver crianças internadas, que ficavam

no hospital, sem a presença da mãe ou de um membro da família, era para mim, no

mínimo, desumano. Muitas vezes, eu escondia as mães nos banheiros, durante a

passagem do enfermeiro supervisor do plantão, para que elas pudessem

permanecer com seus filhos por maior tempo possível.

Ver pacientes impedidos de comer algo trazido por seus familiares, na hora

da visita, me incomodava. Como impedir que um paciente “mate a saudade” e a

vontade da comida de casa, feita por sua esposa ou por sua mãe? Isso tudo sem

contar as condições precárias de atendimento; a dificuldade em atendê-los de modo

adequado, a falta de qualificação profissional e a falta de tratamentos adequados

(inexistentes na época). Algo que me incomodava era referir-se ao paciente, não

pelo seu nome, mas pelo número do leito que ele ocupava ou pela doença que o

acometia: era como se o paciente não tivesse identidade, não tivesse nome, não

tivesse família, não tivesse contexto.

Diante de tantas dificuldades, por muitas vezes, pensei em deixar a profissão.

Para mim não era possível atender pessoas naquelas condições. Era muito

desumano. E o meu compromisso como profissional era cuidar do ser humano de

modo integral, garantindo sua dignidade. É óbvio que esse pensamento não era

exclusivamente meu. Muitos colegas compartilhavam desse pensamento, mas

podíamos mudar muito pouco.

24

O trabalho era “mecanizado” e havia um interesse em atender as

necessidades das instituições, em detrimento das necessidades dos pacientes,

tornando a relação profissional de saúde/paciente muito distante e impessoal. No

processo de formação profissional, a preocupação era maior com os conteúdos

técnicos e científicos do que com o relacionamento humano, entre profissionais e

pacientes e entre os profissionais, entre si.

Antes de desistir de tudo, tomei conhecimento das ações da Organização

Mundial de Saúde (OMS), que discutiam, desde a década de 70, o lema “Saúde

para todos no Ano 2000”. Com a abertura política no Brasil e com a promulgação da

Nova Constituição Federal, em 1988, havia sido criado o Sistema Único de Saúde

(SUS) na forma de lei, que passou a vigorar a partir de 1990. Como estratégia de

implantação, dentro deste sistema, cria-se o “Programa Saúde da Família”, onde o

paciente, agora denominado usuário do sistema, passa a ser atendido de modo

integral, sendo visto como um indivíduo, pertencente a uma família e fazendo parte

de uma comunidade.

Esse programa permite que uma equipe de saúde tenha maior compreensão

sobre os fatores determinantes e condicionantes do processo saúde-doença, que

envolve o indivíduo, levando em conta o seu contexto biológico, psicológico, social,

cultural, espiritual e ambiental.

Ainda que este programa esteja amparado por lei, as mudanças ocorridas,

após 20 anos de existência, não forneceram ao sistema a eficiência necessária. As

dificuldades de implantação vão desde precários investimentos financeiros, falta de

vontade política, falta de participação e entendimento por parte da população, até a

formação profissional inadequada. Para essa mudança de paradigma, o próprio

sistema orienta para mudanças nos currículos dos cursos da área da saúde,

adequando assim os profissionais para as necessidades de saúde da população, de

acordo com o sistema.

Em 2003, fui convidada para participar, como docente, do Curso de Medicina

da Universidade Cidade de São Paulo. Como pré-requisito, frequentei e concluí o

Curso de Capacitação Docente em Educação Médica que ocorreu durante o

segundo semestre do mesmo ano. Neste curso, foram utilizadas metodologias ativas

de ensino-aprendizagem e foram apresentados e discutidos:

25

O Projeto Político-Pedagógico do Curso de Medicina.

O perfil do profissional a ser formado.

Metodologias a serem utilizadas – aprendizagem baseada em

problemas (ABP) e Problematização.

Atividades de integração: Tutoria, Programa de Integração em Saúde

na Comunidade (PISCO), Laboratório de Habilidades, Laboratório Morfofuncional,

Laboratório de Informática, Consultorias e Conferências.

Oficinas de Planejamento do Curso.

O Curso de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo iniciou no

primeiro Semestre de 2004 com uma proposta que atendesse as Diretrizes

Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (Brasil, 2001) que

visam à formação de profissionais voltados para as necessidades do SUS, tendo

como eixo a integralidade das ações em saúde.

O Curso de Capacitação de Docentes, por si, talvez não seja suficiente para

mudanças das práticas, mas faz do docente um avaliador de si próprio para esta

capacidade de trabalho em equipe, para um resultado comum, motivando-o à busca

de conhecimento.

Durante o curso de capacitação, foram construídos os primeiros módulos do

curso. Discutiram-se os conteúdos a serem abordados e as estratégias a serem

utilizadas, de modo a garantir uma abordagem, não só do ponto de vista biológico,

mas considerando também os aspectos psicológicos, sociais, culturais, espirituais e

do meio ambiente do processo saúde-doença, por meio de uma construção coletiva

e sem uma divisão em departamentos.

Esse planejamento conjunto possibilita a integração entre os conteúdos,

ampliando a visão do docente em relação aos conhecimentos, habilidades e atitudes

que ele próprio deve ter para ensinar ao aluno; estimula a construir junto, a aprender

junto; convida à educação permanente.

O PISCO – Programa de Integração em Saúde da Comunidade pode ser

considerado oportuno para conhecer o paciente no seu contexto: sua família, sua

origem, seus costumes e cultura e sua condição sócio-econômica. Isso implica o

conceito ampliado de saúde que, segundo a OMS, é garantia de qualidade de vida

26

compreendida como acesso à alimentação, educação, trabalho, renda, moradia,

transporte, saneamento básico, lazer, bens e serviços essenciais e a relação com o

meio ambiente. Esse conceito de democracia social abrange a visão Interdisciplinar

que aponta para a necessidade de ações intersetoriais, garantia para o exercício da

cidadania.

De acordo com Santos (2004), saúde não se vincula apenas ao hospital. O

profissional da saúde deve atuar na comunidade, fazendo intervenções também na

promoção da saúde e prevenção de doenças. Isso repercute no tipo de

aprendizagem que se torna necessário e que não pode estar confinado à escola. O

século XXI, caracterizado pelo avanço tecnológico, abundantes informações, estilo

de geração de conhecimentos, rápido desenvolvimento de técnicas e

procedimentos, coloca como questão a necessidade de integração com o mundo

subjetivo do cliente/usuário que precisa ser cuidado.

A complexidade do modo de vida com necessidade de conforto e segurança

fez com que houvesse avanço tecnológico e acúmulo de riqueza, no modelo

econômico capitalista. Para atender a esta tendência, com ênfase na produtividade,

o segmento industrial fragmenta-se em setores de produção.

Vilela (2003) afirma que este segmento industrial passa a ditar regras de

formação profissional e, nessa mesma tendência, as universidades passam a formar

especialistas que atuarão tanto no processo produtivo como na formação de futuros

profissionais.

Segundo Rattner (2003), a formação, consequentemente, passa a ser

também fragmentada, não havendo um mecanismo que integre os fragmentos. Essa

desarticulação acarreta para o aluno uma tarefa trabalhosa, que ele, na maioria das

vezes, enfrenta sozinho, podendo aparecer futuramente, como lacunas e carências

na formação profissional que, dificilmente, serão contornadas.

Se o objetivo da ciência é o desenvolvimento da humanidade, então a

formação fragmentada leva os pesquisadores, cientistas e profissionais ao

pensamento solitário. Hoje, há necessidade de integração do conhecimento, das

culturas de todos os povos, da tecnologia. E a produção do conhecimento deve dar-

se por meio do pensamento interdisciplinar.

27

1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do valor humano

Nas palavras de Delory-Momberger (2009, p. 9): “nós não fazemos a narrativa

de nossa vida porque temos uma história, temos uma história porque fazemos a

narrativa de nossa vida.” No ato de narrar, a História de Vida ganha força e sentido,

o vivido na experiência dos homens. A construção da narrativa do próprio percurso

pressupõe a possibilidade de um efeito formador e transformador, na tomada de

consciência dos aspectos constituintes da identidade e subjetividade do sujeito

singular e coletivo.

A narrativa autobiográfica, na abordagem do paradigma experiencial, na

perspectiva de Josso (2004), possibilita trazer à tona a tomada de consciência sobre

o processo (auto) formativo. Processo que ocorre nos espaços familiares, escolares

e de trabalho, por meio de nossas vivências que são marcadas por conflitos,

movimentos, lutas, buscas ou inércia. Segundo a autora, a tomada de consciência,

como sujeito de sua história evidencia a singularidade diante das representações

mais ou menos impostas pelo coletivo.

Duran (2009) compreende a autoformação, como processo de apropriação e

reapropriação individual, lugar onde se reconhece como de fundamental importância

o lugar do sujeito, no processo formativo. As dinâmicas da autoformação incluem o

diálogo com as memórias e com as narrativas, presentes na abordagem

autobiográfica.

Em seus estudos, Duran estabelece a relação entre memórias individuais e

memórias coletivas, evidenciando a natureza interdependente e participativa das

narrativas autobiográficas. Esse movimento de participação social das lembranças

de um indivíduo para com o outro pode reorientar as narrativas, redimensionando a

construção do processo autobiográfico pelo diálogo compreensivo, realizado nessa

interação.

Essa autora considera o valor biográfico como princípio organizador daquilo

que o indivíduo tem vivido, colocando assim as narrativas que contam a própria vida

como elementos que podem integrar visão de mundo, memórias e discurso, sendo

isso constitutivo do processo de formação educacional.

28

A importância do biográfico, como método, surge como reação ao domínio

positivista das ciências e se contextualiza no pensamento hermenêutico. Essa

perspectiva aponta para o entendimento de que as narrativas autobiográficas

provocam processos de tomada de consciência, emancipatórios para o indivíduo e

para a sociedade.

Observa-se, deste modo, que, no movimento de compreender as próprias

vivências e experiências, o indivíduo atribui sentidos às informações que lhe

chegam, advindas do mundo em que vive. Assim, no processo formativo, o

indivíduo, ao interpretar o mundo como interpreta, evidencia estar conectando o

conjunto de atividades educativas com a tomada de consciência, realizando a

reflexão retrospectiva na reflexão presente.

A formação, deste modo, é integradora e o sujeito da formação se movimenta

quando toma consciência e se apropria de conteúdos significativos, através de

atividades e aprendizagens em qualquer espaço social. As descobertas dos

indivíduos, efetuadas na intimidade do seu mundo interior ou na relação com os

outros estimulam a autoformação.

Os processos formativos, compreendidos por Duran (2009, p. 31), como

“processos diversificados, formais e não formais” que “se desenvolvem no tempo”,

colocam o sujeito no papel central dessa dinâmica porque, na medida em que esse

sujeito vai se apropriando do poder de se formar, torna-se autor da produção de si

mesmo.

Essa atribuição de centralidade ao sujeito, em seu processo formativo, é

condição de possibilidade, para que se estabeleça uma nova relação com o saber,

significando a “conquista de identidade pessoal, situada social e historicamente”

(Duran, 2009, p. 33).

As vivências e discussões do processo de autoformação evidenciam o valor

das relações humanas, nos espaços das instituições ou fora delas, mostrando os

tecidos das experiências formadoras, em momentos de constatações e descobertas

de influências através das narrativas autobiográficas.

O que se reconhece nesse processo é a racionalidade que abre espaço à

sensibilidade, procurando compreender o encadeamento entre as diversas

29

dimensões dos percursos de vida e as construções dos saberes, presentes na

formação.

Bragança (2009, p. 39) aponta, entre as contribuições da abordagem

autobiográfica, o reconhecimento do valor das narrativas, como lugar de diálogo, de

partilha e empatia entre indivíduos que aprendem. Ele coloca a história de vida,

como prática social, que aparece “na transmissão/recriação cultural das narrativas”

das histórias dos indivíduos, da família e da comunidade.

Ao trabalhar autobiografias, estabelecem-se desdobramentos de reflexões,

nas quais passado, presente e futuro são conjugados. Isto evidencia o movimento

ontológico de conhecer, de dar sentido às experiências narradas com vistas à

construção do futuro. Para a autora,

a incorporação das histórias de vida como caminho metodológico coloca o desafio de trabalhar fora do quadro lógico formal, positivista, reenviando o olhar para uma perspectiva aberta e a incorporação da subjetividade como elemento fundamental da constituição epistemológica do saber neste campo do conhecimento, já que fundada na interação social, no olhar do sujeito. (Bragança, 2009, p. 40)

Há, nessa prática, a ultrapassagem do paradigma lógico-formal, focalizando a

vida em seus movimentos individuais e coletivos. Esse movimento é espaço

apropriado para compreender os processos sociais e históricos implícitos na

autoformação. A temporalidade tem grande importância nessa abordagem que

desafia e confronta a linearidade do paradigma simplificador.

A questão desse paradigma simplificador encontra em Santos Neto (2009,

p.96) um ponto de encontro no que ele chama de “concepção reducionista do ser

humano”. Nessa concepção, a realidade é vista como se constituindo basicamente

de objetos independentemente dos sujeitos que a produzem e a conhecem,

configurando uma visão racionalista, dualista e mecanicista do mundo.

Para o autor, a consequência disto para a educação se traduz na formação

que apresenta cisões entre corpo e alma, razão e sentimentos, formas

desconectadas entre dimensões do humano que se encontram sem diálogo,

desconsiderando os sujeitos como autores de si e da história.

Torna-se nítida a questão do respeito à autonomia e à dignidade como

imperativo ético. A compreensão de ser humano que tem curiosidade, cujas

30

narrativas, inquietudes, gosto estético e linguagem são valorizados movimenta o

relacionamento entre sujeitos, no processo educacional, baseado no respeito à

singularidade e ao contexto histórico.

O movimento de autoformação supõe dedicação, troca de experiências, o

desejo pelo desenvolvimento de ser, do aprender e do descobrir. Supõe que o

educador esteja respeitosamente presente à experiência formadora e dela participe,

incentivando e proporcionando buscas e vivências significativas e contextualizadas.

O processo autobiográfico, como processo em movimento, possibilita compreensão

da vida do outro, do ponto de vista de quem vivencia e compartilha o que interpreta.

Nesse processo, ocorre o perceber e o aprender com desdobramentos que

envolvem sentimentos, composições singulares de elaborações racionais,

percepções de conteúdos reais e imaginados adquiridos. As narrativas se

apresentam, deste modo, como oportunidades de reflexão, pois, enquanto o sujeito

relata não o faz sem releituras desses fatos e dados relatados, colocando em

evidência a força e o sentido das experiências compartilhadas.

Ainda, segundo Duran (2009) a linguagem tem papel fundamental na

interação com o Outro e com a cultura. É pelos signos linguísticos que se

compreende e se reconstrói a cultura, pois é este o modo pelo qual se entra em

contato com o Outro.

As narrativas, como forma de linguagem, possibilitam a organização do vivido,

reunindo as experiências, como retalhos, para a autocompreensão - enquanto ser

que se constrói/forma na convivência com outros, dentro de uma cultura cercada

permeada por outras culturas, num determinado tempo permeado por outros

tempos.

Deste modo, vamos construindo e reconstruindo a nossa integridade ao rever

atitudes, valores e tudo o que importa para nossa vida cotidiana. A formação implica,

portanto, refletirmos sobre nossos próprios feitos e é isso que implica a

compreensão do sujeito, no lugar central do processo formativo. Isto equivale a

dizer que a formação centrada no aluno é a formação que parte dele mesmo e isso,

somente é possível, se ele reconhece a si próprio. As narrativas do método

biográfico ou histórias de vida constituem um percurso de autoformação, que parte

31

do singular, enquanto busca a si mesmo, para o universal, enquanto busca sua

posição no mundo.

Para Cyrulnik (2009, p. 206), as narrativas compõem a representação de si,

quando o sujeito busca suas origens. Pode ser um processo prazeroso ou doloroso,

mas necessário para dar coerência à vida. Esse processo só é possível graças à

“ferramenta verbal”.

Escapar das imposições e do determinismo é um processo desafiador. Ou

vivemos como “espantalhos” (semivivos ou semimortos) para não sofrermos mais ou

não fazermos sofrer quem amamos, ou enfrentamos a dor do sofrimento que é

romper com imposições que nos cerceiam a vida, assumindo de vez o rumo de

nossas vidas.

Submetermo-nos às “verdades” impostas pode nos levar à ilusão de sermos

aceitos pelos grupos, podendo criar obstáculos quanto ao cuidar de nossas próprias

vidas por adesões a ideais que podem ser muito contrários aos nossos, tornando

nossas vidas vazias e sem sentido.

As narrativas nos colocam perto de nós mesmos, permitindo o encontro com

nossos ideais, crenças e valores que nos guiarão no nosso percurso.

1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação

A formação docente tem passado por vários questionamentos e

reformulações. Há mais de duas décadas autores preocupados com a

transcendência das capacidades docentes, estudam novos métodos de produção e

apropriação de conhecimentos na área da educação que vão além das capacidades

científicas, técnicas e didáticas.

De acordo com Imbernón, (2005), na sociedade contemporânea, com os

processos democráticos, a pluralidade cultural, a globalização, os meios de

comunicação e informações, recursos tecnológicos, questões éticas, demandam

outras capacidades docentes, como a de organizar os espaços escolares,

possibilitando um espaço de participação, reflexão da prática e formação.

32

Para a reflexão da prática, se faz necessário ter vivenciado esta prática. A

prática do outro também poder ser inserida como aprendizagem, desde que faça

parte da minha experiência, da minha reflexão, a partir do que observo e analiso.

Isso compõe o universo das minhas experiências de aprendizagens.

Para Nóvoa (1992), o conhecimento é feito na prática, portanto a reflexão da

prática é que dá formação de outras capacidades.

A autoformação, na educação permanente, parece essencial para a aquisição

dessas capacidades que os espaços formais de formação não alcançam de modo

sistemático (Arroyo, 2000).

Tardif (2005) desenvolve estudos na área dos saberes docentes, necessários

para o exercício da profissão, preocupa-se com a natureza desses saberes. Para

ele, tais saberes envolvem conhecimentos, o saber-fazer, competências e

habilidades que os professores mobilizam diariamente para realizar seu trabalho.

A apropriação desses saberes docentes dá autonomia ao professor, que

aplica seus conhecimentos dentro do espaço coletivo, do seu cotidiano, que ao

mesmo tempo o transforma. Esta autonomia do saber-fazer dá a dimensão estética

(Jimenez, 1999), ética e humana, discutida por Freire (1996).

Para entender como as questões do cotidiano são incorporadas na nossa

formação, além das capacidades técnicas da educação, se faz necessário refletir

sobre essa prática.

Porém, os espaços formais de educação não são espaços exclusivos dos

elementos que incorporam a formação dos sujeitos. Os professores, como sujeitos

que interagem com seu meio, sua cultura, também passam por transformações, eles

vivenciam situações cotidianas que envolvem toda a sua vida. Sua vida não se

restringe à sua profissão. O professor vive e convive dentro de um espaço coletivo.

Tanto pode ser objeto de transformação, como pode transformar o coletivo, como

qualquer outro membro deste coletivo. Como um sujeito singular, absorve as

transformações, mudanças, desenvolvimento do coletivo, mobilizando seus saberes,

de modo próprio, tomando decisões, assumindo seu percurso, de acordo com suas

concepções e seus valores.

33

A formação focaliza a compreensão do processo de construção de autoria,

autonomia e emancipação dos docentes, no decorrer de seus percursos formativos,

dentro de um espaço coletivo.

Ao discutir sobre processos formativos de professores, Duran (2009)

apresenta o contexto educacional brasileiro e o reconhecimento da perspectiva

teórica que envolve o método biográfico, as histórias de vida e as narrativas como

plenas de importantes afinidades com a problemática da autoformação. Isso

caracteriza a importância das memórias para a reflexão sobre um fenômeno a ser

situado e trabalhado. Para Duran, as memórias e narrativas se colocam como

uma das premissas básicas para um trabalho que pretenda colher histórias de vida de professores em formação, para dar existência a essas histórias, para dar voz aos desautorizados de sempre, articulando formação e autoformação (Duran, 2009, p. 23).

Para Santos Neto (2009), as construções autobiográficas contribuem para a

formação de educadores por ajudarem na constituição de sujeitos capazes de

trabalharem com educandos, visando ao desenvolvimento da autoria e autonomia.

Ele entende a proposta educacional assentada sobre uma concepção de ser

humano. Assim, a forma específica de ver o mundo e, nele, agir coloca em evidência

a antropologia que sustenta determinada proposta educacional. Para se analisar, em

profundidade, determinada proposta, é preciso compreender claramente qual seu

alcance, em termos de formação de seres humanos de acordo com o fundamento

escolhido.

Para ele, estudos de autores importantes reconheceram os espaços de

contradição dentro da proposta capitalista. No Brasil, aponta os estudos de Freire,

entre outros, onde o processo de construção do conhecimento foi objeto de reflexão

e análise crítica. Os estudos referidos por Santos Neto (2009, p. 96), salientam a

existência de uma visão de mundo assentada sobre uma antropologia racionalista,

tendo nas construções de Descartes e Newton, referências para uma visão

reducionista, determinista e fragmentada de ser humano.

Aponta a influência de Freire, a partir da segunda metade do século XX, e sua

concepção “rica e provocativa” (Santos Neto, 2009, p. 97) de ser humano que se

compreende, aberto por perceber-se singular, inacabado, que necessita se mover de

forma dialógica e esperançosa, enquanto constrói sua história. Há a visão de um ser

34

social e político inacabado e que tem consciência desse inacabamento. Este ser

interpreta o mundo e necessita compreender as experiências através das quais ele

vai construindo seu modo de aprender e de ser. Sua condição humana supõe

esperança e busca e isso o move na educabilidade. A própria vida supõe essa visão

do inconcluso e do existir, assumindo o direito e o dever de optar, de decidir. Isso

implica, profundamente, o processo de formação que liga ética e esperança,

enquanto coloca em evidência um ser humano que pensa ser possível sua

participação e intervenção no mundo para melhorá-lo. Há, nesse ser humano, uma

vocação ontológica de fazer rupturas e movimentar a história, por ter consciência de

que é a ação transformadora de hoje que constrói o amanhã.

Fica claro, ainda que subentendido, a noção de cuidado que fundamenta essa

antropologia. Como seres políticos, os seres humanos são capazes de descobrir o

mundo, de reconhecer a sensibilidade, enquanto seres poéticos, de criar e de lutar,

assim como são capazes de negar a humanidade, negar a liberdade e destruir

sonhos. O cuidado, aqui, aparece ligado ao tipo de escolha que pode ser feita: “a

humanização é uma possibilidade de nossa condição de ser inconcluso, seu

contrário também o é, ou seja, outra possibilidade é a desumanização” (Santos Neto,

2009, p. 98).

O que se pode perceber aqui é o conceito de cuidado e autoformação. Este

conceito é percebido como inserido na visão de ser humano que tem consciência,

que entende sua vivência no mundo, não como predeterminação, mas, como algo

que precisa ser construído com responsabilidade. Nesse sentido, toma importância a

historicidade em que, partilhando com os outros, as possibilidades do fazer e do

formar-se, o sujeito se compreende inserido no projeto educacional dando uma

conotação de cuidado necessário ao processo educacional humanizador e

libertador.

35

2 O CUIDADO HUMANO: AS APROXIMAÇÕES ENTRE A

EDUCAÇÃO E A SAÚDE

Neste capítulo, o objetivo é a aproximação entre educação e saúde,

considerando-os como elementos fundamentais para a manutenção da vida e seu

pleno desenvolvimento. Autores como Heidegger (2002) e Foucault (2006) trataram

do conceito de cuidado e formularam teorias que fundamentam concepções básicas

para o pensamento contemporâneo. Tais teorias encontram um diálogo com a

concepção de educação, em Freire (1996; 2005).

O cuidado é uma palavra polissêmica, variando de acordo com as culturas, as

sociedades, categorias profissionais e ideológicas. Recorrendo aos dicionários,

constatam-se seus vários significados. Do dicionário “Houaiss”, destacam-se alguns

significados, tais como: submetido à rigorosa análise; meditado; pensado; em que

houve intenção, propósito; propositado; premeditado; em que houve preocupação;

receoso; preocupado; atenção especial; comportamento vigilante, precavido;

encargo, incumbência; responsabilidade; lida; trabalho; ocupação; ter atenção

consigo mesmo. Do latim: Cogitatus – meditado, pensado, refletido. Cogitáre – agitar

no espírito, remoer o pensamento, pensar, meditar, projetar, preparar.

No dicionário “Aurélio” (Ferreira, 1999), tem-se: imaginar; pensar; meditar;

cogitar, excogitar; julgar; supor; aplicar atenção; pensamento; imaginação; atentar;

pensar; refletir; tratar; ter cuidado consigo mesmo, com sua saúde; sua aparência, a

sua apresentação.

Percebe-se que a palavra remete à ação (lida, trabalho, ocupação) pensada,

refletida (atenção, preocupação, submetido à rigorosa análise) e responsável

(encargo, incumbência, responsabilidade). Ou ainda, uma ação que se opera sobre

si mesmo (ter atenção consigo mesmo; ter cuidado consigo mesmo).

O Cuidado Humano compromete-nos com uma ação pensada e responsável,

pois se trata de uma ação que trará alguma consequência positiva ou negativa. O

“não-cuidado”, segundo Silva (2001, p. 87), implica em desatenção e descaso,

configurando o abandono e desrespeito, que pode ser observado nas relações que

36

refletem a incapacidade de expressar a solidariedade, privando o ser humano de

sua mais autêntica expressão – a mutualidade do cuidar.

Para a autora, o cuidado de si e o cuidado do outro são dimensões

integradas, pois cuidar de si e cuidar do outro se mostram em dimensão mais ampla,

como compromisso com a vida real, concreta. É este compromisso que torna

possível exercitar a humanidade, na vivência do cotidiano. Neste sentido, o cuidar

do outro é essencialmente fornecer condições para que ele cuide de si. É promover

a dignidade da vida e a emancipação respeitosa.

Este entendimento apresenta o diálogo reflexivo como importante

característica do cuidar, pois, através deste, a relação interpessoal se articula,

possibilitando o engajamento no processo de vida do outro. Isto supõe que se tenha

consideração pelo contexto de vida das pessoas. Nesse movimento, se encontra,

segundo Silva (2001, p. 88), o respeito pela singularidade, a dignidade e a

autonomia de si mesmo e do outro.

Segundo Oguisso (2007, p. 13), no início do Cristianismo, o cuidado era

delegado às mulheres que tinham, como tarefa fundamental, a reposição

demográfica pelas perdas causadas pelas guerras e epidemias. O momento crucial

do cuidado era o momento do parto, em geral assistido por viúvas e mulheres mais

idosas, que haviam aprendido a partir de suas próprias experiências.

Historicamente, o cuidado parece estar ligado à figura feminina, que cuida do

filho, do marido, da casa. Há outras formas de cuidado, como o homem que cuida de

sua prole, provendo alimento, protegendo-a das agressões externas. Os amigos

também cuidam quando ouvem o outro, aconselham, compartilham, acolhem,

apoiam. É possível ainda cuidar de si, quando se cuida do corpo, da aparência, da

própria saúde física e mental e de seus projetos de vida.

Cuida-se durante toda a vida. O cuidado aproxima as pessoas, possibilita a

confiança mútua, protege. Portanto, o cuidado é intrínseco ao ser humano, uma

necessidade ontológica. Compreende também pensar o ser humano em sua

condição de vulnerabilidade, de fragilidade. Vulnerabilidade implica

interdependência, constituindo-se elementos que configuram a ética do cuidado.

Com a transformação da sociedade, o cuidado foi sendo institucionalizado.

Ele passou das mãos da família para as de outros profissionais, como professores,

37

médicos, enfermeiros, psicólogos. E, institucionalizado e organizado de modo

compartimentado, perde seu caráter humanístico e integrador. A enfermagem tem o

cuidado como objeto de suas ações e luta para resgatar este caráter humanístico.

A partir do século XIX, a enfermagem passa de atividades práticas com

conhecimento popular para os ofícios e, em seguida, desenvolve-se, como profissão,

na perspectiva da Ciência Moderna, baseada em conhecimento técnico e científico,

numa visão cartesiana, tornando assim uma ação institucionalizada.

Os avanços tecnológicos, a transformação da sociedade, que passa a

valorizar o trabalho institucionalizado, fizeram com que a enfermagem focasse no

trabalho técnico com bases científicas, porém apenas do ponto de vista biológico,

focada na cura de doenças, tornando-se também imediatista. Com isso, se perdem

as dimensões éticas e as estéticas do cuidado.

O conceito de cuidado precisou de investigação, por parte da comunidade

científica de enfermagem, a partir da década de 1960. Entre outros, Nascimento e

Trentini (2004) desenvolveram estudos sobre o cuidado humano. Para as autoras,

importantes teorias, como por exemplo, a Teoria de Paterson e Zderad,

fundamentaram-se nas concepções do filósofo Martin Buber.

Percebendo o colapso do relacionamento humano, como consequência da

tecnocracia social, fato esse que acentua a relação das pessoas com máquinas, o

filósofo se propõe a pensar como ocorre a relação entre as pessoas e coisas.

Aspectos da teoria de Buber se tornam interessantes para esse estudo, uma

vez que a investigação presente se volta para o sentido do cuidado, do humano, em

sua concretude e historicidade, como ser de relações éticas e intervenções

transformadoras na realidade. Sua proposta envolve considerar duas formas de

relação: EU-TU, referindo-se à relação entre pessoas e, EU-ISSO, apontando a

relação das pessoas com as coisas.

As pessoas dão direção à sua vida e expressam o que lhes é próprio,

exercitando a livre escolha e compromisso. Frente à pergunta primordial sobre como

se deve viver, o raciocínio objetivo ocupa um papel importante, mas os argumentos

éticos apontam para buscas individuais, por significados.

Podemos compreender, assim, a questão ética que se inicia, quando a

pessoa, sendo movida a agir, toma sobre si o interesse decorrente da

38

responsabilidade com ele próprio, com o outro, com o que lhe cerca. O cuidado torna

a ação ética possível se consideramos que a ação responsável precisa ser

permeada da capacidade de análise e reflexão.

Von Zuben (1984) situa o ser humano da atualidade no contexto da

necessidade de eficácia produtiva, do consumo irrefletido, batalhando pela

sobrevivência, estonteado pelo grande volume de conhecimentos acumulados. O ser

humano encontra-se como que ofuscado pela preponderância do pensamento que

resiste à reflexão, exigido pelas circunstâncias a ter respostas prontas e imediatas.

Na tensão deste contexto, é perceptível o lugar de inquietação do ser

humano, na busca pelo seu lugar de ser complexo e integral. O ser humano

necessita de relações comprometidas e significativas e, não, meramente como uma

soma de setores, com regras ditadas pelas diferentes especialidades científicas.

Dentro desse quadro, a reflexão de Buber (1979) se apresenta propícia à reflexão

sobre as inter-relações, na área da saúde, como exemplo de incansável busca pelo

sentido e resgate do humano.

Ele insistiu em valorizar as conversações, pois, para ele, a força do diálogo

deveria permear os relacionamentos interpessoais, enfatizando a importância das

experiências vividas. A ilustração disto seria dizer que, é possível tomar alguém pela

mão, conduzindo-o até a janela, para então, no abrir da janela e do apontar para

fora, dar impulso ao diálogo.

Esse é o movimento dialógico, eixo da proposta de constituição de

comunidades entre os seres humanos. É especial categoria existencial, ligamento

entre a experiência e a reflexão. Deste modo, o diálogo passa de conceito

puramente abstrato para significar elemento que descreve as experiências vividas. A

realidade considerada pelo ângulo do diálogo é condição de possibilidade para

resgatar o indivíduo em sua legitimidade de ser humano.

O ser humano é um ser de relações que, vivendo no mundo pode proferir

palavras como EU. A relação importante e indispensável do conhecimento científico

que acontece entre cientista e objeto de investigação caracteriza a relação EU-ISSO.

No entanto, o encontro se dá entre duas pessoas mediadas pela relação de ajuda. A

esse tipo de relação, Buber compreende como EU-TU. Essa relação não é estática,

mas cheia de possibilidades pelo reconhecimento do que o ser humano pode vir a

39

ser. O conhecimento do outro não se dá como conhecimento de um objeto, como na

relação EU-ISSO. A relação EU-ISSO não é algo depreciativo, mas, é um dirigir-se

às coisas. No entanto é pela relação que acontece a presença para o outro, o

movimento de voltar-se para o outro que é pleno sujeito e voz a ser escutada.

Pode parecer tratar-se de algo trivial, no entanto, quando olhamos para

alguém, quando lhe falamos, isso constitui-se em um movimento do corpo e da

atenção, como um todo, valorizando a interação de pessoas que se movem na

partilha da humanidade que lhes é comum, fundamental para o cuidado atencioso à

saúde.

Para Buber (1979, p. 39) “se o homem não pode viver sem o isso, não se

pode esquecer que aquele que vive só com o isso não é homem”. Há uma grande

importância da relação EU–TU, para o pleno desenvolvimento da existência humana

e para o processo educacional como formação integral e ação possibilitadora do

encontro consigo mesmo e com o outro.

2.1 A linguagem, a educação e o cuidado

A primeira e a mais forte referência à força da linguagem e da palavra

aparece na Bíblia. A transformação do verbo em Deus denota que a palavra é a

grande herança da humanidade. Sob o império da linguagem, seja ela oral ou

escrita, forjaram-se as civilizações, expandiram-se as culturas, disseminaram-se os

valores, escreveram-se as histórias da humanidade. Com o poder da linguagem e da

palavra, construíram-se os caminhos da Guerra e da Paz.

Por intermédio da palavra, firmaram-se as bases do Amor, da Verdade, da

Justiça, do Perdão, da Caridade, do Civismo, da Cidadania, da Fé e da Esperança.

Neste sentido Aristóteles, pensador grego do século IV a.C., afirma que somente o

homem possui o dom da palavra; a voz indica tão só dor e prazer, e por essa razão

não foi outorgada aos animais.

Como podemos observar em Aristóteles, a palavra, contudo tem a finalidade

de fazer entender o que é útil ou prejudicial, aquilo que é justo ou injusto. Neste

sentido, a palavra exerce uma considerável força de poder. É o mecanismo básico

40

que, agindo nos hemisférios cerebrais, ajusta o ser humano ao meio ambiente e à

violência social, a saber: condiciona, provoca reações, induz, seduz, motiva,

sugestiona, hipnotiza, integra, harmoniza, dá segurança.

Ao se aproximar da carga psicossomática, que traz para o equilíbrio do corpo

humano, ela preenche os ciclos da história com as ideias, os valores e os princípios

que fundamentam as conquistas das civilizações e que possibilitam avanços e

descobertas, em todos os campos do conhecimento universal.

A própria história das civilizações é, por assim dizer, a sua própria essência

histórica da evolução da palavra. Na Antiguidade, ela exprimia grandeza e era

soberana. Era forte a expressão de Demóstenes1, grande orador e político na Agora.

Era incandescente a locução de Cícero2, no fórum romano; foi de incrível beleza a

sonata de amor aditada por Jesus Cristo, no seu discurso do Sermão da Montanha.

O grande público apreciava a arte dos grandes Mestres da palavra.

A palavra se expandiu percorrendo lugares distantes da terra, ganhando força

e abrangência com a descoberta da imprensa. Mudanças significativas ocorreram

com os modernos recursos de comunicação como o rádio, a televisão e, mais

recente, a internet.

Ao longo de todos os ciclos evolutivos da vida humana, a palavra jamais

deixou de ter a sua preponderância, na tessitura dos fios condutores da história de

homens e mulheres desta Terra. Da mesma maneira, num passado longínquo, ela

continua nos seduzindo e exercendo uma extraordinária força de sedução,

principalmente quando se ampara nos atributos centrais de uma boa linguagem para

a comunicação.

A partir das questões postas, pode-se destacar a importância da palavra no

exercício do magistério. Trata-se de uma habilidade tão importante que, sem ela, o

professor jamais conseguirá valorizar tudo o que aprendeu estudando e trabalhando.

A boa comunicação precisa estar presente em todas as etapas importantes

da vida. Imaginando que um indivíduo esteja estudando e, graças ao apoio dos pais

ou de um parente, ele possa se dedicar apenas à sua vida universitária. Se esse

1 Pensador Grego que viveu entre os anos de (384- 322 a. C.).

2 Pensador Grego que viveu entre os anos de (106-43 a. C).

41

indivíduo supuser que poderá sentar-se no banco da faculdade, permanecendo

calado o tempo todo, está muito enganado.

Cada vez mais, as faculdades na contemporaneidade exigem que seus

alunos apresentem oralmente algum tipo de atividade escolar e, se a comunicação e

o vocabulário forem de baixa qualidade, poderá comprometer o resultado da

avaliação e colocar todo o esforço a perder. Isto significa dizer que a comunicação

de boa qualidade é essencial, mesmo antes da escolha da carreira profissional.

Enfim, qualquer que seja a área do conhecimento que tenha escolhido ou

venha a escolher, o indivíduo sempre precisará da boa qualidade da comunicação,

para progredir e se realizar. Mais cedo ou mais tarde, e, com certeza, bem antes do

que o indivíduo possa imaginar, precisará ser portador de uma comunicação eficaz.

A convivência social exige que o homem fale bem. Quando nos relacionamos

com os amigos, dentro ou fora da nossa área de conhecimento, cuja expressão e

habilidade para fazer relatos sejam eficientes, sentiremos o prazer da convivência e

o tempo passará, certamente, com bastante rapidez. Ao contrário, é difícil a

tolerância e a permanência de um relacionamento no qual se prescinda dos hábitos

de comunicação.

Em qualquer momento, no qual se necessite da utilização de uma boa

comunicação, os atributos para o bom desempenho da oralidade são:

1) a credibilidade;

2) a voz;

3) o vocabulário;

4) a expressão corporal;

5) a aparência.

Nasce, portanto, a categoria da convivência, como estudiosos reconhecem.

Sundemeier (1995, apud Zwetsch, 2007), que nasceu no Brasil, apoia suas reflexões

em dois nichos de experiência: o primeiro está voltado ao pedagogo Paulo Freire,

sobretudo com as suas obras - Pedagogia do oprimido e Educação como prática de

liberdade- além de outras obras como Pedagogia da esperança e Pedagogia da

tolerância . O segundo eixo remete ao nascimento das Comunidades Eclesiais de

Base, no Brasil, que significaram uma verdadeira eclesiogênese, a reinvenção da

Igreja a partir da fé do povo e das bases sociais.

42

Para Freire, educar é libertar o sujeito do determinismo, do fatalismo,

tornando-o construtor do seu próprio conhecimento, sendo crítico para deliberar

sobre sua própria vida. Educar, portanto, é levar o sujeito à construção de sua

autonomia (Freire, 1981; 2006).

Pode-se considerar que autonomia, na perspectiva da saúde, compreende o

cuidado, como ação entre sujeitos: o que cuida e o que é cuidado. Isto é

estabelecido, com base no diálogo, além da produção de saúde, a busca da

construção de sentidos e significados de projeto de vida.

Para Paulo Freire (2005, p. 24), “aprender precedeu ensinar”. Segundo

observou, “ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender”.

Somente depois é que o homem percebeu que seria possível ensinar. “Não existe

ensinar se não se aprende”. É fundamental a frase do autor, num momento em que

buscamos mais do que sobreviver e sim viver, “ser mais”. O que precisamos

aprender? Como aprendemos? Para que aprender? Para quem serve aprender para

cuidar da vida?

Paulo Freire, então, parte da convicção de que a divisão mestre-aluno não é

originária. Originária é a comunidade aprendente, onde todos se relacionam com

todos e todos, ao trocarem, aprendem uns com os outros.

Nesse sentido, é possível perceber que essa concepção permite identificar

que:

(...) o ensino se refere, intrinsecamente, ao processo de aprendizagem: quando o docente estrutura sua tarefa precisa pensar no outro que aprende, estabelecendo parâmetros e objetivos que considerem não somente a natureza dos conteúdos, mas, fundamentalmente, as dinâmicas de acessar, apropriar e produzir conhecimento. (Batista, 2004, p. 65)

O cuidado em relação ao sujeito aprendente está ligado à ideia do vir-a-ser

(expressão cunhada por Martin Heidegger – na sua tese do existencialismo) é, no

início, material da produção da vida. O conteúdo primeiro da ética da libertação, do

pensador argentino Dussel (2000), é o princípio ético-material. O Capitalismo e o

Socialismo conseguiram padrões de vida sustentáveis, no entanto a humanidade

está surda, muda e cega à miséria, à violência e jamais poderemos dar as costas a

estas questões (Amorim Neto, 2008). Desde o começo do mundo, os humanos

buscam a paz, mas ela está presente dentro do próprio homem e de mais ninguém.

43

A mão usada para manipular a técnica é a mesma usada para coçar o corpo e é a

mesma usada para acariciar o próximo (Amorim Neto e Berkenbrock-Rosito, 2009).

Nos tempos modernos, observa-se, com muita frequência e naturalidade, que

o bom médico é aquele que pede muitos exames. Cada vez mais, se ouve que tal

aparelho computadorizado faz o diagnóstico preciso, antes mesmo que a doença

apareça ou, cada vez mais, os discursos de marketing preconizam que tal aparelho

é muito preciso, pois é de última geração.

Assim, muitos médicos não resistem ao charme cibernético e substituem a

boa anamnese da escuta pelo exame de última geração. O deslumbramento

tecnológico, na Medicina, provocou uma inversão nas relações: criou-se o médico

que humanizou a máquina e se mecanizou. O humanismo foi substituído pelo

mecanismo. O maior entrave, nas práticas médicas, é (des) banalizar o banal, o

comum, a falta de indignação dos humanos para com os humanos.

O nosso maior desafio é o de ser autor de uma transformação, para uma

Ética Humana, onde é preciso levar a sério a tarefa da “destruição”, como bem

afirmou Heidegger em “Carta ao Humano”. Destruição aqui significa decifração do

essencial, destruição cheia de amor pelo outro e pela verdade, destruição violenta,

mas uma violência cheia de ternura, simplicidade e esperança.

Considerando-se, como processo pedagógico, proposto por Freire (2005),

como passagem da “consciência ingênua” para a “consciência crítica”, e também

Anjos (2006), com a proposta da autonomia relacional de Mackenzie, em que a

autonomia se constrói, num processo de relações, interpessoais, “que se tornam

educativas para ação independente e adulta...”.

A educação é uma atividade que tem como objetivo o desenvolvimento do ser

humano, em suas potencialidades e possibilidades. Um dos problemas que

interferem no seu objetivo é a distorção ocorrida, principalmente no final do século

XIX e início do século XX, em que, com o advento da industrialização, priorizou-se a

formação para o trabalho. A necessidade de mão de obra especializada fez com que

o preparo técnico e a aquisição de conhecimentos científicos específicos fossem

prioridade, deixando em segundo plano a formação humana. O modelo

hierarquizado da organização do trabalho pode ter contribuído para uma formação

em que a disciplina e a subordinação fossem características positivas para um bom

44

profissional. Nesta lógica, formaram-se os profissionais e os formadores desses

profissionais. Com isso, a repetição de práticas e a incapacidade criadora tornam os

indivíduos sem capacidade de interferir na sociedade, para transformá-la. Além

disso, torna o homem “escravo” de sua própria vida, pois não é capaz de

reconhecer-se a si mesmo nem a posição que ocupa no mundo ou as suas próprias

relações com o mundo.

Mecanizado, o homem pode repetir, com perfeição, as práticas de produção,

operar máquinas de forma habilidosa, mas isso não o torna capaz de relacionar-se

com o mundo e com os homens. Ele não cria e não transforma. Não se sente

autônomo, capaz de agir sobre o mundo, ou sobre si próprio, para a construção de

um mundo melhor.

Educação, para Paulo Freire (1996), é desenvolver o ser autônomo e

responsável pelos seus atos, capaz de deliberar sobre sua própria vida, fazendo

opções, tomando decisões e assumindo riscos. A educação para a liberdade é

aquela que respeita o ser, como sujeito. Este ser traz uma história e uma cultura e

somente, a partir delas, ele poderá saber quais as necessidades de aprendizagem

que o tornarão livre.

Portanto, a educação não pode ser castradora, que adestra o homem para

adaptar-se e acomodar-se, tornando um ser estático, que não se desenvolve e que

aceita o mundo e vida como fenômenos postos, já dados, e que assim permanecerá

(Freire, 2005). A educação que impede o homem de viver livremente não o forma,

formata-o. O que caracteriza o homem “humano” é a sua força criadora, diferente

dos animais que se ajustam ao meio e cumprem um destino determinado.

Porém o homem não se educa sozinho. É na interação e na comunhão com

outros homens que é possível aprender. E aprende porque é capaz de comparar,

analisar, criticizar e, portanto, reconhecer-se no mundo e com o mundo. Tomar

consciência do mundo e da vida como fenômenos dinâmicos é antes de tudo tomar

consciência de si mesmo, como fazendo parte desse mundo. Se o homem aprende

com outros homens e com o mundo, o faz por meio da comunicação. É a

comunicação que faz o homem interagir com o outro. Se, para Paulo Freire, a

integração entre os homens se faz pelo diálogo e não através de “comunicado”,

então, a comunicação deve envolver os elementos cognitivos e afetivos.

45

Deste modo, é possível transformar a ”consciência ingênua” em “consciência

crítica”, pois há o diálogo entre os homens e não imposições de pensamento e de

ideias. É na integração de saberes que é possível crescer, desenvolver-se e criar

novos saberes. E é a partir de novos saberes que se criam novas práticas. A

aquisição de conhecimentos científicos, neutros, impossibilita o diálogo, favorece a

repetição de técnicas e não contribui para a transformação do homem e do mundo.

O diálogo abre espaço para a intersubjetividade de modo democrático, entre quem

ensina e quem aprende, nos espaços formais ou informais de aprendizagem.

A conscientização, então, passa do discurso para o compromisso com a

práxis. Segundo Freire, a práxis é a palavra autêntica. É a coerência entre a teoria e

a prática, enquanto o verbalismo é a educação do antidiálogo, representada

marcadamente, pela educação bancária pela transmissão passiva de conhecimento.

A proposta da educação freiriana é aquela que se dá através do diálogo e

está comprometida com a práxis, eliminando barreiras entre educando e educador.

Nessa proposta, não há relação de opressão e oprimido, poder de mando e de

obediência, assistencialismo e prescrição ao ajustamento e à acomodação. Uma

educação para a autonomia é capaz de transformar o educando pela consciência

crítica, que se refere ao mundo e a si próprio. Nesse caso, o educando tem

consciência de sua história, de sua sociedade, sabendo fazer para si, com dignidade

e ética.

Freire (2005) afirma que mulheres e homens, seres histórico-sociais, tornam-

se capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper,

por tudo isso, tornam-se seres éticos.

A ontologia do cuidado em Heidegger pode ser o fenômeno que se apresenta

aqui como tema de estudo. Isto significa compreendê-lo como uma realidade, que se

mostra, e pode ser percebida, mais especificamente, no campo da saúde e

educação, a partir das experiências e vivências.

Nesse sentido, não se trata de pensar e falar sobre o Cuidado como objeto

independente dos profissionais, mas o de pensar e falar sobre o Cuidado, como é

vivido e estruturado nas Diretrizes Curriculares do Curso de Medicina. Não temos o

Cuidado. Somos o próprio Cuidado. Isto significa dizer que o Cuidado possui uma

dimensão ontológica: a dimensão de ser. Isto quer dizer que se constitui na própria

46

formação do ser humano. Com isso se torna uma maneira singular do homem e da

mulher. Sem esse Cuidado deixamos de ser humanos.

Segundo Heidegger (2002, p. 105) existe um vínculo íntimo, entre o

conhecimento e a ação: “somos um ser no mundo” “relacionados com alguma coisa,

como produzir algo” “ou fazer algo”. Para este filósofo, a existência é um fundamento

para compreender o ser. Sua preocupação filosófica é o Ser. A direção da sua

ontologia é conhecer e respeitar o Ser que, em seu olhar, desde Platão, foi

esquecido.

O autor faz uma distinção entre o ser do homem, que ele denominou de

DASEIN (Ser aí), do ser das coisas, cujas estruturas e propriedades serão

diferentes. Ele chama as propriedades do Dasein de existenciárias e as das coisas,

categorias. Com isso a análise fenomenológica da existência do Dasein lhe permitirá

chegar a conhecer o ser e, com isso, ele se apresenta pela temporalidade. O que

implica dizer que o homem se eleva sobre si mesmo e se projeta.

O homem se projeta sempre, mas é “Ser no mundo”, não é um ser isolado e

isto torna a necessidade, na qual se desenvolve a existência do Dasein. O ser no

mundo é estar constituído por projetos, envolvido na relação com os outros e com os

objetos. No caso de que a existência seja uma fuga ante si mesmo, é não pensar no

próprio ser, deixando-se levar pelas pessoas e as coisas; é o que Heidegger

denomina existência inautêntica e se caracteriza pela superficialidade, o anonimato,

a mediocridade e a irresponsabilidade.

A existência autêntica, ao contrário, ocorre na ruptura desse modo

inautêntico, tendo como objetivo outras possibilidades que são acompanhadas com

uma crise na vida. Isto leva à liberdade, que consiste em aceitar a realidade da

morte. A morte é o determinante das possibilidades do ser e revela, ante o Dasein, o

nada; o homem autêntico revela que seu ser nada é. Mediante um esforço heróico, o

homem cuida da sua própria existência.

Heidegger sustenta que, ante a realidade do nada, o homem, experimenta o

sentimento de angústia e será a ausência de objeto o que situa a angústia frente ao

nada. Na existência inautêntica, se recusa a angústia e na autêntica, a angústia é

situada como centro da existência.

47

O que se pode observar em Heidegger, a partir de Boff (2004), é que somos

conduzidos a perceber o cuidado significando: “solicitude, diligência, zelo, atenção e

bom trato”. Como diz Boff, estamos diante de uma solicitude fundamental, de um

modo de ser, mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com solicitude.

A atitude de Cuidado pode provocar preocupação, inquietação e sentido de

responsabilidade. Assim, por exemplo, dizemos: “o paciente está sob a

responsabilidade daquele médico especialista e de toda a sua equipe”, para

expressar a cura, a inquietação e o cuidado para com a pessoa amada, comumente

conhecida como “dor de amor”.

Pela própria natureza, cuidado inclui, pois, duas significações básicas,

intimamente ligadas entre si. A primeira, a atitude de desvelo e de atenção para com

o outro. A segunda é de inquietação e preocupação, porque a pessoa que tem

cuidado se sente envolvida e efetivamente ligada ao outro.

Neste sentido, o poeta latino Horácio (65 - 68 a.C.) podia finalmente observar:

“o cuidado é o permanente companheiro do ser humano”. Quer dizer: o cuidado

sempre acompanha o ser humano, porque este nunca deixará de preocupar-se e de

inquietar-se pela pessoa amada. Se assim não fora, não se sentiria envolvido com

ela e mostraria negligência e incúria por sua vida de destino. No ápice, se revela a

indiferença que é a morte do amor e do cuidado.

O cuidado somente nasce quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então à dedicação, disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida. (Foucault, 2006, p. 35)

A perspectiva ontológica do Cuidado em Foucault (2006), no curso realizado

no Collége de France, nos anos de 1981 e 1982, aborda o “cuidado de si”,

percorrendo a história do conceito. Para ele, essa noção nasce na obra de Platão.

Nos diálogos entre Sócrates e Alcibíades, aparecem as idéias relativas a esse tema,

que vão sendo desenvolvidas e transformadas na cultura do “cuidado de si”,

modelada pelos dois primeiros séculos da Era Cristã.

Segundo o autor, em Alcibíades de Platão, os preceitos básicos que emergem

são as ideias ligadas ao “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) socrático. Assim o

“cuidado de si” (epiméleia heautoû) liga-se ao “conhece-te a ti mesmo”, sendo essa

a emergência do Eu, da qual se torna necessário ocupar-se.

48

Na perspectiva de Foucault, o texto de Platão apresenta Alcibíades, um jovem

ateniense que almeja governar a cidade, recebendo o conselho de Sócrates: “cuida

de ti mesmo” para bem governar os outros. O bem governar, para que houvesse

concórdia, aparece ligado ao “conhece-te a ti mesmo”.

O cuidado de si aparece como o primeiro despertar, e o conhecer-se a si

mesmo era o buscar o Eu que se deve cuidar para bem governar os outros.

O cuidar de si, de Sócrates, dá noção de formação, pois Alcibíades passava

da fase erótica para a pública, ou seja, da adolescência para a fase adulta. E

cuidado de si caracteriza-se pela “correção”, pela “contenção da alma”, para que se

tenha segurança. Então o cuidado de si deveria ser permanente.

Observa-se aqui a aproximação entre a medicina e a educação, à medida que

a paixão (o desejo, a vontade) é vista como um vício, uma doença, que precisa ser

cuidada pelas técnicas de si pela Therapeuein heautón. Therapeuein heautón é

prestar culto a si mesmo, ser o seu próprio servidor, cuidar-se (Foucault, 2006, p.

120).

Mas, como conhecer a si mesmo? Foucault percorre textos de Epicuro,

Sêneca, Marco Aurélio, descobrindo e apresentando o imperativo: “olha-te a ti

mesmo”, busca dentro de ti a verdade, busca os segredos de tua consciência

(Foucault, 2006, p. 267). Portanto, Therapeuein significa uma atitude terapêutica,

curar ou cuidar. Mas que também é a atividade do servidor que obedece às ordens e

que serve a seu mestre. Trata-se de procurar as feridas, purgá-las, extirpá-las,

afastar os males da alma, ou ainda ocupar-se de si mesmo, corrigir-se, aperfeiçoar-

se, conduzir-se de modo certo.

Mas, para cuidar de si, é preciso conhecer-se a si mesmo, aí a mescla entre

saúde e educação. O “cuidar de si” remete à necessidade de saber o que é melhor

para si mesmo, fazendo escolhas adequadas que tornem sua vida melhor, baseado

em seu projeto de vida, o que quer para si, o que quer ser e como quer ser. Essas

ações não ocorrem somente no nível do pensamento. Passam a ser uma prática, um

ofício, um labor.

Foucault (2006) propõe, como exemplo, os textos de Marco Aurélio, que

relatam a prática de cuidado de si, incorporada ao seu cotidiano em que esse, à

noite, antes de dormir, anota todas as atividades realizadas durante o dia, tais como

49

alimentação, cuidado com o corpo e outras atividades. Isto sugere uma atitude de

ativar a memória, registrando as coisas que foram realmente importantes

evidenciando a reflexão sobre as atividades, para realizá-las melhor no dia seguinte,

fazendo as correções necessárias.

Para Marco Aurélio, segundo Foucault, governar torna-se uma profissão, não

é privilégio. É uma profissão como dançarino ou sapateiro. Portanto, o cuidado de si,

não como governante, mas como homem aprimorado que lhe dará condição para

bem governar os outros. Esse homem aprimorado é aquele ser moral, que saberá

que conhecimentos buscar para ser um bom governante, um bom dançarino ou um

bom sapateiro.

Trata-se, portanto, de rever suas ações, recorrendo à memória, através de

relatos do cotidiano, refletindo sobre elas e realizando-as de modo mais aprimorado.

É possível perceber a autoformação, pois Marco Aurélio constrói sua

narrativa, relatando suas ações, havendo necessidade de recorrer à memória, e faz

reflexões sobre suas ações para, no dia seguinte, realizá-las de modo mais

aprimorado. Suas narrativas incluem desde atividades cotidianas, relacionadas ao

trabalho, ao labor, até os cuidados consigo próprio, indicando uma preocupação com

o cuidado com a educação e o cuidado com a saúde.

Foucault compara textos de Sêneca e Marco Aurélio, que exploram

“movimentos” para a apreensão da sabedoria. Enquanto Sêneca propõe uma visão

do topo do mundo, olhar de cima, e de “fora”, para assim saber o seu lugar, a sua

posição, em relação ao mundo e às coisas, Marco Aurélio propõe ir ao cerne mesmo

do sujeito. Foucault nos mostra o deslocamento para duas polaridades, ambas em

busca de saber: saber de conhecimento e saber espiritual.

O deslocamento, que Marco Aurélio realiza, permite ao sujeito ir à busca do

seu reconhecimento, do seu “valor”, sua relação, sua dimensão própria dentro do

mundo e assim, sua importância e seu poder real sobre o “sujeito humano, enquanto

livre”. No “ser” livre encontra em sua liberdade o modo de “ser”, o ser de felicidade e

de perfeição, pois encontra a si próprio no mundo.

Esses “movimentos” são deslocamentos, ou seja, é sair do lugar, mover-se

para buscar seu valor, é reconhecer-se como sujeito para só então poder

transformar-se. Olhar para si, como propõe Marco Aurélio, e conhecer a si mesmo

50

cada vez melhor, para poder tomar posição frente ao mundo, é espiritualizar-se. O

olhar de “fora” e de cima é perceber-se no mundo. É saber sua posição e mudá-la

conforme sua necessidade e vontade. Mas, conhecendo o mundo que o cerca é que

se pode interagir com ele, aí a necessidade do conhecimento.

Segundo Foucault (2006), o “cuidado de si” já não é mais apenas para o

jovem que quer governar, nem só para os filósofos, mas para todos os cidadãos de

Atenas ou não. Não se restringe apenas à sabedoria ou conhecimento, não

permanece apenas no nível do pensamento, mas torna-se também um ato, uma

ação, a qual Foucault denomina “técnicas de si”. O cuidado ou o cuidar pode

significar, portanto, uma construção, uma produção, a criação própria mesma do

sujeito que se cuida, buscando dentro de si suas próprias necessidades e desejos

de uma vida de felicidade.

O cuidar-se de si, como uma atividade ascética, não só para os jovens, na

sua ascensão política, mas para todos, inclusive os velhos, cidadãos atenienses ou

não, invade os séculos I e II da era Cristã.

Essa busca, como descrito em Marco Aurélio, esse deslocamento, que

Foucault denomina como saber espiritual, aos poucos, vai sendo encoberto pelo

saber de conhecimento, sendo finalmente apagado nos séculos XVI e XVII.

Para Ayres (2004), na modernidade, o cuidado de si constitui um conjunto de

técnicas laboral, elaborado e receitado pelos próprios médicos. São receitas e

conselhos orientados aos pacientes que cuidem de sua alimentação, do seu sono,

da vigília, da atividade física, da meditação, do lazer, etc.

A partir de então, o saber fica condicionado, subordinado. Aparecem as

regras, os métodos, as leis da ciência que se infiltram na política, nos modos de

produção e na vida socioeconômica das pessoas. Uma subordinação que consegue

afastar qualquer manifestação de subjetividade, agravado pelas relações de poder,

que bloqueiam a passagem para a autonomia, tirando do homem o controle de sua

própria vida.

Observa-se o esforço de Foucault em resgatar, dos textos antigos, uma

cultura de cuidado que não é prescritiva, que favorece o conhecimento de si mesmo

e de suas necessidades, tanto do homem, no exercício da sua vida pessoal, quanto

no bom exercício de qualquer função. O cuidado aparece como um saber popular,

51

em que as pessoas buscavam compreender a si mesmas e cuidando de suas

próprias necessidades. Isso envolve tratar de cuidar da alma e educar-se. Esse

movimento simultâneo refere-se ao evitar ou compreender seu próprio sofrimento,

operando sobre si mesmo no esforço de livrar-se dos males.

Foucault (2006, p. 79) desenha a transformação pela qual o cuidado passa

para “cuidado de si”, desde Alcibíades, nos diálogos de Platão, até o inicio dos

séculos I e II da nossa era, caracterizada por ele como: “uma verdadeira idade de

ouro na história do cuidado de si”.

Aparecem, em Alcibíades, aspectos que determinam o cuidado como razão

de ser e forma de cuidado. Isso se evidencia nas orientações encontradas, onde

aquele que deveria se ocupar de si mesmo era o jovem destinado a exercer o poder,

cujo objetivo era o bom exercício do poder e a forma exclusiva, onde ocupar-se de si

mesmo é conhecer a si próprio.

Foucault (2006) observa que há uma mudança da ideia de os que deveriam

ocupar-se de si não eram mais, exclusivamente, jovens políticos, mas todos

poderiam fazer isso, sem importar-se com a idade ou o status, não existindo mais o

único objetivo de bem governar os outros, mas o cuidado tem o fim em si mesmo.

Para Alcibíades, o objetivo do cuidado era o próprio cuidado, mas o fim era a cidade,

mais tarde, o “si” torna-se objeto e fim. A característica exclusiva do cuidado de si se

atenua e torna-se co-extensivo à vida, em um conjunto mais vasto, o que podemos

chamar de conversão, conhecer o verdadeiro, libertar-se em um movimento que

pode nos conduzir para um olhar mais amplo de mundo e de viver.

Com Alcibíades, Platão apresenta a passagem da adolescência à fase adulta

como o momento de se ocupar de si mesmo, idade em que o moço deveria passar

do erótico ao político. Após Platão, o cuidado deveria ser permanente. Mesmo antes

do século I, encontramos essa concepção nas palavras de Epicuro:

Quando se é jovem, não se deve hesitar em filosofar e, quando se é velho, não se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ter cuidados com a própria alma. Quem disser que não é ainda, ou que não é mais tempo de filosofar, assemelha-se a quem diz que não é ainda ou não é mais tempo de alcançar a felicidade. Logo, deve-se filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no segundo caso (...) para rejuvenescer no contato com o bem, para a lembrança dos dias passados, e no primeiro caso (...) a fim de ser, embora jovem, tão firme quanto um idoso diante do futuro. (Epicuro apud Foucault, 2006, p. 108)

52

Observa-se, aqui, que o sentido de filosofar é o cuidar de si, isto é, a

felicidade de ser feliz na presença de si próprio. A vida na velhice pode tornar-se

mais feliz. O exercício de filosofar, o esforço de reflexão é prática para qualquer

etapa do viver. Na juventude, se apresenta como cuidado em que a constante

análise e revisão de suas ações produz um modo de vida que será benéfico para

etapas posteriores – como na velhice, por exemplo.

Na velhice o exercício do filosofar, do rememorar os dias passados, o refletir

sobre o patrimônio biográfico pode acarretar uma espécie de “rejuvenescimento”

pelo contato com o bem, pela firmeza do pensar e do agir. Para Foucault (2006, p.

108), o ato de cuidar-se, de voltar o olhar para si é o auto-exame. Indica também

para a ideia de movimento que aponta a conversão do olhar, uma espécie de

vigilância necessária a si, fazendo um “movimento global da existência que é levada,

convidada a girar, de alguma maneira, sobre ela mesma e a dirigir-se ou voltar-se

para si. Há também um outro olhar que envolve a questão de dar prazer a si mesmo,

satisfazer-se”.

Esta alteração faz do cuidado de si um corretivo, além de formativo. A

formação que se seguiu mudou de forma: no lugar da formação profissional deu –se

lugar à formação para que se suporte, de maneira adequada, os problemas da vida;

é um mecanismo de segurança. Para Foucault (2006), citando Alcibíades, no final da

adolescência, é necessário, preferencialmente, a formação, e na idade adulta,

conforme observa Sêneca “é preciso a correção”, ou seja: a crítica.

O corpo torna-se também, objeto de preocupação; ocupar-se de sua alma é

ocupar-se de seu corpo. Tanto no “ocupar-se” como no “preocupar-se”, o fim deve

ser a alma. Finalmente, tem-se o conceito de velhice que deixa de ser somente o

casal sabedoria/fraqueza para ser definida como a recompensa de toda a vida -

diferentemente do cristianismo, onde a recompensa se encontra além da vida.

A autonomia do registro da fala das coisas se funde numa experiência trágica,

na qual a problemática da linguagem, como pensamento de fora, foi enunciada de

maneira eloquente nos discursos foucaultnianos. O que foi fascinante em Foucault e

que neste instante nos faz pensar na possibilidade da existência da linguagem,

como uma forma de exterioridade do sujeito, mas na qual, em contrapartida, existiria

pensamento de fato, não obstante o atributo de exterioridade.

53

Portanto, a palavra, o encantamento que promove o cuidado da alma e a saúde

integral, é o remédio indicado pela filosofia platônica. Assim como um medicamento

mal empregado pode gerar doenças, pode mascarar uma patologia, a palavra mal

empregada também o pode. Daí a necessidade de conhecimento da Ideia, forma

perfeita, para o correto uso do pharmacon, segundo Platão. Já para Hipócrates, é o

conhecimento das circunstâncias, Dos ventos, águas e regiões3 da organização da

sociedade, da natureza e dos hábitos do indivíduo, e não de um princípio universal,

que garantirá o emprego correto de um pharmacon, seja ele uma dieta, um remédio

ou uma palavra.

Se o pensar é o exercício da alma e a palavra o seu remédio, tendo como

objetivo o equilíbrio natural, o cuidado é necessário antes mesmo da manifestação

de uma enfermidade. Daí a necessidade constante de uma dieta adequada,

considerando que o conceito de dieta não se aplica apenas à organização dos

alimentos, mas a todo um regime de vida, incluindo o exercício do pensar, e do

diálogo provocativo ao pensar, para a manutenção da saúde integral – corpo, alma,

sociedade e natureza.

2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos

É inegável que o arcabouço científico e tecnológico dos tempos atuais tem

trazido grandes ganhos à produção de saúde. A erradicação e o controle de

algumas doenças, entre outras conquistas, só foram possíveis porque o homem teve

necessidade, curiosidade, ousadia e coragem. Porém sabe-se que somente a

aplicação de técnicas e a utilização de tecnologias não tem sido suficiente para o

cuidado com a saúde.

Tem-se discutido, desde os finais do último século, até que ponto a

exclusividade da ciência e da tecnologia tem favorecido o homem, principalmente no

que diz respeito à qualidade de vida. Técnicas, segundo Lalande (1999), citado por

Ayres (2000, p.118), são consideradas como “conjunto de procedimentos bem

3 Título de texto de Hipócrates, onde é relatada a necessidade do médico conhecer o ambiente

(ventos, água e regiões), a organização da sociedade, os hábitos, e diversos dados imprevisíveis para prescrever um tratamento adequado ao paciente/doente.

54

definidos e transmissíveis, destinados a produzir certos resultados considerados

úteis...”.

O ato de cuidar não pode estar restrito à mera aplicação de técnicas. Há algo

mais que caracteriza o cuidar. A objetividade no cuidado transforma, em ato

mecânico, aquilo que deveria ser humano, carregado de vida. A exemplo de uma

sutura de um corte acidental na pele, a primazia da técnica pode representar um

diferencial quando pensamos na contenção do sangramento, na aceleração e

estética do processo de cicatrização, na prevenção de infecção, nos custos para o

sistema de saúde. Mas estamos pensando ou, ainda, se quisermos, refletindo

somente sobre os objetos: ferida e técnica. O paciente pode também pensar que foi

bem cuidado, se considerarmos o entendimento do cuidar, culturalmente enraizado

na nossa sociedade, e voltará à sua rotina normal, tão logo saia do pronto

atendimento.

Mas, considerando outros aspectos que envolvem a subjetividade dos sujeitos

pacientes, podemos refletir sobre as circunstâncias em que ocorreu o corte: ocorreu

em casa, no trabalho, em espaço público? O que fazia o paciente quando se feriu?

Era possível prevenir? O acidente é recorrente? Poderá ocorrer novamente?

Como se sentiu o paciente no momento do acidente? Como se sentiu durante

o atendimento médico? Teve medo? Sentiu dor? Qual a reação do paciente à dor?

Poderá voltar imediatamente ao trabalho e às suas atividades cotidianas

normalmente? O que pode representar o eventual afastamento do trabalho para o

paciente? O que representou o procedimento médico para o paciente? O paciente

terá condições de cuidar do curativo em casa? Apenas refletir sobre esses aspectos

ainda assim não se instala o cuidado. O cuidado só se instala quando “o outro”

estiver presente na reflexão e algo é feito por ele, no sentido de diminuir sua

angústia, suas dores física e de perda, dar apoio, encorajar, assegurar seus direitos,

enfim, fazer tudo o que for necessário para que enfrente seu problema com o menor

sofrimento possível.

O cuidar deve incluir o outro, ter como base a escuta, o olhar interessado e

preocupado, a palavra que conforta, o toque que acalma. É, portanto, por meio do

diálogo que estabeleça confiança mútua e esperança que se pode dar início ao

processo terapêutico. Segundo Paulo Freire (2005, p. 115), o diálogo comunica, liga,

55

levando os interlocutores à busca de um caminho em comum. É diferente do

antidiálogo “que implica em relação vertical”, tornando-se “comunicado” e não

comunicação. (Freire, 2005, p.115)

Para Ayres (2004), o cuidado humanizado ou integralidade refere-se a um

conjunto de princípios e estratégias que norteiam, ou devem nortear, a relação dos

sujeitos, o paciente e o profissional de saúde que o atende.

Cuidado humanizado é o que permite o paciente expressar sua “humanidade”

que é o “ser” ele mesmo. Um ser que sente angústia, tristeza, raiva, alegria,

esperança, fé e ainda é constituído por um processo sócio-histórico singular. O

profissional deve ser e estar sensível para acolher todas essas manifestações. E é

pela sensibilidade e abertura que será possível olhar o paciente, do ponto de vista

dele mesmo, compreender o que pensa sobre a doença, sobre seu corpo, sobre a

vida e sobre sua própria vida.

A relação que se estabelece tem como fim a boa qualidade de vida do

paciente, pois é o que todos buscam: a vida boa. Uma vida que possa ser construída

por cada um, sem os condicionamentos externos que pressionam, oprimem e

angustiam, abortando os projetos de felicidade e os sonhos, causando sofrimentos

que se manifestam no corpo físico.

Costa (2004) diz que “a doença é o lado sombrio da vida”. Citando Sontag

(1984), diz que as pessoas possuem dupla cidadania: “uma no reino da saúde e

outra no reino da doença” e seus direitos devem ser reconhecidos nas duas

condições.

Ayres (2004) propõe o resgate dos projetos de felicidade, adormecidos no

paciente, como proposta de sensibilização do paciente para a percepção de si

próprio, resgatando sua autonomia para, assim, participar ativamente do processo

terapêutico. Propõe também utilização de novas práticas que sensibilizem para o

diálogo, como a expressão artística e corporal ou outras terapias que possam

contribuir para o processo terapêutico. Neste lugar a narrativa se encontra como

forma de resgate de si mesmo, partindo do pressuposto que, quando há

autopercepção, há também possibilidades de engajamento no projeto terapêutico e

isso incentiva a continuidade de seus projetos de vida. Isso implica a necessidade

de um diálogo mais amplo, que ultrapasse os limites individuais e alcance o coletivo.

56

É em torno desse ponto que, segundo Ayres (2004), a necessidade de

integração da técnica com a prática médica, deixa em evidência os sentidos da

integralidade da atenção à saúde. A atitude reducionista do médico, que atende o

paciente, valorizando apenas o aspecto biológico, cuidará apenas de eliminar a

doença que poderá reincidir, se não forem “corrigidos” os fatores que a

desencadearam. Porém, quando disposto a ampliar o seu espectro de ação, o

médico se defronta com problemas que não são especificamente médicos, mas que

não o isentam de participar das resoluções. Esta participação é a ação esperada do

médico que integra, à sua prática, o interesse, a responsabilidade pela saúde do

paciente. Quanto mais se compreendem as necessidades de saúde do paciente,

mais aumenta o grau de responsabilidade sobre o paciente, embora a autonomia

deva ser sempre garantida, o que implica a manutenção da comunicação, do

diálogo, do vínculo.

Portanto, o cuidado é uma ação dependente de encontros entre sujeitos e que

pode ser potencializado, por meio de ações coordenadas com esferas mais amplas

(não só por esferas mais amplas). Cuidar não é “produzir” saúde ou consertar um

corpo que não funciona bem. É ajudar o paciente a tornar-se autônomo e a trilhar

seus próprios caminhos, por meio da razão que o conduzirá à felicidade. É então

uma ação também pedagógica, pois movimenta e transforma. Transforma o paciente

e transforma o médico, pois em cada movimento, há um encontro e, em cada

encontro, um aprendizado.

Embora Ayres (2004) se preocupe com as relações diretas entre profissional

e paciente, de como desenvolver saberes que transcendam a simples eliminação de

doenças, aponta também para as várias dimensões que possibilitam ou limitam o

estabelecimento destas relações sujeito-médico e sujeito-paciente, como as

gerenciais, econômicas e políticas. Isso posto, acredita-se que o cuidar parte de uma

esfera micro, da relação dialógica, e que depende de esferas mais amplas, que

funcionam como coadjuvantes, tendo como foco o sujeito do cuidado.

O cuidado é o elemento que permeia as ações humanas, em busca de uma

vida plena, com dignidade. Uma busca que não é solitária, individual, ela é sempre

compartilhada, pois não somos onipotentes, nem pluripotentes, mas somos todos

potentes. Dependemos uns dos outros, no âmbito familiar, comunitário, social que se

projeta cada vez mais para o global, planetário. Acredita-se ainda que aprender a

57

cuidar do outro implica, primeiro, aprender a cuidar-se. É necessário sentir-se

acolhido, incluído, apoiado, amado para apreender o cuidado e somente na

interação entre os homens é que são possíveis tais sentimentos. Se, para Paulo

Freire, aprendemos no convívio social é socialmente que se aprende a cuidar de si e

do outro.

O resgate da subjetividade, da espiritualidade, em voga no meio acadêmico,

nos leva a buscar novos horizontes que conciliem os saberes técnicos com os

saberes práticos. Não se trata de voltar no tempo, mas de seguir em frente, com a

mesma necessidade, curiosidade, ousadia e coragem de outrora com que se

venceram os dogmas ao longo da história.

2.3 A formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e

estéticas do cuidado

Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”. (Boff, 2004, p. 46)

Esta fábula – O Mito do Cuidado – é de Higino, escritor romano de 64 a.C.

Trata-se de uma narrativa que apresenta significados para a área da saúde. A

linguagem poética sugere uma leitura sensível, possibilitando o perscrutar de

significados que podem acercar o assunto em questão. O personagem Cuidado

aparece aqui como aquele que recebe a incumbência de acompanhar o homem por

toda a sua vida.

58

A palavra Cuidado sugere uma concepção de cura, assistência, preocupação

e atenção, elementos necessários que são dispensados àqueles com quem nos

relacionamos.

O Cuidado deve ser desprovido de discriminações e preconceitos que sejam

empecilhos, que causem barreiras às pessoas. Nas palavras de Saturno, como

Cuidado antecede a Júpiter e a Terra, é dele a tarefa de assistir o homo – feito de

tão delicado material, o húmus, acompanhando-o, conservando sua vida e

apoiando-o enquanto ele viver. O Cuidado o fez com zelo o que supõe uma atitude

sensível, amorosa. Essas dimensões são constitutivas do ser humano. Por isso,

Saturno pondera que Cuidado acompanhará o ser humano por todo o tempo em que

viver, por respeitar sua fragilidade e tudo, sendo feito com cuidado, será bem feito.

Segundo Boff (2004) o ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador,

curando, serenando o futuro e criando esperanças. Na contemporaneidade, é

necessário repensar valores no meio das práticas racionalistas e técnicas e resistir à

apatia e à indiferença. A formação necessita insistir na abertura de espaços para a

educação que incentive as potencialidades do ser humano para que as práticas

sejam técnicas, sem que seja esquecida a arte do ser e do relacionar-se com o

humano.

Fica evidente a conexão que pode ser feita com o profissional da saúde, uma

vez que o cuidado deve ser constante, aperfeiçoado e diligente. Daí se infere a

importância da reflexão sobre a competência das ações práticas que dão suporte à

vida das pessoas, compreendendo-as no contexto da formação profissional que

tenha em vista o entrelaçamento de contextos sociais e políticos e a

responsabilidade e repercussão destas ações.

Durante a formação no curso de Medicina, talvez os alunos tenham

oportunidades consideradas satisfatórias, no que diz respeito ao contato com a arte.

Esse contato com a arte desenvolve a habilidade da educação da sensibilidade. Mas

a emoção é discutida apenas do ponto de vista biológico e psicológico, meramente

fisiologista como mecanismo de proteção e manutenção da vida. Não se discutem

quais suas potencialidades nem como recursos para melhor desenvolvimento de

atividades. Não se trata de dar um aspecto utilitarista para a emoção e a sensação,

59

mas como através dela nos relacionarmos de modo mais natural e menos formal

com os pacientes e as pessoas com quem convivemos.

Renan Tavares (2005), professor de Teatro, adverte seus alunos, alegando

que, entre os universitários, num processo de ensino e aprendizagem em artes, é

necessário considerar as dimensões do corpo, do organismo, da inteligência, todos

envolvidos no processo. Tais fatores entram em jogo para que o conhecimento

penetre e modifique o ser humano, o que só é possível porque as dimensões

emocionais fazem parte do verdadeiro processo de construção do conhecimento.

Se as artes utilizam a dimensão emocional, um mecanismo fisiológico, com um

instrumento potencialmente desenvolvido para interagir com o público, pergunta-se o

porquê da formação universitária, em Medicina, estar baseada apenas na razão,

descolando-a da emoção.

Na disciplina Ética, Estética e Educação, realizada durante o Mestrado em

Educação, vimos a importância da arte na formação. Chamou-nos a atenção a

utilização de procedimentos de ensino e aprendizagem que levam à Educação de

sensibilidade (Ferreira-Santos, 2004). Procurando caminhos que resgatem as

relações humanas, as artes podem ser um caminho possível para resgatar a

dimensão estética do cuidado, sem negar a importância do saber técnico.

A arte pode levar ao resgate da essência do cuidado, em sua dimensão

estética. A ética pode, com a institucionalização do cuidado, resgatar o respeito à

dignidade humana, que foi perdida. A dimensão estética do cuidado baseia-se na

necessidade da sensibilidade, como norteadora das ações. A sensibilidade, que

perpassa a emoção, deve estar presente no agir, no pensar, no falar, no tocar. Pela

sensibilidade, deve-se considerar também o paciente como um sujeito humano,

capaz de ter sentimentos.

A sensibilidade é construída na relação, nem sempre se dá através da

verbalização e com objetividade. Muitos não conseguem se expressar de modo

verbal. Principalmente, em Unidades de Terapia Intensiva, existem necessidades,

que o profissional da saúde pode pressupor, mas aquilo que não é pressuposto, não

será atendido. O agitar-se no leito deve ter um significado. Assim como os sinais e

sintomas como sudorese (suor excessivo) e expressões faciais.

60

Isto circunscreve a hermenêutica, no campo de um saber, que ajuda a

considerar cada situação como um falar. Para Heidegger (2002), linguagem é o

próprio existir. Este olhar que procura significar, que busca compreender os sinais

corporais é o aspecto que precisa ser desenvolvido na formação. Não de modo

rígido, enquadrando os sujeitos, classificando-os a priori, mas compreendendo o

falar do sujeito em seu contexto.

A dificuldade de educar um olhar de sensibilidade nas ações pode estar na

ausência das artes na formação. A música, a literatura, a pintura, entre outras

formas de arte, são necessárias para o desenvolvimento da sensibilidade. As

relações humanas também despertam nas pessoas vários sentimentos: de amor, de

ódio, de alegria, de tristeza, de fraternidade, de desavença, de solidariedade, de

individualismo.

A dimensão ética baseia-se no respeito humano. Embora tenhamos ideia do

coletivo, temos que considerar as minorias, muitas vezes, sem voz. A exclusão,

frequentemente, se dá por diferenças de gênero, raça, cor e crenças. A ética do

cuidado refere-se ao poder fazer pelo paciente, sem que se tome dele sua

autonomia, sua liberdade. Tratá-lo também como sujeito do cuidado, respeitando

seus desejos, seus projetos, suas crenças. É compreendê-lo como ele é, e aceitá-lo.

O respeito vai além das relações do homem como ser gregário. O agir ético

não envolve uma relação direta entre os homens, mas nas posições que se toma

diante da vida. Assim, a ética parece algo abstrato e o cuidado, na sua dimensão

ética, será fugidio, se não estivermos presentes nas nossas ações.

O cuidado tem como base o respeito e amor ao próximo e a consciência de

que as ações são norteadas pelos conhecimentos adquiridos. Freire (2002) aponta,

como característica da ética, a concretude, estando presente, inclusive, na

capacidade de se indignar com as injustiças que acontecem no mundo ao redor.

Portanto, a ética e o cuidado podem parecer abstrações ou conceitos vazios,

se não estiverem articulados com ações concretas no cotidiano de cuidar. Em outras

palavras, pode-se falar muito sobre uma coisa e não ter uma prática respeitosa

coerente com o que se fala.

Nos diálogos possíveis entre educar e cuidar na formação do docente em

medicina, pode-se considerar Freire (2005), para quem a educação deve libertar o

61

sujeito de situações de opressão, tornando-o livre para tomada de decisões de

acordo com sua vontade, necessidade e crenças. E é pelo diálogo que o ser

humano vai se fazendo ser no mundo com outros sujeitos, com autonomia, na busca

do seu próprio conhecimento, para compreensão do mundo e para construir-se no

mundo.

A abordagem dialógica, de Freire (2005) valoriza a cultura e o saber popular,

fazendo crítica ao desenvolvimentismo e à mecanização imposta pelo ensino

bancário, privilegiando a lógica dos donos do poder econômico, político e cultural.

Essa abordagem “influencia profundamente uma geração de educadores e

profissionais de Comunicação em Saúde” (Rozemberg, 1994, p.758). Ayres (2004)

discute as práticas dos profissionais de saúde que extrapolam a visão biologicista da

doença, considerando que técnicas e procedimentos, protocolos de tratamento

cientificamente comprovados, receitas e orientações não são suficientes para

debelar as doenças.

Um novo olhar para o cuidado contribui para entender melhor seu significado e

repensar as práticas de saúde. Para Ayres (2004, p.19), a saúde é muito mais que o

simples restabelecimento do funcionamento do corpo. Ela não é algo abstrato como

“estado de completo bem-estar físico, mental e social”, como afirmava a

Organização Mundial de Saúde, nos anos 70. Conceituar saúde como “estado” e

“completo”, ainda, segundo Ayres (2004), remete à imobilidade e à completude,

impossibilitando movimentos de reconstrução contínua. A experiência vivida,

valorada positivamente, geralmente, independe de um completo bem-estar e perfeito

funcionamento do corpo. De acordo com Ayres (2004), essa referência à relação

entre experiência vivida e valor orienta, positivamente, a vida com a concepção de

saúde, que parece ser o mais essencialmente novo e potente nas recentes

propostas de humanização.

Nesse sentido, a saúde compreendida como valor estabelece o humano como

ser de cuidado. Quem cuida e quem é cuidado, eticamente, é o ser humano. Por

isso, o cuidado é um valor para a saúde. O conceito de valor implica, na dimensão

relacional, o estabelecimento de relações entre os bens e a vida humana

(Abbagnano, 1982; Valori, 1997). O cuidado é um valor que promove o bem do ser

humano, sendo necessário na relação do ser humano com a saúde, elemento

essencial para a vida. Diante da falta de cuidado com a saúde, a vida é maltratada.

62

Outros valores que aparecem são: a responsabilidade, a corresponsabilidade,

a autonomia e o diálogo. Estes são valores que vêm da capacidade que o ser

humano possui de ser sujeito de seus atos, de fazer escolhas, de viver essa

capacidade com os outros e pelos quais o médico deve pautar sua relação com

outros profissionais, com o paciente, com a comunidade e com a sociedade.

Os valores éticos, estéticos e políticos devem permear todo o processo de

educação e saúde. Tal visão requer uma prática docente diferenciada, em

consonância com uma formação médica também diferenciada, crítica e reflexiva,

guiada por valores. Para Freire (1980), a consciência crítica parte da compreensão

do ser humano como ser no mundo, ser de relações, ser finito, ser inacabado, ser

inconcluso.

Essa visão de educação assume a concepção de formação como processo, o

docente respeita o ritmo do educando. Nesse movimento ensino-aprendizagem, o

sujeito vai construindo sua capacidade de reflexão e crítica, fazendo escolhas à

medida que vai por si mesmo desenvolvendo a sua autonomia, como cuidado da

vida. A perda da visão mais integral de ser humano e a falta de conexão entre as

dimensões do humano, necessárias para a formação, podem ser consideradas como

a falta de cuidado, a falta de visão sobre a condição essencial do ser formado do

“húmus”.

Um novo paradigma emerge, no seio da contemporaneidade, com uma nova

admiração e cuidado pela natureza, uma compaixão pelos outros em suas

vicissitudes, uma releitura das práticas que melhor atendam aos que sofrem,

marcando uma nova ética civilizacional. Esta ética, com grande repercussão para a

área da saúde, caracteriza-se pela busca de qualidade de convivência e harmonia

nas relações interpessoais, com forte ênfase à educação, com respeito pela

singularidade dos sujeitos, em seus movimentos individuais, envolvendo-os e

integrando-os no movimento coletivo.

Esta visão não desvaloriza a razão, a qualidade técnica, mas, busca equilibrá-

la, dando maior atenção aos sentimentos, ao desenvolvimento da capacidade de

simpatia, empatia, buscando o espaço da dedicação, do cuidado no esforço da

convivência respeitosa com o diferente.

63

3 DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE MEDICINA:

LEITURAS E INVESTIGAÇÕES

A sociedade brasileira convive com particularidades históricas e próprias da

formação profissional, na área médica. As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso

de graduação em Medicina (DCN, Resolução CNE/CES n.º 4, 7/11/2001) propõem a

humanização da saúde. A resolução outorga às Instituições de Ensino Superior (IES)

maior grau de autonomia para propostas de currículos inovadores, substituindo o

currículo mínimo, e para tomada de decisões administrativas e financeiras.

Aqui caberiam alguns esclarecimentos sobre as diretrizes – talvez algo que

mostre os pontos jurídico, social, pedagógico e algumas conexões possam sugerir o

Cuidado para com a formação. São orientações necessárias para a humanização da

saúde.

Nos Cursos de Medicina, entretanto, ainda persiste o modelo hegemônico de

formação, centrado no hospital e na doença. São currículos fragmentados e

métodos tradicionais de ensino, baseados na transmissão de conhecimento. O

ensino está centrado no professor, que define o conteúdo de sua disciplina, às

vezes, desarticulado da proposta curricular. Os alunos valorizam a especialização,

com instrumentos e equipamentos tecnológicos altamente sofisticados.

No entanto, quanto mais se incorporam os avanços tecnológicos, mais

aumentam os custos na saúde, o que impede o acesso da maioria da população à

saúde. O avanço do conhecimento científico e da tecnologia não se traduz em cura

de doenças tampouco em cuidado. Embora o Brasil possua tecnologias equiparadas

às dos países desenvolvidos, elas beneficiam uma parcela mínima da população,

enquanto a maioria sofre de doenças corriqueiras e de fácil resolução (Machado,

1997).

A tecnologia é indispensável para diagnóstico e tratamento dos pacientes,

mas é necessário atitude ética, que não vem escrita no manual dos equipamentos

nem nas bulas dos medicamentos.

64

As DCN dos Cursos de Medicina preocupam-se com a integralidade da

formação, não apenas com a competência técnica, mas, principalmente, com o

aspecto humano. O objetivo é que se compreenda o ser humano, no seu ciclo de

vida e o processo saúde-doença, a partir dos conteúdos da antropologia, sociologia,

psicologia, filosofia, ou seja, as ciências sociais e humanas, que dão as bases para

realizar a crítica e reflexão sobre a prática médica.

Investigar o sentido do cuidado na formação médica, no contexto da

sociedade brasileira, marcada por tantas desigualdades, parece um problema

pertinente, sobretudo, em tempo de tantas mudanças e transformações culturais. Em

um momento de crise civilizacional, como o definem Morin e Boff, torna-se

imperativo que o profissional docente ensine a cuidar, criando condições e cenários

para que, no espaço de formação inicial, o graduando aprenda a cuidar.

3.1 O Contexto histórico da Reforma Curricular

Um retorno ao passado é necessário para a compreensão da história da

formação médica, prescrita nas diretrizes curriculares do Curso de Medicina. Até o

século XVIII, a medicina era exercida pelos sacerdotes, considerados possuidores

de dons divinos da cura. Seus conhecimentos baseavam-se no misticismo e na

magia, quando muito no empirismo. No século XIX, os avanços dos estudos de

anatomia e biologia e o desenvolvimento positivista comtista das ciências serve de

base para a medicina. Desenvolvem-se assim as escolas médicas.

Em 1910, nos Estados Unidos, Abraham Flexner (Flexner, 1910) realiza um

estudo sobre as escolas médicas daquele país, gerando um documento, conhecido

como Relatório Flexner. Com esse estudo, o ensino nas escolas médicas

americanas passa a ser baseado na ciência, não mais no empirismo, seguindo os

avanços científicos da época. Os conteúdos são divididos em disciplinas, são

criados departamentos e se separa a formação em pré-clínica e clínica. Há ainda a

exigência de formação dentro de hospital-escola. Surge aí a formação

exclusivamente científica, biologicista, curativa, voltada para o atendimento

hospitalar. Esse modelo de formação dá ênfase à biologia, às intervenções por

65

procedimentos técnicos com uso de equipamentos, caracterizando a saúde como

ausência de doença. Ou seja, a eliminação das doenças sobrepõe-se aos cuidados

à pessoa. Ou, ainda, espera-se que o indivíduo adoeça, para depois tentar tratar a

sua doença.

Este modelo acaba por influenciar, mundialmente, a formação de toda a área

da saúde durante o século XX. As escolas médicas no Brasil, a partir da década de

40, passam a seguir este modelo, que persiste até hoje.

Embora tenha sido importante a ênfase científica, este modelo mostra sinais

de esgotamento, quando torna a assistência à saúde muito onerosa e tardia, devido

às tecnologias necessárias e devido ao fato de atender, preferencialmente, os que já

estão doentes (foco na recuperação da saúde). E ainda não consegue atender um

número crescente de pacientes que exigem melhores condições de tratamento e

atendimento.

Segundo Carvalho e Ceccim (2006) e Rego (2003), contribuiu muito para o

processo de compreensão, interpretação e disseminação de saberes e de práticas

relativas ao exercício profissional, para a assistência específica de cada caso, para

eliminação de doenças e prevenção de sequelas, contribuiu para a padronização da

formação em saúde, mas, por outro lado, impediu o desenvolvimento da, hoje

denominada, Saúde Coletiva, mais focada na promoção de saúde e prevenção de

doenças, com base na epidemiologia, sob a óptica do risco e da vulnerabilidade.

Nas décadas de 50 e 60, intensifica-se o Movimento Preventivista,

encabeçado pelos profissionais da Saúde Pública, que se propõe repensar suas

práticas e o papel dos cursos de graduação em saúde, com base nas necessidades

sanitárias da população. No Brasil e em outros países, são incorporadas áreas que

abordam os aspectos preventivos, sociais e comunitários nos cursos de medicina,

enfermagem e odontologia, a partir do desenvolvimento das ciências humanas

(Brasil, 2007). Ao longo do tempo a “saúde coletiva” vai-se incorporando aos

currículos, cada escola a seu modo, criando-se departamentos como os de Saúde

Pública, Medicina Social, Medicina Preventiva, Saúde Coletiva, Saúde e Sociedade

que, até os dias de hoje, agregam conteúdos de epidemiologia, sociologia, filosofia,

antropologia, política e economia, entre outros.

66

A criação da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), em 1962,

estimula o movimento de reforma curricular, que se alinha com a reforma sanitária

na década de 70, com a colaboração de movimentos nacionais e internacionais, que

norteiam a elaboração das diretrizes curriculares que hoje estão sendo colocadas

em prática.

Em 1971, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) cria a Comissão de

Ensino Médico, com o objetivo de avaliar as escolas médicas que já cresciam em

número, atendendo ao mercado capitalista de faculdades particulares,

recomendando sua adequação ou o seu fechamento, na tentativa de garantir a boa

qualidade de ensino.

A Medicina, no Brasil, é baseada nas tendências tecnológica e privativista. É

favorecida e financiada pela própria política de Estado, assim, determina um modelo

de hospital, centrado na técnica curativa, estimulando o movimento de um mercado

de equipamentos e insumos que cresce vertiginosamente. Porém o aumento de

cobertura de assistência à saúde ocorre somente nos grandes centros urbanos,

deixando o restante do país quase sem assistência. A proliferação de escolas

médicas ocorre nesse cenário, favorecida pelos hospitais universitários que também

participam do atendimento dessa demanda ampliada (Mendes, 1987).

Cresce o assalariamento do profissional médico especialista, contratado pelo

setor privado (“grupos médicos”, empresas médicas de convênios), que se torna o

principal “consumidor” de insumos, equipamentos e medicamentos que são lançados

nesse mercado, cada vez mais sofisticado, obrigando o profissional médico a

buscar, cada vez mais, especializações e subespecializações.

As pesquisas científicas voltam-se para a avaliação da eficácia das próprias

tecnologias. Assim, “o modelo hospitalocêntrico se afirma nessa lógica, fortemente

ancorado no conhecimento especializado”, segundo Amoretti (2005), que afirma que

o ensino médico se organiza nessa lógica, fragmentando-se em disciplinas, com

professores especialistas e com a mesma expectativa de especialização, que

fomentará esse círculo vicioso. Os programas de residência médica são também

orientados por esse modelo. No entanto o mercado não consegue absorver a

quantidade de especialistas formados, levando-os à necessidade de ter vários

vínculos empregatícios e subempregos, desvalorizando a profissão monetariamente

67

e deteriorando a relação médico-paciente. O paciente não pode escolher o seu

médico e este não o vê como vinculado a ele; o atendimento passa a representar

uma tarefa a cumprir, tão rapidamente quanto possível.

Ainda, segundo Amoretti, muitos especialistas de várias áreas trabalham hoje

como generalistas no Programa de Saúde da Família (PSF, hoje, Estratégia Saúde

da Família), porém não têm formação adequada para esse tipo de trabalho, que

necessita de educação permanente. Trabalham na mesma lógica hospitalar, onde a

rotina de atendimento da demanda com consultas marcadas em consultórios ainda

prevalece. Com isso, se descaracteriza o programa e não se contribui para sua

eficácia, passando uma imagem negativa da profissão e da saúde como um todo.

Para a sociedade, o modelo de atendimento voltado para o hospital tem sua

importância por beneficiar-se de melhores possibilidades de diagnóstico e

tratamento e melhor eficácia. No entanto é um tipo de assistência muito cara para a

própria sociedade e para o Estado. Um dos maiores problemas é o seu

financiamento, com uma necessidade orçamentária cada vez maior. A grande

maioria da população fica de fora do sistema, pois não há acesso universal nem

equânime.

A preocupação com a promoção de saúde e a prevenção de doenças é quase

inexistente. A maioria da população, devido à grande dificuldade de acesso, só

procura o hospital quando os sintomas das doenças se agravam, chegando às

portas dos prontos-socorros, que também já veem ultrapassado o seu limite da

capacidade de atendimento, quando pouco ou nada há a se fazer; já estão

gravemente doentes.

Não tendo a quem recorrer, temos uma sociedade que não possui uma

cultura de cuidar da saúde como um bem precioso. Com os profissionais de saúde

confinados em hospitais, não há informação sobre saúde que circule em meio à

sociedade. A única fonte de informações é a mídia, que as veicula conforme seus

próprios interesses ou de terceiros e que nem sempre tem o aval da comunidade

médica. Alguns livros médicos são publicados para a população, mas são

publicações para a “elite letrada”. Como queremos que a população cuide da saúde?

Quais espaços ocuparemos para levar informação sobre saúde à população? Pois

68

antes do direito ao tratamento (dentro do hospital) a sociedade tem o direito à saúde

(fora dele).

3.2 Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Superior: desafios para o

Curso de Medicina

A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos da área da

Saúde e, especificamente, do Curso de Medicina é resultado de um importante

movimento de educadores da área da saúde (Almeida et al., 2007). A proposta de

formação de profissionais com perfil humanístico, crítico e reflexivo é contemplada.

Percebe-se a necessidade de uma formação que propicie não só

competências para o uso de tecnologia e instrumentos sofisticados, mas também

para tomada de decisões, comunicação, liderança, administração e gerenciamento e

educação permanente para a atenção integral à saúde (Brasil, 2007).

O artigo 3.º das Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina

propõe a formação generalista, humanista, crítica, reflexiva, pautada em princípios

éticos, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, e a

promoção da saúde integral do ser humano.

A ideia de formação crítica e reflexiva nasce da área da Educação, que

discute seus fazeres como ação consciente. Assim como em outras áreas, a

formação pela transmissão de conhecimento e sua reprodução no mundo do

trabalho não é suficiente para a transformação da sociedade. Schön (1992) e

Perrenoud (2002) discorrem sobre a necessidade da reflexão e sobre a reflexão na

ação.

Atualmente, muitas escolas médicas vêm reorganizando seus currículos,

buscando o atendimento às Diretrizes Curriculares Nacionais, que orientam para a

busca de novas metodologias de ensino, considerando que a transmissão de

conhecimento, por meio da educação bancária, não é mais suficiente para os dias

atuais. As escolas têm substituído ou complementado os métodos antigos por

métodos de ensino-aprendizagem centrados no estudante e orientados para a

69

comunidade, sendo utilizados: a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e a

Problematização, utilizando o “arco de Maguerez” (Diaz-Bordenave, 2005).

Volta-se o foco para a Atenção Primária em Saúde, atendendo à necessidade

de formação de médicos conforme orientação da OPAS/OMS. Assim, os espaços de

ensino-aprendizagem devem incluir as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Com a

implantação do SUS e com o Programa/Estratégia Saúde da Família (PSF), a partir

de 1994, estas unidades vão sendo estruturadas com Equipes de Saúde da Família

(ESF) compostas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes

comunitários de saúde, podendo ainda agregar cirurgiões-dentistas, psicólogos,

assistentes sociais e outros, conforme a necessidade local. É uma estratégia do

Ministério da Saúde na tentativa de organizar a porta de entrada do paciente para o

SUS, garantindo a integralidade da atenção. Os outros níveis de atenção são

caracterizados como: atenção secundária em saúde, onde são atendidos os

usuários com doenças já instaladas ou processos saúde-doença em que a atenção

primária não foi suficiente, por necessitarem de equipamentos diagnósticos mais

sofisticados ou procedimentos técnicos incompatíveis com as UBS ou internações

para diagnóstico e tratamento; e atenção terciária, onde se atendem usuários que

necessitam de tratamento de alto nível de complexidade. Os novos cenários de

prática das Diretrizes Curriculares, em seu artigo 12, e seus incisos V, VI, VII e VIII

orientam para a utilização de novos cenários de ensino-aprendizagem.

3.3 O cuidado e a Integralidade da Saúde

Uma das definições da integralidade na saúde é uma das diretrizes do SUS,

compreendida como articulação das ações de promoção, prevenção, tratamento e

reabilitação de modo contínuo, ações essas que não se limitam à atenção primária

em saúde, devendo estar presentes em todos os níveis de atenção. Neste sentido, a

integralidade pretende superar a fragmentação das ações de saúde, deixando de ser

ações pontuais, mas ações que articulam os níveis de atenção. Ainda pode

compreender as ações voltadas para o indivíduo (integrando aspectos biológicos e

70

subjetivos) ou coletividade (as doenças e os processos dinâmicos que as

determinam).

Ainda, dentro do âmbito do SUS, a integralidade representa articulações entre

os profissionais de saúde (compreendendo que individualmente todos os

profissionais são limitados e que não dão conta da complexidade que envolve o

processo cuidativo); entre os setores colaborativos com a saúde (considerando a

qualidade de vida dependente de vários setores que se articulam para garantir a

dignidade de cada sujeito) e também a cooperação entre gestão, serviço, formação

e comunidade.

Para Machado et al., (2007), integralidade é a percepção do sujeito histórico,

social e político, dentro de um contexto familiar que se articula com o meio social e

ambiental. E que, portanto, as ações de cuidado devem englobar ações de saúde e

de educação, como produção de saber coletivo, levando o indivíduo à emancipação

e autonomia para cuidar de si, de sua família e do meio em que vive.

Percebe-se que a integralidade perpassa várias dimensões da assistência à

saúde, no sentido de superar dicotomias e visões fragmentadas. Mas é na

compreensão de Ayres (2000), que o sentido da integralidade interessa neste

trabalho, considerando a integralidade como presente na ação de quem cuida em

função do ser cuidado.

O cuidado como categoria política aparece no artigo 3.º: “O curso de

Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional, o

médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar,

pautado em princípios éticos...” Neste artigo, aparece o termo “formação humanista”,

portanto a formação deve estar voltada para a vida humana e não só para as

doenças. Ainda, quando traz os termos “crítica e reflexiva”, ou seja, ser crítico em

relação às tecnologias e conhecimentos científicos, refletir sobre sua validade e

melhor modo de aplicação.

Ou ainda pensar criticamente em relação à vida humana, respeitando a

vontade e atendendo a necessidade de cada indivíduo, nas dimensões éticas,

sociais, culturais e existenciais. Ser crítico e reflexivo não significa ser contemplativo,

ou discursivo. A crítica e a reflexão devem levar a mudanças de pensamento e

71

comportamento para transformar a sociedade. A formação crítica e reflexiva deve

exigir uma postura ativa, portanto política.

Portanto, quando nos reportamos ao artigo 5.º, que trata das competências do

profissional, o inciso I diz: “promover estilos de vida saudáveis, conciliando as

necessidades tanto dos seus clientes/pacientes quanto as de sua comunidade,

atuando como agente de transformação social;” . Nestes termos podemos considerar

o cuidado presente, quando aparece como ação crítica e reflexiva, capaz de

transformar a sociedade, por meio de ações para melhora da qualidade de vida.

Porém, quando se propõem, simplesmente, “estilos de vida saudáveis”, a

partir de uma visão científica, sem considerar a subjetividade dos sujeitos, corre-se o

risco de, novamente, impor normas e criar “modelos” os quais parte da população

não alcançará, por razões próprias de cada sujeito. “Estilos de vida saudáveis” diz

respeito à diminuição de riscos à saúde, relacionados a alimentação, atividade física,

tabagismo, alcoolismo, sono e repouso, lazer, etc. Ao “criar” padrões de

normalidade, não se está interferindo nos “modos de vida” e, sim, criando um

“preconceito” contra os que, por vários motivos, não se encaixam nesses padrões.

Bagrichevsky et al. (2010), diz que corremos o risco de estigmatizar e

culpabilizar os que não se “enquadram” e estes, por sua vez, assumirão a culpa. E,

também Anjos (2006), nos provoca com as “perguntas da vulnerabilidade”: a

autonomia de Kant (como capacidade dos seres humanos de imporem regras

morais) é possível para todos? Em não sendo, o que fazer com os que não a

atingem? São marginalizados? Esquecidos? Este é o maior risco que se corre:

deixar de cuidar exatamente dos que mais necessitam de cuidado.

Com o inciso IV, do mesmo artigo, faz um esforço para contemplar o cuidado,

quando recomenda: “informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em

relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças,

usando técnicas apropriadas de comunicação”.

No artigo 6.º, temos:

Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em

medicina. Devem contemplar:

72

Inciso V – diagnóstico, prognóstico e conduta terapêutica nas doenças que acometem o ser humano em todas as fases do ciclo biológico, considerando-se os critérios da prevalência, letalidade, potencial de prevenção e importância pedagógica.

Colocado deste modo, quando se diz: “usando técnicas apropriadas de

comunicação” (inciso IV do artigo 5.º) e “importância pedagógica” (inciso V do artigo

6.º), não remete à ideia de um processo pedagógico e sim, apenas, o modo como

informar sobre as condições atuais de saúde ou de doença. Tratam-se apenas de

ações pontuais, em um tempo determinado, de um tratamento ou de uma consulta

médica.

Se para Foucault (2006), cuidar da cidade (ou do outro) implica em,

primeiramente, aprender a cuidar de si, para o médico é também necessário que,

antes de cuidar dos pacientes, aprenda a cuidar de si próprio. O artigo 5.º, inciso

XVIII diz: “cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como

cidadão e como médico”. Compreende-se que pode ser um ponto de partida para

ensinar a cuidar, se considerarmos o cuidado como uma construção ao longo da

vida, que se transforma e faz transformar, conforme Ayres (2004) quando explora o

cuidado como categoria ontológica, numa construção filosófica. Como está, parece

não mostrar força, ficando em segundo plano no documento. Prioriza-se ainda o

conhecimento técnico-científico de forma conteudista, em detrimento da formação do

sujeito, médico, cidadão que cuidará de outros sujeitos, cidadãos.

Acredita-se que a formação do aluno consiste em desenvolver-lhe a

consciência de sujeito em contínua formação, portanto voltado ao cuidado de si

próprio, na constituição de si mesmo. Cuidado que implica na sua própria saúde

(pressupondo saúde de forma ampliada); na construção de seus projetos de vida; na

condução de seu modo de vida. Somente compreendendo o cuidado como fator

importante e indispensável, em qualquer momento de decisão ou circunstância de

sua própria vida, é que poderá compreender os fins da atividade médica frente à

vida do outro, que se constitui de forma solidária, em cooperação, com compaixão.

Compreendido isto, será então capaz de busca de conhecimento relevante e

desenvolvimento de habilidade na perspectiva da necessidade do outro, que deverá

ser o maior estímulo para conduta ética enquanto ser que serve a alguém.

Ainda, considerando o cuidado uma ação ética, será capaz de agir com

justiça e proteger o outro das injustiças tanto das cometidas por indivíduos ou

73

instituições. Trabalhará para assegurar o acesso aos direitos para que tenha uma

vida digna e boa. Somente na perspectiva da necessidade do outro, é que será

competente para, numa dimensão maior do cuidado, participar da construção das

políticas públicas de saúde, que garantam a vida com dignidade para indivíduos e

coletividades; gerenciando serviços; organizando a saúde nas dimensões municipal,

estadual e nacional. Desse modo, o cuidado parece ter pouca relevância nas DCN.

A compreensão do significado de cuidar “na perspectiva da integralidade da

assistência” (Brasil, 2001), envolve não só o uso de tecnologia e instrumentos

sofisticados. Na proposta curricular a concretização do eixo da integralidade

compreende a formação dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), na Atenção

Primária em Saúde, junto às Equipes de Saúde da Família. Este é um espaço de

aprendizagem sobre o paciente na sua comunidade, conhecendo sua família, sua

origem, costumes e cultura e condição social, não vinculada apenas ao hospital.

Embora a integralidade possua vários sentidos no âmbito da saúde, para Ayres a

integralidade é a associação da ação humana ao uso das técnicas e tecnologias,

sendo este um dos sentidos atribuído por Mattos (2004). A integralidade

compreendida como cuidado indica ser necessária a escuta de qualidade como

parte da anamnese para, então, orientar o uso adequado da tecnologia . Quando

não ocorre comunicação e diálogo do médico com o paciente, este não se sente

cuidado e os exames e os encaminhamentos são demandados aleatoriamente,

criando filas de espera que interrompem a linha de cuidado.

Para Freire (2005, p. 115), o diálogo se dá na relação horizontal entre os

sujeitos, tendo como matriz o amor, a humildade, a esperança, a fé, a confiança e a

criticidade. Quando é vertical, ocorre o antidiálogo arrogante, “não há comunicação,

há comunicado”. O diálogo diminui as distâncias, as diferenças e resolve os

conflitos. Aprender a dialogar é participar politicamente de decisões coletivas.

Quanto mais o paciente adquire conhecimento, mais é capaz de resolver os

problemas que o afligem, tornando-se cada vez mais autônomo. Quanto maior o

grau de autonomia, maior o grau de responsabilidade, pois as transformações

trazem consequências positivas ou negativas. Quando negativas, é preciso corrigir

os rumos, o que exige novos conhecimentos, nova compreensão, novo rigor para

tomada de decisões, o que torna a educação um movimento contínuo.

74

As inter-relações humanas pelo diálogo dão abertura à participação do

paciente no seu tratamento, como sujeito, que também tem voz, que traz consigo

suas angústias, medos, crenças, sentimentos, o que configura um tratamento mais

humanizado. Mais do que eliminar doenças por procedimentos e medicalização,

Ayres (2004) propõe ouvir na história do paciente seus “projetos de felicidade” que

deem significado positivo a sua vida, abatendo suas angústias, medos e incertezas

que determinam as doenças.

Para Pinheiro (2005), o vínculo se estabelece a partir da responsabilização e

compromisso de “ouvir a voz do outro”, do diálogo entre sujeitos (médico e paciente).

É na escuta do não dito que será possível ouvir os ecos do sofrimento, angústia, dor

e medo, a apreensão dos valores, representações sociais e crenças dos pacientes.

Os ecos darão o norte às práticas de saúde. É na presença do “outro” que as ações

se transformam.

A relação de dependência do aluno em relação ao professor e do paciente em

relação ao médico transforma a educação e a saúde em assistencialismo,

fortalecendo a crença de que as resoluções dos problemas só dependem de ações

alheias a eles. A precariedade do atendimento da população aponta a fragilidade da

formação médica atual, baseada em diagnósticos subordinados ao uso da

tecnologia “dura” no mercado da saúde. Esses impactos advindos das tecnologias

provocam permanentes movimentos sobre a vida de todas as pessoas perante o

desafio das constantes tomadas de decisões em função dos valores de nossos

tempos.

Deve-se levar em conta o “outro”. O cuidado, elemento essencial para a vida,

permeado de sentidos e significados, mostra a interface entre Educação e Saúde. A

autonomia, o diálogo e a responsabilidade devem ser a base da formação de

profissionais na área médica, o que implica uma constante reflexão e crítica das

práticas da formação docente.

A proposta das DCN do Curso de Medicina aponta a importância da

consciência crítica, responsabilidade, autonomia e diálogo, com a busca da

compreensão do lugar do docente, no cuidado da formação de profissionais, que

vivem em meio à rapidez das mudanças. É um desafio para a formação educacional,

requerendo atitudes que reafirmem os valores fundamentais para o ser humano.

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer da realização do trabalho, a coleta de dados foi efetuada através

da análise documental proposta. Isto implicou a assunção de uma abordagem

hermenêutica, na perspectiva de Gadamer (1999), na qual se busca a construção de

sentidos e significados, a partir de inferências.

Realizaram-se pesquisas sobre educação e sobre o conceito de cuidado.

Investigaram-se os aspectos necessários para se pensar a formação docente, na

perspectiva do cuidado humano. Examinou-se de que forma o cuidado, como

categoria de análise, aparece nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de

Medicina (DCN).

Concluiu-se que o sentido de cuidado, nas Diretrizes Curriculares Nacionais

do curso de graduação em Medicina, precisa ser repensado. Propõe-se, a partir

desta reflexão, uma formação humanística capaz de mediar o uso dos

conhecimentos científicos e tecnologias, de modo a responder às necessidades de

saúde de indivíduos e coletividade.

Esta formação humanística torna-se necessária, quando se considera a atual

conjuntura: na contemporaneidade, no âmbito das instituições de saúde, o avanço

tecnológico propicia consequências relevantes. Há uma excessiva preocupação com

a tecnologia e isto propicia a formação de um abismo entre os profissionais da saúde

e os pacientes. Assim, há, inegavelmente, o esvaziamento humano do conceito de

cuidar, nas práticas profissionais usuais entre profissional e paciente. É, nessa atual

conjuntura, que a formação humanística torna-se imprescindível.

É possível que se consiga uma formação humanística, pelo método

biográfico, que surgiu como reação ao domínio positivista das ciências e se

contextualiza no pensamento hermenêutico. Tal perspectiva aponta para o

entendimento de que as narrativas autobiográficas provocam processos de tomada

de consciência que são emancipatórios, tanto para o indivíduo como para a

sociedade.

76

No movimento de compreender as próprias vivências e experiências, o

indivíduo atribui sentidos às informações que lhe chegam, advindas do mundo em

que vive. Assim, no processo formativo, o indivíduo manifesta, quando interpreta o

mundo, sua conexão com o conjunto de atividades educativas, com a tomada de

consciência, realizando a reflexão retrospectiva na reflexão presente.

As narrativas, no método biográfico ou de histórias de vida, constituem um

percurso de autoformação, que parte do singular, enquanto busca a si mesmo, para

o universal, enquanto busca sua posição no mundo.

Assim, a historicidade é de suma importância porque, ao partilhar com os

outros as possibilidades do fazer e do formar-se, o sujeito compreende-se inserido

nos projetos da educação, dando uma conotação de cuidado, necessário ao

processo educacional humanizador e libertador. Trata-se da passagem da

“consciência ingênua” para a “consciência crítica”, da proposta da autonomia

relacional, que se constrói num processo de relações interpessoais, que se tornam

educativas para ação independente e adulta.

Embora a educação seja uma atividade cujo objetivo é o desenvolvimento do

ser humano, em suas potencialidades e possibilidades, houve uma distorção, devido

ao crescimento industrial. A prioridade passou a ser a formação para o trabalho,

deixando, em segundo plano, a formação humana.

Importa, agora, que se priorize uma formação integradora. O sujeito da

formação se movimenta, quando toma consciência e se apropria de conteúdos

significativos, através de atividades e aprendizagens, em qualquer espaço social. Há

estímulos à autoformação, a partir das descobertas dos indivíduos, efetuadas na

intimidade do seu mundo interior ou na relação com os outros.

A formação integradora será satisfatória, sobretudo, se houver o contato com

a arte. Esse contato com a arte promove o desenvolvimento da habilidade da

educação da sensibilidade. Entretanto a emoção precisaria ser discutida como

mecanismo de proteção e manutenção da vida. Não se trata de dar um aspecto

utilitarista para a emoção e a sensação, mas de exercitar uma forma pela qual,

através delas, seja possível o amadurecimento emocional para aprimorar o

relacionamento humano.

77

A ausência das artes na formação do indivíduo pode propiciar a ausência de

um olhar de sensibilidade para o outro. A música, a literatura, a pintura, entre outras

formas de arte, são necessárias para o desenvolvimento da sensibilidade.

Os valores éticos, estéticos e políticos devem permear todo o processo de

educação e saúde. Tal visão requer uma prática docente diferenciada em

consonância com uma formação médica também diferenciada, que será guiada pela

reflexão e pela sensibilidade, na determinação da hierarquia de valores.

Além disso, é possível que se conclua que o cuidado norteia as práticas que

envolvem tanto ações de Educação como de Saúde ou mostra-se como sendo, ele

mesmo, parte dessas ações. O cuidado deve ser compreendido como solicitude,

diligência, zelo, atenção e bom trato.

O cuidado supõe a atitude de desvelo e de atenção para com o outro. Ele

supõe ainda a inquietação e a preocupação, pois a pessoa que tem cuidado se

sente envolvida e, afetivamente, ligada ao outro.

O cuidado de si aparece como o primeiro despertar. Conhecer-se a si mesmo

significa buscar o Eu, que se deve cuidar para bem cuidar dos outros.

No decorrer da pesquisa, percebeu-se que o ato de cuidar não pode estar

restrito à mera aplicação de técnicas. Há algo mais que caracteriza o cuidar. A

objetividade no cuidado transforma, em um ato mecânico, aquilo que deveria ser

humano.

Nas Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina, afirma-se

que o graduando deve ter formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Deve

estar capacitado a pautar sua atuação em princípios éticos. Aqui, aparece o termo

“formação humanista”, portanto a formação deve estar voltada para a vida humana e

não só para as doenças.

A compreensão do cuidado como fator importante e indispensável, em

qualquer momento de decisão ou circunstância da própria vida, poderá propiciar o

entendimento da finalidade da atividade médica, frente à vida do outro: ela se

constitui em forma solidária, em cooperação, em compaixão.

O cuidado é um elemento essencial para a vida. É permeado de sentidos e

significados e mostra a interface entre Educação e Saúde. A autonomia, o diálogo e

78

a responsabilidade devem ser a base da formação de profissionais, na área médica,

o que implica uma constante reflexão e crítica das práticas da formação docente.

Na contemporaneidade, muitas escolas médicas vêm reorganizando seus

currículos, buscando o atendimento às Diretrizes Curriculares Nacionais, que

orientam para a busca de novas metodologias de ensino, considerando que a

transmissão de conhecimento, por meio da educação bancária, na conjuntura atual,

não é adequada. As escolas têm substituído ou complementado os métodos antigos

por métodos de ensino-aprendizagem, centrados no estudante e orientados para a

comunidade, sendo utilizada a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e a

Problematização.

Isto visa à integralidade na saúde, que se define, como sendo uma das

diretrizes do SUS, e que é compreendida como articulação das ações de promoção,

prevenção, tratamento e reabilitação de modo contínuo. Estas ações não se limitam

à atenção primária em saúde, devendo estar presentes em todos os níveis de

atenção. Neste sentido, a integralidade, pretende superar a fragmentação das ações

de saúde, deixando de ser ações pontuais, mas ações que articulam os níveis de

atenção. A integralidade abrange, ainda, as ações voltadas para o indivíduo,

integrando aspectos biológicos, subjetivos ou da coletividade, ou seja, as doenças e

os processos dinâmicos que as determinam.

79

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ANEXO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO(*) CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR RESOLUÇÃO CNE/CES Nº 4, DE 7 DE NOVEMBRO DE 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, tendo em vista o disposto no Art. 9º, do § 2º, alínea “c”, da Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, e com fundamento no Parecer CNE/CES 1.133, de 7 de agosto de 2001, peça indispensável do conjunto das presentes Diretrizes Curriculares Nacionais, homologado pelo Senhor Ministro da Educação, em 1º de outubro de 2001, RESOLVE: Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, a serem observadas na organização curricular das Instituições do Sistema de Educação Superior do País. Art. 2º As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Graduação em Medicina definem os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da formação de médicos, estabelecidas pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, para aplicação em âmbito nacional na organização, desenvolvimento e avaliação dos projetos pedagógicos dos Cursos de Graduação em Medicina das Instituições do Sistema de Ensino Superior. Art. 3º O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional o médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. Art. 4º A formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais: I - Atenção à saúde : os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo; _____________________ (*) CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 4/2001. Diário Oficial da União,Brasília, 9 de novembro de 2001. Seção 1, p. 38.

II - Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões visando o uso apropriado, eficácia e custo-efetividade, da força de trabalho, de medicamentos, de equipamentos, de procedimentos e de práticas. Para este fim, os mesmos devem possuir competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas em evidências científicas; III - Comunicação: os profissionais de saúde devem ser acessíveis e devem manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral. A comunicação envolve comunicação verbal, não-verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira e de tecnologias de comunicação e informação; IV -Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os profissionais de saúde deverão estar aptos a assumir posições de liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de forma efetiva e eficaz; V - Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde; e VI - Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua prática. Desta forma, os profissionais de saúde devem aprender a aprender e ter responsabilidade e compromisso com a sua educação e o treinamento/estágios das futuras gerações de profissionais, mas proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a formação e a cooperação por meio de redes nacionais e internacionais. Art. 5º A formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades específicas: I - promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos seus clientes/pacientes quanto às de sua comunidade, atuando como agente de transformação social; II - atuar nos diferentes níveis de atendimento à saúde, com ênfase nos atendimentos primário e secundário; III - comunicar-se adequadamente com os colegas de trabalho, os pacientes e seus familiares; IV - informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças, usando técnicas apropriadas de comunicação; V - realizar com proficiência a anamnese e a conseqüente construção da história clínica, bem como dominar a arte e a técnica do exame físico; VI - dominar os conhecimentos científicos básicos da natureza biopsicosocio-ambiental subjacentes à prática médica e ter raciocínio crítico na interpretação dos dados, na identificação da natureza dos problemas da prática médica e na sua resolução;

VII - diagnosticar e tratar corretamente as principais doenças do ser humano em todas as fases do ciclo biológico, tendo como critérios a prevalência e o potencial mórbido das doenças, bem como a eficácia da ação médica; VIII - reconhecer suas limitações e encaminhar, adequadamente, pacientes portadores de problemas que fujam ao alcance da sua formação geral; IX - otimizar o uso dos recursos propedêuticos, valorizando o método clínico em todos seus aspectos; X - exercer a medicina utilizando procedimentos diagnósticos e terapêuticos com base em evidências científicas; XI - utilizar adequadamente recursos semiológicos e terapêuticos, validados cientificamente, contemporâneos, hierarquizados para atenção integral à saúde, no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção; XII - reconhecer a saúde como direito e atuar de forma a garantir a integralidade da assistência entendida como conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; XIII - atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde e acompanhamento do processo de morte; XIV - realizar procedimentos clínicos e cirúrgicos indispensáveis para o atendimento ambulatorial e para o atendimento inicial das urgências e emergências em todas as fases do ciclo biológico; XV - conhecer os princípios da metodologia científica, possibilitando-lhe a leitura crítica de artigos técnico-científicos e a participação na produção de conhecimentos; XVI - lidar criticamente com a dinâmica do mercado de trabalho e com as políticas de saúde; XVII - atuar no sistema hierarquizado de saúde, obedecendo aos princípios técnicos e éticos de referência e contra-referência; XVIII - cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como cidadão e como médico; XIX - considerar a relação custo-benefício nas decisões médicas, levando em conta as reais necessidades da população; XX - ter visão do papel social do médico e disposição para atuar em atividades de política e de planejamento em saúde; XXI - atuar em equipe multiprofissional; e XXII - manter-se atualizado com a legislação pertinente à saúde. Parágrafo Único. Com base nestas competências, a formação do médico deverá contemplar o sistema de saúde vigente no país, a atenção integral da saúde num sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contra-referência e o trabalho em equipe.

Art. 6º Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em medicina. Devem contemplar: I - conhecimento das bases moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos, aplicados aos problemas de sua prática e na forma como o médico o utiliza; II - compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença; III - abordagem do processo saúde-doença do indivíduo e da população, em seus múltiplos aspectos de determinação, ocorrência e intervenção; IV - compreensão e domínio da propedêutica médica – capacidade de realizar história clínica, exame físico, conhecimento fisiopatológico dos sinais e sintomas; capacidade reflexiva e compreensão ética, psicológica e humanística da relação médico-paciente; V -diagnóstico, prognóstico e conduta terapêutica nas doenças que acometem o ser humano em todas as fases do ciclo biológico, considerando-se os critérios da prevalência, letalidade, potencial de prevenção e importância pedagógica; e VI - promoção da saúde e compreensão dos processos fisiológicos dos seres humanos – gestação, nascimento, crescimento e desenvolvimento, envelhecimento e do processo de morte, atividades físicas, desportivas e as relacionadas ao meio social e ambiental. Art. 7º A formação do médico incluirá, como etapa integrante da graduação, estágio curricular obrigatório de treinamento em serviço, em regime de internato, em serviços próprios ou conveniados, e sob supervisão direta dos docentes da própria Escola/Faculdade. A carga horária mínima do estágio curricular deverá atingir 35% (trinta e cinco por cento) da carga horária total do Curso de Graduação em Medicina proposto, com base no Parecer/Resolução específico da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação. § 1º O estágio curricular obrigatório de treinamento em serviço incluirá necessariamente aspectos essenciais nas áreas de Clínica Médica, Cirurgia, Ginecologia-Obstetrícia, Pediatria e Saúde Coletiva, devendo incluir atividades no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção em cada área. Estas atividades devem ser eminentemente práticas e sua carga horária teórica não poderá ser superior a 20% (vinte por cento) do total por estágio. § 2º O Colegiado do Curso de Graduação em Medicina poderá autorizar, no máximo 25% (vinte e cinco por cento) da carga horária total estabelecida para este estágio, a realização de treinamento supervisionado fora da unidade federativa, preferencialmente nos serviços do Sistema Único de Saúde, bem como em Instituição conveniada que mantenha programas de Residência credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica e/ou outros programas de qualidade equivalente em nível internacional. Art. 8º O projeto pedagógico do Curso de Graduação em Medicina deverá contemplar atividades complementares e as Instituições de Ensino Superior deverão criar mecanismos de aproveitamento de conhecimentos, adquiridos pelo estudante, mediante estudos e práticas independentes, presenciais e/ou a distância, a saber: monitorias e estágios; programas de iniciação científica; programas de extensão; estudos complementares e cursos realizados em outras áreas afins.

Art. 9º O Curso de Graduação em Medicina deve ter um projeto pedagógico, construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Este projeto pedagógico deverá buscar a formação integral e adequada do estudante por meio de uma articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência. Art. 10. As Diretrizes Curriculares e o Projeto Pedagógico devem orientar o Currículo do Curso de Graduação em Medicina para um perfil acadêmico e profissional do egresso. Este currículo deverá contribuir, também, para a compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural. § 1º As diretrizes curriculares do Curso de Graduação em Medicina deverão contribuir para a inovação e a qualidade do projeto pedagógico do curso. § 2º O Currículo do Curso de Graduação em Medicina poderá incluir aspectos complementares de perfil, habilidades, competências e conteúdos, de forma a considerar a inserção institucional do curso, a flexibilidade individual de estudos e os requerimentos, demandas e expectativas de desenvolvimento do setor saúde na região. Art. 11. A organização do Curso de Graduação em Medicina deverá ser definida pelo respectivo colegiado do curso, que indicará a modalidade: seriada anual, seriada semestral, sistema de créditos ou modular. Art. 12. A estrutura do Curso de Graduação em Medicina deve: I - Ter como eixo do desenvolvimento curricular as necessidades de saúde dos indivíduos e das populações referidas pelo usuário e identificadas pelo setor saúde; II - utilizar metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência; III - incluir dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno atitudes e valores orientados para a cidadania; IV - promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais; V - inserir o aluno precocemente em atividades práticas relevantes para a sua futura vida profissional; VI - utilizar diferentes cenários de ensino-aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional; VII - propiciar a interação ativa do aluno com usuários e profissionais de saúde desde o início de sua formação, proporcionando ao aluno lidar com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente prestador de cuidados e atenção, compatíveis com seu grau de autonomia, que se consolida na graduação com o internato; e VIII - vincular, através da integração ensino-serviço, a formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS.

Art. 13. A implantação e desenvolvimento das diretrizes curriculares devem orientar e propiciar concepções curriculares ao Curso de Graduação em Medicina que deverão ser acompanhadas e permanentemente avaliadas, a fim de permitir os ajustes que se fizerem necessários ao seu aperfeiçoamento. § 1º As avaliações dos alunos deverão basear-se nas competências, habilidades e conteúdos curriculares desenvolvidos, tendo como referência as Diretrizes Curriculares. § 2º O Curso de Graduação em Medicina deverá utilizar metodologias e critérios para acompanhamento e avaliação do processo ensino-aprendizagem e do próprio curso, em consonância com o sistema de avaliação e a dinâmica curricular definidos pela IES à qual pertence. Art. 14. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Arthur Roquete de Macedo Presidente da Câmara de Educação Superior