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1 doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03011 A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL NA FORMAÇÃO DO PEDAGOGO: CONSIDERAÇÕES SOBRE BOÉCIO E TOMÁS DE AQUINO BOVETO, Laís (UEM-GTSEAM) OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM-GTSEAM) Introdução Na pesquisa em História da Educação Medieval, muitas vezes, deparamo-nos com questões a respeito da utilidade desta temática na formação do pedagogo. A ideia de que os autores medievais não têm muito a oferecer aos profissionais que lidam com a educação de crianças é muito presente em nosso cotidiano. Por este motivo, frequentemente, temos a necessidade de justificar as pesquisas e procurar, nos próprios autores, elementos que demonstrem a importância de compreender a história para assimilarmos a natureza humana. O fenômeno educativo só pode ser apreendido, sob essa perspectiva, por meio da compreensão do que é o ‘homem’, enquanto ser que necessita da convivência social, e do que representa o conhecimento em sua vida. Certamente, esta é uma busca inesgotável que não pode ser reduzida somente a períodos históricos mais imediatos. Quanto mais nos afastamos no tempo, mais criamos a possibilidade de aumentar nosso entendimento das ‘coisas’ humanas. Para esta análise, o caminho metodológico em que nos pautamos é o da História Social. Sob a perspectiva de longa duração, estabeleceremos um diálogo entre períodos e autores de tempos distintos o que, a nosso ver, auxilia a compreensão do homem como ser, historicamente, constituído. Nosso principal objetivo é refletir sobre a importância da História da Educação Medieval na formação do pedagogo, para tanto, escolhemos analisar o conceito de escolha no pensamento de Boécio (480-524 d. C.) e de Tomás de Aquino (1225-1274). Na forma como estes autores consideram a escolha estão presentes características essenciais do ser

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doi: 10.4025/10jeam.ppeuem.03011

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL NA FORMAÇÃO DO

PEDAGOGO: CONSIDERAÇÕES SOBRE BOÉCIO E TOMÁS DE

AQUINO

BOVETO, Laís (UEM-GTSEAM)

OLIVEIRA, Terezinha (DFE/PPE/UEM-GTSEAM)

Introdução

Na pesquisa em História da Educação Medieval, muitas vezes, deparamo-nos com

questões a respeito da utilidade desta temática na formação do pedagogo. A ideia de que os

autores medievais não têm muito a oferecer aos profissionais que lidam com a educação de

crianças é muito presente em nosso cotidiano. Por este motivo, frequentemente, temos a

necessidade de justificar as pesquisas e procurar, nos próprios autores, elementos que

demonstrem a importância de compreender a história para assimilarmos a natureza

humana. O fenômeno educativo só pode ser apreendido, sob essa perspectiva, por meio da

compreensão do que é o ‘homem’, enquanto ser que necessita da convivência social, e do

que representa o conhecimento em sua vida. Certamente, esta é uma busca inesgotável que

não pode ser reduzida somente a períodos históricos mais imediatos. Quanto mais nos

afastamos no tempo, mais criamos a possibilidade de aumentar nosso entendimento das

‘coisas’ humanas.

Para esta análise, o caminho metodológico em que nos pautamos é o da História

Social. Sob a perspectiva de longa duração, estabeleceremos um diálogo entre períodos e

autores de tempos distintos o que, a nosso ver, auxilia a compreensão do homem como ser,

historicamente, constituído.

Nosso principal objetivo é refletir sobre a importância da História da Educação

Medieval na formação do pedagogo, para tanto, escolhemos analisar o conceito de escolha

no pensamento de Boécio (480-524 d. C.) e de Tomás de Aquino (1225-1274). Na forma

como estes autores consideram a escolha estão presentes características essenciais do ser

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humano e do conhecimento. Nossa intenção é demonstrar que o entendimento dessas

características é fundamental para a formação no campo educacional. Especialmente, em

um tempo como o nosso, em que se questiona a utilidade e a necessidade do conhecimento

histórico e filosófico no curso de Pedagogia1, consideramos necessária a leitura dos autores

clássicos que nos permitem compreender a finalidade da educação.

Os textos medievais são muito férteis em termos de análise das fragilidades

humanas. Observamos que a busca pela salvação espiritual passa, antes de tudo, pelo

conhecimento de Deus e, por conseguinte, do próprio homem. A Filosofia, no medievo,

representa o caminho para esta salvação, pois aproxima o humano do divino. No entanto,

essa aproximação não ocorre em um meio sobrenatural, ocorre na prática cotidiana, nas

escolhas e ações do próprio homem. Assim, estudar os textos medievais representa

compreender o pensamento de um período em que a espiritualidade e a materialidade

buscavam um equilíbrio, uma harmonia. Uma não existiria sem a outra e a humanidade de

cada sujeito só poderia se manifestar com o desenvolvimento dessa essência que, em

realidade, é um único elemento: o homem. De certo que, no medievo, assim como em

outros períodos, o debate sobre a natureza humana esteve presente. Heine (1797-1856),

pensador do século XIX, refere-se à dualidade do pensamento humano da seguinte forma:

Platão e Aristóteles! Eles não são apenas dois sistemas, mas também dois tipos diferentes de natureza humana que com mais ou menos hostilidade se opõem, sob todos os disfarces possíveis, desde tempos imemoriais. Foi principalmente assim que se lutou por toda a Idade Média até nossos dias, e essa luta é o conteúdo mais essencial da história da Igreja cristã. Ainda que com outros nomes, trata-se sempre de Platão e Aristóteles. Das profundezas de suas mentes, as naturezas fanáticas, místicas, platônicas revelam as idéias cristãs e os respectivos símbolos. A partir dessas idéias e símbolos, as naturezas práticas, organizadoras, aristotélicas constroem um sólido sistema, um dogma e um culto. A Igreja, enfim, abrange as duas naturezas: freqüentemente uns se refugiam no clero e outros na vida monástica, mas uns e outros se combatem sem cessar. (HEINE, 1991, p. 59-60).

1 Em A importância da leitura de escritos tomasianos para a formação docente, a professora Terezinha Oliveira trata da resistência de grande parte dos alunos em relação à leitura de Tomás de Aquino no curso de Pedagogia. “Recentemente, em uma turma do primeiro ano de Pedagogia, uma aluna questionou a utilidade de se conhecê-lo. Observou que não via razão de ser ensinado e, mesmo, como isso poderia ser feito junto a alunos de primeira a quarta séries. Concluiu que, como atuaria nessas séries, entendia não ser necessário conhecê-lo.” (OLIVEIRA, 2009, p. 76).

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Ao discorrer sobre a Religião e a Filosofia na Alemanha, Heine descreve

objetivamente o modo como os alemães de seu tempo se apropriaram desses sistemas de

pensamento, por meio do cristianismo. Essa compreensão é essencial, segundo o autor,

para entender as diferenças entre o pensamento – e a realidade – francês e alemão. Ainda

que este autor considerasse que a Idade Média representava, basicamente, uma tentativa de

supremacia do espírito em relação à matéria – ou, em outras palavras, uma repressão

daquilo que ele denomina sensualismo ou materialismo2 – o pensador alemão não

menosprezou a necessidade de compreender o período medieval para entender a Alemanha

do início do século XIX. Com efeito, Heine aponta como o pensamento alemão foi

formado, a partir do cristianismo, e como esse pensamento era visível, portanto, sensível,

na realidade material de seu país.

O que pretendemos, com isso, é esclarecer que para apreendermos o nosso presente

e formularmos um entendimento do ser humano, a História é não somente útil, mas

necessária. Se, para o pensador do século XIX, no medievo era possível encontrar

respostas para explicar sua sociedade e seu tempo, para nós, na atualidade, a leitura de

textos medievais podem, ainda, cumprir essa função. Para compreender a educação

historicamente, a filosofia e a religião são imprescindíveis, pois, são as primeiras formas de

pensamento cujas finalidades eram essencialmente formativas. Se considerarmos a

educação estritamente formal, as principais instituições de ensino, escola e universidade,

nasceram dos interesses e necessidades dos homens medievais. Desse modo, ainda que

nossa realidade seja muito diferente, essas instituições mantiveram sua importância, ou

seja, temos muito que aprender – principalmente, sobre nós mesmos – com o pensamento

educativo e formativo presente no medievo.

2 Conforme Heine, o cristianismo se propagou rapidamente no Império Romano e promoveu a ideia de que a humanidade está fadada ao sofrimento, a felicidade seria alcançada somente no Céu. E esse pensamento perdurou na Idade Moderna, como uma doença, segundo o autor. “Quando a humanidade recobrar sua plena saúde, quando a paz entre corpo e alma for restabelecida e novamente se unirem em sua harmonia original, mal se poderá compreender a artificial discórdia que o cristianismo semeou entre ambos. [...] Afirmo com certeza que nossos descendentes serão mais felizes e belos do que nós.” (HEINE, 1991, p. 23). No entanto, ironicamente, Heine considera que esta pode ser uma esperança tão tola quanto a ressurreição da humanidade no sentido cristão e afirma que, talvez, os homens estejam mesmo destinados a sofrer e a serem subjugados por déspotas. “Nesse caso, seria preciso tentar salvar o cristianismo, mesmo que fosse reconhecido como um erro; seria preciso peregrinar pela Europa, descalço e em hábito de monge; seria preciso pregar a iniqüidade de todos os bens terrenos e a abstinência, apresentar o crucifixo reconfortante aos homens atormentados e escarnecidos, e prometer-lhes todos os sete céus depois da morte.”. E completa: “O destino final do cristianismo dependerá, pois, de se ainda precisaremos dele.” (HEINE, 1991, p. 24).

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Desenvolvimento

Principiemos, pois, por Boécio que é o autor primeiro do pensamento escolástico,

traduziu para o latim e comentou textos da Antiguidade Clássica. Sua obra, A consolação

da filosofia, foi uma das mais lidas e traduzidas no decorrer do medievo. “Boécio fala a

língua do conhecimento greco-romano, mas já não pode mais transmitir esse conhecimento

a partir dessa linguagem, pois os seus ouvintes são os bárbaros da ‘corte de Teodorico’.”

(OLIVEIRA, 2005, p. 13). Assim, conforme a autora, Boécio procura ensinar esses novos

povos, em uma nova realidade e, para isso, procurou preservar o conhecimento Antigo.

Dessa ‘adequação’ do conhecimento, realizada pelo filósofo, principia uma nova forma de

aliar fé e razão.

Para Pieper, Boécio tem consciência da necessidade de aliar a fé e a razão. Essa consciência lhe confere o lugar de primeiro escolástico. É verdade que essa discussão já havia sendo feita, inclusive por Agostinho. Entretanto, até Boécio esse projeto não estava tão nítido: só com a radicalidade de Boécio – escrever um De Trinitate fortemente calcado na filosofia e sem citar a Bíblia nem uma vez! – o projeto escolástico se configura com clareza. (OLIVEIRA, 2005, p. 14).

A relevância de Boécio em nosso trabalho está relacionada a esta maneira de

considerar a razão como fundamental para a compreensão, inclusive, da fé. A ideia de que

o homem é constituído tanto pela razão quanto pela fé; tanto por um corpo quanto por uma

alma, conforme mencionamos com Heine, permeia toda a história do pensamento humano.

Em Boécio, não há oposição entre Platão e Aristóteles, a ponto de ser possível inseri-lo em

um ou outro sistema filosófico. Em A consolação da filosofia, observam-se passagens em

que ideias platônicas e aristotélicas harmonizam-se. Boécio cita, no decorrer do texto,

outros pensadores como Sêneca, Epicuro, Cícero, todos são recuperados pela sua memória

e vêm em seu auxílio no momento em que está preso e sentenciado à morte.

Na “Paixão” de Boécio, a alta figura da Filosofia toma o lugar das “mulheres santas”. E o socorro que ela veio lhe trazer é o da conversão que antecipa, prepara a morte e lhe dá um sentido libertador. A “conversão”, para nós, é um raio que repentinamente afasta dos erros do mundo e revela a realidade de Deus, “caminho, verdade e vida”. A Consolação de Boécio nos torna testemunhas de uma conversão menos misteriosa, embora igualmente completa. Aquilo que, na rapidez intuitiva das conversões religiosas, fica implícito, alusivo, indizível, é, nesta conversão filosófica, metodicamente revelado, ponto por ponto, em plena

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luz da razão. [...] Na prisão, às vésperas de sua execução, Boécio, pela voz da Filosofia, ouve despertar em si todo esse encadeamento esquecido de razões, e agora estas se tornam eficazes, provocam enfim a transformação do olhar interior e de todo o ser que postulavam desde o início, mas apenas em teoria. (FUMAROLI, 1998, p. XXVII).

A Filosofia surge no texto de Boécio, como uma aparição divina que o converte em

um momento de desilusão e desespero. No entanto, esse contato não é sobrenatural, mas,

sim, uma interação entre o conhecimento que o filósofo apreendeu em toda sua vida e a

circunstância que vivenciava no momento em que escreveu a obra. Com isso, a relação

entre fé e razão, espiritualidade e materialidade está inerente à Consolação. A noção de

totalidade aparece no início da obra, quando Boécio descreve a imagem da Filosofia como

algo grandioso.

Sua estatura era indiscernível: por vezes tinha o tamanho humano, outras parecia atingir o céu e, quando levantava a cabeça mais alto ainda, alcançava o vértice dos céus e desaparecia dos olhares humanos. Suas vestes eram tecidas de delicadíssimos fios, trabalhados minuciosamente e feitos de um material perfeito; ela revelou mais tarde ter sido ela própria quem teceu a veste. A poeira dos tempos, assim como acontece com o brilho das antigas pinturas, obscurecia um pouco seu esplendor. Embaixo de sua imagem estava escrito um Pi e em cima um Theta. E, entre essas duas letras, via-se uma escada cujos degraus ligavam o elemento inferior ao superior. (BOÉCIO, 1998, p. 4).

A grandiosidade consiste, exatamente, em uma entidade possuidora de um saber

que é constituído por prática (representada pela letra Pi - π) e teoria (representada pela letra

Theta – θ). A escada, que eleva a prática à teoria, aparece na mesma imagem. Boécio

descreve um único elemento – a Filosofia – que contém em si o caminho do conhecimento.

Quando elevava a cabeça, o conhecimento, a teoria, desaparecia aos olhares humanos,

pois, o conhecimento completo é sempre perseguido pelos homens, mas, é inalcançável.

Neste sentido, no decorrer do diálogo, a Filosofia chama a atenção de Boécio, para o fato

de suas vestes terem sido rasgadas e alguns pedaços arrancados. As pessoas que

acreditavam que tendo um pedaço de sua veste, teriam toda a Filosofia, ou todo o saber,

enganavam-se. O que hoje denominamos saber fragmentado, conforme a Filosofia de

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Boécio, não distingue os homens da ‘turba’, não os protege da ignorância e os deixa à

mercê da Fortuna3.

Todo o texto é construído em forma de diálogo, no qual o autor questiona os

valores que aprendeu com a Filosofia frente à trágica realidade que enfrentava. “É essa a

recompensa que tenho por ter aderido a ti?” (BOÉCIO, 1998, p. 11), indaga Boécio, após

afirmar que com a Filosofia aprendeu sobre a ‘ciência das coisas humanas e divinas’. Em

seguida, afirma: “[...] não bastou que o exercício da filosofia não tenha sido de nenhuma

utilidade para mim, mas que também tu fosses vilipendiada.” (BOÉCIO, 1998, p. 15).

Assim, a Filosofia, ou o conhecimento na memória de Boécio, dará respostas a estas

questões e trará à tona aquilo que o filósofo tem de mais valoroso.

Pensas que a Fortuna mudou a teu respeito? Enganas-te. Ela sempre tem os mesmos procedimentos e o mesmo caráter. E, quanto a ti, ela permanece fiel em sua inconstância. [...] Se a aprecias, recorre às suas práticas, cessa de chorar. Mas, se sua duplicidade te horroriza, despreza-a, afasta-a de ti: seus jogos são funestos. [...] Atribuis grande valor a uma felicidade que deves perder? [...] a Sabedoria consiste em avaliar a finalidade de todas as coisas, e é precisamente essa faculdade de passar de um extremo a outro que caracteriza a Fortuna que deve fazer com que a desprezemos, sem temê-la ou desejá-la. [...] Se confiasses teu barco ao sabor dos ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem; [...] Tu te abandonaste ao domínio da Fortuna: deves submeter-te aos caprichos de tua mestra. Pretendes sustar a rápida revolução de sua roda? Oh, insensato! Então a Fortuna não seria mais a Fortuna. (BOÉCIO, 1998, p. 26-27).

A Filosofia procura tirar Boécio da insensatez e afirma que a sabedoria pressupõe o

conhecimento da finalidade das coisas, ou seja, se ele sabe que a roda da fortuna é

inconstante e está fora dos limites e do controle de sua razão, então, somente por escolha

dele é que ela poderia exercer seu domínio. Ao escolher ser dominado, o homem se expõe,

voluntariamente, aos resultados sob os quais ele não possui controle. Riquezas, poder,

honrarias e outros bens da sorte são próprios da Fortuna e inconstantes como ela, ou seja,

se é a eles que o homem decide se submeter, então, deverá arcar assumir a

responsabilidade. Assim, a Filosofia apresenta a capacidade do homem de controlar o

próprio destino, desde que ele compreenda que somente sua própria razão está sob seu

governo e controle.

3 A Fortuna tem o sentido de sorte, ou acontecimento fortuito, algo que o homem, por meio da razão, não tem o controle e, por isso, não deve ser nem temida, nem desejada, mas desprezada.

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Dize-me, poderias tu, com relação a teu corpo, encontrar algo mais frágil que o ser humano, que freqüentemente morre apenas pela picada de um inseto ou por ter pegado vermes? E que poder tem um homem sobre outro, excetuando-se o seu corpo e aquilo que é menos até que o corpo, isto é, seus bens? É possível dar ordens a um espírito livre? É possível abalar a resolução de um espírito firme e perturbar sua tranquilidade? Um tirano que pensasse poder fazer, por meio de tortura, um homem livre denunciar os pretensos cúmplices de uma rebelião contra ele veria o seguinte procedimento: o homem livre e honesto morderia a própria língua, parti-la-ia e a cuspiria no rosto do tirano. Assim, as torturas que o tirano considerasse instrumentos de crueldade e pavor tornar-se-iam para o sábio uma oportunidade de mostrar sua virtude. (BOÉCIO, 1998, p. 43).

O homem que controla suas ações é sábio e compreende que suas decisões devem

ser racionais, devem partir do conhecimento que ele tem sobre as coisas e, por isso, são sua

responsabilidade. Dessa maneira, observamos na passagem acima, que a liberdade

pressupõe honestidade, tranquilidade e coragem, virtudes que são alcançadas por meio da

sabedoria e se manifestam nas ações. Em outras palavras, a liberdade, também, depende da

escolha de cada pessoa. Para aqueles que percebem maior valor no poder, nas honrarias, na

fortuna, a Filosofia de Boécio diz: assuma as consequências, torne-se escravo, pois, um

homem não controla os bens da fortuna. Os bens humanos são adquiridos e controlados

pelo conhecimento de cada pessoa e o resultado disso aparece no desenvolvimento das

sociedades. As virtudes como honestidade, coragem e liberdade só podem se manifestar

por meio de ações honestas, corajosas e intencionais, ou seja, é necessário que o homem

aprenda, conheça e coloque em prática. Com efeito, a Filosofia chama a atenção de Boécio

exatamente para o fato de que este aprendeu e conheceu o pensamento filosófico, mas não

estava, naquele momento de angústia, colocando-o em prática. A ideia de conversão

apresentada por Fumaroli (1998) tem relação com este aspecto. O conhecimento que é

objeto da filosofia é aquele que modifica e transforma o pensamento e a ação humana que,

por sua vez, transformam, também, os rumos da história.

Assim, com Boécio é possível apreender aspectos essenciais e atemporais da

natureza humana e do conhecimento. Tanto sua ‘conversão filosófica’, quanto a percepção

de que o homem, desde que utilize a razão, pode controlar suas próprias ações, são alguns

dos ensinamentos depreendidos da Consolação. Boécio indica, aos homens de seu tempo, a

importância da sabedoria para a conservação da natureza humana e, por conseguinte, da

sociedade. Utilizar a razão para fazer escolhas é exercer o livre-arbítrio, que se manifesta

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na distinção e julgamento de cada coisa. O homem não poderia ser dotado de razão se não

tivesse a liberdade e a capacidade de avaliar, analisar e escolher aquilo que está de acordo

com seu desejo.

Quanto às almas humanas, são necessariamente mais livres quando se mantêm na contemplação da inteligência divina, e menos livres quando descem para juntar-se às coisas corporais, e menos livres ainda quando se ligam à carne. E elas alcançam o fundo da servidão quando, levadas pelos vícios, deixam de ter a posse de sua própria razão. [...] e essas almas são perturbadas por uma servidão da qual elas mesmas são responsáveis, sendo, de certa forma, prisioneiras de sua própria liberdade (BOÉCIO, 1998, p. 134).

A complexidade dessa afirmação reside, aparentemente, em sua clareza.

Contemplar o que é divino seria buscar compreender o desconhecido; vislumbrar nossa

própria existência como algo que, possivelmente, está além dos nossos sentidos.

Lembremos que Boécio inicia o pensamento escolástico e analisa o livre-arbítrio – a

liberdade e as escolhas – como algo que deve ser profundamente relacionado e dependente

da razão. Se utilizarmos a liberdade para escolher o vício e não a virtude, escolhemos nos

afastar da razão e, portanto, da liberdade que o conhecimento pode proporcionar.

Escolheremos, assim, de acordo com o autor, tornarmo-nos reféns da ignorância.

Observa-se que a escolha é fundamental para compreendermos tanto as virtudes

quantos os vícios humanos. É um conceito que será tratado séculos depois por outro

expoente da escolástica. Tomás de Aquino vivencia o momento em que a cidade e o

comércio florescem. As relações que Boécio vê iniciar entre nômades e romanos já estão

estabelecidas no século XIII. Neste meio, a Universidade é criada como o apogeu de uma

nova forma de saber e ensinar (OLIVEIRA, 2005).

No pensamento tomasiano, é possível observar a totalidade do homem, tanto a

compreensível por meio da ciência (ou dos sentidos), quanto aquela ainda desconhecida,

que só pode ser apreendida por meio da fé. Neste sentido, Oliveira (2005) afirma que o

objetivo é sempre chegar, não a uma verdade, mas, à verdade.

[...] a grandiosidade de Santo Tomás está exatamente no fato de que ele soube, como ninguém, abrir-se para o conhecimento na sua forma mais total. Essa abertura dos escritos de Santo Tomás o impediu, inclusive, que se criasse qualquer tipo de “ismo” já que ele não estabelece uma única verdade para ser seguida, mas a verdade. Precisamente por isso podemos ver nele influências de Santo Agostinho e, na mesma proporção, influências aristotélicas. Ele não toma partido por uma ou outra corrente

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do pensamento. Ao contrário, ele busca nelas entender a natureza das coisas (OLIVEIRA, 2005, p. 36).

Assim, analisar um conceito sob a perspectiva de Tomás de Aquino significa

entendê-lo de forma plena. Este método de estudo, por si só, já seria relevante para a

educação, pois, a preocupação principal é aprender, debater e desenvolver o conhecimento

já existente. A forma de estudar cada tema, por meio da quaestio disputata, permitia que as

grandes obras do pensamento ocidental fossem examinadas crítica e continuamente

(LAUAND, 2004).

Em relação à capacidade de escolha, Tomás de Aquino aponta-a como condição

fundamental para que haja a necessidade de desenvolver os hábitos. Na Suma Teológica,

questão 49 – I seção da II parte –, Os hábitos em geral quanto à sua substância, o mestre

medieval explica que são necessários três requisitos para uma coisa se dispor a outra, tal

qual alguém se dispõe bem ou mal para algo. O primeiro, é que essa ‘coisa’ seja composta

de potência e ato e não exista por si mesma, tal como ocorre em Deus. O segundo

requisito, para que ocorra tanto a disposição, quanto o hábito, é que o sujeito tenha

potência relacionada a mais de uma ação, ou seja, é necessário que haja possibilidade de

escolha. O exemplo apresentado é de um corpo celeste que tem, em potência, um único

movimento – este não poderá ser sujeito de disposições ou hábitos. O terceiro requisito, é

que haja condições de comparação entre muitas formas e ações para que o sujeito possa se

dispor bem ou mal em relação a estas, ou seja, para que tenha escolha.

Observa-se, portanto, que o argumento utilizado por Tomás de Aquino para

comprovar a necessidade do hábito, relaciona-se à escolha. Os hábitos e as disposições só

podem existir em seres que têm como característica a potência de realizar diferentes ações

– boas ou más.

QUANTO AO 3º, deve-se dizer que não é o mesmo hábito que está para o bem e para o mal, como mais adiante se verá. Mas é a mesma potência que está para o bem e para o mal. Por isso são necessários os hábitos para que as potências sejam determinadas para o bem. (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 47).

Considera-se que os homens têm a potencialidade de agir tanto para o bem, quanto

para o mal, ou seja, não nascem nem bons, nem maus. É necessário que ocorra o

aprendizado para que as potências sejam direcionadas para o bem. Tomás de Aquino

expressa que o hábito é a forma apropriada para determinar as escolhas humanas para o

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bem. As denominadas ‘forças naturais’ não são objetos dos hábitos, pois possuem uma

potência direcionada a uma única ação, ou seja, não têm escolha. Deus, também, não é

ordenado pelo hábito, pois possui existência em si mesmo, é o próprio bem. Os homens,

por seu turno, podem escolher suas ações livremente4.

Ao defender a unidade entre corpo e intelecto em A unidade do intelecto, Tomás de

Aquino reforça a escolha como algo que torna o homem senhor de suas ações.

Na verdade, nada está em nós a não ser pela vontade; e daí o chamar-se ‘voluntário’ precisamente àquilo que está em nós. Ora, a vontade está no intelecto [...] pela vontade que amamos ou odiamos alguma coisa em geral, por exemplo, quando odiamos o género dos ladrões, como diz Aristóteles na sua Retórica. Deste modo, se o intelecto não fizer parte deste homem, ao ponto de formar autenticamente um uno com ele, mas se lhe unir apenas pelas imagens ou como um motor, a vontade não fará parte deste homem concreto, mas do intelecto separado. A ser assim, este homem não será senhor dos seus actos nem nenhum dos seus actos será digno de louvor ou de condenação, o que equivale a despedaçar os princípios da filosofia moral. (TOMÁS DE AQUINO, 1999, p. 119).

Conforme Tomás de Aquino, a vontade nos move a amar ou odiar e é intrínseca ao

intelecto. Está relacionada com a escolha na medida em que leva o homem a escolher as

ações que permitirão que sua vontade se realize. Outro aspecto fundamental, é que as

escolhas fazem do ser humano o responsável por suas ações. Por elas, temos mérito ou

demérito em relação ao que fazemos. Se não fossemos capazes de escolher, não haveria

sentido discutir sobre a moral, nem mesmo sobre as leis. Afinal, um homem que agisse por

forças que não fossem a sua própria vontade não poderia ser punido, ou ser recompensado?

Na questão 6, artigo 2 – da seção I, parte II – o mestre medieval esclarece que:

QUANTO AO 2º, deve-se dizer que o homem é senhor de seus atos porque delibera sobre eles. Assim, a vontade pode se dirigir para um e outro fim, porque a razão ao deliberar escolhe entre fins

4 O conceito de escolha é diretamente relacionado aos conceitos de livre-arbítrio e vontade. Em síntese, enquanto escolher é um ato próprio do livre-arbítrio, a vontade é o que se deseja concretizar por meio da escolha. Nesse sentido, escolha e vontade ocorrem simultaneamente nos atos humanos, pois, só é possível identificar que escolha foi feita no momento em que se começa a agir. É importante salientar que para estabelecer essas relações de forma adequada seria necessário um trabalho mais extenso, por este motivo, neste texto, não vamos tratar do livre-arbítrio e da vontade de modo aprofundado.

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opostos. Por isso, não se encontra nos animais tal voluntário, como foi dito. (TOMÁS DE AQUINO, 2003, p. 122).

Vemos que, para o autor, o homem se diferencia dos outros animais, também,

porque delibera sobre seus atos e escolhe entre fins opostos. Tomás de Aquino deixa claro

que o conhecimento é essencial para o exercício da capacidade de escolha. A ignorância,

segundo o autor, pode levar o homem a atos involuntários, “[...] porque priva do

conhecimento que é exigido para o voluntário. Mas, nem toda ignorância priva de tal

conhecimento.” (TOMÁS DE AQUINO, 2003, p. 132). Tomás de Aquino chama a atenção

para o fato de que a ignorância, também, pode ser proveniente de um ato de vontade e,

neste sentido, não pode ser considerada como motivo para o ato involuntário. Por exemplo,

quando, para se livrar de uma acusação, o sujeito opta por desconhecer as leis e normas

sociais. Ou, ainda, quando desconsidera e é negligente em relação àquilo que deveria e

poderia saber no exercício de uma profissão. As ações provenientes desse

desconhecimento não poderiam, segundo Tomás de Aquino, serem consideradas como

involuntárias.

Conclusão

Abordar a História da Educação Medieval por meio do pensamento de Boécio e

Tomás de Aquino contribui para um melhor entendimento do ser humano e do

conhecimento. As noções de escolha, permitem, também, compreender a ideia de liberdade

e de responsabilidade pelos próprios atos desses autores. Estas são distintas daquela que

observamos no pensamento pedagógico atual. Frequentemente, percebemos que, em busca

de respostas imediatas para os problemas educacionais, evitamos lançar os olhos para

tempos históricos mais distantes. Isso ocorre em nome tanto de uma obstinada defesa de

um método de pesquisa, quanto de uma busca por uma verdade que não pode ser

contestada.

O que aprendemos com os autores que analisamos, é que o conhecimento pode se

perder quando não o buscamos com a finalidade de, simplesmente, conhecer. Perde-se

ainda, quando buscamos conhecer por outros motivos que não a nossa própria

transformação. Com efeito, o sábio é aquele que põe em prática o conhecimento que

possui. Assim, não há como questionar qualquer saber, pois, todos os saberes constituem

Page 12: A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MEDIEVAL NA FORMAÇÃO ...língua do conhecimento greco-romano, mas já não pode mais transmitir esse conhecimento a partir dessa linguagem, pois os seus

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os principais instrumentos de ação que o homem pode possuir. Nada, além disso, pertence

realmente ao homem.

Em um tempo em que o conhecimento só deve ser útil para o trabalho e este é visto

como algo desvinculado da própria vida dos indivíduos, somente por meio da leitura de

clássicos, como Boécio e Tomás de Aquino, torna-se possível compreender o

conhecimento e o homem como um único elemento. A vida humana, em nosso tempo,

depende em grande parte do trabalho, mas, o homem continua a ser um Ser único, que

trabalha, constitui uma família, utiliza a tecnologia disponível, dirige veículos, enfim, que

atua na sociedade em diferentes âmbitos. Na pedagogia, acostumamo-nos a uma percepção

em que a escolha é limitada pela ‘pressão’ exercida pela sociedade, ou pelo sistema

econômico. Chega-se mesmo a considerar natural a ideia de que só poderemos modificar a

educação no momento em que o sistema econômico deixar de ser capitalista. Assim, retira-

se a responsabilidade do profissional da educação pela sua própria profissão. Acreditamos

que essa maneira de perceber a história e a pedagogia, descaracteriza a profissão do

professor e do pedagogo, pois, retira de suas mãos o controle do seu campo de atuação.

Neste sentido é que abordamos o conceito de escolha em autores que compreendem

o homem como artífice da história, pois, é responsável por suas decisões e ações. Como

vimos com Boécio, não há ‘pressão’ suficientemente forte que obrigue um homem livre e

sábio a fazer o contrário do que ele acredita que seja o correto.

Referências

BOÉCIO. A consolação da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

OLIVEIRA, T. Escolástica. São Paulo: Mandruvá, 2005.

OLIVEIRA, T. Origem e memória das universidades medievais. Varia história, Jun 2007, vol.23, n. 37, p.113-129.

OLIVEIRA, T. A importância da leitura de escritos tomasianos para a formação docente. Notandum, São Paulo/Porto, set. – dez. 2009, n. 21, p. 75 – 83.

TOMÁS DE AQUINO. A unidade do intelecto contra os averroístas. Lisboa: Edições 70, 1999.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2003. III vol., q. 6.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005. IV vol., q. 49-51.