A Internacionalização Dos Direitos Humanos

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2 A INTERNACIONALIZAO DOS DIREITOS HUMANOSDas cinzas do ps-guerra surge um marco na histria da humanidade: o esprito humanitrio que se fortificou a cada tratado e compromisso tico-legal entre os pases de poltica e sociedade mais hegemnicas. A cultura dos direitos humanos a representante mais exemplar do humanismo ocidental na luta pelos direitos do homem, irradiando-se mundialmente pelas legislaes modernas como referncia obrigatria.Diante desse ambiente democrtico, adotou-se o processo de reconhecimento dos direitos humanos, o qual se desenvolve em etapas, sendo estas de positivao, de generalizao, de internacionalizao e de especificao, esta ltima agregada por Norberto Bobbio[footnoteRef:2]. [2: LAFER, Celso. A internacionalizao dos direitos humanos: Constituio, racismo e relaes internacionais. Barueri, So Paulo: Manole, 2005: Norberto Bobbio, endossando a anlise de Gregorio Peces Barba, indica as etapas da positivao, da generalizao, da internacionalizao, a elas agregando a da especificao, p. 36.]

As Declaraes dos Direitos Humanos vm inaugurar a etapa de positivao, cujos postulados espraiam-se nos textos constitucionais de muitos pases. Destaca-se aqui o carter de indispensabilidade dessa etapa de positivao, porque s atravs dela h possibilidade dos direitos humanos se realizarem plenamente.Portanto, uma vez incorporados ao Direito Positivo, que o valor tico dos Direitos Humanos se realiza. Os grandes marcos histricos do processo de positivao so a Declarao de Direitos da Virgnia e a Declarao Francesa de 1789[footnoteRef:3]. [3: Vinculadas, respectivamente, Revoluo Americana e Revoluo Francesa., denotam a dimenso igualitria dos Direitos Humanos liberdade e igualdade -, dando incio ao processo de positivao, cfr. Celso Lafer, p. 37.]

A dimenso igualitria dos Direitos Humanos proclamada nessas declaraes histricas caracteriza a segunda etapa do processo de reconhecimento jurdico dos Direitos Humanos, a da generalizao, cuja dimenso ser alcanada com a Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, que adota e reafirma os princpios de liberdade e de igualdade em seu primeiro artigo da mesma forma que as declaraes americana e francesa, de modo que os princpios gerais da liberdade, igualdade, no discriminao e fraternidade so expresses do processo de generalizao. Quanto especificao, Bobbio[footnoteRef:4] afirma que se trata de outro processo de afirmao histrica dos Direitos Humanos. Essa etapa estaria voltada determinao concreta dos destinatrios da tutela jurdica dos direitos e garantias individuais. A especificao se trata de um processo de concreo histrica que contribuiu para completar a ideia dos destinatrios genricos o ser humano e o cidado - da tutela jurdica, agregando novos elementos ao contedo dos direitos humanos, que tero como valor fonte de sua positivao, a dignidade da pessoa humana. Nessa discusso, h um aprofundamento da tutela, que deixa de levar em conta apenas os destinatrios genricos, objetos do processo de generalizao, e passa a cuidar do ser em situao. Bobbio d dois exemplos relevantes da especificao no plano internacional: a Conveno da ONU de 1965 para a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial e a Conveno para a Preveno e Represso do Crime de Genocdio de 1948. [4: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2004: Alm de processos de converso em direito positivo, de generalizao e de internacionalizao, aos quais me referi no incio, manifestou-se nestes ltimos anos uma nova linha de tendncia, que se pode chamar de especificao; ela consiste na passagem gradual, porm cada vez mais acentuada, para uma ulterior determinao dos sujeitos titulares de direitos. Ocorreu, com relao aos sujeitos, o que desde o incio ocorrera com relao ideia abstrata de liberdade, que se foi progressivamente determinando em liberdades singulares e concretas (de conscincia, de opinio, de imprensa, de reunio, de associao), numa progresso ininterrupta que prossegue at hoje: basta pensar a tutela da prpria imagem diante da invaso dos meios de reproduo e difuso de coisas do mundo exterior, ou na tutela da privacidade diante do aumento da capacidade dos poderes pblicos de memorizar nos prprios arquivos os dados privados da vida de cada pessoa. Assim, com relao ao abstrato sujeito homem, que j encontrara uma primeira especificao no cidado (no sentido de que podiam ser atribudos ao cidado novos direitos com relao ao homem em geral), fez-se valer a exigncia de responder com nova especificao seguinte questo: que homem? Que cidado? Essa especificao ocorreu com relao seja ao gnero, seja s vrias fases da vida, seja diferena entre estado normal e estados excepcionais na existncia humana. Com relao ao gnero, foram cada vez mais reconhecidas as diferenas especficas entre a mulher e o homem. Com relao s vrias fases da vida, foram-se progressivamente diferenciando os direitos da infncia e da velhice, por um lado, e os do homem adulto, por outro. Com relao aos estados normais e excepcionais, fez-se valer a exigncia de reconhecer direitos especiais aos doentes, aos deficientes, aos doentes mentais etc, p. 62-63.]

Interpretando os Direitos Humanos em consonncia com a viso internacional da matria, estabelecida por princpios constitucionais que regem as relaes internacionais, observa-se que a sua prevalncia e a sua aplicao implicam medidas coerentes com os padres internacionais, pois por esta questo de coerncia, a matria relativa aos Direitos Humanos, na era da globalizao, acaba se diluindo na diferena entre o interno e o externo, ou seja, a interao entre o interno dos Estados e o externo a nvel internacional[footnoteRef:5]. [5: Citando Bobbio, Celso Lafer afirma: a democracia e os direitos humanos, no mbito das sociedades nacionais, criam condies para a possibilidade de paz no plano mundial, p. 124.]

Cumpre destacar, pois, dentro dessa perspectiva, que os Direitos Humanos j foram incorporados no plano do Direito Positivo de muitos pases, constituindo instrumentos normativos importantes e necessrios para prevenir e reprimir atos que atentem contra eles. Portanto, a partir dessa incorporao, pela comunidade internacional, de normas jurdicas com o mesmo intuito de alcanar um direito comum, que demarcada a terceira etapa, a internacionalizao dos direitos humanos.Com efeito, essa internacionalizao corresponde a um sistema unificado, uniforme e harmnico, que aspira a universalidade de tais direitos, de forma a torn-los comuns a todos os povos e tradies, que, a partir das transformaes econmicas, tecnolgicas, sociais e culturais proporcionadas pelo processo de globalizao, tornou-se cada vez mais evidente. Portanto, no seria incorreto dizer que paralelamente ao processo de internacionalizao, existe um processo de globalizao dos direitos humanos. Processo esse que no um fenmeno dos ltimos anos, mas, sim, est experimentando sua segunda etapa. A primeira, que se iniciou no final do sculo XIX, se estagnou no perodo entre as duas grandes guerras. A segunda viria a se desenvolver aps a Segunda Guerra Mundial, quando ento uma ordem jurdica global rapidamente disseminou regulamentaes protetivas.Destarte, essa tutela a nvel global representada pela Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, erigida e fundamentada na dignidade da pessoa humana, consagra a universalidade dos Direitos Humanos e esse reconhecimento impe de forma imperativa e vinculante que os Estados signatrios observem in totum as suas disposies.Com efeito, os sistemas internacionais de proteo dos direitos humanos foram organizados em dois nveis complementares, a saber, um sistema em nvel global e os sistemas em nvel regional, composto pelo Sistema Europeu, Sistema Interamericano, Sistema Africano e Sistema rabe, de modo que o processo de proteo dos direitos do homem dar-se- com instrumentos de vocao universal e instrumentos de vocao regional, tanto em nvel normativo como em nvel poltico, conforme se discorrer.O nvel normativo consiste dos principais instrumentos que sustentam a proteo universal ou global dos Direitos Humanos. a Carta das Naes Unidas, de 1945, que inspirar a internacionalizao e universalizao dos direitos do homem e a partir da qual se estabelecero os demais instrumentos de proteo internacional, pois seus princpios influenciam o surgimento dos instrumentos normativos desenvolvidos posteriormente, que se deu em quatro etapas[footnoteRef:6]. [6: MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos direitos humanos. Coimbra: Edies Almedina S/A, 2013, p. 100-101.]

A primeira, a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, encerrar o processo que se iniciou com a Carta e cataloga os Direitos Humanos em sua abrangncia internacional, alm dos direitos civis e polticos, econmicos, sociais e culturais[footnoteRef:7]. A Declarao Universal no tarda a ser completada por outros textos. Nesse perodo, direitos particulares ou de categorias de particulares necessitaram igualmente de proteo, vinculando-se a outros instrumentos internacionais, como a Conveno sobre a preveno e punio do crime de genocdio, de 1948, e a Conveno n 87 da Organizao Internacional do Trabalho sobre a liberdade de associao e proteo dos direitos de organizao[footnoteRef:8]. [7: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 101.] [8: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 101.]

A segunda etapa marcada pela adoo de dois pactos das Naes Unidas de Direitos Humanos: o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos[footnoteRef:9]. Ao contrrio da declarao universal, que objetiva a proteo do indivduo em si, nos pactos se constatar a coletivizao dos direitos, situando-os ao nvel de proteo estatal. [9: MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos direitos humanos. Coimbra: Edies Almedina S/A, 2013: foram aprovados pela resoluo 2200 (XXI) da Assembleia Geral das Naes Unidas, de 16 de dezembro de 1966, e s viriam a entrar em vigor em 3 de janeiro de 1976 e em 23 de maro de 1976, respectivamente, pois necessitavam ambos de 35 ratificaes, p. 101-102.]

O mesmo perodo ser marcado pelo surgimento de outras convenes, bem como outras declaraes sobre direitos humanos.Um acontecimento poltico importante no Teer marcar a terceira fase, a Conferncia Internacional dos Direitos do Homem, de 1968, que demonstra o interesse do mundo islmico em adotar mecanismos de proteo aos humanos.Durante este perodo entrou em vigor o primeiro Protocolo opcional aos Pactos (1976) e foram adoptadas algumas convenes sobre direitos humanos, das quais se destacam a Conveno sobre a eliminao de todas as formas de discriminao contra a mulher (1979), A Conveno contra a tortura e outros tratamentos cruis ou degradantes (1984) e a Conveno sobre os direitos da criana (1989).[footnoteRef:10] [10: MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos direitos humanos. Coimbra: Edies Almedina S/A, 2013, p. 102.]

E por fim a quarta fase, que se inicia em 1989 e se estende at a atualidade, est marcada pela queda do socialismo na Europa, bem como de regimes totalitrios na frica.A partir da globalizao/universalizao dos Direitos Humanos, paralelamente desenvolvem-se as experincias regionais. No sistema regional, a proclamao dos direitos humanos surgiu primeiramente na Europa e na Amrica. Posteriormente, a frica e o mundo rabe-islmico desenvolveram seus instrumentos de proteo atravs de organizaes internacionais especficas, como o Conselho da Europa, a Organizao de Estados Americanos, a Organizao de Unidade Africana e a Liga dos Estados rabes[footnoteRef:11] [11: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 103.]

Importa discorrer sobre os sistemas regionais e os instrumentos protetivos que interagem com o sistema global na defesa dos direitos do homem na Europa, na Amrica, na frica e no mundo rabe-islmico.Na Europa: em 1949 o Tratado de Londres cria o Conselho da Europa. Somente aps o processo de democratizao que os Estados da Europa Central e do Leste Europeu podem aderir ao Conselho da Europa, pois o Estatuto emana valores de liberdade e de democracia, demonstrando que estes s podem ser alcanados em um Estado democrtico de direito. O principal instrumento de proteo dos direitos humanos na Europa a Conveno Europeia de Direitos Humanos, que entrou em vigor em 3 de setembro de 1953, seguida da Conferncia de Segurana e Cooperao Europeia, atual Organizao de Segurana e Cooperao Europeia[footnoteRef:12]. [12: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 103-104.]

No continente americano: a Declarao Americana dos Direitos e Deveres do Homem foi adotada pela Carta constitutiva da Organizao de Estados Americanos, de 1948. Em 1978, entra em vigor a Declarao Americana de Direitos Humanos, o chamado Pacto de So Jos da Costa Rica, cuja inspirao ideolgica assemelha-se Conveno Europeia, e foi contemplada por dois protocolos, um que abole a pena de morte e outro relativo aos direitos econmicos, sociais e culturais[footnoteRef:13]. [13: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 105.]

Preocupados em proteger sua independncia do jugo colonial, os Estados africanos adotaram a Carta de Unidade Africana em 1963, que, por seu carter puramente anti-colonial, no se mostrou suficiente para proteger os direitos do homem, surgindo a necessidade de adotar a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos em 1981, que entrou em vigor em 1986[footnoteRef:14]. [14: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 105-106.]

E finalmente o mundo rabe-islmico adotou, em 1994, a Carta rabe dos Direitos do Homem, muito embora ainda no tenha entrado em vigor[footnoteRef:15]. Tambm conhecida como Declarao do Cairo, uma declarao que proporciona uma viso geral da perspectiva muulmana sobre os direitos humanos. A sia o nico continente que no adotou nenhum instrumento de promoo/proteo dos direitos humanos. [15: MARTINS, Ana Maria Guerra, 2013, p. 106.]

No nvel poltico, a matria de direitos humanos influenciada por diversas declaraes polticas que muito embora no tenham efeitos jurdicos imediatos, desempenham um papel muito importante e influenciam a ordem jurdica internacional na medida da existncia de objetivos comuns entre os Estados e da necessidade de participao na comunidade internacional.No nvel regional, o Conselho da Europa que merece particular destaque, por comprometer-se de forma mais ativa e profunda com os primados dos direitos do homem.Por certo que essa regulamentao internacional implica em limitar a soberania dos estados, contudo, ao Estado dada a liberdade de participar ou no. Todavia, tambm certo que as decises tomadas a nvel internacional repercutem diretamente na vida das pessoas[footnoteRef:16]. [16: MARTINS, Ana Maria Guerra. Manual de direito da Unio Europeia. Coimbra: Edies Almedina, 2012, p. 41.]

Por tudo isso, correto dizer que nesse processo de reconhecimento e proclamao dos direitos humanos, a efetividade e concretizao no so garantidas apenas pelos instrumentos normativos. A atuao eficaz dos sistemas global e regional uma exigncia do processo de internacionalizao em que nveis e etapas concorrem simultaneamente na proteo de um bem jurdico que indivisvel e possui como norte axiolgico a dignidade humana.

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2004.

MARTINS, Ana Maria Guerra. Direito Internacional dos direitos humanos. Coimbra: Edies Almedina S/A, 2013.

MARTINS, Ana Maria Guerra. Manual de direito da Unio Europeia. Coimbra: Edies Almedina, 2012.