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A PERSPECTIVA ECOLÓGICA 89 JOSÉ FARINHA VER. 1.12- 2005-12-01 A PERSPECTIVA ECOLÓGICA Parece-nos importante procurar agora definir em que medida a abordagem da psicologia ecológica se poderá assumir como uma perspectiva global e integradora, como via de progresso do conhecimento e da eficácia da intervenção na psicologia social em geral e na educação e intervenção comunitária em particular. Começaremos por tentar traçar de forma esquemática as bases e linha evolutiva da psicologia ecológica, pois naturalmente se soubermos de onde ela vem talvez seja mais fácil prevermos para onde ela se dirige, especialmente no que diz respeito à sua capacidade para ultrapassar as perspectivas atomistas e lineares, características do behaviorismo e do associacionismo clássicos. O BEHAVIORISMO CLÁSSICO E O ASSOCIACIONISMO: A ATITUDE MOLECULAR O behaviorismo é um sistema (ou seja, um conjunto coerente, organizado e inclusivo de proposições teóricas) que se desenvolveu extraordinariamente nos EUA a partir do início deste século, com a obra controversa de John B. Watson. A carreira de Watson (1878-1958) deu origem ao que ficou conhecido na história da psicologia sob a designação de revolução comportamentalista e consiste fundamentalmente na insistência numa metodologia objectivista caracterizada pela negação do sujeito como objecto de conhecimento científico e dos dados da introspecção como fonte válida de informação, sendo defendido que só os observáveis comportamentais o são, a partir de quatro técnicas: a observação sistemática, (com ou sem controlo instrumental) as técnicas reflexológicas, as técnicas dos relatórios verbais e os testes. O objectivo do programa behaviorista era explícito:

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A PERSPECTIVA ECOLÓGICA

Parece-nos importante procurar agora definir em que medida a abordagem da psicologia ecológica se poderá assumir como uma perspectiva global e integradora, como via de progresso do conhecimento e da eficácia da intervenção na psicologia social em geral e na educação e intervenção comunitária em particular.

Começaremos por tentar traçar de forma esquemática as bases e linha evolutiva da psicologia ecológica, pois naturalmente se soubermos de onde ela vem talvez seja mais fácil prevermos para onde ela se dirige, especialmente no que diz respeito à sua capacidade para ultrapassar as perspectivas atomistas e lineares, características do behaviorismo e do associacionismo clássicos.

O BEHAVIORISMO CLÁSSICO E O ASSOCIACIONISMO: A ATITUDE MOLECULAR O behaviorismo é um sistema (ou seja, um conjunto coerente, organizado e inclusivo de proposições teóricas) que se desenvolveu extraordinariamente nos EUA a partir do início deste século, com a obra controversa de John B. Watson. A carreira de Watson (1878-1958) deu origem ao que ficou conhecido na história da psicologia sob a designação de revolução comportamentalista e consiste fundamentalmente na insistência numa metodologia objectivista caracterizada pela negação do sujeito como objecto de conhecimento científico e dos dados da introspecção como fonte válida de informação, sendo defendido que só os observáveis comportamentais o são, a partir de quatro técnicas: a observação sistemática, (com ou sem controlo instrumental) as técnicas reflexológicas, as técnicas dos relatórios verbais e os testes. O objectivo do programa behaviorista era explícito:

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“Given the stimulus, to be able to predict the response, and given the response to be able to predict the antecedent stimulus.37”

Daí a fórmula S R que designa, nas suas variantes, o modelo behaviorista em psicologia.

O objectivismo watsoniano repousava em vários antecedentes teóricos: a) em primeiro lugar, na tradição da psicologia animal e no evolucionismo darwiniano que postulava um continuum entre as espécies e o emprego de métodos de descrição sistemática e empírica dos comportamentos observáveis, que no início da década de 30 do século XX dariam origem à escola objectivista da etologia alemã (Konrad Lorenz e continuadores); b) em segundo lugar, no conexionismo de Thorndike (1874-1949) , que se radica nas correntes filosóficas empiristas e associacionistas; c) em terceiro lugar, a reflexologia russa, de quem a principal figura foi indubitavelmente o fisiologista Ivan Pavlov (1849-1936). Tendo estabelecido com rigor que é possível, a partir de uma resposta incondicionada a um estímulo incondicionado e através da associação deste a um estímulo condicionado, dar origem a uma nova forma de resposta condicionada, Pavlov formulou com precisão as leis que regem a aquisição e extinção dessas respostas condicionadas, a sua generalização e associação de forma a dar origem a condicionamentos de ordem superior. O método pavloviano assentava assim no experimentalismo objectivista e partia dos puros observáveis comportamentais, constituindo uma radical aplicação dos cânones da perspectiva comportamentalista.

Em todos estes precursores do sistema behaviorista de Watson encontramos portanto características comuns:

c. a recusa do mentalismo e a substituição, como objecto de estudo, dos funcionamentos psíquicos interiores pelos observáveis comportamentais;

d. a adopção de um ponto de vista empirista e associacionista, com aplicação do princípio da parcimónia;

e. a exigência de aplicação da metodologia das ciências exactas e naturais aos problemas do comportamento e a recusa dos dados da vivência subjectiva como objecto de estudo;

f. a insistência nos factores ambientais como determinantes centrais dos processos comportamentais observados (recusa do inatismo, insistência nas contingências do processo S R e na aprendizagem);

g. focalização prática em hipóteses verificáveis através de um controlo experimental rigoroso, e no estudo de unidades comportamentais simples (molecularismo) com vista a estabelecer as bases da compreensão das unidades mais complexas, daquelas derivadas. O molecularismo, não

37“Dado o estímulo, ser capaz de predizer a resposta, e dada a resposta, ser capaz de

predizer o estímulo antecedente.”

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sendo uma exigência intrínseca do modelo S R, de facto caracterizou durante décadas os trabalhos dos principais behavioristas;

h. atitude determinista, partindo do pressuposto de que todos os comportamentos estão sujeitos a causas determinantes. O objectivo das ciências do comportamento é, assim, pôr em evidência as leis que regem as relações imediatas causa-efeito nas condutas animais e humanas, sendo todas as respostas moldadas pelas suas contingências exteriores, e os comportamentos globais produto das conexões (encadeamentos) de comportamentos elementares.

A GESTALTPSYCHOLOGIE E KURT LEWIN: A ATITUDE MOLAR Contrariamente ao behaviorismo americano, a gestaltpsychologie ou psicologia da forma, psicologia da gestalt ou simplesmente gestaltismo, tem o seu início na Europa (Alemanha) e radica na tradição fenomenológica de Brentano e Husserl. A expressão "psicologia da forma" deriva da palavra alemã gestalt, que globalmente se poderia traduzir por "forma", "figura" ou "configuração", mas o conteúdo da palavra original é bastante mais rico do que a sua tradução latina. Citando um dos fundadores do gestaltismo, Wolfgang Köhler (1929):

“Hoje na língua alemã, pelo menos desde a época de Göethe, a palavra gestalt tem dois sentidos: além do significado de forma como atributo das coisas, tem o de identidade concreta per se que tem, ou pode ter, uma forma como uma das suas características.”

Assim, uma gestalt é uma realidade irredutível, indecomponível em elementos singulares, formando um conjunto, um todo unificado. A posição anti-analítica e anti-molecular do gestaltismo está portanto patente na própria expressão que designa este sistema e anuncia a sua posição epistemologicamente divergente em relação ao behaviorismo, pois procura interpretar o mundo mental e conceptual dentro da noção de estrutura, de organização, e não a partir do estudo de unidades básicas de comportamento.

Se bem que a origem da psicologia da gestalt está de alguma associada à Alemanha. coube ao psicólogo austríaco Christian Von Ehrenfels, em 1860 demonstrar que o todo organizado, a forma é mais que a soma de suas partes. Por exemplo, a melodia e a figura são formas, isto é, a melodia compõe-se de sons que não se confundem com outros, e a figura compõe-se de linhas e pontos que não se confundem com outras linhas e pontos que possam existir no campo preceptivo. Mais tarde, em 1912, quando as ideias de John Watson começavam a dominar o meio psicológico, surgiram os trabalhos de Max Wertheimer sobre o movimento aparente, tendo como colaboradores Kurt Koffka e Wolfgang Köhler. O movimento aparente é no fundo uma ilusão que serve perfeitamente para ilustrar a diferença entre o que os nossos olhos vêem e o que o nosso cérebro vê. Por exemplo, no

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cinema percepcionamos figuras em movimento quando na verdade o que está a passar à nossa frente é uma sucessão de fotogramas, isto é imagens estáticas, que têm a particularidade de serem ligeiramente diferentes umas das outras e de passarem muito rapidamente (normalmente à volta de 24 imagens por segundo). No exemplo seguinte temos um processo semelhante, só que aqui a percepção de movimento aparente não resulta do movimento da imagem, mas sim do nosso olhar. Se olharmos fixamente para cada um dos círculos de pétalas verificamos que se trata de uma imagem fixa, mas quando deslocamos o olhar de umas figuras para as outras, torna-se aparente um pequeno movimento de rotação.

Posteriormente, Kurt Lewin associou-se aos defensores da psicologia da gestalt, contribuindo com a sua importante teoria de campo.A simple example for the gestalt processing capacies of the brain is the following:

Princípios da Psicologia Gestalt Como vimos, a psicologia da gestalt fundamenta-se em modelos teóricos que foram elaborados tendo por base o estudo da percepção, contudo tem sido aplicada de forma generalizada aos vários campos da psicologia, nomeadamente a psicologia social e até mesmo em psicoterapia. No que respeita aos fundamentos concretos, podemos referir os seguintes princípios:

1º Princípio - Um todo, um conjunto é mais que a soma de suas partes. Por Isto acontece porque quando percepcionamos uma figura com várias partes, a nossa noção dessa figura resulta da percepção imediata de um todo. Esta noção pode ser esclarecida por meio de certas ilusões óptico-geométricas como, por exemplo, a ilusão óptica de área.

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Quando comparamos dois círculos do mesmo tamanho, sendo que um está rodeado por círculos maiores, e o outro está rodeado por círculos menores, neste caso, eles são percebidos como desiguais. E, se um outro círculo, também do mesmo tamanho, for desenhado próximo, porém separadamente, ele é percebido de tamanho diferente.

2º Princípio - No processo de aprendizagem não respondemos a estímulos específicos existentes no meio, mas às relações entre os estímulos.

Neste exemplo, vemos um cubo em três dimensões em vez do que lá está que é uma figura em duas dimensões constituída por um conjunto de linhas horizontais, verticais e oblíquas organizadas de uma determinada forma. É a percepção das relações entre as linhas e não as linhas em si que dá a ilusão tridimensional. Isto é assim porque segundo a forma como orientamos o nosso olhar e as relações entre as linhas vão-se alterando (umas vão passando de trás para a frente e vice-versa) o que nos leva a percepcionar um cubo orientado em direcções diferentes.

3º Princípio - O terceiro princípio da psicologia gestalt é conhecido como princípio do efeito de campo e apresenta várias propriedades do campo preceptivo tais como, figura e fundo, tendência à organização por proximidade dos elementos, por semelhança, por continuidade, por simetria, etc.

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Figura e fundo são estímulos padrões fundamentais do processo preceptivo, isto é, só haverá percepção quando houver quando houver uma figura e um fundo, porque não existe figura sem fundo nem fundo sem figura. A figura de forma geral aparece como bem definida, mais iluminada, com localização determinada, enquanto que o fundo representa uma continuidade amorfa, indefinida e se coloca atrás da figura.

A tendência para a organização é uma característica dos elementos do campo preceptivo que pode ser observada através dos seguintes exemplos:

* * * * * * * * * * * * *

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Nesta figura é mais provável que vejamos três linhas paralelas do que uma certa quantidade de estrelas, ou mesmo uma forma rectangular. Isto acontece porque, devido à tendência para a organização por continuidade, os elementos que estão mais juntos uns dos outros sobressaem do fundo.

Nesta figura é natural que na parte central da figura vejamos dois triângulos sobrepostos, em vez do que na realidade lá está três círculos negros aos quais flata uma secção e três pares de linhas angulares.

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Referindo-nos agora, mais concretamente a Kurt Lewin, este iniciou a sua carreira integrado na escola de Berlim, e aí produziu (até à sua partida para os Estados Unidos devido às perseguições nazis) trabalhos experimentais sobre a vontade, a memória e os hábitos, e particularmente sobre os sistemas de tensão. Após a emigração para os Estados Unidos em 1932, Lewin desenvolve as suas teorias topológicas do comportamento e da personalidade, primeiro na Universidade de Stanford e Cornell e depois na Universidade de Iowa (1935) e finalmente no M.I.T.38 (1944). O terceiro período da carreira de Lewin, o mais curto mas o mais fecundo, caracteriza-se por um maior investimento nos problemas de psicologia social

aplicada, particularmente a dinâmica grupal, e por um maior interesse pelas questões levantadas pela influência do meio (social e não-social) nos comportamentos colectivos. Seria, com efeito do interesse de Lewin pela influência do meio que viria a surgir a proposta de desenvolvimento de uma ecologia psicológica, que o próprio Lewin infelizmente não teve oportunidade de aprofundar antes da sua morte, em 1947. Vejamos então alguns dos pontos mais salientes do sistema teórico desenvolvido por Kurt Lewin.

Modelos de pensamento "aristotélico" e "galilaico" em ciência

Em 1931, Lewin publicou no Journal of General Psychology um artigo intitulado "The conflict between Aristotelian and Galileian modes of thought in contemporary psychology", que ainda hoje constitui um precioso documento teórico sobre o estatuto epistemológico e a metodologia da psicologia. Com efeito, a lógica aristotélica é classificativa, isto é, tenta definir uma categoria abstracta a partir da identificação das características comuns a um conjunto de objectos. Em psicologia, esta atitude traduz-se pela recusa do caso individual como objecto de ciência (e daqui decorre a recusa behaviorista do dado subjectivo e do método directo para o alcançar - a introspecção) e a insistência nas regularidades estatísticas como condição para a formulação das leis do comportamento, confirmação de hipóteses ou até da simples inteligibilidade dos fenómenos. Nesta lógica, formular uma lei, ou um qualquer princípio explicativo, significa definir uma classe ou categoria de objectos ou eventos que têm entre si um certo número de semelhanças. É esta lógica que impera ainda de certa forma na psicologia, especialmente na

38Massachusetts Institute of Technology, situado em Cambridge MA, é uma das mais

avançadas e prestigiadas instituições de ensino e pesquisa na área das ciências e tecnologia dos EUA.

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forma como o cidadão comum encara o objectivo da psicologia. Com efeito, a maior parte das pessoas, quando pedem a um psicólogo que lhes forneça alguma informação acerca de si próprios que lhes permita conhecerem-se melhor, do que estão à espera é que o psicólogo os inclua numa das categorias usadas em psicologia, isto é, esperam que o psicólogo lhes diga que são, por exemplo, extrovertidos, impulsivos, alegres, etc., etc., não se dando conta que desta forma se corre o risco conhecido de circularidade explicativa. Porquê? Peguemos, para simplificar, só no caso da extroversão. Porque dizemos que uma pessoa é extrovertida? Porque observámos nessa pessoa comportamentos típicos de uma classe de pessoas extrovertidas. Então, porque é que essa pessoa tem esses comportamentos? Porque é uma pessoa extrovertida!

Logo, o que Kurt Lewin põe em questão não é tanto o recurso a critérios de natureza estatística mas o seu modo de utilização e sobretudo o seu emprego como substitutos de uma outra ordem conceptual, própria do ponto de vista ou modo de pensar "galilaico", e daquilo que designou por método "construtivo". Com efeito, com Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630) e Sir Isaac Newton, (1642-1727) a Física, que foi e de certa forma ainda é modelar em termos científicos, começou a libertar-se da tradição aristotélica e elevou-se a uma ordem superior de abstracção independente da lógica classificativa e do empirismo descritivo que até então a caracterizavam. Enquanto que na física aristotélica os fenómenos eram estáticos, determinados pela sua própria natureza essencial (natureza essa que era utilizada como critério de classificação), na física contemporânea pensa-se em termos de interacções de vectores físicos e definem-se os fenómenos como resultando das relações entre as propriedades do objecto e as do seu meio. Abandona-se assim a perspectiva "essencialista" dos fenómenos, e a ênfase desloca-se para as relações de forças existentes num dado campo físico. A totalidade da situação - eis o que é necessário compreender para explicar a dinâmica da relação entre o objecto e o seu ambiente.

Campo psicológico ou espaço de vida Em 1935, nos seus Principles of Topological Psychology, Kurt Lewin aplicou esta noção de totalidade da situação à psicologia tendo-a designado por campo psicológico ou espaço de vida, nele incluindo a pessoa (P) e o seu ambiente (A). O comportamento era visto como uma função da interacção dinâmica entre ambos. Por conseguinte, o espaço vital representa a totalidade das condições pessoais e ambientais possíveis para determinar o comportamento, o que nos leva à célebre fórmula C = f(P,A). Podemos, contudo, perguntar: - O que leva uma determinada pessoa, num determinado meio ambiente, a apresentar um determinado comportamento e não outro? A resposta a esta questão apresenta aspectos relacionados não apenas com os "conceitos sistemáticos de causalidade", mas também com os "conceitos históricos de causação". O seguinte exemplo serve para explicar esses dois

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conceitos: - "Estou sentado na chuva, sob uma árvore cuja folhagem me protege de ficar molhado. Eu pergunto: "por que é que não fico molhado?" É possível responder a esta pergunta descobrindo a direcção e velocidade das gotas que caem, a posição das folhas, a minha própria posição, etc.. Em resumo, podemos representar a situação presente e, aplicando as leis da física ou outras leis relevantes, deduzir que acontecimento deve ocorrer numa tal situação. Mas a resposta a esta pergunta também poderia ser a seguinte: "É graças ao seu avô, que plantou esta árvore, que você não fica molhado agora. Por certo o solo não é muito bom aqui mas o seu avô teve cuidados especiais com a árvore durante os primeiros anos. Contudo, se o projecto de uma nova rua tivesse ido avante, o ano passado, a árvore já teria sido derrubada e você não poderia estar aqui sentado sem se molhar".

Imaginemos uma elipse e no seu interior um pequeno círculo que não seja tangente à elipse. O espaço que está situado no interior do círculo representa a pessoa (P) e o espaço que está situado entre o círculo e a elipse significa o meio ambiente (A) da pessoa (P).

Ilustração 1 - Representação do espaço de vida

Por outro lado, o meio ambiente (A) pode ser dividido em regiões e sub-regiões com diferentes graus de permeabilidade. Por exemplo, a pessoa (P) se for uma criança não poderá atravessar a rua sozinha, subir em cima das mesas; se for um jovem de menos de 18 anos, não pode conduzir um automóvel, se for um aluno numa escola não pode usar a sala dos professores, etc. São regiões do meio ambiente: o local de trabalho, um grupo social, a família, o local de lazer, etc. Também o espaço que está situado no interior do círculo representando a pessoa (P) pode ser dividido em regiões. Poderíamos traçar um novo círculo no interior do primeiro para representar a região perceptivo-motora (PM), constituída pelo espaço entre os dois círculos. Essa região tem uma posição fronteira com o meio ambiente (A) e com a região pessoal interior (PI) formada pelo espaço situado no interior do segundo círculo. Esta região (PI) pode ser ainda dividida em camadas mais superficiais e camadas mais centrais.

Segundo este modelo é portanto o campo de forças como estrutura global que deve ser objecto de estudo e não cada um dos objectos componentes considerados isoladamente. Deste modo, a teoria de campo é sobretudo um método de análise e uma matriz particular de hipóteses teóricas globais, uma outra forma de olhar as relações entre o objecto e o seu meio envolvente:

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mais do que uma teoria é uma construção metateórica de ordem superior, que contém em si teorias regionais ou parcelares.

Como vimos a perspectiva gestaltista faz uma distinção entre campo físico e campo psicológico – o campo físico representa, digamos assim, a realidade física, material, enquanto que o campo psicológico representa aquilo que é experienciado pelo sujeito.

Para Kurt Lewin esta distinção é fundamental sendo que o eixo daquilo a que podemos chamar o “sistema lewiniano” é a noção de espaço de vida. Em 1935, Lewin define o real como “aquilo que produz efeitos” (Lewin, 1935, p.19). O campo psicológico é portanto o conjunto das variáveis que têm uma influência no comportamento do indivíduo num dado tempo t (princípio da contemporaneidade), englobando o subsistema pessoal e o subsistema ambiental, e a zona fronteiriça que separa as variáveis psicológicas das não-psicológicas. Nas suas próprias palavras:

“Nós não precisamos incluir dentro do espaço de vida psicológico todo o mundo físico com as suas características objectivas em termos da física. Os factos devem ser incluídos na representação do espaço psicológico somente na medida e na maneira em que eles afectam o estado do indivíduo num determinado momento. Nós expressamos esta condição designado-os por factos quase-físicos.”(Lewin, 1935, p.24)

O campo psicológico é assim definido pela parcela do real que existe para o sujeito.

Uma das teses centrais da teoria do campo é o chamado princípio da contemporaneidade a que acima fizemos referência. A teoria do campo admite logicamente que o jogo de forças num dado campo está em permanente mudança, e introduz uma alteração importante na perspectiva clássica da continuidade espaço-tempo: - é o campo num tempo t que é objecto de conhecimento. Evidentemente, Lewin aceita que tanto o passado psicológico de um sujeito (ou de grupo) como o seu futuro podem influir na situação presente - mas não como níveis de realidades e sim como representações actuais desse passado e desse futuro. É assim que as expectativas de um sujeito ou o seu nível de aspiração em relação a um objectivo ainda não alcançado podem influenciar o seu comportamento no tempo t, sendo, por isso, variáveis actuantes no campo psicológico do sujeito, isto é, no seu espaço de vida.

Para analisar a dinâmica do campo psicológico Lewin recorre a constructos oriundos da Física, adaptando à psicologia o conceito de campo introduzido na física, principalmente no electromagnetismo. Assim, o campo psicológico passou a ser considerado como um campo de forças possuidoras de propriedade vectoriais como, direcção, intensidade e ponto de aplicação. Lewin caracteriza vários tipos de forças. Uma distinção a ser feita é entre forças impulsoras e forças inibidoras. As primeiras provocam movimento, mudança, deslocamento, as segundas significam obstáculos (barreiras) a esses mesmos processos. Outra distinção deve ser feita entre forças pessoais, induzidas e impessoais. As primeiras correspondem à necessidade do próprio

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indivíduo, as segundas aos desejos de outras pessoas, e finalmente há forças que são determinadas pelo contexto social.

Tanto a direcção como a intensidade das forças que actuam sobre o indivíduo dependem da valência de uma região do meio psicológico. Uma região O, que possui uma valência Va(O), é definida como uma região do espaço de vida que atrai ou repele esse indivíduo. Quando atrai, a valência é positiva; quando repele, a valência é negativa. A valência de uma região pode ser devida aos mais variados factores, tais como, fome, constelação social, estado emocional, etc. A intensidade da força depende pelo menos dos factores: a) da intensidade da valência; b) da distância entre a pessoa e a valência. A situação (S) de uma pessoa (P) num meio ambiente (A) é sempre uma busca de equilíbrio, equilíbrio esse que não é estático, mas im dinâmico por isso um estado de equilíbrio não implica ausência de tensão. Um sistema pode estar em equilíbrio e sob tensão. O que se supõe é a existência de um nível óptimo de tensão, que, uma vez alterado (para mais ou para menos), faz surgir a tentativa de restabelecê-lo".

Fiel ao seu ponto de partida epistemológico, Lewin não se contenta em recorrer aos constructos como entidades nominais explicativas (o que seria recair no criticado modo de pensamento aristotélico), mas preocupa-se em estabelecer relações dinâmicas e, tanto quanto possível, em apresentar propostas para a sua formalização. Com efeito, em Kurt Lewin não encontramos nenhum vestígio de substancialismo, mas sim a análise da dinâmica das relações. Tomemos o exemplo, extraído de uma situação simples: uma criança que se vê confrontada com o problema de ter que comer um alimento que lhe desagrada. Um caso portanto de conflito entre o seu desejo (não ingerir esses alimentos que considera desagradáveis) e a perspectiva de enfrentar os adultos que lhe dizem para ingerir esses alimentos - o espaço de vida é assim representado como um campo de forças finito, integrando, neste caso, a criança; a força dirigida para a liberdade de não comer o alimento, a força do evitamento dos problemas com os adultos, etc.. Se a criança comer realmente os alimentos, verifica-se uma alteração na direcção das forças - dada a fuga ao confronto com os adultos - a situação é reestruturada. Uma força psicológica é portanto mensurável através da intensidade das forças opostas, a persistência relativa da actividade orientada e a velocidade de locomoção ou reestrututuração do campo. Temos aqui portanto a definição de sistemas de tensão que fundam a análise da vertente emocional dos processos psicológicos, desde os processos de decisão à dinâmica dos grupos restritos.

Campo de grupo, campo social e ecologia do comportamento No seu estudo dos grupos (da “dinâmica” dos grupos, conforme a expressão que utiliza a partir de 1944), Lewin aplica o aparelho teórico anteriormente desenvolvido por ele e por outros gestaltistas. Os grupos são assim considerados como gestalten, campos de forças particulares definidos por

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objectivos, normas e valores próprios, redes de interacções e comunicações, determinações peculiares (totalidades dinâmicas, em suma) irredutíveis a uma análise dos indivíduos que os compõem. Dada a envergadura dos trabalhos de Kurt Lewinsobre dinâmica de grupos, seria despropositado enveredar aqui por uma exposição detalhada dos mesmos, mas é importante frisar a noção de campo aplicada a situações colectivas e mais concretamente à passagem final de Lewin à noção de campo social, dada a sua relevância teórica e prática. Efectivamente, após ter estudado o campo do grupo Lewin aborda os problemas do campo social onde a intervenção psicossociológica nas estruturas reais assume o lugar da experimentação em laboratório. Na última fase da sua carreira, Lewin envereda pela abordagem da ecologia social dos grupos, ou seja: - alarga a noção de campo às variáveis sociológicas que atravessam e influenciam o grupo como realidade social:

“A representação do grupo e do seu ambiente como um campo social é um instrumento básico para a análise da vida do grupo. Isto significa que a ocorrência social é vista como acontecendo e resultando da totalidade das entidades sociais co-existentes, como grupos, subgrupos, membros, barreiras, canais de comunicação, etc. Uma das características fundamentais desse campo é a posição relativa das entidades que são partes do campo Esta poisição relativa representa a estrutura do grupo e o seu ambiente ecológico. Expressa também as possibilidades básicas de locomoção dentro do campo. O que ocorre dentro desse campo depende da distribuição de forças em todo o campo. Uma previsão pressupõe a capacidade de determinar a intensidade e a duração das forças resultantes para os vários pontos do campo. De acordo com a teoria geral do campo a solução de um problema de vida do grupo tem que se basear num procedimento analítico desse tipo. Só considerando os grupos em questão no seu ambiente real podemos assegurar que nenhuma conduta essencial possível foi descuidada” (Lewin, 1947).

Neste artigo final, Lewin aborda os processos sociais como estados quase-estacionários e apresenta um modelo formal para o tratamento analítico dos equilíbrios quase-estacionários na vida dos grupos, enquadrados nos seus contextos sociais reais, mas infelizmente não lhe foi já possível desenvolver esta linha de pesquisas tardiamente encetada.

Convém, talvez, fazer referência às circunstâncias que conduziram Kurt Lewin à “ecologia psicológica”. Para isso temos que recordar um aspecto já discutido quando falámos da influência da II Guerra Mundia na evolução da psicologia social no EUA. Com efeito, em 1943 um dos problemas sociais práticos relacionados com a situação de guerra envolvia o problema da alimentação e dos hábitos de alimentação e da resistência à mudança desses hábitos. Não é de estranhar, portanto, que tenha sido esta questão a despoletar o primeiro grande trabalho de alargamento da teoria de campo à ecologia do comportamento - é fundamental recordar que Lewin se caracterizou por um grande amor ao concreto e uma grande atenção ao quotidiano, e é lícito pensar que a fecundidade da psicologia depende justamente dessa atitude. É assim que em 1943 Lewin publica (Bull. Nat. Thes. Connect., 108:35-65) um

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artigo intitulado “Forces behind food habits and methods of change”, mais tarde refundido e publicado em Field theory in Social Science sob o título sugestivo de “Psychological ecology”. Nesse trabalho Lewin analisa sistematicamente, em resposta à pergunta “porque é que as pessoas comem o que comem?”, os canais de acesso dos alimentos à mesa onde são consumidos, e as decisões intermediárias que presidem à sua selecção. É evidente que uma pergunta de semelhante envergadura levou o seu autor a ultrapassar necessariamente o quadro de uma análise psicológica e a defrontar-se com variáveis sociológicas, políticas, económicas, ambientais que alargaram a teoria do campo à problemática dos envolventes físicos e sociais do espaço de vida.

Por essa mesma linha enveredaram dois dos seus discípulos mais brilhantes e talvez por isso mesmo mais críticos: Herbert F. Wright e Roger G. Barker.

A ECOLOGIA DO COMPORTAMENTO HUMANO Psicologia Ecológica é uma designação reclamada por várias correntes em psicologia, contudo, esta aparece em primeiro lugar e tem sido habitualmente associada ao monumental trabalho de ecologia comportamental realizado a partir de 1947 por Roger G. Barker e Herbert F. Wright na estação de pesquisa Midwest Psychological Research Station, instalada na pequena cidade de Oskaloosa, com cerca de 750 habitantes, no estado do Kansas, EUA. Na sua formulação inicial o objectivo era estudar a vida diária das cerca de 100 crianças nas suas condições naturais.

Na sua obra de síntese, Ecological Psvchology (1968), Roger Barker explicita as características desse estudo:

“O ambiente é visto como sendo constituído por arranjos improváveis e altamente estruturados de objectos e acontecimentos que condicionam o comportamento de acordo com o seu próprio sistema de padrões dinâmicos. Quando nas fases iniciais do nosso trabalho elaborámos longos registos do comportamento das crianças em settings da vida real na linha com uma abordagem tradicional centrada na pessoa, verificámos que alguns atributos do comportamento variavam menos entre crianças diferentes dentro do mesmo setting do que entre as mesma crianças em settings diferentes. Descobrimos, em resumo, que poderíamos prever melhor alguns aspectos do comportamento infantil a partir do conhecimento das características comportamentais de lojas, aulas de aritmética, ou jogos de basquetebol do que a partir das tendências comportamentais de cada criança em particular.”

Assim, Barker e Wright constataram que o comportamento de uma criança não poderia ser gerado somente a partir de suas necessidades individuais e metas correspondentes, como geralmente é aceite pela psicologia individual, mas que a sua acção parecia ser influenciada, essencialmente, pelos settings particulares nos quais a criança se encontrava, parecendo assim existir uma

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correspondência entre o setting e um modelo de comportamento particular. Exemplificando: - uma mesma criança tende a comportar-se de maneira diferente numa aula de matemática e num jogo de futebol. A descoberta deste tipo especial de contexto formatador do comportamento originou o que Barker (1968) denominou behavior setting. Verifica-se assim que o comportamento humano era radicalmente situado: por outras palavras, não podemos prever o comportamento de alguém a não ser que nós conheçamos a situação, contexto ou ambiente no qual essa pessoa se insere. Justifica-se assim o aforismo “O importante não é tanto o que está dentro da pessoa, mas onde a pessoa está dentro.” Assim, uma das primeiras consequências da abordagem ecológica foi expandir a unidade de análise de forma a incluir o ambiente ecológico à volta do indivíduo de forma a poder compreender os padrões de comportamento humanos.

Contudo, Barker e Wright tiveram um problema metodológico para resolver, antes de se avançarem com o se trabalho empírico em Oskaloosa. Dada a incomensurabilidade de elementos subjacentes à noção de “relação do sujeito com o ambiente”, e a infinita multiplicidade dos níveis de análise a que ela pode ser sujeita, havia que definir unidades operacionais para o seu estudo. Neste sentido, estes autores decidiram utilizar um método naturalista, recorrendo a técnicas de observação directa não muito diferentes dos procedimentos e das técnicas de campo dos etologistas europeus. Para tal, o primeiro passo foi estabelecer unidades comportamentais compatíveis com as possibilidades e objectivos do investigador. Essas unidades são constructos molares:

“O indivíduo não transpira ou saliva, nem dobra os joelhos ao andar, nem move a língua ao falar, ou os olhos quando lê, nem se dobra pela cintura quando se senta. Ele anda, fala, lê ou senta-se, deixando ao cuidado dos seus sistemas hormonais e motores a tarefa de transpirar, salivar, articular, mover-se e outras unidades comportamentais de que, por serem moleculares, a pessoa não dá conta ao fazer o que faz” (Wright e Barker, 1950) .

As unidades comportamentais são portanto constructos teóricos pois procede-se à segmentação do continuum comportamental em episódios comportamentais não da forma artificial como uma distância pode ser medida em centímetros ou metros, mas atendendo tanto quanto possível à sua inserção na realidade quotidiana.

Dado que os comportamentos pareciam mais influenciados pelos settings do que pelas características individuais tornou-se necessário estudar detalhadamente as características desses settings. Assim, o objectivo principal do trabalho em Oskaloosa nos anos de 1951 e 1952 foi fazer um levantamento dos behavior settings, tendo sido identificados e descritos exactamente 585 behavior settings. Uma vez identificado, cada behavior setting era avaliado usando a informação obtida acerca, por exemplo, de

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quanto tempo era gasto no setting pelos vários subgrupos da comunidade, o número de pessoas que entravam no setting pelo menos uma vez por ano, o número de participantes e espectadores locais e de fora, o tipo de actividade exibida no setting, os mecanismos comportamentais presentes no setting e um índice geral de riqueza dos settings (ver mais adiante a descrição destas dimensões).

Os resultados dos trabalhos na Midwest Psychological Research Station em Oskaloosa levaram Barker em 1969 a propor uma nova disciplina a que chamou ecologia do comportamento, e que teria por objectivo identificar e descrever essas unidades e esses episódios e relacioná-los com os seus contextos ambientais, com base num modelo teórico integrativo. Com efeito, a partir da consolidação da noção de behavior setting o trabalho de investigação subsequente centrou-se menos em indivíduos e mais em comunidades, organizações, escolas, etc., estudando problemas como, por exemplo, os efeitos do tamanho da escola nas crianças, qual a experiência dos alunos que frequentam escolas grandes, vs. escolas pequenas?

Após a reforma de Barker em 1971 a Midwest Psychological Research Station foi encerrada devido à falta de financiamento.

Behavior Settings Como foi visto acima, a noção de behavior setting assenta na ideia que o comportamento deve ser estudado no seu contexto natural. Os behavior settings, são de forma geral espaços públicos, são modelos sociais numa pequena escala compostos por pessoas e objectos físicos que estão configurados de forma a serem executados determinados programas de acção rotineiros dentro de limites de tempo e espaço específicos. Dito por outras palavras, behavior settings consistem em padrões de acção dinâmicos mas estáveis que são suportados por algumas características físicas do meio. Os behavior settings são assim entidades híbridas no sentido em que são constituídos por padrões fixos de acção (standing patterns of behavior) que acontecem num determinado milieu e em que o milieu é circundante e sinomórfico39 face ao comportamento. Quer dizer, o comportamento acontece enquadrado por um meio que por sua vez se adequa ao comportamento, podendo dizer-se que existe uma relação circular entre eles.

39Sob a designação de sinomorfia (Barker, 1968) entende-se uma similaridade de

estrutura entre o modelo de comportamento e o milieu físico e social correspondente. Um behavior setting pode conter um ou mais conjuntos de sinomorfias comportamento-milieu.

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No que respeita então à caracterização dos behavior settings podemos verificar que estes são compostos por 3 tipos de componentes: 1) propriedades físicas, 2) Componentes humanos e 3) O programa do setting.

COMPONENTES DOS BEHAVIOR SETTINGS

Propriedades físicas

Um dos aspectos mais básicos da componente material dos behavior settings é aquilo que poderíamos chamar a topografia dos lugares, do milieu (meio) para utilizar a terminologia proposta por estes autores. O milieu é constituída por dois tipos de elementos, um de natureza fixa, como por exemplo as características ligadas à arquitectura do espaço (paredes, janelas, dimensão da sala, etc.) e outro de natureza semi-fixa, como por exemplo o arranjo das peças de mobiliário.

Por outro lado, os objectos têm propriedades físicas (tamanho, material, forma, etc.), mas também propriedades funcionais (o que é que faz com eles). Enquanto que as propriedades físicas são inerentes ao objecto em si, as propriedades funcionais são-lhe atribuídas através de etiquetas culturalmente partilhadas, como por exemplo, se é uma cadeira, então podemos sentar-nos nela. Os objectos podem ter ainda uma dimensão, digamos que mais subjectiva, quando aparecem associados a experiências pessoais, crenças e atitudes. Umas delas são mais concretas, como por exemplo, o lugar que consideramos nosso na sala de aulas, enquanto que outras são mais difusas e pobremente verbalizáveis (por exemplo, os sentimentos e memórias associadas com a nossa casa de infância).

Componentes humanos

Como todos os sistemas humanos são organizados e estruturados, a distribuição das pessoas num setting particular não é feita ao acaso, mas sim de acordo com uma determinada estrutura organizacional e funcional característica de cada behavior setting em particular. Com efeito, cada pessoa ocupa uma posição determinada de acordo com a estrutura funcional e organizacional do lugar. Como veremos mais adiante, cada posição pode ser classificada de acordo com a sua profundidade ou nível de penetração - as “zonas centrais” são ocupadas por pessoas com mais poder enquanto que as “zonas periféricas” têm menos poder, ou seja menos poder de penetração. Por exemplo, a posição de destaque, à frente e isolado dos restantes elementos que ocupam o espaço, é condizente com a posição de poder de um professor numa sala de aula. Se reparar quanto mais tradicional for um professor ou um modelo pedagógico, moior tende a ser a distãncia entre o professor e os alunos.

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O programa do setting

O programa do setting refere-se à sequência prescrita de comportamentos, isto é, de interacções entre pessoas e objectos que são consideradas mais apropriadas para cada local. Consideremos um exemplos bem conhecido mesmo no nosso meio cultural – um setting de restaurante. Com efeito, quando entramos num restaurante, mesmo sem nos darmos conta disso, executamos o programa desse setting, no sentido em que exibimos um conjunto de acções, em que algumas delas estão pré-programas, enquanto que outras dependem de características ou elementos informativos presentes no setting. Por exemplo, se for um restaurante fino, ou estiver presente um sinal “Por favor aguarde que o empregado lhe indique uma mesa.” Então, esperamos à entrada que um empregado chegue perto de nós e depois de se certificar do número de pessoas, nos conduza a um lugar. Se for um restaurante de fast-food, não nos preocupamos com isso e sentamo-nos no primeiro lugar disponível. Depois de sentados, quando o empregado se aproxima da nossa mesa, ele não precisa dizer nada para que percebamos que está na hora de encomendar a nossa comida, e assim por diante.

Esta estrutura de acções orientada por regras representa os comportamentos que, digamos assim, temos oportunidade de exibir num determinado behavior setting. Quando algo em nós parece indicar que não estamos a agir em conformidade com o programa do setting então pode acontecer que as regras associadas a esse programa sejam reforçadas por inputs oriundos de outros participantes, especialmente se esses participantes tiverem uma posição de líderes do setting, como, por exemplo, acontece, mais frequentemente do que seria desejável, quando um professor tem que agir para que seja respeitado o silêncio necessário para que possa prosseguir com a leccionação da matéria. As regras do setting podem também ser reforçadas pró características do meio físico, como acontece, por exemplo, quando numa repartição pública temos que esperar numa fila, vemos uma linha amarela no chão que só podemos ultrapassar quando for a nossa vez de sermos atendidos. Pode acontecer que em algumas situações o programa completo do setting não seja conhecido pela generalidade dos seus ocupantes, mas unicamente pelos líderes do setting, como, por exemplo, num supermercado, os consumidores não estão a par dos exactos procedimentos a adoptar pela empregada da caixa.

É importante agora fazer uma distinção entre o conceito de programa do setting e os conceitos de normas, convenções sociais ou valores. Com efeito, todos estes conceitos de alguma forma prescrevem comportamentos, ou melhor, dão-nos orientações que nos permitem decidir sobre quais os comportamentos mais ou menos adequados, contudo, enquanto que os programas do setting são específicos de determinados behavior settings em

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particular, as normas, convenções e valores definem regras gerais de comportamento não enquadráveis em qualquer situação particular.

DIMENSÕES DOS BEHAVIOR SETTINGS Barker e Wright (1955) descrevem esses meios físicos ou behavior settings a partir de seis grandes categorias ou dimensões:

• tempo de ocupação: designa o número total de horas em que o local em questão é ocupado pelos sujeitos durante um período de tempo determinado. Não é difícil imaginar que para um estudante o behavior setting com maior tempo de ocupação seja a aula. Os tempos de ocupação podem ter um carácter esporádico ou ocasional, como por exemplo um concerto de rock, ou um carácter regular ou periódico, como por exemplo as aulas de psicologia social.

• penetração: este conceito refere-se à medida do envolvimento e responsabilidade dos ocupantes em relação ao local, o que muitas vezes está relacionado com as posições funcionais correspondentes aos participantes ou a papéis de participação. Aqui talvez seja importante fazer notar que o nível de penetração de um behavior setting não é o mesmo em todas as zonas do setting e, como vimos quando abordámos os componentes humanos, as pessoas ocupam determinadas posições que podem ser classificadas de acordo com o seu nível de penetração. Temos assim “zonas periféricas” que são ocupadas por pessoas com menos poder e para quem o setting tem um nível baixo de penetração e “zonas centrais” normalmente ocupadas por pessoas com maior poder e com nível de penetração mais elevado. Recorrendo mais uma vez ao exemplo da aula, podemos dizer que o professor ocupa uma posição mais central enquanto que os alunos ocupam uma posição mais periférica. Por exemplo, um professor tem disponíveis um conjunto de opções que não estão disponíveis ao alunos, como por exemplo, a disposição das mesas e cadeiras, estar em pé ou sentado, quando escrever no quadro, etc.;

• padrões de acção: Designam padrões de comportamento tipicamente associados ao local. Os padrões de acção de forma geral estão organizados em programas (scripts) como já vimos quando abordámos os componentes dos behavior settings. No total foram identificadas onze categorias de padrões de acção que podem ser associados a actividades como, por exemplo actividade educacional, de administração, de alimentação, de saúde física, profissional, recreativa, religiosa, etc.. Estes padrões, apesar de poderem admitir pequenas variações de estilo, digamos assim, não têm na sua essência a ver com aspectos individuais, quer dizer, não dependem da maneira de ser de um indivíduo em particular, mas são padrões socializados, isto é, dependem da socialização. Estes padrões têm também uma estrutura semelhante à estrutura do meio físico, pois relacionam-se directamente com eles. Aproveitando ainda o exemplo da aula, o que faz todo o sentido porque é um setting naturalmente familiar aos leitores deste

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manual, podemos pensar que o padrão de acção típico de um professor num setting de aula tradicional consiste num padrão de acção de ensinar, e o padrão associado aos alunos consiste em aprender. Como a acção de ensinar é tradicionalmente vista como a passagem de uma determinada matéria do professor para os alunos, é assim definida uma estrutura em que o professor está na origem de tudo o que de relevante se pode passar numa sala de aula, enquanto que os alunos são os destinatários desses mesmos conteúdos. Ora, como foi dito acima, esta estrutura de padrões de acção é suportada pela estrutura do meio físico, no aspecto em que as cadeiras e mesas de trabalho dos alunos são iguais entre si e estão todas orientadas na direcção do professor, enquanto que, por outro lado, o professor tem normalmente uma mesa e uma cadeira diferente da dos alunos, situada num espaço separado, e, nas salas de aula mais antigas, a mesa e a cadeira do professor estavam em cima de um estrado, por isso numa posição mais elevada que os alunos, o que, podemos supor, poderia fazer com que a matéria deslizasse melhor do professor para os alunos;

• mecanismos comportamentais Podemos dizer que os mecanismos comportamentais são os elementos que constituem os padrões de acção, isto é, são aspectos mais moleculares do comportamento que podem ser medidos em termos da sua frequência, duração e intensidade. Assim, e voltando ao exemplo da aula, se dissemos no ponto anterior que o padrão de acção típico de um professor é ensinar e o do aluno aprender, neste ponto podemos dizer que os mecanismos comportamentais de que é feito o padrão de ensinar, podem ser, entre outros, explicar, perguntar, escrever no quadro, responder a questões do alunos, etc., enquanto que o padrão aprender é constituído por mecanismos comportamentais do tipo, ouvir, responder a questões do professor, escrever no caderno, etc.. Outros tipos de mecanismos comportamentais podem ser por exemplo, comportamentos afectivos, de motricidade ampla, de motricidade fina, comportamentos agressivos, riso, choro, etc.;

• riqueza: Esta dimensão pode ser medida pela variedade de comportamentos possíveis nesse setting. Os behavior settings variam entre si nesta dimensão no sentido em que há settings mais ricos que outros. Se, mais uma vez, nos socorrermos do exemplo da aula, podemos fazer uma experiência interessante, que tipos de settings o leitor acha mais interessantes e em quais prefereria estar mais tempo se pudesse escolher livremente, em settings ricos ou em settings pobres? Respondeu, “settings ricos”? Muito bem, é compreensível. Passemos agora a outra pergunta. Mais uma vez, se pudesse escolher livremente, onde preferiria estar, numa sala de cinema ou numa sala de aula, digamos de Psicologia Social? Respondeu, “Certamente, no cinema”? Muito bem ainda, é mais do que compreensível. Mas… há aqui só um pequeno problema, é que um setting sala de aula, é mais rico que o setting sala de cinema. Pode ser menos divertido, mas é certamente mais rico. Como? Bem, se virmos as coisas, mesmo só do ponto de vista do aluno, numa sala de aula o aluno pode ver, ouvir, falar com o docente, tomar notas acerca do que estar a assistir,

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enquanto que numa sala de cinema só lhe é possível ver e ouvir, bem… é verdade, também se pode comer pipocas, mas, por exemplo, se não compreendemos alguma coisa dita por um dos actores do filme, não é possível pedir-lhe para repetir. Fica ssim claro que há uma maior e mais variada gama de comportamentos possíveis numa sala de aula do que numa sala de cinema, logo uma sala de aula é um setting mais rico;

PROPRIEDADES DOS BEHAVIOR SETTINGS Os autores identificam ainda os cenários em função de um conjunto de propriedades objectivas: a sua

visibilidade esta propriedade refere-se aos elementos concretos dos behavior settings que os tornam visíveis para os seus ocupantes, isto é, as características do local que permitem às pessoas identificar qual o behavior setting que ocupam num determinado momento e quais os comportamentos adequados a esse local. Essas características podem ser de vário tipo, desde o próprio design do espaço, o arranjo de determinados elementos como por exemplo os assentos numa sala de aula tradicional, todos orientados no sentido do professor, tornam visível que as interacções mais adequadas a esse setting acontecem entre o professor e os alunos. Já, por outro lado, o arranjo dos assentos num café ou num bar, à volta de uma mesa, torna visível que se está num espaço destinado a favorecer a convivialidade, isto é a conversa das pessoas entre si. Outro tipo de marcas de visibilidade podem ser sinais indicativos, do tipo que encontramos por vezes nas bibliotecas e que dizem simplesmente, “silêncio”;

carácter fenomenal:a fenomenologia é uma corrente filosófica e uma forma de abordagem do real originada em 1905 com os trabalhos de Edmund Husserl que se baseia na premissa que a realidade consiste em objectos e acontecimentos tal como são percebidos, ou percepcionados como diria um psicólogo, ou compreendidos pela consciência humana e não algo independente dessa mesma consciência ou experiência humana. Assim, podemos dizer que o carácter fenomenal de um behavior setting corresponde à experiência comum a toda a gente que ocupa esse setting num determinado momento. Naturalmente esta propriedade não se verifica da mesma maneira em todos os settings, mas pode variar em grau de um setting para outro. Mais concretamente, podemos ter settings com um forte carácter fenomenal em que existe uma marcada uniformidade na experiência que os ocupantes têm desse settings à qual corresponde normalmente uma uniformidade de conduta, como por exemplo, um supermercado, uma sala de cinema, um consultório de dentista, etc.. Em outros settings esse carácter fenomenal não é tão forte e então as condutas dos seus ocupantes mostram uma maior variedade, como por

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exemplo um café. Num café??? Poderão poderão perguntar, “Então as pessoas que estão num café não têm todas a mesma experiência de estar num café? Sim, é verdade, todos os ocupantes de um café sabem que estão num café, mas, recordamos, o carácter fenomenal refere-se à “experiência comum a toda a gente que ocupa o setting”, quer dizer, à forma como as pessoas vivem o setting. Ora um café é naturalmente vivido pela maioria das pessoas como um local de convívio, onde as pessoas se encontram para conversar, mas pode ser também vivido como um estabelecimento comercial que se frequenta para tomar uma bebida, ou ainda, como local onde se espera que chegue a hora de ir para o emprego, ou para ler o jornal, ou mesmo estudar como acontece em muitos cafés próximos das universidades, ou para idosos jogarem cartas ou damas, como acontece em alguns cafés de província. Voltando ao nosso exemplo clássico, podemos perguntar, “E uma sala de aula?” Qual será a força do carácter fenomenal de uma sala de aula?

dinâmica interna: Para compreendermos a noção de dinâmica interna de um behavior setting é importante recuperar o conceito de espaço vital que abordámos mais atrás relacionado com o modelo teórico desenvolvido por kurt Lewin. Assim, a dinâmica interna de um behavior setting designa a interdependência entre os diversos padrões fixos de acção característicos de um determinado behavior setting, isto é, os processos que envolvem as pessoas (processos cognitivos e motivacionais), o meio e o comportamento (actividades) num campo de forças interactuantes. Essas forças são possuidoras de propriedade vectoriais como, direcção, intensidade e ponto de aplicação, por isso, a dinâmica interna refere-se, à direcção, intensidade e ponto de aplicação das forças presentes num behavior setting particular. Recorrendo novamente ao exemplo da sala de aula, sabemos que normalmente os assentos e as mesas de trabalho estão orientados na direcção do professor apresentando assim uma estrutura semelhante (sinomórfica) à estrutura de uma aula magistral. Contudo temos normalmente nas instituições de ensino superior dois tipos de salas de aula, as salas com mesas e cadeiras móveis e os anfiteatros. Ora, se comparamos estes dois tipos de sala de aula do ponto de vista da sua dinâmica interna verificamos que uma sala de aula com mesas e cadeiras móveis tem uma maior dinamismo interno porque permite aos seus ocupantes (professor e alunos) alterar o arranjo das mesas e cadeiras para formar um U permitindo assim fazer uma aula mais interactiva tipo seminário. Isto é, a estrutura do meio pode ser alterada de forma a adaptar-se a uma actividade pretendida pelas pessoas que ocupavam o setting. Assim, a consistência de um behavior setting pode ser medida a partir do grau de interdependência entre padrões fixos de acção. Em si mesmo um padrão fixo de acção não tem sentido, seria o mesmo que ver

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um aluno fingindo que está numa aula. Uma sala de aula sem alunos seria igualmente um artefacto sem sentido destinado a mergulhar na entropia.

compreensibilidade: Esta propriedade dos behavior settings designa a percentagem de comportamentos de um indivíduo compreendidos por esse behavior setting. Por exemplo Barker e Wright verificaram que 95 % dos comportamentos das crianças de Oskaloosa ocorreram nos cenários comportamentais identificados pelo seu estudo. Este dado mostra-nos que, sendo os behavior settings normalmente espaços públicos, esta propriedade pode ser uma boa medida da relação entre actividades públicas e privadas numa determinada comunidade;

variedade de atributos Os atributos de behavior setting podem ser organizados a partir das categorias tradicionais: atributos físicos e atributos sociais. Os atributos físicos estão relacionados com os elementos materiais do setting, por exemplo, o tamanho do espaço e a forma como são delimitadas as fronteiras, o tipo de equipamentos de que dispõe, o tipo de milieu natural ou construído, etc.; os atributos sociais estão relacionados com as pessoas e com o tipo de interacções característicos de um determinado setting. Naturalmente os settings podem ser distinguidos entre si tendo em conta a variedade de atributos físicos e sociais que apresentam. Por exemplo uma sala de aula e um parque de jogos variam entre si em praticamente quase todos os atributos tanto físicos como sociais, enquanto que uma aula de matemática e uma aula de dança apresenta uma menor variedade de atributos.

dinâmica externa (ou interdependência dos cenários) A dinâmica externa de um behavior setting é uma propriedade que pode ser descrita em termos das relações de um determinado setting com outros que lhe estão adjacentes, ou seja um determinado grau de dependência ou independência. Pode dizer-se que um behavior setting tem uma elevada dinâmica externa quando o que se passa no seu interior é significativamente afectado pelas actividades que decorrem em settings adjacentes ou uma reduzida dinâmica externa quando pelo contrário um setting está relativamente isolado face a outros settings. Obviamente, o nível de dinamismo externo não é um valor absoluto, mas depende das características de cada setting e das actividades que aí decorrem. Por exemplo se o setting for uma sala de aula podemos pensar que as actividades características desse setting, ou seja o processo de ensino-aprendizagem, poderão ser realizadas com maior sucesso se não existir um grau de dinâmica externa muito elevado.

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CONCLUSÃO Assim, em síntese, um behavior setting existe na interface entre padrões fixos de acção e um determinado milieu, sendo que o comportamento acontece enquadrado pelo milieu e, num certo sentido, o milieu encaixa no comportamento. Numa linguagem mais técnica podemos dizer que a interface entre os padrões fixos de acção e o milieu designa-se por sinomorfia e o milieu é referido como sendo circunjacente e sinomórfico ao comportamento. Por exemplo, numa sala de aula “os alunos aprendem” o que o professor ensina. É esse o padrão fixo de acção (o elemento de relação comportamento/milieu ou “sinomorfo”) porque se está numa sala (o milieu está à nossa volta, quer dizer, é circunjacente) e, como já vimos, os elementos do milieu “encaixam” no padrão (as cadeiras e as mesas de trabalho dos alunos estão todas viradas na direcção do professor, o professor está em pé e os alunos estão sentados, o professor tem um quadro para escrever que uma superfície para escrever maior que a dos alunos onde escreve em letras de maior tamanho, quer dizer, estes elementos são sinomórficos com o comportamento de aprendizagem dos alunos). Para além disso, para ser considerado um behavior setting estes elementos de relação comportamento/milieu ou sinomorfos deverão ter uma certo grau de interdependência entre si (dinâmica interna) maior que a interdependência com outras partes de outros settings40.

Então, um behavior setting é uma entidade auto-referenciada, internamente interdependente e auto-definida que consiste em um ou mais padrões fixos de acção. Assim como os padrões são sinomórficos com os elementos materiais do mileu, eles são também sinomórficos com outros padrões do behavior setting. Assim, a perspectiva ecológica de Roger Barker representa uma concepção elegante e harmoniosa das inter-relações que existem no seio da nossa experiência comum. As peças encaixam umas nas outras e, como num puzzle, a partir do encaixe das peças nos seus respectivos lugares, apercebemo-nos da estrutura mais alargada que constitui o nosso comportamento social localizado.

40Relativamente a este aspecto em particular lembro-me de uma vez em que acedi à

proposta dos alunos para a aula teórico-prática ser dada no pátio interior do edifício da ESE. Colocaram-se umas cadeiras em círculo, mas, evidentemente que foi difícil manter um setting de aula pois outros alunos que passavam ou que simplesmente estavam sentados em mesas próximas por vezes interagiam com os alunos em aula, fazendo com que as interdependências com partes de outro setting, esplanada, fossem maiores que as interdependências dentro do setting aula.