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A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA CRIANÇAS E PARA ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA: entre o princípio da justa medida e as necessidades humanas Cristinno Farias Rodrigues 1 RESUMO O objetivo deste artigo é discutir as necessidades de crianças e de adolescentes em situação de rua à luz dos Direitos Humanos. Com foco na política de assistência social e tendo como pano de fundo o princípio da justa medida em Aristóteles, investigaremos até que ponto o Estado tem conseguido (re) fazer o caminho de volta, aquele que restitui a dignidade humana de crianças e de adolescentes em situação de vulnerabilidade. Palavras chave: Política de Assistência Social; Direitos Humanos; Princípio da Justa Medida; Necessidades; Situação de Rua; Crianças e Adolescentes ABSTRACT The objective of this article is to discuss the needs of street children and adolescents in the light of human rights. With a focus on social assistance policy and against the background of the principle of just measure in Aristoteles, we will investigate to what extent the State has (re) made the way back, that which restores the human dignity of children and adolescents in situation of vulnerability. Keywords: Social Assistance Policy; Human rights; Principle of Fair Measure; Needs; Street situation; Children and Adolescents 1. INTRODUÇÃO O fenômeno da situação de rua vivida no Brasil por crianças e por adolescentes se caracteriza pelas marcas do abandono e da negligência. A situação da população que vive nas ruas está ligada ao sentimento do desamparo, caracterizando-se como um sintoma social, gerado pela incapacidade de organização e atuação de meios institucionais, como a família, a sociedade e o Estado. A primeira parte deste ensaio se ocupa em caracterizar o fenômeno da situação de rua vivida por crianças e por adolescentes, trazendo algumas categorias relevantes, implicadas neste processo, a exemplo da exclusão e marginalização. Situaremos o debate a partir da década de 1990, com recorte para a corrente ideológica do neoliberalismo, dados os seus rebatimentos na nova (con) formação do Estado e de suas políticas. No segundo momento, trazemos o debate teórico-conceitual acerca da categoria necessidades. Partindo do princípio da justa medida em Aristóteles, estabeleceremos um 1 Assistente Social, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão; Mestre em Psicologia Social (PUC-Minas). E-mail: [email protected]

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A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL PARA CRIANÇAS E PARA ADOLESCENTES

EM SITUAÇÃO DE RUA: entre o princípio da justa medida e as necessidades humanas

Cristinno Farias Rodrigues1

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir as necessidades de crianças e de adolescentes em situação de rua à luz dos Direitos Humanos. Com foco na política de assistência social e tendo como pano de fundo o princípio da justa medida em Aristóteles, investigaremos até que ponto o Estado tem conseguido (re) fazer o caminho de volta, aquele que restitui a dignidade humana de crianças e de adolescentes em situação de vulnerabilidade. Palavras chave: Política de Assistência Social; Direitos Humanos; Princípio da Justa Medida; Necessidades; Situação de Rua; Crianças e Adolescentes

ABSTRACT The objective of this article is to discuss the needs of street children and adolescents in the light of human rights. With a focus on social assistance policy and against the background of the principle of just measure in Aristoteles, we will investigate to what extent the State has (re) made the way back, that which restores the human dignity of children and adolescents in situation of vulnerability. Keywords: Social Assistance Policy; Human rights; Principle of Fair Measure; Needs; Street situation; Children and Adolescents

1. INTRODUÇÃO

O fenômeno da situação de rua vivida no Brasil por crianças e por adolescentes

se caracteriza pelas marcas do abandono e da negligência. A situação da população que vive

nas ruas está ligada ao sentimento do desamparo, caracterizando-se como um sintoma social,

gerado pela incapacidade de organização e atuação de meios institucionais, como a família,

a sociedade e o Estado.

A primeira parte deste ensaio se ocupa em caracterizar o fenômeno da situação

de rua vivida por crianças e por adolescentes, trazendo algumas categorias relevantes,

implicadas neste processo, a exemplo da exclusão e marginalização. Situaremos o debate a

partir da década de 1990, com recorte para a corrente ideológica do neoliberalismo, dados os

seus rebatimentos na nova (con) formação do Estado e de suas políticas.

No segundo momento, trazemos o debate teórico-conceitual acerca da categoria

necessidades. Partindo do princípio da justa medida em Aristóteles, estabeleceremos um

1 Assistente Social, doutorando em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão; Mestre em Psicologia Social (PUC-Minas). E-mail: [email protected]

diálogo entre os significados de necessidades humanas abordados na obra de Agnes Heller

(1978), Teoría de las Necesidades en Marx.

Na terceira parte, tratamos sobre a constituição da política de assistência social

enquanto um direito humano, com foco no seu atendimento à infância vulnerabilizada. A partir

de uma retrospectiva histórica das políticas públicas para a infância, exploramos quais ações

desta política foram constituídas e até que ponto atendem às atuais necessidades das

crianças e dos adolescentes em situação de rua.

2. “Meninos de rua”: Verso e Reverso

Filhos da Precisão2

Pelas marginais, passarão meninos

Guardando o país, por quem batem os sinos

Se pelas catedrais, os filhos da precisão

Pedirão mais por outro destino

Do que por sair da lama

Com pose de dama em carnavais

Esquecerão as dores, lembrarão de Deus

Num por vir que aflore dor (Erasmo Dibell3)

Os filhos da precisão ainda passarão nas marginais. A persistente situação de rua

vivida por crianças e por adolescentes no Brasil ainda é um problema social que tem se

agravado. Alguns trechos da música acima retratam aspectos de uma infância negada,

relegada a segundo plano, pedindo por outro destino. O seu título já reflete a condição

daqueles que já nascem destituídos de direitos e vivem com persistentes carências,

necessidades.

O ‘estar’ em situação de rua não pode ser concebido como um bem e aponta para

inúmeras dificuldades relacionadas à territorialização precária e vulnerabilidade local que

evidenciam algumas dimensões do desamparo: a insegurança frente aos estabelecidos, a

precarização da vestimenta, higiene e alimentação e o risco iminente de adoecimentos e

2 Música de autoria do artista maranhense Erasmo Dibell. 3 Natural de Carolina (MA), Erasmo Dibell é um dos artistas mais populares do Estado e um dos melhores compositores maranhenses que surgiram a partir da primeira metade dos anos 90; o destaque dado ao autor se dá pela forma diferenciada com que aborda questões sociais, o lirismo de sua poesia e seu peculiar suingue ao violão.

morte por atropelamentos ou assassinatos, quando a categoria exclusão assume a sua faceta

mais perversa.

O ‘viver’ em situação de rua está associado a um processo de exclusão que não

se limita à dimensão material, da ‘despossessão’ de bens, desincorporação,

desterritorialização ou desfiliação social. É ainda mais grave. O conceito de exclusão que

abordaremos é atinente à definição estabelecida por Kowarick (2002), que a significa não

apenas como apartação social, diga-se, cidadania privada ou subcidadania, mas um processo

de estigmatização e discriminação, repulsa ou rejeição. Sobre essa matéria, o referido autor

aborda, ainda, o princípio da exclusão, que vai além da ideia de exclusão enquanto isolamento

ou banimento, chegando no extremo de “[...] negar ao outro o direito de ter direitos: é o instante

extremo em que representações e práticas levam à demonização do outro, tido e havido como

encarnação do mal e, portanto, passível de ser eliminado” (KOWARICK, 2002, p. 25).

Se a vida nas cidades recebe as marcas do desamparo, o viver em situação de

rua é um desamparo levado ao paroxismo, sobretudo se considerarmos o público criança e

adolescente, que, conforme legislação vigente se refere a seres em desenvolvimento,

incompletos, não preparados. Podemos perceber tal radicalidade a partir da reverberação dos

discursos sociais que comumente associam crianças e adolescentes em situação de rua às

expressões “delinquentes”, “trombadinhas”, “ladrões” e “marginais”.

“Pelas marginais, passarão meninos (...)” Neste caso, o termo marginais, que na

música informa sobre ruas, avenidas e logradouros públicos, ganha outra conotação e passa

a se referir aos próprios sujeitos que ocupam o espaço das ruas, denotando estigmas

relacionados à imagem de bandidos, perigosos, malandros, culpados, etc. Com um olhar mais

acurado, aquilo que se apresenta como ‘vilão’ ou ameaça, é resultado de um processo

histórico de produção de desigualdades, inscrito na sociedade capitalista que entremeia

modernização, exclusão e marginalização. Milton Santos em seu clássico A Pobreza Urbana

assim define tal processo:

Se, por um lado, a economia incorpora um certo número de pessoas ao mercado de trabalho efetivo, através de empregos recém criados, por outro, ela expulsa um número muito maior, criando de um só golpe o subemprego, o desemprego e a marginalidade. O número desses “postergados” aumenta cada vez mais. É para esses remanescentes da força de trabalho nos níveis mais baixos do espectro sócio-profissional que foi reservado o termo marginal. (SANTOS, 1979, p. 34)

Neste sentido, se faz relevante buscar compreender a conjuntura nacional e local

referentes às ações do Estado no enfrentamento das adversidades vividas por crianças e por

adolescentes em situação de rua. A Assistência Social tem avançado, sobretudo com os

serviços de acolhimento, abrigamento, abordagem social e identificação. Entretanto, num

contexto de recessão política, desmonte de direitos sociais e avanço neoliberal4, faz-se

necessário um reordenamento das ações estatais, bem como uma reconfiguração das

demandas e pressões sociais, rumo ao atendimento pelos serviços públicos estatais.

Cumprir tal tarefa requer esclarecer algumas posições teórico-metodológicas

referentes à categoria necessidades. No próximo tópico, investigaremos de que formas esta

categoria aparece e se relaciona na confluência das ideias de Aristóteles (2015) e Heller

(1978).

3. A justa medida e as necessidades humanas

Na obra Ética a Nicômaco, o princípio da justa medida é apresentado por

Aristóteles (2015) como um recurso racional de busca pelo equilíbrio e pela boa e justa

deliberação. Ressalta o pensador que a felicidade se define como a atividade da alma no

campo das virtudes.

“Assim, a virtude se distingue segundo esta diferença: de fato, dizemos que umas são intelectuais e outras morais; a sabedoria, a inteligência e a prudência são as intelectuais, enquanto a liberalidade e temperança são as morais. De fato, quando falamos a respeito do caráter, não dizemos que ele é sábio ou inteligente, mas que é moderado e prudente: mas nós elogiamos assim o sábio, segundo as suas condições, e dentre as condições, as dignas de elogios são as que chamamos virtudes (ARISTÓTELES, 2015, p. 40).

As virtudes intelectuais se relacionam com as experiências e com os

aprendizados, pertencem ao domínio do tempo, do vivido. Já a virtude ética é resultado direto

do hábito, do costume, e não se constitui no ser humano por natureza, haja vista que nada do

que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito.

"[...] como a pedra, por exemplo, que se move por natureza para baixo, não se habituaria a mover-se para cima, nem se alguém, dez mil vezes, habitue-se a jogá-la para cima; e nem se pode habituar o fogo para baixo, e nem qualquer coisa, que de modo geral é por natureza, poderia habituar-se de modo diferente" (ARISTÓTELES, 2015, p. 41).

Assim, o hábito é o exercício da aprendizagem: é fazendo que aprendemos; é

construindo que se torna construtor. “Assim também, é praticando as ações justas que nos

tornamos justos, e as ações moderadas que nos tornamos moderados [...]” (ARISTÓTELES,

2015, p. 42)

4 A partir da caracterização feita por Behring (2011), entendemos o Neoliberalismo enquanto um conjunto de ideias

e medidas políticas e econômicas, como uma reação teórica ao Estado intervencionista e de bem-estar, que produzem como principais consequências: “[...] aumento do desemprego, destruição de postos de trabalho não qualificados, redução dos salários devido ao aumento da oferta de mão-de-obra e redução de gastos com políticas sociais” (BEHRING, 2011, p. 127).

Trata-se, pois, de, progressivamente, se alcançar um sistema de medidas tomado

por modelo de medida correta para resolver o problema da adequação, que reconhece os

seres como diferentes e possuidores de diferentes potenciais e diferentes necessidades.

“Em tudo que é contínuo e divisível é impossível distinguir o maior, o menor e o igual, seja na própria coisa, seja em relação a nós; e o igual, sendo um meio-termo entre o excesso e a falta. Entendo por meio-termo da própria coisa o que se desvia em igual distância de cada um dos extremos, que é único e idêntico para todos os homens; e por meio-termo em relação a nós, o que não é nem demasiado, nem muito pequeno, e não uma coisa única nem idêntica para todo mundo.” (ARISTÓTELES, 2015, p. 49)

É assim que o princípio da justa medida nos leva a pensar sobre o problema da

exatidão atrelado ao caráter processual (e contextual) dos acontecimentos da vida. O conceito

aristotélico evidencia, assim, a necessidade de se pensar nos extremos, como pontos de

referência para se estabelecer um meio-termo, um ponto de equilíbrio. Trata-se de vislumbrar

o problema da adaptabilidade às situações, seus procedimentos adaptativos, tomando por

base, para julgamento, os extremos.

“Contudo, é entre os extremos que a dissemelhança existe em seu mais alto grau; aliás, as coisas que estão afastadas uma de outra são definidas como contrárias, e por consequência as coisas que estão mais afastadas entre si, são também as mais contrárias.” (ARISTÓTELES, 2015, p. 57)

É desta forma, portanto, que Aristóteles definiu o princípio da justa medida: um

meio-termo entre dois vícios marcados e definidos pelo excesso e pela falta, e que visa a

posição intermediária nas paixões e nas ações. (ARISTÓTELES, 2015)

Situando o debate no modelo da sociedade capitalista – na qual se inscreve o

objeto aqui investigado -, apresentamos como extremos a divisão das classes sociais, que a

cada nova paragem se apresentam cada vez mais impelidas, uma em relação contrária à

outra. É nesse movimento entre os extremos das classes sociais que se constituíram as

políticas sociais. Portanto, se quisermos compreender o debate sobre as formas contraditórias

de atendimento às necessidades humanas, criadas no (e pelo) sistema capitalista,

precisaremos entender o papel do Estado Social.

Conforme Boschetti (2016), o fato de assumir uma “feição” social não extingue do

Estado a sua natureza capitalista e nem faz dele um lugar neutro de produção de bem estar

e, portanto, de atendimento às necessidades sociais. Logo, as políticas sociais “[...] são

resultado de relações contraditórias determinadas pela luta de classes, pelo papel do Estado

e pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas [...]” (BOSCHETTI, 2016, p. 25)

Como mecanismos de atendimento às necessidades, as políticas sociais são

formas civilizatórias que instituíram direitos e deveres que conseguem alterar o padrão de

dissemelhança entre as classes sociais: “Alterar o padrão de desigualdade não significa

superar a desigualdade, mas provocar a redução das distâncias entre rendimentos e acesso

aos bens e serviços entre as classes.” (BOSCHETTI, 2016, p. 25)

A Assistência Social é um exemplo de política social diretamente vinculada ao

atendimento das necessidades humanas, conforme veremos no tópico seguinte.

Historicamente, o campo das necessidades humanas já foi objeto de investigação de diversos

pensadores. A falta é marca ontológica da espécie e tem sido satisfeita de diferentes formas,

em diferentes contextos.

Na busca por uma antropologia marxista geral, Heller (1978) desenvolveu a obra

Teoría de las Necesidades en Marx, tratando de uma perspectiva crítica que não considera a

natureza humana fixa e imutável, um vez que esta natureza é marcada pela falta, pelas

necessidades, pelos desejos (necessidades individuais) e pelas carências (necessidades

sócio-políticas). Cada época irá atender a esta falta de formas diferenciadas.

Segundo a interpretação de Heller, quando Marx estabelece a classificação das

necessidades como “naturais” e “socialmente produzidas”, não há negação do conteúdo das

necessidades naturais, aquelas atreladas à condição de sobrevivência física, a exemplo da

alimentação, moradia e vestimenta. “La necesidad física corresponde aquí a la biológica, esto

es, a aquellas necesidades dirigidas a la conservación de las meras condiciones vitales.”

(HELLER, 1978, p. 28)

Logo, conforme Heller (1978), a redução das necessidades humanas a

necessidades de conteúdo social, incluindo as de natureza biopsicológica, são um produto da

sociedade capitalista. “Es la sociedad burguesa la que subordina los sentidos humanos a las

burdas necesidades prácticas y las hace abstractas, reduciéndolas a meras necesidades de

supervivencia.” (HELLER, 1978, p. 29).

Assim, a compreensão de que o sistema capitalista é um sistema alienado de

necessidades implica sua visualização como sistema contraditório, que impede o atendimento

às necessidades humanas fundamentais. Na medida em que as necessidades são

socialmente construídas e se desenvolvem em relação a objetos ou meios objetivados de

satisfação, o privilégio da posse de bens se dá a partir desta indiferença em relação ao valor

de uso. Sem haver [necessidade de] satisfação imediata, não há limite para a acumulação.

Donde advém o poder de compra (dinheiro):

«Lo que mediante el ‘dinero’ es para mí, lo que puedo pagar, es decir, lo que el dinero puede comprar, eso ‘soy yo’ , el poseedor del dinero mismo. Mi fuerza es tan grande como lo sea la fuerza del dinero. Las cualidades del dinero son mis —de su poseedor— cualidades y fuerzas esenciales. Lo que ‘so y ’ y lo que ‘pu e do’ no están determinados en modo alguno por mi individualidad (...) (MARX apud HELLER, 1987, p. 63).

É desta forma que todas necessidades se convertem na necessidade de posse,

na necessidade de ter. A obra helleriana elucida claramente que a grande preocupação de

Marx foi a superação do modo de produção capitalista, uma vez que há impossibilidade

concreta e radical de que, neste sistema de produção, os indivíduos se desenvolvam

plenamente e em liberdade, sobretudo por que a liberdade no capitalismo não está para os

homens, mas para o mercado, que figura como mediador das necessidades humanas, ao qual

a sociedade como um todo está subordinada.

É nesta relação que o capitalismo torna homogênea toda forma de necessidade,

naturalizando este processo e desprezando por completo a alteridade.

“Cuando cesa el dominio de las cosas sobre el hombre, cuando las relaciones interhumanas no aparecen ya como relaciones entre cosas, entonces toda necesidad es gobernada por la «necesidad de desarrollo del individuo», la necesidad de autorrealización de la personalidad.” (HELLER, 1978, p. 85).

Em relação ao padrão (ou medida) brasileiro de atendimento às necessidades

humanas, encontramos no pensamento de Pereira (2007) alguns contornos essenciais. A

crítica da referida autora incide sobre o padrão adotado pelas políticas sociais quando trata

de oferecer os mínimos sociais, em contraponto ao atendimento das necessidades humanas

básicas.

Fruto secular das sociedades divididas em classes – sejam elas escravistas, feudais ou capitalistas -, a provisão de mínimos sociais, como sinônimo de mínimos de subsistência, sempre fez parte da pauta de regulações desses diferentes modos de produção, assumindo preponderantemente a forma de uma resposta isolada e emergencial aos efeitos da pobreza extrema (PEREIRA, 2007, p. 15).

A justa medida entre o mínimo e o básico é um contraponto. Pereira (2007) trata

como assimétricas as noções entre os dois termos, sem equivalência conceitual, teórica,

política e muito menos factual. O foco da sua crítica está voltado para o Art.1º da Lei Orgânica

da Assistência Social, especificamente nos trechos “[...] que provê os mínimos sociais [...],

visando ao atendimento de necessidades básicas”. Na medida em que os beneficiários da

política de assistência social são atendidos por um padrão de serviços adaptados a um

modelo que provê aquilo que é mínimo, o vício aqui é marcado pela escassez, onde o mínimo

nega o outro extremo, o ‘ótimo’ de atendimento, que pode ser impulsionado pelo padrão

básico.

Mínimo e básico são, na verdade, conceitos distintos, pois, enquanto o primeiro tem a conotação de menor, de menos, em sua acepção mais ínfima, identificada com patamares de satisfação de necessidades que beiram a desproteção social, o segundo não. O básico expressa algo fundamental, principal, primordial, que serve de base de sustentação indispensável e fecunda ao que a ela se acrescenta (PEREIRA, 2007, p. 26).

Finalmente, há que se ressaltar que a condição de vulnerabilidade e precarização

da vida, que leva crianças e adolescentes à desventura pela sobrevivência nas ruas

brasileiras, os vitimizam, também, pela fragilidade de se medirem, de se perceberem e de

reconhecerem quais são as suas necessidades. Devido a dificuldades insuperáveis de

existência, muitas pessoas reduzem o arco de seus desejos e se conformam com o que têm

(SEN, 1976).

No próximo tópico veremos de que forma o Estado tem avançado no

enfrentamento à situação de rua vivida por crianças e por adolescentes, a partir da política de

assistência social.

4. A Política de Assistência Social para crianças e para adolescentes em situação de

rua

As raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil sempre giraram

em torno da conjunção assistência e repressão (Rizzini, 2008, p. 21). A história da infância

pobre brasileira5 vai sendo moldada até os anos de 1980, passando pelo primeiro damismo

da LBA, pelo entulho autoritário da ditadura militar e alcançando o movimento de

redemocratização, que trouxe significativos avanços para a população brasileira, inclusive

com a posterior criação de leis específicas, a exemplo do Estatuto da Criança e do

Adolescente e da Lei Orgânica da Assistência Social, que competem para a defesa de direitos

da população infanto-juvenil em situação de vulnerabilidade.

Ressaltamos que a expressão “situação de rua” se refere ao caráter processual

da vida nas ruas, no sentido de definir a ideia de trajetórias (idas e vindas), em detrimento da

ideia predominante (e pejorativa), cristalizada no imaginário coletivo, de que se trata de

pessoas de rua, como apêndices das paisagens urbanas. (Rizinni et al.2010)

Evocamos, aqui, mais um trecho da música citada no ‘item 2’ deste ensaio:

“pedirão mais [...]”. Como vimos, somente a partir da Constituição Federal de 1988 é que a

pobreza é retirada da invisibilidade, atendendo aos que dela necessitarem e substituindo as

velhas formas tradicionais de caridade e filantropia que conformavam os pobres no lugar de

pedintes.

Neste sentido, a Lei Orgânica da Assistência Social é inovadora na medida em

que institucionaliza benefícios, serviços, programas e projetos como forma de garantir direitos

sociais às pessoas que necessitam de auxílio e que se encontram em situação de

vulnerabilidade. Conforme Yasbek (2004):

Como lei, inova ao afirmar para a Assistência Social seu caráter de direito não contributivo (independente de contribuição à Seguridade e para além dos interesses do mercado), ao apontar a necessária integração entre o econômico e o social e ao

5 Até a promulgação da Constituição Federal de 1988, a assistência à infância foi repressiva e coercitiva.

Destacamos como principais marcos históricos daquele período o Código de Menores de 1927; A Legião Brasileira de Assistência (1942); o Serviço de Assistência ao Menor (1941); Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (1964) e as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor.

apresentar novo desenho institucional para a Assistência Social. (YASBEK, 2004, p. 13).

Quanto aos objetivos da LOAS, destacamos no Art. 2º, os incisos I e II, que

definem:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; (BRASIL,1993, p.4).

Dentro do novo ordenamento jurídico-institucional, o atendimento à situação de

rua vivida por crianças e por adolescentes, passa pela Proteção Social Especial, que deve se

ocupar de ações voltadas a indivíduos cujos vínculos familiares estejam rompidos ou

ameaçados, vítimas de situações de abandono, maus tratos, abuso sexual, uso de

substâncias psicoativas, trabalho infantil, situação de rua. A dimensão da alta complexidade

expressa a exigência da implementação de medidas protetivas e de ações cautelares integrais

e estritas, onde as necessidades humanas elementares (alimentação, asseio, higiene,

vestimenta, proteção) e básicas (educação, moradia, saúde e assistência social) possam ser

reparadas.

Mesmo com avanços no campo jurídico-institucional, o enfrentamento às

vulnerabilidades ainda é incipiente. Sobre a avaliação da implementação de ações

interventivas na área da infância, Silva e Motti (2002), ao avaliar os dez anos de

implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente, apontam para as fragilidades

presentes no processo de institucionalização do direito, da democracia e da cidadania infanto-

juvenil.

Após dez anos de ECA, o grande desafio apontado é a efetiva implementação do paradigma da proteção integral e de seus dispositivos, em especial a universalização das políticas públicas e a promoção do protagonismo das crianças e dos adolescentes (Silva e Motti et al 2002, p. 194).

Durante o período de 2006 a 2009, Couto et al (2017) desenvolveram uma

investigação empírica do processo de implantação e implementação inicial do Suas. Em

relação às regiões Norte e Nordeste, os resultados da referida pesquisa apontam para alguns

avanços: a participação de outros profissionais – além de Assistentes Sociais - na

implementação do Suas, e o fato de que a opinião da maioria dos entrevistados indica que as

demandas históricas no campo da Assistência Social foram contempladas no desenho da

PNAS.

A implementação do Suas nos estados e municípios do Norte e Nordeste vem expressando esse avanço mediante a construção de uma nova institucionalidade com uma considerável expansão dos objetivos da política e dos serviços desenvolvidos, que passam a ser prestados e organizados com tendência a maior unidade e uniformidade (COUTO, et al, 2017, p. 160).

Em relação aos aspectos dificultadores da referida pesquisa, destacamos a

fragilidade da participação dos usuários no controle social da Assistência Social e o

descompasso entre o sistema legal sancionado pela Política e os limites dos espaços públicos

capazes de viabilizar as regras formalizadas. De acordo com as autoras:

Pôde-se observar mesmo que a ação dos sujeitos sociais, sobretudo no interior dos Cras, em geral, se desenvolvem à margem desse sistema legal sancionado pelo Estado, reproduzindo a lógica do assistencialismo, tanto em razão da cultura política quanto da dificuldade que o Estado (normas legais, equipamentos, pessoal) encontra para se fazer presente em muitas regiões do país (COUTO, et al 2017, p. 163).

Em linhas gerais, na revisão bibliográfica aqui empreendida, as políticas sociais

ainda persistem em figurar como historicamente subordinadas aos interesses econômicos

dominantes e, por isso, com pouca efetividade no enfrentamento à desigualdade e à pobreza,

mantendo práticas de exclusão e produção de vulnerabilidades, ainda mais acentuadas pela

esteira neoliberal.

No caso da Assistência Social, o quadro é ainda mais grave. Apoiada por décadas na matriz do favor, do clientelismo, do apadrinhamento e do mando, que configurou um padrão arcaico de relações, enraizado na cultura política brasileira, esta área de intervenção do Estado caracterizou-se historicamente como não política, renegada como secundária e marginal no conjunto das políticas públicas (COUTO et al, 2017,

p. 61 e 62).

Para ilustrar, sobre o panorama maranhense, a pesquisa realizada pelo

Observatório Criança (2014), volume V, aponta que a situação da Assistência Social no

Maranhão, no período analisado entre 2010 e 2014, estava precária: o Estado do Maranhão,

no ano de 2010, ocupava o último lugar no ranking da extrema pobreza no Brasil.

Se considerado o critério de renda per capita, o estado ocupava a última posição do ranking nacional em termos de população em situação de extrema pobreza no país, com 26,3% da população sobrevivendo com uma renda per capita mensal inferior a R$ 70,00 (setenta reais). Esse percentual correspondia a 1.729.170 pessoas nessas condições (Observatório Criança, 2014, p. 30).

Quanto à situação da infância maranhense, a pesquisa destaca alguns dados

relacionados à violação de direitos, ocorridos no ano de 2010: violência física (85 casos);

violência psicológica (89 casos); abuso sexual (91 casos); exploração sexual (87 casos);

negligência ou abandono (85 casos); trabalho infantil (87 casos); situação de rua (45 casos)

(Observatório Criança, 2014, p. 40).

Não obstante, não podemos perder de vista o caráter de intervenção e

transformação que possuem as políticas sociais. Concordamos com Silva (2013) quando

afirma que as políticas públicas são formas de intervenção na sociedade e meios de atender

a interesses diversos, podendo se constituir em instrumentos de emancipação de grupos

excluídos, a exemplo de crianças e de adolescentes vítimas de violências. Conforme Silva

(2013):

Ademais, toda política pública é tanto um mecanismo de mudança social, orientado para promover o bem-estar de segmentos sociais, principalmente os mais destituídos, devendo ser também um mecanismo de distribuição de renda e de equidade social, vista como um mecanismo que contém contradições. Contraponho-me à percepção da política pública como mero recurso de legitimação política ou de uma intervenção estatal subordinada tão somente à lógica da acumulação capitalista (SILVA, 2013, p. 20).

“Pedirão mais por outro destino do que por sair da lama com pose de dama em

carnavais (...)”. Outro destino é preferível e necessário. Pensar a adaptabilidade, pois, a

moderação, a medida justa, a mediação política, é pensar a inversão de uma realidade que

ainda insiste em aprisionar a infância, que clama pela transformação e, com a altivez que lhe

sobra, insiste em sobreviver.

5. CONCLUSÃO

O que tentamos trazer neste ensaio diz respeito a algumas ponderações sobre o

mal estar ocasionado pela vida nas ruas: o desamparo, a fome, as ameaças, os adoecimentos

e os estigmas são alguns dos sintomas sociais que marcam as pessoas na referida condição,

mais ainda crianças e adolescentes, seres em desenvolvimento, mas também postergados,

remanescentes.

Mesmo com avanços significativos, a política de assistência social ainda possui

grandes desafios na efetivação dos direitos infanto-juvenis. A persistente situação de rua

ainda é um grave problema social que requer intervenções do Estado e da Sociedade Civil.

O que vivemos nos idos de 1980, durante a redemocratização do país, nos

trouxe amplas conquistas no campo dos Direitos Humanos: a derrubada da ditadura militar; o

direito ao voto; a promulgação da Constituição Federal. Na arena dos movimentos sociais, o

Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, junto com a força de outras organizações

da sociedade civil – a exemplo do Fórum-DCA – emplacaram dois artigos de iniciativa popular

na Constituição Federal. Dois anos depois, também avançamos com a promulgação do

Estatuto da Criança e do Adolescente.

E avançamos muito desde então. Mas muito ainda temos para avançar. O

momento exige uma re-organização da sociedade civil em prol da efetivação dos direitos

infanto-juvenis. Acreditamos, também, que investir em pesquisas e produção de

conhecimentos é uma das formas de retirar os ‘invisíveis’ da invisibilidade, por meio das

publicações e debates, que também podem assumir a forma de denúncia. Como afirmou o

filósofo do século XX, Gaston Bachelard: “Pensar é pesar.”

REFERÊNCIAS

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