A REVOLUÇÃO DO CONSUMIDOR

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    R E L A T R I O D E P E S Q U I S A N 34 /1997

    RESUMO O objetivo deste estudo recuperar as razes da cultura do consumidor contemporneo. Com nfase sobre a relao entre o consumo e as dimenses culturais e polticas da vida social, faz-se uma anlise integrada de uma srie de processos ocorridos na Europa desde fins da Idade Mdia at o sculo XVIII - entre os quais a emergncia do absolutismo, o crescimento das cortes reais e a formao de um estilo de vida que lhes prprio ( nesse grupo social que se gestam os primeiros padres modernos de consumo), o advento de uma nova relao com o passado e o presente, o desenvolvimento do individualismo - que se revela crucial para a compreenso da gnese dos valores e padres de comportamento do consumidor atual.

    PALAVRAS-CHAVES Cultura do consumidor; Comportamento do consumidor; Consumo; Moda; Histria.

    ABSTRACT This study aims at disclosing the roots of contemporary consumer culture. By emphasizing the relationship between consumption and cultural and political dimensions of social life, this analysis focuses on some processes that took place in Europe since the end of Middle Ages throughout the XVIII century - e.g. the rise of absolutism, the development of royal courts and of a new life-style among them (they are the social group in which the first modern consumption features came to light), the upcoming of present (and no longer past) as the main reference frame for action, a new balance between tradition and novelty, the emergence of individualism - which are crucial to understand the genesis of present consumer standards and values.

    KEY WORDS Consumer culture; Consumer behavior; Consumption; Fashion; History.

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    SUMRIO

    I. Relatrio da pesquisa........................................................................................ 3

    1. O projeto .................................................................................................... 3

    2. Trajetria da pesquisa ................................................................................. 4

    II. Texto com anlise dos resultados...................................................................... 5

    1. Introduo .................................................................................................. 5

    2. O consumo conspcuo e a competio de status .......................................... 9

    3. O desenvolvimento do Estado, a centralizao do poder real e o

    consumo das cortes ................................................................................... 15

    3.1. A submisso da aristocracia ao poder real ........................................ 15

    3.2. O processo civilizador ...................................................................... 19

    3.3. A ostentao como meio de expresso do poder ............................... 24

    3.4. A corte: mudana de padro de consumo .......................................... 26

    4. O desenvolvimento da moda..................................................................... 29

    5. Estilos de vida e valores de consumo........................................................ 33

    6. Consideraes finais ................................................................................. 37

    III. Bibliografia bsica............................................................................................ 39

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    A REVOLUO DO CONSUMIDOR

    Gisela Black Taschner*

    I. RELATRIO DA PESQUISA

    1. O PROJETO

    O projeto A revoluo do consumidor parte de uma pesquisa mais ampla que estou realizando sobre a histria do consumo e a formao dos estilos de vida, na qual o consumo tomado como foco de anlise e examinado a partir de suas conexes com a dimenso cultural da sociedade.

    O objetivo desta investigao recuperar a trajetria do consumo na histria, desde o incio do perodo moderno, tomando-o (o consumo) como centro da anlise e usando a sua relao com a cultura como enquadramento privilegiado, de modo a definir momentos-chaves de sua evoluo at nossos dias. Trata-se de repensar o perodo de formao da sociedade capitalista contempornea, da perspectiva de mudanas de padres de consumo, entrelaados com mudanas culturais e polticas, e no como mera decorrncia do aumento de capacidade produtiva.

    A hiptese de trabalho utilizada que Revoluo Industrial pode-se contrapor uma revoluo no consumo.

    Em termos de metodologia, esta pesquisa est sendo feita em diversas etapas. Em uma primeira fase, trata-se de pensar a trajetria do consumo em pases do chamado * Agradecimentos aluna que participou da pesquisa que originou o presente relatrio como auxiliar de pesquisas, Ida Lima Pereira Dourado e tambm a Maria Paula Viccrio Acha, bolsista do PIBIC (Programa Institucional de Iniciao Cientfica).

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    Primeiro Mundo. Na segunda, trata-se de examinar o caso do Brasil, tendo como referencial de anlise os resultados obtidos na etapa anterior.

    O presente projeto refere-se primeira dessas etapas. Nela se examinou a trajetria do consumo em pases do chamado Primeiro Mundo, tentando apreender as conexes dessa trajetria com determinantes socioculturais e polticos. As fontes utilizadas nessa etapa foram, sobretudo, bibliogrficas, embora este estudo no possa ser caracterizado como uma pesquisa bibliogrfica no sentido comumente atribudo a essa expresso, pois eu no podia fazer, simplesmente, uma sistematizao da bibliografia j existente sobre a histria do consumo. A bibliografia especfica sobre esse tema relativamente escassa. Foi da anlise de textos que tinham outro ncleo de preocupaes que pude extrair muitos dos elementos necessrios compreenso da trajetria do consumo em pases do Primeiro Mundo. Em outras palavras, muitos textos foram usados como fontes documentais.

    Em termos de parmetros temporais, o recuo at fins da Idade Mdia fez-se necessrio, uma vez que o bero da cultura do consumidor contemporneo parecia estar no estilo de vida desenvolvido pelos nobres europeus a partir do desenvolvimento das cortes.

    2. TRAJETRIA DA PESQUISA

    A pesquisa serviu-se de um levantamento feito em CD-ROM nas bibliotecas da EAESP-FGV e da USP, alm de outros feitos na British Library, na Internet e de textos previamente adquiridos. O processo de recuperao de textos, no entanto, lento e precrio. H textos que no recebi at o momento de escrever o presente relatrio e que, portanto, sero incorporados pesquisa apenas no futuro.

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    O material j examinado, no entanto, foi suficiente para revelar uma problemtica do consumo muito mais ampla e rica do que se poderia imaginar primeira vista e com fontes muito menos sistematizadas que o previsto.

    Considerando-se que este projeto se insere numa preocupao mais ampla de compreender a trajetria do consumo em pases do Primeiro Mundo, de modo a subsidiar, futuramente, a anlise do caso brasileiro, procurei manter como foco, neste trabalho que ora relato, a delimitao dos aspectos essenciais, no mbito cultural e poltico, para se compreender a gnese e as matrizes da cultura do consumo.

    II. TEXTO COM ANLISE DOS RESULTADOS

    Ver, anexo, o paper referente a este item.

    1. INTRODUO

    O consumo tem sido muito estudado do ponto de vista do marketing e da psicologia. Na economia e na sociologia, o consumo foi menos estudado, ou melhor, foi abordado predominantemente sob uma tica que privilegiava a produo.1

    Em Marx, por exemplo, o consumo que tratado mais diretamente o consumo produtivo, pois o consumo final ocorre j fora do circuito da reproduo do valor e da mais-valia e, desse ponto de vista, um processo cujas caractersticas peculiares torna-se menos urgente esclarecer em detalhe. Marx no nega importncia ao consumo enquanto ato de aquisio, na medida em que ele parte do momento da realizao do valor, e esse momento tende a se tornar um gargalo do processo de

    1 Aqui se incluem o marxismo em inmeras variantes e, posteriormente, os frankfurteanos.

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    acumulao medida que o capitalismo se desenvolve.2 Mas a tica novamente a da produo do valor (e reproduo do capital).

    O prprio Marx, no entanto, deixa uma abertura (que ele pessoalmente no explora) para se perceber que o consumo, ainda que determinado pela produo, um momento que tem seus desdobramentos e condicionantes: por exemplo, em Contribuio Crtica da Economia Poltica3, ele afirma:

    O objeto (... de consumo...) no um objeto geral, mas um objeto determinado, que deve ser consumido de forma determinada, qual a prpria produo deve servir de intermedirio. A fome a fome, mas fome que se satisfaz com carne cozinhada, comida com faca e garfo, no a mesma fome que come a carne crua, servindo-se das mos, das unhas, dos dentes.

    nestes termos que Marx abre as possibilidades de se perceber a dimenso simblica que os processos de consumo envolvem e, portanto, a sua relao com a dimenso cultural da sociedade.

    medida que se veja o consumo como momento determinado pela produo, mas que tem sua prpria problemtica e seus efeitos sobre a totalidade social, comea a fazer sentido pensar a emergncia de uma cultura do consumo ou do consumidor.

    E quando se pode falar numa cultura do consumo? Uma possibilidade a partir do momento em que no os bens, mas a imagem desses bens se torna acessvel a todos na sociedade. Isso obviamente apenas um indcio para se poder detectar a presena dessa cultura e de modo algum significa que ela se reduza a ele. todo um conjunto de imagens e smbolos que vo sendo criados e recriados, associados a esses bens, alm de novas formas de comportamento efetivo e no modo de pensar e sentir de segmentos cada vez mais amplos da populao da chamada sociedade ocidental.

    2 Isso aparece, por exemplo, na teorizao das crises e na questo do subconsumo/superproduo. 3 MARX, Karl. Contribuio Crtica da Economia Poltica (trad. port.). So Paulo, Martins Fontes, 1977. p. 210, grifo meu.

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    O crescente domnio do capital sobre o trabalho no processo de trabalho, a especializao do trabalhador e dos instrumentos de trabalho, a alienao da decorrente, a Revoluo Industrial, o crescimento das empresas, a burocratizao e a separao entre capital e controle, o desenvolvimento do crdito, da publicidade, do marketing e da indstria cultural so elos importantes para a compreenso do desenvolvimento de uma sociedade de produo e consumo de massas e de uma cultura do consumidor.

    A anlise desses temas, realizada nos enfoques mais tradicionais, torna a questo do consumo visvel. Falta-lhe, no entanto, uma problematizao especfica.

    Essa problematizao passa a ser feita medida que emerge um conjunto de estudos que tomam o consumo como foco e se voltam para a recuperao de sua histria.

    Nesses outros enfoques, busca-se repensar o perodo de formao da sociedade capitalista contempornea, a partir de mudanas de padres de consumo, entrelaados com mudanas culturais e polticas. nesta vertente que se inscreve o presente estudo. A hiptese de trabalho central que Revoluo Industrial pode-se contrapor uma revoluo no consumo, como se v a seguir, nas palavras de McKendrick, que foi, provavelmente, quem a formulou primeiro:

    Assim como a revoluo industrial do sculo XVIII marca uma das grandes descontinuidades na histria... assim tambm o faz, de meu ponto de vista, a revoluo correlata no consumo. Porque a revoluo do consumidor foi o anlogo necessrio da revoluo industrial, a convulso necessria, no lado da demanda, da equao que tinha, no outro lado, a convulso na oferta.4

    4 Cf. McKENDRICK, Neil, BREWER, John and PLUMB, J. H. The Birth of a Consumer Society: The Commercialization of Eighteenth-Century England. Bloomington, Indiana University Press, 1982. p. 9. (trad. minha). Em alguns casos, chega-se a aventar a possibilidade de essa revoluo do consumo ter precedido a Revoluo Industrial. Ver MUKERJI, Chandra. From Graven Images: Patterns of Modern Materialism. New York, Columbia University Press,1983.

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    De fato, algum deve ter comprado os novos produtos que a Revoluo Industrial trouxe ao mercado. Sem um aumento da demanda, o salto na capacidade produtiva promovido pela Revoluo Industrial jamais poderia ter sido absorvido pelo mercado.

    preciso, portanto, indagar, para alm do fato de que a Revoluo Industrial barateou produtos, que mudanas ocorreram que viabilizaram essa revoluo, transformando a predisposio das pessoas em relao ao consumo. disso que trataremos neste texto, concentrando-nos nas origens e possveis matrizes da cultura do consumo na Europa Ocidental.

    Dentro do processo de reconstituio dessa trajetria que desemboca na cultura do consumidor contemporneo, alguns elementos se sobressaem. Um deles diz respeito ao tipo de consumo que a caracteriza, forma e periodicidade dele; outro diz respeito ao segmento social que visto como o bero desse padro de consumo: as cortes europias, que comeam a se formar ainda na Idade Mdia e chegam a seu auge no perodo do absolutismo.

    Os integrantes desse segmento so vistos por alguns autores como os primeiros, na sociedade moderna, a experimentar o consumo discricionrio5.

    o padro de consumo desenvolvido por esse segmento - que depois se populariza atravs de um processo de mimetismo pelas camadas sociais que se situam mais abaixo dele - que parece estar na base da cultura do consumidor.

    5 WILLIAMS, R. H. Dreamworlds. Mass Consumption in Late Nineteenth Century France. Berkeley, Los Angeles, Oxford, University of California Press, 1991 [first ed. 1982]. p. 57.

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    2. O CONSUMO CONSPCUO E A COMPETIO DE STATUS

    Uma das caractersticas da cultura do consumo que ela envolve no s o consumo de produtos essenciais para a sobrevivncia fsica dos seres humanos como, e principalmente, o de produtos que se afastam dessa categoria6 ou, nas palavras de Veblen, o consumo conspcuo.

    Veblen7 foi um pioneiro no estudo do consumo conspcuo.

    Associou-o emergncia de uma classe ociosa - que teria chegado ao seu ponto mximo de desenvolvimento no feudalismo - e ao que hoje chamaramos de estilo de vida dessa classe.

    Em tais comunidades se observa com todo rigor a distino entre as classes; e a caracterstica de significao econmica mais saliente que h nessas diferenas de classes a distino mantida entre as tarefas prprias de cada uma das classes. As classes altas esto costumeiramente isentas ou excludas das ocupaes industriais e se reservam para determinadas tarefas s quais se atribui um certo grau de honra. A mais importante das tarefas honorveis em uma comunidade feudal a guerra; o sacerdcio ocupa, em geral, o segundo lugar. Em qualquer caso, com poucas excees, a regra que os membros das classes superiores - tanto guerreiros quanto

    6 A discusso sobre a possibilidade de se estabelecer uma diferena objetiva entre o que e o que no essencial ou necessrio infindvel. Marx j disse que h um elemento moral e histrico nela, quando se refere ao valor da fora de trabalho. Baran argumenta que se pode delimitar o que o consumo indispensvel (A Economia Poltica do Desenvolvimento (trad. port.). Rio de Janeiro, Zahar, 1972. Cap. 2, esp. p. 75-84). No vamos entrar nessa discusso, vamos apenas trabalhar com a suposio de que, em cada poca e sociedade, h alguma possibilidade de se diferenciar, pelo menos nos extremos, entre o necessrio e o suprfluo. O que importante notar que a chamada revoluo do consumidor se caracteriza por ter alterado a escala de valores em relao ao que possa ser considerado necessidade e luxo. 7 VEBLEN, Thornstein. Teora de la Clase Ociosa (trad. espanhola). Mxico, FCE, 1966 [1 ed. ingl. 1899].

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    sacerdotes - estejam isentos de tarefas industriais e que essa iseno seja expresso econmica de sua superioridade hierrquica (de rang).8

    E o que so essas ocupaes no-industriais? So ocupaes que, via de regra, no implicam as tarefas manuais, rotineiras e quotidianas, associadas subsistncia do grupo social. Ligam-se noo de faanha, em oposio de rotina9. Incluem, em termos gerais, as ocupaes ligadas ao governo, guerra, prticas religiosas e esportes.10

    Segundo Veblen, h uma valorizao social diferencial dos dois tipos de ocupaes: Aquelas ocupaes classificadas como proezas so dignas, honorveis e nobres; as que no contm esse elemento de faanha e, especialmente, aquelas que implicam servido ou submisso so indignas, degradantes e ignbeis.11

    Segundo o autor, essa diviso entre classes, que aparece plenamente configurada no feudalismo, foi precedida, no passado, por uma diviso anloga das tarefas entre sexos. E a diviso entre uma classe trabalhadora e uma classe ociosa ocorreu gradualmente12.

    E Veblen conclui:

    A instituio de uma classe ociosa a excrescncia de uma discriminao entre tarefas, com relao qual algumas delas so dignas e outras indignas.

    8 VEBLEN, T. Op. cit. p. 10. 9 VEBLEN, T. Op. cit. p. 21-24. 10 VEBLEN, T. Op. cit. p. 11. 11 VEBLEN, T. Op. cit. p. 24. 12 VEBLEN, T. Op. cit. p. 16 e segs.

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    Sob essa antiga distino so tarefas dignas aquelas que podem ser classificadas como faanhas; indignas, as ocupaes de vida quotidiana em que no entra nenhum elemento aprecivel de proeza. 13

    O autor afirma tambm que o aparecimento de uma classe ociosa coincide com o comeo da propriedade.14 Inicialmente, no qualquer propriedade: a propriedade das mulheres pelos homens; so as mulheres capturadas nas lutas, como trofus. Depois, o conceito de propriedade se estende ao de propriedade de coisas.

    Desse modo se estabelece gradualmente um sistema bem travado de propriedade de bens. E ainda que nos ltimos estgios de desenvolvimento a utilidade das coisas para o consumo se tenha convertido no elemento predominante de seu valor, a riqueza no perdeu, de modo algum, sua utilidade como demonstrao honorfica da prepotncia do proprietrio.15

    Como se v, aqui Veblen mostra um elemento inovador em seu estudo, contestando a teoria econmica que v na necessidade de subsistncia o mvel da luta entre os homens pela posse de bens. Segundo Veblen, mesmo nas sociedades que produzem razovel excedente econmico, a teoria v essa competio - que, segundo Veblen, caracterstica das economias em que existe a instituio da propriedade privada (mesmo que seja pouco desenvolvida essa instituio) - como uma competio pelo aumento das comodidades da vida, destinadas a satisfazer necessidades fsicas ou espirituais atravs do consumo, fim ltimo da aquisio.

    Para Veblen, essa postura ingnua e o mvel que h na raiz da propriedade a EMULAO.[...] A posse da riqueza confere honra; uma distino valorativa. No possvel dizer nada parecido do consumo de bens nem de qualquer outro

    13 VEBLEN, T. Op. cit. p. 16-17. 14 VEBLEN, T. Op. cit. p. 30 e segs. 15 VEBLEN, T. Op. cit. p. 32.

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    incentivo que se possa conceber como mvel da acumulao e em especial de nenhum incentivo que impulsione a acumulao de riqueza.16

    Embora no ignore a importncia da necessidade de ganhar a vida ou a busca de maior nvel de conforto fsico como mvel da aquisio - especialmente para a populao mais pobre - nas comunidades em que a propriedade privada atinge a maior parte dos bens, Veblen sustenta que nem sempre esse mvel to claro; diz ainda que, com relao s classes mais preocupadas em acumular riqueza, esses incentivos (ganhar a vida, comodidade fsica) nunca foram muito importantes e taxativo ao afirmar: A propriedade nasceu e chegou a ser uma instituio humana por motivos que no tm relao com o mnimo de subsistncia. O incentivo dominante foi, desde o incio, a distino valorativa unida riqueza...17

    Em um primeiro momento, tratava-se de adquirir, atravs das faanhas, os trofus, derivados dos botins. Os interesses do indivduo ainda pouco se distinguiam dos do grupo, e, nesse sentido, a comparao era entre o grupo que adquirira os trofus e o outro que os perdera18. Quando o costume da propriedade individual comea a se tornar consistente, ocorre uma mudana: a comparao valorativa passa a ser primordialmente uma comparao entre o proprietrio e os outros membros do grupo. Nesse meio tempo, Veblen v a passagem para um nvel novo de organizao, no qual a antiga horda se converte em uma comunidade industrial mais ou menos auto-suficiente.19

    16 VEBLEN, T. Op. cit. p. 33 (a discusso com os tericos clssicos comea na pgina anterior). 17 VEBLEN, T. Op. cit. p. 34. 18 VEBLEN, T. Op. cit. A propriedade comeou por ser o botin conservado como trofu de uma expedio afortunada. Enquanto o grupo se separou pouco da primitiva organizao comunal e enquanto esteve em contato ntimo com outros grupos hostis, a utilidade das pessoas ou coisas objeto de propriedade descansava principalmente em uma comparao valorativa entre o possuidor e o inimigo do qual eles tinham sito tirados. O hbito de distinguir entre os interesses do indivduo e os do grupo a que pertence corresponde, aparentemente, a uma etapa posterior. ... A proeza do homem era ainda a proeza do grupo e o possuidor do botin se sentia primordialmente como guardio da honra de seu grupo. Encontramos tambm essa apreciao da faanha do ponto de vista da comunidade sobretudo no que se refere aos lauris blicos em estgios posteriores de desenvolvimento social. p. 34-35. 19 VEBLEN, T. Op. cit. p. 35.

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    medida que a atividade industrial vai ganhando peso, em detrimento da antiga atividade predadora da comunidade, a propriedade e a posse de riqueza tambm ganham peso em relao aos trofus antigos, enquanto expresso de prepotncia e xito e enquanto base costumeira de reputao e estima... Torna-se indispensvel acumular, adquirir propriedade, com o objetivo de conservar o bom nome pessoal... A posse de riqueza, que em um princpio era valorizada simplesmente como prova de eficincia, se converte, no sentimento popular, em coisa meritria em si mesma. A riqueza agora intrinsecamente honorvel e honra seu possuidor. A riqueza adquirida de modo passivo, por transmisso dos antepassados ou de outras pessoas, converte-se, por um refinamento ulterior, em mais honorfica que a adquirida pelo prprio esforo do possuidor... esta distino corresponde a um estgio posterior da evoluo da cultura pecuniria...20

    Em outras palavras, se o reconhecimento por parte dos outros membros de uma comunidade antes estava ligado habilidade de realizar proezas, cujos resultados visveis, por vezes, eram trofus, torna-se posteriormente associado posse de bens. O indivduo tem que atingir agora um certo nvel convencional e pouco definido de riqueza21 para se sentir reconhecido pelos outros e, em decorrncia, por si mesmo. Segundo Veblen, isto d lugar a uma corrida incessante para as pessoas atingirem um determinado nvel, que no mais que o ponto de partida para atingir o nvel do grupo que se situa imediatamente acima dele, num processo sem fim, uma vez que a base dele est no desejo individual de exceder a todo mundo na acumulao de bens. E essa corrida permanece com primazia na sociedade industrial moderna.22

    Est a uma formulao inicial que permeia boa parte das teorias contemporneas que tentam explicar o consumo suprfluo em nossa sociedade.

    20 VEBLEN, T. Op. cit. p. 36-37. 21 VEBLEN, T. Op. cit. p. 39. 22 VEBLEN, T. Op. cit. p. 39 e 40.

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    Sua base est, antes de tudo, em uma corrida pelo prestgio, que seria infinita porque impossvel de se saciar, uma vez que o resultado depende sempre de uma comparao entre quem tem mais e quem tem menos bens.

    Embora refinada posteriormente e aparecendo, sobretudo, na formulao do trickle down effect (cujas origens so tambm atribudas a Spencer, Gabriel Tarde, Simmel e Sombart), essa viso informa inmeros trabalhos sobre a cultura do consumo e do consumidor contemporneo, especialmente nas sociedades do chamado Primeiro Mundo.

    O peso desse processo de competio entre os indivduos pela manuteno do status que eles possuem ou pela obteno de um mais elevado, na conformao de uma cultura do consumo, no deve ser subestimado. Veblen teve o grande mrito de ser um dos primeiros a formular essa relao - mrito esse maior ainda, se se levar em conta que o objetivo de seu livro era entender o consumo conspcuo de um ponto de vista estritamente econmico - e a abrir caminho para anlises posteriores. Mas a compreenso dessa cultura exige que se v alm, no a reduzindo a um processo de competio social tout court.

    3. O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO, A CENTRALIZAO DO PODER REAL E O CONSUMO DAS CORTES

    3.1. A submisso da aristocracia ao poder real

    Nos estudos sobre o que alguns consideram como a primeira classe a consumir ostensivamente na era moderna - a corte -, essa questo reaparece, redefinida em funo de outros elementos que tiveram menos realce na anlise de Veblen.

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    A a dimenso poltica da formao de uma cultura do consumo comea a emergir com toda fora.

    Examinando o caso francs, mas estendendo, freqentemente, a anlise para o conjunto da Europa Ocidental, Elias23 no est preocupado com o consumo; ele analisa a sociedade de corte como uma formao social. Mas seu trabalho de grande valia para nosso objetivo.

    A evoluo da corte, a transformao de comportamentos, atitudes e sentimentos que nela se d e que se expressa em seu estilo de vida transformao essa que analisada em conjunto sob a rubrica de um processo civilizador e a prpria competio entre eles, Elias relaciona alterao no equilbrio de poder entre a nobreza e o rei e centralizao que leva ao absolutismo.

    De fato, a corte sofreu um processo de transformao desde a Idade Mdia at o sculo XVII, na medida em que as relaes entre o rei e os nobres se alteraram e o poder foi se centralizando nas mos do primeiro. Se antes do sculo XVI a relao do

    rei com os nobres era a de um primus inter pares24, sendo todos interdependentes, ela mudou. Os nobres passaram a depender mais do rei e o rei passou a ter mais poder. E com isso a distncia social entre o rei e a nobreza cresceu, mudando a natureza do relacionamento entre eles, que ficou cada vez mais assimtrica.

    23 ELIAS, Norbert. La Societ de Cour (trad. francesa do alemo). Paris, Flammarion, 1985 [1 ed. alem 1969]. 24 O ethos do sistema feudal fundava-se originalmente na dependncia recproca... Os vassalos precisavam do prncipe suserano, que fazia a figura de chefe e coordenador supremo, de proprietrio ou distribuidor das terras conquistadas; o suserano, por sua vez, recorria a seus vassalos e homens que tinham obrigaes com ele (hommes liges) quando tinha necessidade de guerreiros ou de subchefes para defender ou aumentar seus domnios, para bem conduzir suas guerras e querelas. E quanto ao resto da nobreza, o rei recrutava ali - independentemente do fato de que ela lhe fornecia seus companheiros de caa e de torneio, seus companheiros na vida social e seus combatentes - seus conselheiros, que eram freqentemente homens da Igreja... Do grupo de guerreiros provinham tambm as pessoas que, com maior ou menor autonomia, administravam em seu nome o pas, recolhiam impostos, exerciam (disaient) o direito. ELIAS, N. Op. cit. p. 169.

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    Nas palavras do autor, pouco a pouco os suseranos se elevaram acima da nobreza. Puderam aumentar seu prprio poder em detrimento dos aristocratas, confiando a homens de uma outra ordem, a burguesia, cuja capacidade no parava de crescer, cargos algum tempo antes reservados nobreza e ao alto clero. Na Frana os reis conseguiram afastar quase todos os nobres desses postos e substitu-los por plebeus. Era a plebe que detinha, em fim do sculo XV, quase todos os cargos na magistratura, na administrao e mesmo nos ministrios.25

    Como se sabe, houve vrios eventos importantes para o processo de centralizao. Os nobres se enfraqueceram economicamente com a inflao decorrente do afluxo de metais do sculo XVI.

    Analisando as conseqncias desse fato para a nobreza, Elias afirma que para a maioria da nobreza francesa, a depreciao monetria subverteu quando no destruiu totalmente suas bases econmicas. A nobreza francesa tirava rendas fixas de suas terras. Como os preos subiam sem parar, o produto das rendas contratuais no lhes permitia mais fazer face a suas obrigaes. Ao fim das guerras de religio, a maior parte dos nobres estava afundada em dvidas, os credores apoderaram-se de suas terras. Assim, um nmero importante de propriedades de terra mudou de mos nessa poca. A maior parte dos nobres assim despossudos foram corte procurar novos meios de existncia.26

    J o rei sofreu menos com a depreciao da moeda. O rei foi o nico elemento da nobreza que, em virtude de sua funo, no teve sua base econmica diminuda e cujo prestgio social e fora, ao contrrio, aumentaram. Originalmente o rei tirava seus recursos do produto de suas terras, como todos os nobres. Mas com o tempo uma parte crescente de seus recursos passara a ser formada por impostos e rendas de todos os tipos que ele cobrava de seus sditos (sujets). Assim, de possuidor e

    25 Idem, ib. idem. 26 ELIAS, N. Op. cit. p. 162.

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    distribuidor de terras o rei se tornara cada vez mais um possuidor e distribuidor de dinheiro.27

    De outro lado, houve mudanas nas prticas de guerra (cavalaria mais leve, uso de armas de fogo, entrada em cena de mercenrios) que tornaram o rei menos dependente dos nobres para guerrear. A relao de dependncia comeou a se inverter28.

    Alm disso, mostra Elias, a relao entre o rei e a nobreza diferente em uma economia de subsistncia ou trocas diretas e em uma economia monetarizada. No primeiro caso, o rei d terras ao vassalo, que nelas se instala e de onde depois difcil remov-lo. Ali, em seu feudo, ele se torna um pequeno rei. No segundo, ele d a renda em dinheiro, que pode ser penso ou presentes que saem diretamente do caixa real. muito mais fcil cortar uma penso ou parar de dar presentes do que tirar a terra ou produtos in natura dessa terra.29 Esse foi mais um elemento de submisso da nobreza ao poder real.

    O que sobrara ento nobreza para ser indispensvel ao rei? - pergunta Elias. Isso o leva a tentar entender o processo de produo e de reproduo social da corte, atravs de uma anlise do campo social no qual ela se desenvolveu. Nessa anlise, tenta encontrar a frmula das necessidades. No caso da corte, trata-se de saber o tipo e o grau das interdependncias que reuniram na corte diferentes indivduos e grupos de indivduos30. um estilo de anlise do qual Bourdieu se nutriu bastante.

    Elias comea ento a examinar a evoluo da corte:

    27 ELIAS, N. Op. cit. p. 163. 28 ELIAS no se esquece aqui de sublinhar que os fenmenos so todos interligados. Exemplo: Sem um exrcito, o rei no teria como elevar impostos, sem receitas no poderiam financiar os exrcitos, (armes) sem um estado que protegesse as rotas comerciais e uma legislao que oferecesse garantias aos comerciantes no haveria expanso comercial. p. 163-167. Quanto a detalhes das mudanas das prticas de guerra, ver tambm MANCHESTER, William. A World Lit only by Fire. Boston e New York, Back Bay Books,1993. 29 ELIAS, N. Op. cit. p. 167-168. 30 ELIAS, N. Op. cit. p. 169-170.

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    Uma evoluo ininterrupta conduz da corte dos Capetos e mais especialmente a de S. Luiz (1226-1270) at a corte de Francisco I31e de Luiz XIV e de seus sucessores. Ora, essa evoluo conheceu uma inflexo decisiva nos sculos XV e XVI. Enquanto que nos sculos precedentes um nmero cada vez menor de grandes vassalos tinham tido, ao lado da corte do rei, suas prprias cortes, algumas das quais tinham sido mais ricas, mais brilhantes, mais influentes que a do rei, a corte real tornou-se no curso desses dois sculos, graas ao aumento contnuo do poder real, o verdadeiro centro do pas... Se se tenta determinar o momento no qual essa virada se esboou mais claramente, cai-se no reinado de Francisco I.32

    Na evoluo dos reis-cavaleiros realeza de corte, Elias v Francisco I como um tipo intermedirio, mais prximo do primeiro tipo. Sua corte de transio: ele comeou a distribuir ttulos de nobreza - para ser preciso uma nova titulatura nobiliria que ia desde o simples gentilhomme at o prncipe e Par de Frana - que eram ligados terra e renda da terra; mas diferentemente do que ocorria antes, em que a hierarquia dos senhores de terra correspondia relativa de suas terras -- a partir de agora a importncia de cada senhor na hierarquia social comea a se descolar da importncia da terra e passa a ser cada vez mais uma distino real (do rei), dependente da vontade do rei (a seu bel-prazer) e com cada vez menos funes polticas. Comea assim a se formar uma nova hierarquia de homens novos em parte dentro e em parte ao lado da hierarquia tradicional, na qual o rang depende mais da vontade do rei e o beneficio recebido em dinheiro. De outro lado a maior parte desses novos beneficirios era ainda de guerreiros, cujos servios o rei recompensava.33

    Ento se esclarece a mudana:

    31 Francisco I reinou entre 1515 e 1547. 32 ELIAS, N. Op. cit. p. 170-171, grifo meu. 33 ELIAS, N. Op. cit. p. 172-173.

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    ... a nobreza permanecia uma ordem de guerreiros: por isso sobretudo que o rei precisava dela; mas levando-se em conta o aumento de oportunidades que se ofereceram a ele (ao rei), ele procedeu ao que se poderia chamar de - utilizando um termo de uma poca ulterior - racionalizao, a uma reforma esclarecida: ele provocou uma ruptura com a tradio e reestruturou toda a sua nobreza a fim de melhor sujeit-la a sua dominao.34

    Com isso, a corte real no parou de crescer e foi se tornando o principal centro de integrao da sociedade francesa. Antes itinerante, a corte passou a ter um lugar determinado, primeiro em Paris e depois em Versalhes, quando esse processo chegou ao auge, como se sabe, com Lus XIV.

    3.2. O processo civilizador

    Foi na vida da corte que se desenvolveu aquilo que Elias chama de um processo civilizador. Todo um conjunto de regras de etiqueta e, por meio delas, de conteno de impulsos, de agressividade e de emoes, de funes do corpo, de odores, desenvolveu-se nesse perodo. A essa relao entre a centralizao do poder do Estado e o processo civilizador Elias dedicou um livro inteiro35.

    O desenvolvimento da nova etiqueta envolveu a ritualizao de uma srie de atos, que expressam o crescimento da distncia social entre a realeza e os nobres - bem como a submisso desses quela - de um lado, e entre a corte e o resto da populao, de outro.

    No perodo de Francisco I, j comeavam a aparecer manifestaes dessa nova etiqueta. Ele e os prncipes de sangue passaram a se deixar servir por nobres

    34 ELIAS, N. Op. cit. p. 172. 35 ELIAS, N. The Civilizing Process. Oxford UK and Cambridge USA, Blackwell, 1994 [1 ed. alem, em 2 volumes distintos, 1939].

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    mesmo em funes subalternas tais como a de valet de chambre... nessa poca todas as relaes so ainda flutuantes, a hierarquia dos cortesos menos rgida, a transmisso hereditria de cargos mais rara. A mobilidade da corte e as campanhas (guerras) incessantes impediam nesse estgio a formao de uma etiqueta rgida.

    Mas observa-se j sob Francisco I uma tendncia cujas conseqncias se faro sentir em seguida: a distncia entre os membros da corte e as pessoas que no fazem parte dela cresce, ela toma j um valor social no campo social. medida que se perdem as funes tradicionais do suserano, do vassalo, do cavaleiro, funes sobre as quais se fundara at ento a distncia separando a nobreza das outras camadas da sociedade, se precisa a vantagem de pertencer corte, que traz para seus membros um aumento de prestgio e de valor social. A linha demarcadora que se estabelece divide tambm a prpria nobreza. Uma parte da antiga nobreza se integra na nova aristocracia, cujo critrio a pertinncia corte; uma outra parte no consegue se juntar a esse novo grupo que se fecha sobre si mesmo. Simultaneamente um certo nmero de burgueses acedem nova elite e fazem carreira dentro dela. Assim se opera a reestruturao da nobreza sobre a base de um novo princpio de distanciamento e de constituio.36

    Essa nova etiqueta, assim como o estilo de vida desenvolvido pela corte de um modo geral, alterou muito os hbitos de consumo. Passou-se a comer sentado mesa, com talheres e louas individuais - o garfo de servir aparece em fins da Idade Mdia, o de comer, no sculo XVI, mas, no sculo XVII, garfo ainda artigo de luxo37 -, a arquitetura e a forma de decorao dos interiores das residncias se alteraram, dando lugar a uma srie de novos itens de consumo.

    Rosalind Williams observa que uma vez admitido no crculo encantado da corte, um nobre teria de gastar ruinosamente para permanecer l. Ele precisava de roupas bordadas com fios de ouro e prata e de jias brilhantes para usar nos bailes; um

    36 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 175-176. 37 ELIAS, N. The Civilizing Process. p. 54-55.

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    estbulo para cavalos e uma matilha de ces de caa; carruagens com interior de veludo e painis pintados para que pudesse acompanhar o rei em migraes para outros palcios; casas e moblia adequadas para que ele pudesse oferecer jantares e festas danantes para a corte; e dzias de valets e empregados para tornar todo o resto possvel. Com raras excees os cortesos contraam dvidas imensas... [e ento] dirigiam-se ao monarca para obter ajuda financeira.38

    Mas no interior desse contexto mais amplo que se torna necessrio entender tanto a nova etiqueta quanto o estilo de vida desenvolvido pela corte do Ancin Rgime. E desta perspectiva o consumo ostensivo que caracterizou a evoluo da vida na corte ganha um novo significado, distinto do que Veblen atribura classe ociosa.

    Nesse sentido, na anlise que Elias39 faz da corte do Ancin Rgime, a relao entre riqueza, consumo conspcuo e prestgio aparece redefinida: no era a riqueza, mas sim o fato de pertencer corte que conferia prestgio ao nobre corteso. S que para manter o seu prestgio, ele precisava ter um padro de consumo muito elevado, o que exigia riqueza ou tornava crescente a dependncia em relao ao rei.

    Elias mostra que a estrutura de despesas dos nobres de corte seguia uma lgica cujo eixo era a representao social, o parecer. Gastava-se em funo de sua posio social (rang). Tratava-se de um consumo de prestgio40. Desde as caractersticas de suas casas at as recepes e o vesturio, o corteso passara a ter gastos enormes. Faziam parte de sua posio social e do papel que lhes cabia nessa posio. E, por isso, no havia possibilidade para o corteso de ser de outro modo. No havia espao para se promover um equilbrio entre receita e despesa, nem para poupar parte da renda, nem para economizar no consumo. Se os gastos fossem maiores do 38 WILLIAMS, R. H. Dreamworlds. Mass Consumption in Late Nineteenth Century France. Berkeley, Los Angeles, Oxford, University of California Press, 1991 [first ed. 1982]. p. 28. 39 Elias afirma que Veblen nunca entendeu a lgica do consumo conspcuo da nobreza, pois ele raciocinava em termos da lgica do consumo da burguesia, que outra. E, por no a ter entendido, continua Elias, Veblen no conseguiu fazer uma anlise sociolgica dos gastos de prestgio em Teoria da Classe Ociosa. ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 48-49. 40 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 48.

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    que a receita, fazia-se necessrio achar novos recursos ou contrair dvidas, jamais diminuir os gastos. Trabalhar no era possvel, ou melhor, o nobre no podia nem pensar em ganhar dinheiro atravs do trabalho. Isso seria profundamente desabonador, tanto quanto refrear os gastos de prestgio41. Havia inclusive uma proibio legal tanto nobreza de espada como togada, de se dedicar ao comrcio. Perderia o ttulo e a posio42.

    A riqueza mais valorizada nas sociedades pr-industriais, e, especialmente, na nobreza, era aquela decorrente de heranas ou rendas de terras herdadas. Para manter seus gastos, muitas famlias vendiam propriedades, viviam mais algum tempo com aqueles recursos, mas, depois, muitas vezes se arruinavam. Ou arrumavam casamentos vantajosos. Ou se endividavam. Ou ento recorriam ao rei. Ele poderia perdoar a dvida ou mandar pag-la, ou arrumar um cargo no governo, ou fazer doaes famlia, ou dar-lhe uma penso, se quisesse. A dependncia em relao ao rei, portanto, era muito grande, pois ele podia permitir ou no que uma famlia se arruinasse.43

    Em suma, esses gastos no derivavam de uma escolha pessoal dos nobres. Eram parte de um esquema de competio pelo favor real em que os nobres tinham sido lanados, para manter ou melhorar seu rang, para manter ou aumentar seu poder, pois o rei se tornara ator fundamental no s para viabilizar esses gastos (sem a runa da famlia) mas tambm para assegurar ou no o status de cada famlia.44

    O nobre, portanto, no trabalhava, ou melhor, no ganhava dinheiro com o trabalho, no poupava nem investia parte de sua renda e gastava (sem economias) tudo o que tinha (e, se necessrio, tambm o que no tinha) em despesas de representao. Era levado a esses gastos pela competio pelo favor real, do qual dependia cada vez

    41 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 56. 42 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 50. 43 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 56-57. 44 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 56-57.

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    mais para manter sua posio social. uma lgica bastante distinta da burguesa.45 claro que Elias no nega a existncia de competio por prestgio, inclusive sob a forma de consumo ostensivo, na burguesia das sociedades industriais. Mas ele diz que a lgica desses gastos outra: as despesas de prestgio e a obrigao de representao nas camadas superiores das sociedades industriais tm um carter nitidamente mais privado que nas sociedades aristocrticas de corte. Elas no esto diretamente ligadas luta pelas posies de maior poder nas sociedades industriais. Elas no se integram no mecanismo de poder e poucas vezes servem de instrumentos de dominao. Em conseqncia a presso social para as despesas de prestgio e representao relativamente menos forte. Ela no tem um carter inelutvel como na sociedade de corte.46

    3.3. A ostentao como meio de expresso de poder

    Um aspecto que j foi mencionado, mas preciso realar na anlise para se entender o consumo da nobreza cortes, que, ao par de centralizao do poder real, o luxo foi se impondo como forma de governar e de expressar poder.47

    Braudel nota esse fato, embora no aprofunde sua anlise nessa direo. O luxo e a sofisticao nos hbitos alimentares como tambm de moradia vo aparecer na Europa a partir dos sculos XV e XVI, inicialmente, entre nobres italianos da Renascena.48 Comparando a moradia das cortes principescas com as do perodo anterior, mostra que ela era mais solene e mais formal; sua arquitetura e mobilirio

    45 E essa lgica diferente tambm da lgica do consumidor contemporneo. Se ainda est presente a competio por status ou a posse de bens como expresso de posio social (como insistem Bourdieu e, de certa forma, Baudrillard), h, no consumo contemporneo, um aspecto ldico, de expresso individual, de prazer no ato do consumo, de satisfao real ou ilusria de desejos e fantasias que no era caracterstico (embora eventualmente at pudesse estar presente) do consumo na corte. 46 ELIAS, N. La Societ de Cour. p. 55, grifo meu. 47 Luxo no significava conforto. Essa uma preocupao que vai aparecer muito depois. 48 BRAUDEL, Fernand. Civilization and Capitalism15th-18th Century. Vol. 1, The Structures of Everyday Life. Berkeley, Los Angeles, University of California Press, 1992. Ver caps. 3 e 4.

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    visavam a algum tipo de magnificncia social, grandiosidade. Os interiores italianos do sculo XV, com suas colunatas, camas imensas esculpidas e escadarias monumentais, j prenunciavam o grand sicle de Luiz XIV e daquela vida de corte que seria uma espcie de desfile, um espetculo teatral. O luxo, inquestionavelmente, estava se tornando um meio de governar.49 dali que o luxo, a sofisticao e a etiqueta se espraiaram pelas cortes da Europa e, depois, entre a burguesia.

    Na Frana, medida que o estado nacional se consolidava, os castelos, construdos tendo em vista a segurana, passaram a ter uma preocupao maior com a elegncia, cedendo lugar depois aos palcios e htels. Essa preocupao esttica j aparece nos castelos do Vale do Loire, construdos no sculo XVI, no reinado de Francisco I50, que, como foi mencionado, marca o momento de transio da vida da corte. Assim como esses castelos se inspiram na arquitetura italiana, tambm a etiqueta que comea a se desenvolver na corte de Francisco I se inspira em refinamentos vindos da Itlia;51 e com Luiz XIV que esse processo chega a seu auge, no suntuosssimo Palcio de Versalhes: o auge do luxo e da ritualizao de comportamentos (atravs da etiqueta) como expresso do poder real e como forma de submeter os nobres a seus desgnios.

    Se Luiz XIV era um grande consumidor, ele era absolutamente metdico e sujeitou a corte inteira mesma disciplina... O estilo de vida suntuoso em Versalhes trazia pouco prazer pessoal para o rei e para os cortesos. No era esse o objetivo. As cerimnias de consumo, as festas, os bailes eram todos parte de um sistema calculado, cujo alvo no era a gratificao individual, mas sim o aumento da autoridade poltica. Luiz XIV transformou o consumo em um mtodo de governo. A teoria de que a nobreza se juntava ao redor do rei com suas espadas e conselhos pode ter tido alguma validade no tempo de Francisco I, mas no final do sculo XVII 49 BRAUDEL, F. Op. cit. p. 307. 50 WILLIAMS, Rosalind H. Dreamworlds. Berkeley, Los Angeles, Oxford, University of California Press, 1991 [1 ed. 1982] p. 19-20. 51 WILLIAMS, Rosalind H. Op. cit. p. 24.

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    a razo pela qual os nobres acorriam a Versalhes era porque apenas l eles poderiam obter favores reais imensamente lucrativos, penses, benefcios e posies na igreja, no exrcito e na burocracia... Poucos podiam resistir tentao: eles sabiam que a excluso da corte significava excluso de grande riqueza e prestgio.52

    O tesouro real bancou no apenas os gastos prdigos do rei mas, indiretamente, atravs dos emprstimos e penses, os de toda a corte. O gasto estatal aumentou astronomicamente. Em troca, a monarquia ganhava uma nobreza dependente que se reunia na corte porque o poder real estava concentrado ali, apenas para se descobrir constrangida a um nvel de consumo que tornava maior aquele poder.53

    Assim, fecha-se o crculo. No caso da Frana, que se tornou paradigmtica do estilo de vida da corte europia, o processo de centralizao do poder real articulado perda de rendas (e terras) da nobreza tornou esse estamento progressivamente dependente do rei. Acolhendo parte de seus membros na corte e desenvolvendo ali um estilo de vida luxuoso e ritualizado, o rei tornava-os mais dependentes dele. Assim, se a corte foi o primeiro grupo da modernidade a ter um estilo de vida marcado pelo consumo ostensivo, esse consumo pouco tinha de discricionrio, uma vez que, embora abrangesse itens distantes das necessidades de sobrevivncia fsica no sentido estrito, eram necessrios para a sobrevivncia dos cortesos dentro da corte. impossvel compreender esse estilo de vida, que se irradiou para outras cortes europias e permaneceu como referncia ltima para o consumo posterior, primeiro imitado pela burguesia ascendente e depois popularizado com adaptaes entre as demais camadas sociais, sem considerar a sua dimenso poltica. o desenvolvimento do estado moderno que est na base da chamada sociedade de consumo, se tomarmos o caso francs como paradigma.

    52 WILLIAMS, Rosalind H. Op. cit. p. 27-28. 53 WILLIAMS, Rosalind H. Op. cit. p. 28-29.

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    3.4. A corte: mudana de padro de consumo

    Focalizando o caso britnico, embora no cite Elias, a no ser en passant, McCracken54 analisa o consumer boom que a Inglaterra teve no sculo XVI e a situao da nobreza britnica nesse perodo e chega a resultados muito semelhantes aos constatados para o caso francs, no sentido da relao entre consumo e poltica, mostrando a competio entre os nobres como conseqncia do enfraquecimento de seu poder e de sua dependncia progressiva do favor real.

    Em primeiro lugar, diz ele, Elizabeth I usou o gasto como instrumento de poder, certamente inspirada nas cortes italianas do Renascimento, e conseguiu fazer a nobreza pagar grande parte desse custo, gastando quantias imensas. Centralizando os impostos e fazendo, dessa forma, com que os nobres dependessem dela pessoalmente para ter uma participao nessa receita, forou-os a abandonar seus lugares no campo e a vir para a corte para obter sua ateno... Elizabeth sorria apenas para aqueles que mostravam sua lealdade e deferncia atravs de uma participao ativa no cerimonial de sua corte. O custo dessa participao era ruinoso. Aumentou a necessidade de recursos dos nobres e tornou-os mais dependentes da rainha.55

    A segunda causa do consumer boom na Inglaterra do sculo XVI, ainda conforme esse autor, foi a competio social em que os nobres foram lanados, na corte, com vistas a obter a ateno e o favor da rainha. Sendo algum no topo da hierarquia social em seu local de origem, o nobre ia corte e ali era apenas um entre muitos outros buscando proeminncia. Nesses termos, era quase inevitvel que ele fosse lanado em uma guerra de consumo.56

    54 McCRACKEN, G. Culture and Consumption. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 1990. 55 McCRACKEN, G. Op. cit. p. 11-12. 56 McCRACKEN, G. Op. cit. p. 12.

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    McCracken, no entanto, ao comentar o impacto desse fato sobre a famlia elizabethana, introduz um elemento novo na anlise: no se trata apenas de consumo ostensivo ou conspcuo, ele chama a ateno para uma mudana de padro de consumo na nobreza britnica. a mudana da ptina para a fashion.57

    De fato, o consumo conspcuo aparece em vrias pocas e lugares. Mas foi na sociedade ocidental e em um momento mais ou menos determinado - algo entre o fim da Idade Mdia e o incio da modernidade - que a moda nasceu. O princpio da moda o culto da novidade, da mudana e da renovao, e no necessariamente o luxo.58 McCracken fornece subsdios para se entender, ao menos em parte, o que teria levado um princpio a desembocar no outro.

    Vejamos mais de perto essa transformao.

    O padro de consumo entre os nobres ingleses era o da ptina: era um consumo voltado para a famlia, no s para os membros presentes, mas tendo em vista tambm as geraes passadas e futuras. Desde o perodo medieval, preocupada com seu status59 e sua honra, a famlia em cada gerao se sentia guardi do que herdara dos antepassados e procurava acrescentar alguma coisa para a gerao que a sucedesse. Isso se traduzia em um padro de consumo muito especfico: a famlia Tudor procurava bens que pudessem carregar e aumentar suas demandas de status atravs de diversas geraes... [para isso] os bens adquiridos precisavam ter qualidades especiais. Era necessrio que eles possussem a habilidade peculiar e, de um ponto de vista moderno, misteriosa, de se tornar mais valiosos medida que envelhecessem e ficassem decrpitos.... o carter de novo era a marca da

    57 Para uma descrio detalhada desses padres, ver o cap. 2 de McCRACKEN, G. Op. cit. Ever dearer in our thoughts. 58 LIPOVETSKY, Gilles. O imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (trad. port. de LEmpire de lphmre: la mode et son destin dans les societs modernes). So Paulo, Cia. das Letras, 1989, 294 p. [1 ed. francesa, 1987, Gallimard]. 59 McCracken usa a expresso status, mas aqui se refere honra associada ao fato de pertencer a um estamento determinado, a nobreza. Status e estamento so duas das tradues que foram feitas da palavra Stand usada por Weber. So conceitos distintos, que, freqentemente, aparecem confundidos.

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    vulgaridade, enquanto a ptina decorrente do uso era um sinal e a garantia de posio.60 Dessa forma, apenas os bens que fossem capazes de assumir uma ptina - aquele brilho acetinado que o longo tempo de manuseio traz a alguns objetos - e de sobreviver por vrias geraes que poderiam ser adequados a esse culto do status familiar. Esses objetos, principalmente mveis e retratos de famlia, eram todos representaes de riqueza antiga e de ancestrais diferenciados.

    Ora, os nobres, orientados agora pela dura competio, mudaram o padro de seu consumo. Comearam a gastar mais com eles e menos com a famlia. Refizeram suas casas no campo em um padro mais suntuoso e passaram a ter a despesa adicional de uma residncia em Londres61. Mudaram seus padres de hospitalidade, tornando-a mais cara e cerimoniosa. Eles passaram a receber outros nobres, seus subordinados e, ocasionalmente, a monarca, a custos altssimos. Passaram a gastar muito com banquetes, com roupas. Apenas a rainha, com mais recursos sua disposio, gastava mais em consumo conspcuo de decorao, hospitalidade e vesturio.

    Alm de outros efeitos, diz McCracken, bens que eram adquiridos para suprir as necessidades imediatas de uma guerra social assumiam qualidades muito distintas [das que caracterizavam os bens comprados anteriormente]. Eles no precisavam mais ser feitos com a mesma preocupao de longevidade. Nem precisavam ter valor apenas quando envelhecessem. Alguns bens tornaram-se valiosos no por sua ptina, mas por seu carter de novidade.62

    Criava-se um solo frtil, ainda que restrito a uma pequena parcela da populao, para o padro da moda comear a se desenvolver. Era a novidade, o culto do diferente e no apenas do luxuoso que passava a ter peso no consumo da nobreza cortes britnica do final do sculo XVI em diante.

    60 McCRACKEN, G. Op. cit. p. 13. 61 McCRACKEN, G. Op. cit. p. 11. 62 McCRACKEN, G. Op. cit. p. 14.

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    Este fato chave, pois a moda , talvez, o trao mais caracterstico da cultura do consumo. E o que define a moda, como j foi dito, o culto da novidade e da mudana; o constante processo de variaes e renovao. O trabalho de McCracken importante na medida em que fornece subsdios para a compreenso do desenvolvimento da moda nos marcos de mudanas polticas. Isso no significa que a moda no tenha tido outros determinantes.

    4. O DESENVOLVIMENTO DA MODA

    Assim como no h consenso entre os autores quanto ao momento em que ocorreu a suposta revoluo do consumidor, no o h tampouco quanto ao momento a partir do qual se pode falar em moda. No que se refere ao vesturio, Braudel menciona a primeira grande mudana de trajes na Europa por volta de 1350. Lipovetsky a confirma. Mas a moda, tal como a conhecemos, vai ter suas caractersticas mais visveis apenas no sculo XVIII e XIX63.

    Lipovetsky busca contrapor-se s abordagens correntes nos anos 80 sobre a moda, calcadas na viso de que a versatilidade da moda encontra seu lugar e sua verdade ltima na existncia de rivalidades de classes, nas lutas de concorrncia por prestgio que opem as diferentes camadas e parcelas do corpo social [...] a partir dos fenmenos de estratificao social e das estratgias mundanas de distino honorfica.64 Tal esquema interpretativo, a seu ver, fundamentalmente incapaz de explicar o mais significativo: a lgica da inconstncia, as grandes mutaes organizacionais e estticas da moda, pois tal abordagem permaneceu prisioneira

    63 Respectivamente, cf. BRAUDEL, F. Op. cit. e cf. LIPOVETSKY, G. Op. cit. 64 LIPOVETSKY, Gilles. O imprio do efmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (trad. port. de LEmpire de lphmre: la mode et son destin dans les societs modernes). So Paulo, Cia. das Letras, 1989. 294 p. [1 ed. francesa, 1987, Gallimard], p. 10.

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    do sentido vivido dos agentes sociais e colocou como origem o que no seno uma das funes sociais da moda.65

    Lipovetsky, ao contrrio, tenta mostrar a moda como fruto de um processo em que a tradio perde peso; com isso, passa-se a legitimar o presente como referncia, ou seja, esse autor insere o nascimento da moda no processo mais amplo de mudana que caracteriza a prpria passagem para a modernidade.

    Isso fica ainda mais claro quando se leva em conta que essa afirmao do novo e a perda de peso da tradio so relacionadas ao desenvolvimento do indivduo, a partir de fins da Idade Mdia.

    Em suas prprias palavras, na histria da moda foram os valores e significaes culturais modernas, dignificando em particular o novo e a expresso da individualidade humana, que tornaram possveis o nascimento e o estabelecimento do sistema de moda na Idade Mdia tardia [e] que contriburam para desenhar, de maneira insuspeitada, as grandes etapas de seu caminho histrico.66

    Remetendo a moda questo do parecer social, o autor tenta periodizar a sua histria, estabelecendo um estgio inicial que vai da metade do sculo XIV metade do XIX, o qual ele denomina estgio artesanal e aristocrtico da moda. a fase inaugural da moda, na qual o ritmo precipitado das frivolidades e o reino das fantasias instalaram-se de maneira sistemtica e durvel. A moda j revela seus traos sociais e estticos mais caractersticos, mas para grupos muito restritos que monopolizam o poder de iniciativa e de criao.67

    65 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 11, grifos do original. 66 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 11, grifos do original. 67 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 25.

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    claro que so os primrdios da moda que o autor localiza nesse perodo na Europa. As caractersticas desse sistema (a moda) vo se tornar mais ntidas e acentuadas mais tarde.

    Apoiando-se em Gabriel Tarde, Lipovetsky mostra os dois princpios que v como organizadores da moda:

    Amor pela mudana, influncia determinante dos contemporneos: esses dois grandes princpios que regem os tempos da moda tm em comum o fato de que implicam a mesma depreciao da herana ancestral e, correlativamente, a mesma dignificao das normas do presente social. A radicalidade histrica da moda sustenta-se no fato de que ela institui um sistema social de essncia moderna, emancipado do domnio do passado; o antigo j no considerado venervel e s o presente parece dever inspirar respeito.68

    Assim, conforme o autor, a alta sociedade foi tomada pela febre das novidades... Com a moda aparece uma primeira manifestao de uma relao social que encarna um novo tempo legtimo e uma nova paixo prpria do Ocidente, a do moderno. A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelncia social; preciso seguir o que se faz de novo e adotar as ltimas mudanas do momento: o presente se imps como o eixo temporal que rege uma face superficial mas prestigiosa da vida das elites.69

    Segundo o autor, no passado, houve pocas em que algumas sociedades se dedicaram a certos refinamentos frvolos, por exemplo, os romanos frisavam e tingiam cabelo, e nas quais surgiram algumas manifestaes de estetismo.70

    68 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 33, citando Gabriel Tarde, Les Lois de limmitation. [1890] Genebra, Slatkine, 1979. p. 268. 69 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 33. 70 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 34.

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    Mas o que diferencia tais fenmenos e a moda que, no primeiro caso, os adornos e os refinamentos estticos entram como algo secundrio e complementar a um traje cuja estrutura dada pelo costume. Na moda, ao contrrio, a artificialidade, a fantasia, a esttica tornam-se elementos estruturais de composio do traje.71

    Para Lipovetsky, a moda uma das primeiras dimenses em que o individualismo se manifesta na sociedade ocidental na modernidade - o do gosto - em paralelo ao individualismo econmico e religioso, precedendo o seu desenvolvimento em outras esferas (como, por exemplo, a ideolgica).

    Ele reconhece que no se trata de quaisquer indivduos, pelo menos nesse perodo inicial, e sim de alguns, no restrito universo aristocrtico. Afirma que os reis e alguns elementos da corte que se destacaram como lderes do gosto passaram a ter a possibilidade de inovar e criar e que as pessoas mais modestas passaram a ter a liberdade de adaptar nos detalhes essas inovaes quando as adotaram. Foi, pois, no interior deste pequeno crculo, cioso de suas marcas de distino social (e havia as leis sunturias para tentar garantir, entre outras coisas, essa distino), que a moda abriu espao para que o vesturio, para alm da distino de classe, tornasse possvel a manifestao do indivduo.72

    Contestando a viso da moda como uma nova dominao tirnica do coletivo, Lipovetsky afirma que ela traduz a emergncia da autonomia dos homens no mundo das aparncias; um signo inaugural da emancipao da individualidade esttica, a abertura do direito personalizao, ainda que ele esteja submetido aos decretos cambiantes do conjunto coletivo. Paralelamente ao adestramento disciplinar (o autor refere-se aqui, certamente, a Elias) e penetrao aumentada da instncia poltica na sociedade civil, a esfera privada desprendeu-se pouco a pouco das prescries coletivas... A moda comeou a exprimir, no luxo e na ambigidade, 71 Com o sistema de moda um dispositivo indito se instala: o artificial no se sobrepe de fora a um todo pr-constitudo, mas ele que, doravante, redefine de ponta a ponta as formas do vesturio, tanto os detalhes como as linhas essenciais. LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 35. 72 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 47-48, grifo do original.

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    essa inveno prpria ao Ocidente: o indivduo livre, solto, criador, e seu correlato, o xtase frvolo do eu.73

    Em seu belo trabalho, Lipovetsky tem o mrito de relacionar a moda ao desenvolvimento do indivduo. Mas ele oscila na relao que estabelece entre esses dois elementos. Ora mostra a moda como um dos primeiros loci de expresso individual, e nisso ele muito feliz, ora a v como resultado de um processo de desenvolvimento do indivduo. Mas, nesse aspecto, a demonstrao no feita. Fica-se, pois, sem saber por que ocorre essa mudana no interior da aristocracia.

    5. ESTILOS DE VIDA E VALORES DE CONSUMO

    O processo de desenvolvimento do indivduo, conforme mostra Aris, liga-se separao das esferas pblica e privada74 da vida social, que ocorre na modernidade. Nessa anlise, volta-se a determinaes de ordem poltica, uma vez que essa redefinio de esferas liga-se a mudanas no mbito de atuao do Estado.

    Est fora do mbito desta investigao a anlise deste processo que, por si s, constituiria um trabalho parte.

    Mas pode-se chamar a ateno para alguns pontos que nos ajudam a entender, se no uma relao de determinao entre o desenvolvimento do indivduo e o da moda, ao menos uma relao de sentido entre o desenvolvimento do indivduo e o de novos hbitos de consumo.

    73 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 48-49. 74 ARIS, Philippe. Por uma histria da vida privada in ARIS, P. e DUBY, Georges. Histria da Vida Privada (trad. port.). So Paulo, Cia. das Letras, 1995 (1 ed. bras. em 1991). Vol. 3, p. 7-19. Ver tambm os demais artigos do vol. 3 dessa coletnea e tambm os do vol. 4, org. por Michele Perrot.

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    Essa relao, no entanto, precisa ser vista atravs de um novo enfoque. Na separao entre as esferas pblica e privada, o indivduo passou a ter um novo espao, no mbito privado.

    Mas, ao que tudo indica, no o indivduo pertencente corte, e sim o da burguesia e o das classes mais populares.

    Se a corte tem a vida estruturada pelo parecer, o mesmo no se pode dizer das outras classes. Mesmo que a burguesia imite a nobreza, a lgica de seu consumo outra, conforme vimos ao abordar a obra de Elias, e isso porque a lgica de sua vida outra. No tendo penses reais nem restries a certas formas de ganhar dinheiro que caracterizam a nobreza, o burgus trabalha para sobreviver e tenta acumular patrimnio para si prprio e para deixar s geraes futuras. Se um lado de sua vida est ligado ao parecer, o outro se volta para a esfera do privado que, ao separar-se da esfera pblica, vai ter na famlia o seu grande reduto.

    Essa diferena vai aparecer na maneira pela qual o burgus imita a nobreza no vesturio. Como mostra Lipovetsky75 e outros autores tambm, alguns de seus membros chegam a tentar rivalizar com ela (a nobreza). Mas detecta-se tambm um sistema de adaptao da moda aristocrtica. O processo de difuso da moda no se fez de modo mecnico; a imitao fez-se de modo seletivo, adaptando-se na burguesia tendncias da moda da corte, rejeitando-se outras (vistas como exageradas), ao ponto de se formar, no comeo do sculo XVII, uma moda paralela da corte, mais moderada, correspondendo ao homem correto, livre dos excessos aristocrticos e conforme aos valores burgueses de prudncia, de medida, de utilidade, de limpeza, de conforto.

    75 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 40 e segs.

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    Segundo o autor, essa moda ponderada, recusando as extravagncias dos cortesos, o efeito do filtro dos critrios burgueses: da corte s se retm aquilo que no fere as suas normas de bom senso, de moderao, de razo76.

    A diferena acima mencionada aparece tambm na organizao do espao domstico. Ao analisar os palcios, palacetes e htels, por dentro, por fora, na planta e na disposio dos espaos, mostrou-os como expresso da vida do corteso. Tudo se estruturava em funo do parecer. Os casais tinham quartos separados, bem distantes um do outro, e podiam levar uma vida relativamente independente, desde que cumprissem as obrigaes sociais que lhes cabiam em conjunto. Os nobres casavam-se para constituir uma Maison.

    Os burgueses tinham outro estilo de vida. Menos vinculados ao parecer, casavam-se para constituir uma famlia. As plantas de suas casas refletem isso.

    sobretudo aps a Revoluo Francesa, no sculo XIX, que se v crescer realmente o individualismo. E a que o luxo comea a conviver e a ceder lugar, em parte, ao valor emergente do conforto e da privacidade.77 Esse fato, diga-se de passagem, no passou despercebido de Elias: ele afirma no seu La Societ de Cour: O relaxamento da obrigao social de representar, mesmo para as elites mais poderosas e mais ricas das sociedades industriais evoludas, teve uma influncia decisiva sobre a organizao das residncias, o vesturio e, de modo mais geral, sobre a evoluo do gosto em matria artstica.78

    A aristocracia permaneceu como smbolo de prestgio, mas a noo de conforto talvez tenha passado a ter mais espao justamente porque a obrigao social de representao foi perdendo fora.

    76 LIPOVETSKY, G. Op. cit. p. 42. 77 Sobre isso, ver, de RYBCZYNSKI, Witold, Casa, Pequena Histria de uma Idia (trad. port.). Rio de Janeiro, Record, 1996 [1 ed. ingl. 1986], sem falar dos textos da coleo sobre a histria da Vida Privada, j mencionados. 78 P. 55.

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    A evoluo da casa, com espaos mais especializados, a busca de privacidade, separada do parecer e s vezes os espaos obedecendo a critrios at opostos - por exemplo, economiza-se de um lado e gasta-se de outro -, a emergncia de uma moda mais casual mostram que vai se conformando um padro que tem referncia no dos nobres, mas no se reduz a ele.

    esse padro - com novas distines medida que se desce para classes mais populares - que vai se consolidar depois, no consumo de massas. Para os nobres, a noo de conforto no se colocava. O luxo era o importante.

    Braudel79 examina a evoluo das habitaes aristocrticas e ali mostra tambm a ausncia de conforto, apesar do incremento do luxo, antes do sculo XIX.

    J quando se passa a considerar a casa burguesa, ela ter uma diviso distinta da do nobre. Uma parte voltada para dentro (a esfera da intimidade) e outra para fora (a do parecer). E o burgus ser depois educado para o consumo: na sociedade burguesa que se desenvolve, no sculo XIX, a loja de departamentos. claro que a j ocorreu a Revoluo Industrial. Mas o movimento prossegue, associando-se o consumo ao lazer, ao prazer, ao ldico. Na nobreza, o consumo ostensivo era uma obrigao social, como j vimos.

    Por aqui j se podem entrever matrizes de estilos de vida em formao, que se traduziro em estilos de consumo.

    Isto nos leva ao ponto de partida do projeto ao qual se refere o presente relatrio, o que nos encaminha para as consideraes finais.

    79 BRAUDEL, F. Op. cit. Vol. 1, cap. 4.

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    6. CONSIDERAES FINAIS

    Iniciamos a investigao pela nobreza cortes europia, porque trabalhvamos com a hiptese de que ela fora a primeira classe na modernidade a ter um consumo discricionrio, que isto teria levado ao desenvolvimento da moda (graas possibilidade de acumulao e renovao dos objetos de consumo dessa classe) e que este padro, em funo de processos imitativos, teria se popularizado e levado difuso de uma cultura do consumo e, aps a Revoluo Industrial, popularizao e massificao efetiva dele.

    Os resultados dessa investigao, no entanto, mostraram-se distintos, levando a novas questes.

    Em primeiro lugar, o consumo da nobreza no teve propriamente um carter discricionrio. A anlise da corte tornou evidente que ela no teve escolha a no ser consumir da maneira que consumiu.

    Em segundo lugar, a lgica do consumo das outras classes no parece ter sido a mesma da nobreza cortes.

    Embora elas tenham imitado o padro aristocrtico, fizeram isso de modo seletivo, alterando-o quando de sua incorporao. E isto se deu no simplesmente porque eram pouco refinadas ou porque o processo civilizador no as atingiu inteiramente, mas, provavelmente, porque tinham vidas regidas por uma lgica diferente do grupo que imitavam, que implicava uma relao distinta com os objetos e uma valorizao diferencial deles. Da o fato de, em parte assimilarem, em parte criticarem ou rejeitarem, em parte adaptarem costumes nobres.

    Em suma, o esquema de formao e de difuso de uma cultura voltada para o consumo mais complexo do que parecia e sua compreenso requer um detalhamento maior do que as teorias do trickle down effect fariam supor. nessa

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    direo que vejo a necessidade de um desdobramento da presente investigao em um estudo mais detido do consumo fora das cortes, que possa permitir captar, de modo mais integrado, o processo pelo qual este padro atribudo a elas foi apropriado pelas demais classes, desembocando na cultura do consumidor contemporneo.

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    III. BIBLIOGRAFIA BSICA

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