A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CURSO DE DIREITO BELMIRO MARTINS ROCHA A SISTEMÁTICA RECURSAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR MILITAR UMA ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E DA LEGISLAÇÃO VIGENTE. Campo Grande MS abril de 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

CURSO DE DIREITO

BELMIRO MARTINS ROCHA

A SISTEMÁTICA RECURSAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR MILITAR – UMA ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS E DA LEGISLAÇÃO VIGENTE.

Campo Grande – MS

abril de 2010

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BELMIRO MARTINS ROCHA

A SISTEMÁTICA RECURSAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR MILITAR – UMA ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS E DA LEGISLAÇÃO VIGENTE.

Trabalho final de graduação apresentado como

requisito para colação de grau no Curso de

Graduação em Direito da Universidade Federal

de Mato Grosso do Sul, sob a orientação do

Prof. Leonardo Avelino Duarte

Campo Grande – MS

abril de 2010

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TERMO DE APROVAÇÃO

A Monografia intitulada: “A sistemática recursal no processo administrativo disciplinar

militar – uma análise à luz dos princípios constitucionais e da legislação vigente”

apresentada por Belmiro Martins Rocha, como exigência parcial para a obtenção do

título de Bacharel em Direito à Banca Examinadora da Universidade Federal de Mato

Grosso do Sul, obteve conceito _______ para aprovação.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________

Prof. Leonardo Avelino Duarte

Presidente

___________________________________

Profª. Ana Paula Amaral Martins

Membro

___________________________________

Prof. Rogério Mayer

Membro

Campo Grande – MS, _____ de _____________ de 20___

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Dedico este trabalho, em primeiro lugar a

Deus, que sempre abençoou minha vida e às pessoas a quem

estimo. À minha esposa, Mariane, por compartilhar comigo

momentos de alegria e de angústia, sempre estando perto de

mim e estendendo-me sua generosa mão para me erguer ou

não me deixar cair. Ao meu filho, Guilherme, que quando vi

seus olhos abertos diante de mim pela primeira vez, pude

perceber a grandeza e a sabedoria de Deus em suas bênçãos,

demonstrando que Seu poder vai muito além do que possamos

conhecer. A vida é realmente algo incrível.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por me guiar em caminhos nunca trilhados e dar a serenidade em desbravá-

los, com a certeza de sua proteção.

Ao meu orientador, Prof. Leonardo Avelino Duarte, por sua predisposição em

orientar-me nesta monografia, sempre com a oportunidade e a justeza que lhe é

peculiar. Agradeço por suas lições acadêmicas, as quais me foram de grande valia.

Aos meus familiares, por entender a importância do estudo em minha vida e o

esforço empreendido para perseguir esse sonho, que ora se concretiza. Por

entender a ausência de preciosas horas de nosso convívio. Pelo incentivo e pelas

condições propiciadas para que pudesse concretizar este trabalho.

À Rosaura da Silva Garcia Barbieri, pelo incentivo e pelo apoio incondicional

dispensado, que, mesmo à distância, oportunizou meios para que este trabalho de

pesquisa se concretizasse, colaborando com parte das obras pesquisadas e com

indicações de onde encontrá-las.

Aos professores que transmitiram seus conhecimentos, contribuindo para a nossa

formação profissional e engrandecimento pessoal.

Aos colegas de turma, Claudemir, Ezequiel, Ricardo Rito, Rosana, Nikael, pelo

convívio salutar, e em especial ao acadêmico Salumiel Marcelino da Costa, por seu

desprendimento pessoal, ao estar à frente da turma durante esses cinco anos de

caminhada, sendo um verdadeiro elo de ligação entre alunos e professores.

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“A justiça tem na mão uma espada quando devia ter, no lugar

desta, um coração” (Humberto de Campos)

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RESUMO

Esta monografia objetiva pesquisar o sistema de recursos administrativos disciplinares inseridos no bojo do Decreto n° 4.346, de 26/08/02, que instituiu o novo Regulamento Disciplinar do Exército (RDE). Almejando despertar o interesse do operador do direito sobre a temática do direito disciplinar militar, tema este pouco tratado nos bancos acadêmicos, mas fortemente ligado ao direito administrativo. A problemática deste trabalho aborda a questões que poderiam redundar em nulidades no processo administrativo punitivo, em face de práticas processuais falhas e viciadas por costumes despidos de embasamento técnico que poderiam sustentar as formalidades essenciais garantidoras de um devido processo legal, calcado na ampla defesa e nos recursos a ela inerentes, sempre com um olhar voltado aos mandamentos constitucionais vigentes. Palavras-chave: Militar. Processo administrativo. Ampla defesa. Recurso. Nulidade.

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LISTA DE ABREVIATURAS

CF – Constituição da República Federativa do Brasil

CEDMMG - Código de Ética e Disciplina dos Militares do Estado de Minas Gerais.

EC – Emenda Constitucional.

FFAA – Forças Armadas.

RDPMSP – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

RDBMRS – Regulamento Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do

Sul.

OM – Organização Militar.

RDE – Regulamento Disciplinar do Exército.

RDM – Regulamento Disciplinar da Marinha.

RDAer – Regulamento Disciplinar da Aeronáutica.

RISG – Regulamento Interno e dos Serviços Gerais.

Page 9: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................... 11

2 O DIREITO MILITAR ...................................................................... 15

2.1. NOÇÃO DE DIREITO MILITAR ........................................................................ 15

2.2. O DIREITO MILITAR E SUA POSIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO ....... 17

2.2.1. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 .................... 17

2.2.2. Na legislação infraconstitucional vigente .................................................. 18

2.3. O MILITAR COMO AGENTE PÚBLICO ............................................................ 19

2.3.1. Natureza jurídica do servidor militar ......................................................... 19

2.3.2. Peculiaridades da profissão das armas .................................................... 20

3 A ADMINISTRAÇÃO MILITAR E O PROCESSO

ADMINISTRATIVO ................................................................................ 22

3.1. O ATO ADMINISTRATIVO COMO MEIO DE MANIFESTAÇÃO DA ATIVIDADE

ADMINISTRATIVA ..................................................................................................... 22

3.2. O DEVER DA ADMINISTRAÇÃO MILITAR EM OBSERVAR OS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO E AOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS QUE DECLARAM DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS .. 23

3.3. OS PODERES HIERÁRQUICO E DISCIPLINAR NA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA E NA ADMINISTRAÇÃO MILITAR ............................................................. 26

3.3.1. Conceito de Direito Administrativo Disciplinar Militar ................................ 29

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3.3.2. O princípio da hierarquia e da disciplina como a base de sustentação das

Instituições Militares .................................................................................................. 30

3.4. O PROCESSO ADMINISTRATIVO ................................................................... 31

3.5. CONCEITO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO ............................................. 34

3.6. ESPÉCIES DE PROCESSO ADMINISTRATIVO .............................................. 34

3.7. FASES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO .................................................... 35

3.8. DA IMPORTÂNCIA E DA FINALIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO .. 35

3.9. O PROCESSO ADMINISTRATIVO NO ORDENAMENTO PÁTRIO ................. 37

4 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NO ÂMBITO

DAS FORÇAS ARMADAS .................................................................... 39

4.1. O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NO ÂMBITO DO EXÉRCITO

BRASILEIRO ............................................................................................................. 39

4.1.1. A normatização do processo administrativo pelo Regulamento Disciplinar

do Exército (RDE) ..................................................................................................... 40

4.1.2. As deficiências no processo administrativo disciplinar ............................. 41

4.1.3. O problema da aplicação imediata da sanção disciplinar ......................... 44

4.2. O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NA MARINHA E NA

AERONÁUTICA ........................................................................................................ 46

5 O SISTEMA RECURSAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

DISCIPLINAR DO REGULAMENTO DISCIPLINAR DO EXÉRCITO .... 49

5.1. NOÇÃO DE RECURSO E IMPUGNAÇÃO ....................................................... 50

5.2. OS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NOS RECURSOS ADMINISTRATIVOS .......... 53

5.3. RECURSOS ADMINISTRATIVOS CABÍVEIS NO REGULAMENTO

DISCIPLINAR DO EXÉRCITO .................................................................................. 57

5.4. REQUISITOS DOS RECURSOS DISCIPLINARES .......................................... 59

5.5. PRAZOS PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS .......................................... 61

5.6. PROCEDIMENTO NO RDE .............................................................................. 65

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5.7. EFEITOS DOS RECURSOS ADMINISTRATIVOS ........................................... 67

5.7.1. Efeito devolutivo ....................................................................................... 68

5.7.2. Efeito suspensivo ..................................................................................... 68

5.8. A DECISÃO DA AUTORIDADE DISCIPLINAR E A DEFICIÊNCIA EM SUA

COMUNICAÇÃO ....................................................................................................... 73

5.8.1. A ausência do recurso administrativo e os prejuízos à defesa do servidor73

5.8.2. Da ofensa ao devido processo legal em razão da falta de intimação de ato

administrativo decisório ............................................................................................. 75

5.8.3. Da necessidade de intimação da decisão disciplinar ............................... 75

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 81

REFERÊNCIAS ..................................................................................... 86

ANEXO ................................................................................................. 90

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11

1 INTRODUÇÃO

Ramo jurídico ainda carente de estudos acadêmicos e de discussões

proveitosas, ocasionado principalmente pela ausência da disciplina nas grades

curriculares da maioria das universidades brasileiras, gerando, por sua vez, um

desinteresse por boa parte da comunidade de operadores jurídicos. O direito militar

e o direito disciplinar militar vem, ao longo de anos, caminhando a passos lentos no

rumo de uma evolução que possibilite um maior equilíbrio entre os valores

constitucionais vigentes e valores tradicionais do militarismo arraigados na caserna,

que ainda hoje tentam se sobrepujar outros valores igualmente preciosos para a

sociedade.

Decorridos mais de 20 anos da promulgação de nossa Constituição Federal,

que conferiu aos cidadãos brasileiros os mais amplos direitos individuais,

considerados essenciais para o desenvolvimento não só do ser humano

individualmente considerado, mas da sociedade como um todo, ainda ocorrem

diversas violações a esses direitos elementares.

Tais violações ocorrem, também, a partir da própria estrutura estatal. No

âmbito das Forças Armadas, mais precisamente no Exército Brasileiro, ainda hoje

ocorrem violações contra os direitos e garantias individuais de seus integrantes, a

exemplo do cerceamento da liberdade individual de ir e vir, a partir de um processo

administrativo carente em uma das facetas do devido processo legal, qual seja: a

ampla defesa ofendida em um de seus aspectos importantes – o recurso

administrativo.

Os agentes públicos do Estado moderno devem cada vez mais zelar pelo

cumprimento dos preceitos constitucionais que organizam e delineiam a atividade

estatal, e que impõem, sobretudo, restrições ao poder, garantindo as liberdades

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individuais dos cidadãos. Evidentemente que aos militares não se poderia tratar de

modo diverso.

Assim, às instituições militares não é dado a faculdade de optar pela

obediência ou não dos preceitos inscritos na Carta Magna. Pelo contrário, a elas

incumbe proteger a constituição, ainda que de forma indireta. Sim, pois como reza o

Art. 142, destinam-se, além da defesa da Pátria, à garantia dos poderes

constitucionais, da lei e da ordem.

Pela necessidade de preservar as instituições militares, as autoridades têm

invocado os princípios da disciplina e da hierarquia como a principal fonte para a

manutenção das Forças Armadas. Para a mantença das instituições militares seria

essencial a sua estruturação nesses princípios, com a possibilidade de punir

administrativamente o agente que se mostrasse rebelde ao acatamento imediato e

irrestrito das leis, regulamentos e ordens das autoridades a quem estivesse

subordinado. Como complemento desse argumento, se assim não o fosse, o próprio

cumprimento da missão constitucionalmente atribuída às Forças Armadas seria

inviabilizado.

Na aplicação de sanções administrativas, tal princípio é colocado num

patamar superior, em detrimento de tantos outros que a nossa Carta Maior

reconhece. O princípio da disciplina e da hierarquia muitas vezes tem sido utilizado

como ferramenta para se sobrepor aos princípios da dignidade da pessoa humana e

do devido processo legal, baseado na ampla defesa e no contraditório, o que acaba

causando embaraços ao agente público, que se vê tolhido em seu direito básico de

ter um justo e razoável processo administrativo.

Aliás, é o que se depreende dos incisos LIII, LIV e LV do Art. 5° de nossa

Constituição Federal, informando que ninguém será processado (inclusive

administrativamente) por autoridade incompetente, que informa ninguém será

privado de sua liberdade sem o devido processo legal, incluído a ampla defesa, o

contraditório e os meios e recursos inerentes à defesa daquele que se achar privado

de algum direito.

O objetivo de proteger as instituições militares, apurando transgressões

disciplinares e punindo os agentes desalinhados com o interesse público, ainda hoje,

o resulta em inúmeros casos de ofensa ao princípio do devido processo legal.

É bem verdade que muito se aperfeiçoou na esfera do processo

administrativo disciplinar militar. Quando se passou a reconhecer no corpo do

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Regulamento Disciplinar do Exército, a partir de seu novo texto aprovado pelo

Decreto n° 4.346, de 26/08/2002, o princípio constitucional do devido processo legal

teve maior relevo e importância para o segmento militar da sociedade. Com o devido

processo legal se inserindo na seara castrense muito se evoluiria na apuração de

fatos que poderiam caracterizar a transgressão da disciplina militar, o que seria, à

primeira vista, a passagem para uma situação jurídica mais favorável aos integrantes

das Forças Armadas.

Anteriormente, sequer falava-se em contraditório ou mesmo em amplitude da

defesa. Muito comum era a aplicação do princípio da verdade sabida e

simplesmente punir o agente público que teria supostamente ofendido a disciplina

militar ou qualquer outro dos valores cultuados no meio castrense, como a ética

militar, o pundonor militar ou decoro da classe. Depois, e se fosse o caso, anulava-

se a punição imposta, apagando-se o registro realizado em desfavor do agente que

conseguisse provar que o fato que lhe fora atribuído não era de sua autoria ou não

teria sequer ocorrido, ou se ocorrido, de maneira diversa da narrada nos autos. E a

anulação da punição tida por injusta se dava sem maiores consequências,

evidentemente, para as autoridades que conduziam esses pseudos-processos

disciplinares. Em outros tempos, pouco se tinha de garantia ou de segurança que a

punição aplicada estava em conformidade com a Constituição, ou mesmo com os

ditames da justiça.

À luz dos princípios constitucionais atuais, não se pode mais permitir que

direitos fundamentais do militar sejam, enquanto visto como qualquer cidadão,

desconsiderados em virtude de sua condição peculiar. Não se pode mais tolerar o

pensamento retrógrado de que o militar, seja ele dos Estados ou das Forças

Armadas, não faz jus a outros direitos senão aqueles que estão previstos em seus

estatutos ou regulamentos. Um dia, antes mesmo de vestir a farda pela primeira vez,

muitos homens e mulheres que integram as Forças Armadas eram cidadãos

singulares, com direitos e deveres semelhantes a qualquer outra pessoa.

O que acontece diuturnamente nos quartéis, e muitos não percebem, é que

direitos são violados sob o manto de um processo administrativo tido como regular,

mas que, em verdade, se desenvolve ou se conclui eivado por vício insanável, qual

seja: a supressão de um meio, um instrumento inerente à amplitude de defesa – o

recurso administrativo.

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14

Feitas estas considerações iniciais, este trabalho objetiva analisar a

sistemática de reexame das decisões administrativas em sede de processo

administrativo disciplinar, regulamentado pelo Decreto n° 4.346, de 26 de agosto de

2002, que instituiu o novo Regulamento Disciplinar do Exército, em substituição ao

Decreto n° 90.608, de 04/12/1984.

Apesar de o novel diploma regulamentar trazer consigo o ideal constitucional

das garantias individuais necessárias à manutenção da dignidade da pessoa

humana, mencionando expressamente o direito do militar envolvido em processo

administrativo disciplinar ao devido processo legal, com a observância do

contraditório e da ampla defesa, ocorre, ainda hoje, violações ou mascaramentos

dessas garantias, estas essenciais na proteção das liberdades públicas e na

contenção do arbítrio estatal.

Amparamo-nos nas lições de doutrinadores consagrados na temática do

direito administrativo e do direito disciplinar militar para realizar, num primeiro

momento, uma abordagem a respeito dos aspectos peculiares da vida castrense, do

direito militar e do respectivo espectro disciplinar apontando sua posição jurídica no

ordenamento pátrio, bem como a natureza jurídica do servidor militar.

Mais adiante, abordaremos a relação da Administração Militar com o processo

administrativo em suas nuances doutrinárias, passando, logo após, a desenvolver

esta pesquisa com o intuito de analisar e comparar o processo administrativo

disciplinar no âmbito das três Forças – Marinha, Exército e Aeronáutica.

Por fim, abordaremos a problemática pela qual nos propusemos a investigar,

abordando a noção de recurso e impugnação, os princípios aplicáveis aos recursos

em geral, o procedimento destes no Regulamento Disciplinar do Exército, os efeitos

recusais aplicáveis e a ausência da oportunidade de se recorrer

administrativamente, em razão dos obstáculos enfrentados.

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15

2 O DIREITO MILITAR

Neste capítulo, faremos uma breve abordagem relativamente a alguns tópicos

que interessam ao estudo do direito militar, tais como sua noção conceitual, seu

posicionamento no ordenamento jurídico, bem como tratar do agente público

denominado militar, em suas peculiaridades profissionais e em sua natureza jurídica.

2.1. NOÇÃO DE DIREITO MILITAR

Para iniciar leitor deste trabalho monográfico, que diz respeito à sistemática

recursal no processo administrativo disciplinar militar, é preciso apontar-lhe a direção

mais próxima o possível das realidades vivenciadas na caserna1, demonstrando o

quão peculiar é a vida castrense2.

Com efeito, Jorge César de Assis aponta em sua obra3 que o segmento militar

da sociedade é diferenciado por que se submete aos mesmos regramentos jurídicos

que todo o cidadão deve respeitar, porém com a observância de outros valores pelos

quais o restante das pessoas não estariam obrigadas a cultuar, muito embora o

devessem fazer.

E explica onde reside a peculiaridade da vida militar4:

A sociedade militar é peculiar; Possui modus vivendi próprio;

1 Habitação de soldados, dentro do quartel ou de uma praça fortificada. Dicionário Aurélio Eletrônico –

Século XXI. Versão 3.0 – novembro de 1999. 2 Referente à classe militar. Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0 – novembro de

1999. 3 ASSIS, Jorge Cesar de. Curso de Direito Disciplinar Militar. Curitiba: Juruá, 2007. p. 17.

4 Ibidem. p. 17-18.

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16

Todavia, submete-se aos princípios gerais do direito, amoldando-se ao ordenamento jurídico nacional; pode e deve ser submetida ao controle judicial do qual a ninguém é dado furtar-se.Esta peculiaridade exige sacrifícios extremos (a própria vida), que é mais do que simples risco de serviço das atividades tidas como penosas ou insalubres como um todo. Para condições tão especiais de trabalho, especial também será o regime disciplinar, de modo a conciliar tanto os interesses da instituição como os direitos dos que a ele se submetem. A rigidez do regime disciplinar e a severidade das sanções não podem ser

confundidas como supressão dos seus direitos. (Grifo do autor)

Deveras, reverenciar a Pátria, cultuar seus símbolos e até mesmo dispor da

própria vida em prol da sua existência e da liberdade é tarefa que não agrada a

todos os cidadãos. Aqueles que escolhem o serviço das armas, seja por verdadeiro

pendor, seja mesmo por conveniência, têm uma oportunidade incomum de

demonstrar o seu amor, sentimento este que nutre os laços filiais mais íntimos entre

a Pátria e os cidadãos que compartilham dos mesmos ideais de justiça e de respeito

aos direitos e aos deveres que a cada um incumbe.

Contudo, é oportuno dizer que o regime disciplinar não pode extrapolar as

barreiras da legalidade e partir para o duvidoso terreno “querismo”, como há muito, e

ainda hoje, ocorre nas instituições castrenses, para satisfazer a vontade daqueles

que estão nos níveis mais elevados da hierarquia, mesmo em detrimento das

disposições legais ou regulamentares.

A rigidez do regime disciplinar e a severidade das sanções são elementos

distintivos da disciplina militar, em relação aos demais regimes disciplinares, sendo

inclusive essenciais para atingir determinados aspectos do interesse público, quais

sejam: a manutenção de instituições armadas capazes de atuar, internamente, em

prol da garantia da lei, da manutenção da ordem pública, dos Poderes constituídos,

contribuir para o desenvolvimento nacional, entre outras tarefas constitucionalmente

reservadas; e ainda atuar externamente, auxiliando a proporcionar a respeitabilidade

internacional da soberania do Brasil e dos interesses que nosso país tiver, dentro ou

fora de seu território.

Não se deve confundir, entretanto, que essa rigidez típica das instituições

militares seja uma carta branca para atuar no seio social desvinculadamente do

ordenamento jurídico posto e, até mesmo, contra os interesses publicamente

inscritos em nossa Carta Constitucional, tal como a construção de uma sociedade

justa, livre e fraterna, despida de preconceitos, calcada no exercício da cidadania e

Page 18: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

17

no respeito aos direitos e garantias individuais, com o enfoque especial da dignidade

da pessoa humana, pondo o indivíduo no centro do ideal constitucional para se

atingir as demais metas sociais.

É preciso alcançar a plenitude do interesse público, em todos os seus

aspectos, não olvidando, evidentemente, que é preciso observar a constituição e as

demais normas jurídicas que balizam o atuar estatal.

Na definição desse ramo do direito, ASSIS assevera que o Direito Militar é:

(...) todo o conjunto legislativo que está ligado, de uma forma ou de outra, ao sistema que envolve tanto as Forças Armadas Brasileiras, como aquelas que são consideradas suas Forças Auxiliares: as polícias militares e os corpos de bombeiros militares dos Estados e

do Distrito Federal 5.

Segundo esse posicionamento doutrinário, entende-se que o Direito Militar é o

conjunto normativo, composto pelos seus princípios6 informadores, leis e seus

respectivos regulamentos, que organiza e indica o modo de funcionamento das

Instituições militares brasileiras (Forças Armadas e Forças Auxiliares), em relação ao

papel constitucional que lhes compete, dando corpo a esse ramo jurídico, enquanto

disciplina autônoma da Ciência do Direito.

2.2. O DIREITO MILITAR E SUA POSIÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

O estudo do Direito Militar requer a identificação e a localização no

ordenamento jurídico brasileiro das normas jurídicas que tratam dessa seara, sem

olvidar da ascendência de nosso Texto Constitucional, que é a célula mater do

arcabouço jurídico instituído.

2.2.1. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

No bojo de nossa Carta Política se encontra disposições relativas às Forças

Armadas, às Forças Auxiliares e aos seus integrantes - os militares.

5 ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 17.

6 Nesse ponto, remetemos o leitor ao subitem 5.2, onde trataremos dos princípios.

Page 19: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

18

Tratando da Instituição Forças Armadas, esta composta pela Marinha, pelo

Exército e pela Aeronáutica, os artigos 142 e 143 da Constituição Federal de 1988

delimitou suas atribuições constitucionais, delineou suas características e seus

princípios basilares. Também dispõe sobre os direitos e deveres dos militares, bem

como menciona a obrigatoriedade, nos termos da lei e em tempo de paz, do serviço

militar aos brasileiros.

As Forças Auxiliares, assim denominadas pelo legislador constituinte no § 6°

do artigo 144 da CF, são constituídas pelas polícias militares e pelos corpos de

bombeiros militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, sendo estes,

ainda, reserva do Exército.

Sobre os militares, onde nossa constituição também traz disposições sobre

seus direitos e deveres, trataremos em momento oportuno.

2.2.2. Na legislação infraconstitucional vigente

Em nosso ordenamento jurídico encontramos diplomas que tratam de

variados temas relacionados com o Direito Militar, a saber:

a) Lei do Serviço Militar7, que trata da prestação do serviço militar

obrigatório citado no artigo 143 da Constituição Federal, e seu respectivo

regulamento8;

b) A Lei n° 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que cria o Estatuto dos

Militares, cujas disposições versam sobre os valores militares, os direitos e deveres

de cada integrante;

c) A Lei Complementar n° 97, de 9 de junho de 1999, que dispõe sobre as

normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas;

d) Os Decretos-lei n° 1.001 e 1.002, ambos de 21 de outubro de 1969,

que instituiu o Código Penal Militar e o seu respectivo código de processo; e

7 Lei n° 4.375, de 17 de agosto de 1964.

8 Decreto n° 57.654, de 20 de janeiro de 1966.

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19

e) Os Decretos do Presidente da República, que instituíram os

regulamentos disciplinares militares da Marinha9, da Aeronáutica10 e do Exército11,

este último objeto de nosso estudo, por conter em seu bojo as disposições relativas

ao processo administrativo disciplinar militar e a sistemática recursal cabível para

atacar o ato administrativo que eventualmente esteja em desacordo com o interesse

do militar, segundo os elementos carreados nos autos do processo administrativo

punitivo.

2.3. O MILITAR COMO AGENTE PÚBLICO

Passemos a falar do militar, enquanto um dos agentes públicos, abordando

sua natureza jurídica e as peculiaridades da profissão que exerce.

2.3.1. Natureza jurídica do servidor militar

Interessante notar as modificações realizadas pela Emenda Constitucional

(EC) n° 18/1998, que retirou dos militares a denominação “servidor público militar”,

que antes integrava o artigo 42 de nossa Carta Maior, passando a tratar como

“militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”. Anteriormente, o Art. 42-

CF se referia aos militares federais e aos militares dos Estados, do Distrito Federal e

dos Territórios, estes componentes das polícias militares e dos corpos de bombeiros

militares, aqueles componentes Forças Armadas, como servidor público militar em

antagonismo aos demais servidores públicos que, evidentemente, são civis.

Ao tratar da temática dos agentes públicos, a preclara DI PIETRO12 leciona

que após a EC n° 18/98, o legislador constituinte introduziu na ordem jurídica uma

nova classificação para tais agentes. A autora em comento aponta quatro categorias

de agentes públicos: a) agentes políticos; b) servidores públicos; c) militares; e d)

particulares em colaboração com o Poder Público. Contudo, e conceitualmente

falando, a autora afirma não haver distinção entre os servidores civis e militares,

9 Decreto n° 88.545, de 26 de julho de 1983.

10 Decreto n° 76.322, de 22 de setembro de 1975.

11 Decreto n° 4.346, de 26 de agosto de 2002.

12 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 476.

Page 21: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

20

exceto pelo regime jurídico parcialmente diverso pelo qual estão submetidos estes

últimos.

Apesar de a denominação ter sido alterada pela EC n° 18/1998, esse fato não

retira do militar sua qualidade, sua natureza jurídica de servidor estatal. Observando-

se a classificação dos agentes públicos realizada por BANDEIRA DE MELLO, é

possível perceber que o militar, enquanto um daqueles agentes a serviço do Estado,

estaria enquadrado na espécie servidor estatal13. Considerando a lição do mestre

acima cogitado, os militares estariam alocados na espécie servidores públicos, em

oposição aos servidores das pessoas governamentais de Direito Privado.

Complementando as lições doutrinárias acima, Jorge César de Assis

posiciona-se anotando que a natureza jurídica dos servidores militares é “de

categoria especial de servidores da Pátria, dos Estados e do Distrito Federal, com

regime jurídico próprio, no qual exige dedicação exclusiva, restrição a alguns direitos

sociais, e sob permanente risco de vida” 14.

2.3.2. Peculiaridades da profissão das armas

Afora as peculiaridades referenciadas no item 2.1, o militar das Forças

Armadas, em especial o do Exército Brasileiro, exerce, na maior parte de sua

carreira, suas atividades nas condições profissionais e pessoais mais adversas e

pouco confortáveis.

Servir a um país de dimensões continentais, cujas tarefas sejam, entre outras,

a de proteger e a manter a integridade das fronteiras, estabelecendo laços sociais

com os mais variados povoados que se situam encravados nos rincões mais

remotos e isolados deste país requer sacrifícios pessoais. Exige de cada soldado a

abnegação que não se pode exigir do cidadão comum, uma dose reforçada do mais

puro e fraternal sentimento de brasilidade e, por fim, a fé na missão que desenvolve

em benefício de cada brasileiro e brasileira que representa.

Uma adversidade peculiar da profissão das armas é a constante rotatividade

dos efetivos no território nacional por força da necessidade do serviço, onde o militar

13

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p.245-247. 14

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 32. Cabe comentar, aqui, que o termo mais adequado seria “risco de morte”, haja vista que o ser humano vivo não corre o risco de viver.

Page 22: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

21

acaba por não ter uma estabilidade desejável, que lhe proporcione vínculos sociais e

familiares, se submetendo a viver distante de suas origens.

Em muitas ocasiões o sacrifício não é só daquele que veste a farda. A família

do militar, que com este ombreia, lado a lado, para vencer as adversidades e

prosseguir com missão, também se vê obrigada a renunciar das facilidades da vida

em uma cidade estruturada, e segue para lugares inóspitos, muitas vezes

insalubres, que não possuem uma estrutura social mínima.

Localidades estas muitas vezes marcadas pela falta de escolas, de hospitais

ou postos de saúde, de opções de lazer, de cultura, de oferta de trabalho que

atendam ao cônjuge do militar, ainda que nas mais modestas pretensões

profissionais, e entre outras necessidades do ser humano moderno.

Page 23: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

22

3 A ADMINISTRAÇÃO MILITAR E O PROCESSO

ADMINISTRATIVO

Neste capítulo trataremos da Administração Militar e sua relação com o

processo administrativo, o dever desta em observar e respeitar os princípios

constitucionais que regem a Administração Pública e, sobretudo, observar a

existência de direitos e garantias fundamentais dos cidadãos que interagem no

cenário administrativo brasileiro. Abordaremos a questão do poder disciplinar na

Administração Pública e na Administração Militar, esboçando, por fim, o processo

administrativo, seu conceito, espécies, fases de desenvolvimento, a importância e a

finalidade deste meio de se realizar a atividade administrativa.

3.1. O ATO ADMINISTRATIVO COMO MEIO DE MANIFESTAÇÃO DA ATIVIDADE

ADMINISTRATIVA

Na questão da disciplina militar, toda a aplicação de sanção deve ser imposta

por meio de ato tipicamente administrativo, que deve observar os mesmos requisitos

dos demais atos administrativos produzidos pela Administração Pública, como um

dos meios de manifestação da vontade administrativa.

Essa manifestação pode ocorrer, segundo a doutrina15, por meio de: a) atos

materiais; b) atos sob o regime de Direito Privado; c) atos de governo; e d) atos

administrativos, estes últimos com maior importância na análise da problematização

desta monografia, que, de alguma forma, podem afetar o interesse do militar num

processo administrativo disciplinar.

15

Cf. GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 58; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 376-378.

Page 24: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

23

E essa afetação por intermédio do ato administrativo, enquanto um dos meios

legítimos de manifestação da vontade administrativa, não pode, a toda evidência,

contrariar o interesse representado em tal ato, que não deve ser dissociado do

interesse público a ser efetivamente tutelado pelas ações da Administração.

3.2. O DEVER DA ADMINISTRAÇÃO MILITAR EM OBSERVAR OS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS QUE REGEM A ADMINISTRAÇÃO E AOS PRINCÍPIOS

CONSTITUCIONAIS QUE DECLARAM DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

Cediço que é por aqueles que operam o direito diuturnamente que a

Constituição Federal de 1988 elencou, explicitamente, em seu artigo 37 alguns

princípios que devem ser observados pela Administração e por seus agentes

administrativos quando da consecução dos fins que ao Estado cabe promover em

favor do interesse público e dos interesses particulares. Dentre esses princípios,

estão os da Legalidade, da Impessoalidade, da Moralidade, da Publicidade e o da

Eficiência.

GASPARINI aponta que a atuação da Administração não deve se

circunscrever somente aos princípios explicitamente elencados no art. 37 de nossa

constituição, tendo, ainda, que observar outros princípios implícitos decorrentes do

sistema constitucional vigente, tais como os princípios da razoabilidade, da

supremacia do interesse público e da autotutela16.

Relativo ao objeto de nossa pesquisa, que é o estudo da sistemática recursal

no processo administrativo no âmbito do Exército Brasileiro, cabe destacar dois

destes princípios na perspectiva do aprimoramento da bagagem jurídica daqueles

que pretendem se embrenhar no ramo do direito militar e do direito disciplinar militar,

trilhando um caminho na busca de uma defesa mais digna, eficiente e célere

àqueles que assim necessitem, socialmente adequada à realidade de nosso país.

O primeiro a destacar é o princípio da legalidade, referente à Administração

Pública, seus órgãos e agentes, que informa que é dever destes agir de acordo com

a lei editada, no estrito limite de suas disposições, agindo com discricionariedade

quando esta lhe permitir e na medida em que ela autorizar17. Não cabe a atuação

16

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 7-25. 17

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 99-106.

Page 25: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

24

dos entes estatais desvinculada das leis que regulam as atividades do Estado, sob

pena de ferir a esfera de liberdades públicas18.

GASPARINI aponta que qualquer ação estatal sem o lastro legal, ou que

extrapole os limites da lei “é injurídica e expõe-se à anulação”19.

Por outro lado, deve-se entender e estender essa respeitabilidade

constitucionalmente exigida não somente ao elenco de leis que compõem o direito

positivo. É preciso velar igualmente pela correta aplicabilidade princípios

informadores da ordem jurídica, principalmente os afetos ao direito público, em

consonância com o interesse público e em observância aos ditames da justiça

social, tornando-os efetivamente respeitados primeiramente pela ação profícua do

Estado, sob pena de tornar tais mandamentos fundantes e estruturantes apenas um

amontoado de letras ou ideais despidos da vitalidade necessária.

Sob outro prisma, o princípio da legalidade, atuando para concretizar o

princípio da supremacia do interesse público, deve preponderar em detrimento dos

interesses e sentimentos pessoais daqueles que detém o poder decidir, mormente

dos agentes públicos que podem cercear a liberdade do militar, sem terem, em tese,

seus atos contestados ou mesmos submetidos ao crivo do judiciário, tal como ocorre

com os atos discricionários baseados na conveniência e na oportunidade,

supostamente nos limites da lei que assim autorizou a se proceder.

No ministério de OLIVEIRA, atualmente, se fala muito em uma nova visão ou

em uma releitura do princípio da legalidade, sendo chamado de princípio da

juridicidade ou da legalidade material20. Mais que respeitar a lei, deve se respeitar os

princípios e as regras constitucionais encartadas em nosso Texto Maior.

À vista da falta de lei que autorize o atuar da Administração, no sentido da

implementação de direitos e garantias fundamentais, é dispensável a existência de

uma norma jurídica infraconstitucional específica, haja vista que a autorização

decorre dos mandamentos da CF/88, justamente por serem normas de

18

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 58. 19

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 8. 20

OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Aula de direito administrativo, ministrada pelo procurador do Município do Rio de Janeiro-RJ, reapresentada em 7 set. 2009, no Programa Saber direito, da TV Justiça (Supremo Tribunal Federal). Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=H V6TO1M 8Jw8&feature=related>. Acesso em:12 abr. 2010.

Page 26: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

25

aplicabilidade imediata21. Contudo, se houver inovação no ordenamento jurídico que

crie direitos e obrigações aos particulares deve haver lei que determine.

Ilustrando a argumentação, OLIVEIRA relata o caso recente e que redundou

na edição da Súmula Vinculante n° 13 do Supremo Tribunal Federal (STF), onde foi

questionada a possibilidade do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editar uma

resolução que proibisse a contratação de parentes por integrantes do Poder

Judiciário. A vedação ao nepotismo acabou gerando uma controvérsia sobre a

inexistência de lei que proibisse a contratação22.

Ocorre que a Constituição Federal de 1988, nos incisos I e II do §4° do Art.

103-B, deu poder normativo ao CNJ, o autorizando a versar sobre assuntos

administrativos no âmbito do Poder Judiciário e a zelar pela observância do Art. 37

da CF/88. Um argumento favorável ao poder regulamentar do CNJ seria que para

fazer valer o princípio da moralidade administrativa não seria necessária uma lei,

nem mesmo se escusar no princípio da legalidade, haja vista que os princípios não

têm entre si uma hierarquia. Estando no mesmo patamar constitucional devem se

harmonizar para alcançar os ditames constitucionais. Após essa controvérsia, o STF

dirimiu a questão do nepotismo reconhecendo a sua imoralidade e ressaltando o

valor dos direitos fundamentais em face dos despropósitos que constantemente

ocorriam nos três Poderes estatais.

No que tange ao dever da Administração Militar em observar os princípios

constitucionais que regem a Administração e aos princípios constitucionais que

declaram direitos e garantias individuais, é precisamente aqui que se afirma que a

implementação de tais garantias individuais prescindiria de uma norma em especial

para torná-las efetivas no processo administrativo disciplinar, pois se revestem de

aplicabilidade imediata, conforme preceitua o §1° do Art. 5° da CF de 1988.

O segundo princípio em destaque é o princípio da eficiência, que informa que

cabe à Administração, no exercício de sua atividade, buscar o máximo de

aproveitamento para a realização e a defesa do interesse público. Nas palavras de

DIOGENES GASPARINI, tal princípio “impõe à Administração Pública direta e

indireta a obrigação de realizar suas atribuições com rapidez, perfeição e

21

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 179 e 180. 22

OLIVEIRA. Loc. Cit.

Page 27: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

26

rendimento, além, por certo, de observar outras regras, a exemplo do princípio da

legalidade” 23.

Se a Administração tem o dever de observar os princípios estruturantes da

atividade administrativa, elencados no art. 37, caput, da Constituição Federal, não

menos importante é a atenção que deve ser dispensada aos direitos e garantias

fundamentais destinados aos indivíduos, dispostos no art. 5° e em diversos outros

preceptivos de nossa Carta Política, como meio de limitação à ingerência estatal na

esfera de liberdades dos indivíduos, que devem ter a dignidade preservada contra

os abusos desnecessários e desafinados em relação ao interesse público.

Imaginando-se a constituição como a semente de criação de uma “nova”

ordem estatal, do ponto de vista de seus regramentos estruturais e

comportamentais, calcado numa ordem jurídica cujos anseios sociais aspiram,

naturalmente, que esta faça brotar, no seu tempo devido e não à base do

imediatismo, os frutos esperados para a realização do bem comum inspirado nos

ideais da justiça social, é razoável esperar que o Estado desempenhe o papel

principal para que tais anseios sociais se concretizem, agindo, sempre, nos limites

da legalidade, atuando de forma eficiente na manutenção da tutela do interesse

público.

3.3. OS PODERES HIERÁRQUICO E DISCIPLINAR NA ADMINISTRAÇÃO

PÚBLICA E NA ADMINISTRAÇÃO MILITAR

No exercício da atividade administrativa, que consiste, nas palavras de

SEABRA FAGUNDES24, na aplicação da lei de ofício, a Administração Pública, para

bem desenvolver sua tarefa constitucional, deve se servir de pessoas para integrar

seus órgãos, de maneira a viabilizar o bom desempenho das atividades inerentes ao

Poder Executivo.

O gerenciamento do aparato estatal administrativo, voltado à aplicação das

leis e à execução das demais atividades que lhe são inerentes, pressupõe uma

23

GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 21 e 22. 24

SEABRA FAGUNDES, Miguel. O controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 6 ed. São

Paulo: Malheiros, 1980. p. 5.

Page 28: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

27

estrutura organizada25, onde deve haver aqueles que detêm a prerrogativa de

decidir. Em contrapartida, haverá outros, por certo, com dever de colocar tais

decisões em prática, sob pena de as atividades estatais, que devem ser calcadas na

supremacia do interesse público, serem suplantadas pelo caos.

Daí a justificativa para o escalonamento em níveis diferenciados entre os

vários organismos componentes da Administração, bem como entre os servidores

públicos, elemento humano que necessita de regramento nas relações que trava

para com os demais. A esse escalonamento a doutrina chama de hierarquia.

Para Alexandre de Moraes poder hierárquico “é um instrumento para garantia

da atuação coordenada da Administração, e consiste na existência de subordinação

e coordenação nas relações funcionais entre os diversos servidores” 26. E a respeito

do poder disciplinar o referido autor ensina que este “consiste na possibilidade de a

Administração Pública apurar as infrações e aplicar penalidades aos servidores

públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina interna da Administração”27. Na visão

deste doutrinador poder disciplinar se destina a apurar as faltas funcionais dos

servidores públicos e a puni-las, que, em nosso sentir, devem sempre estar de

acordo com a legislação pertinente.

A hierarquia se constitui no vínculo de autoridade, caracterizado níveis

diferentes de responsabilidade e competência, que liga os órgãos e os agentes da

Administração, determinando a superioridade ou a inferioridade funcional de cada

um destes. A partir dessa relação de autoridade é que se pode conhecer quem é o

hierarca e quem são seus subalternos, conhecer os deveres e atribuições destes e

os poderes daquele.

Conforme nos ensina BANDEIRA DE MELLO28, os poderes do hierarca lhe

rendem uma autoridade contínua e permanente sobre toda a atividade daqueles que

estão sob a sua subordinação. Sobre os poderes que cabem ao hierarca, o mestre

aponta que além do poder de comando, que é intrínseco à idéia de autoridade, fica

entre suas prerrogativas o poder de fiscalização, intimamente ligado ao poder de

mando; de revisão dos atos administrativos praticados por algum subordinado; de

25

MEIRELLES. Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 63. 26

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 79. 27

Ibidem. p. 78. 28

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 150.

Page 29: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

28

dirimir controvérsias de competência; de delegar ou avocar para si competências e,

ainda, de punir aqueles subordinados que cometeram alguma falta.

Quanto a esse último espectro do poder disciplinar, que é o que nos interessa

para a análise dos possíveis recursos disciplinares e sua sistemática no

Regulamento Disciplinar do Exército (RDE)29.

Em se tratando de hierarquia e disciplina militar, reza o RDE o seguinte a

respeito de ambas:

Art. 7º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, por postos e graduações. Parágrafo único. A ordenação dos postos e graduações se faz conforme preceitua o Estatuto dos Militares. Art. 8º A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar.

A abordagem sobre a hierarquia e a disciplina deve ir além da definição

regulamentar. A hierarquia não é meramente o poder que os superiores hierárquicos

dispõem para impor condutas e ordens aos inferiores. Este poder de imposição

funcional, ou de ascendência, reza pelo ordenamento de seus agentes em diferentes

níveis a fim de que a Administração atinja os fins colimados pelo ordenamento

jurídico, em clara observância do interesse público. Do respeito ao ordenamento

escalonado, nos diversos níveis de cargos emerge o princípio da disciplina, como o

cordão-guia daqueles que integram os quadros da Administração Pública, seja o

servidor civil ou militar, significando o dever de obediência dos subordinados em

relação aos seus superiores.

José Afonso da Silva afirma que “a disciplina é o poder que tem os superiores

hierárquicos de impor condutas e dar ordens aos inferiores. Correlativamente,

significa o dever de obediência dos inferiores em relação aos superiores” 30.

Diferentemente desse renomado jurista, entende-se que a disciplina, embora

tenha correlação, ligação íntima com a hierarquia, não seja um poder de dar ordens,

pois dar ordens decorre naturalmente da relação de subordinação que é inerente à

hierarquia estabelecida. Igualmente, a imposição de condutas também estaria

29

Decreto n° 4.346, de 26/08/2002. 30

SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 773.

Page 30: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

29

açambarcada pela hierarquia. A disciplina atua na parte educacional do subordinado,

informando a este, especificamente aos militares, o dever e a importância do pronto

acatamento das normas jurídicas, regulamentos e das ordens emanada por seu

superior. Atua também no campo educacional quando impõe sanções aos

subordinados faltosos ou a aqueles que não observaram algum preceito

estabelecido.

Numa visão geral da função administrativa, o poder disciplinar exerce o papel

de controle do desempenho e da conduta individual dos servidores públicos31.

Contudo, em parte a disciplina se relacionaria com a consciência individual

que cada subordinado deveria exercitar a respeito de suas obrigações, pois mesmo

sem ordens de um hierarca pode haver por parte do subordinado o pleno e regular

funcionamento das atividades individuais que lhe incumbe. A esse estado de

conscientização chama-se de disciplina consciente, assim como é apregoado nos

meios castrenses.

Enquanto ideia mitigadora do poder de dar ordens, a disciplina consciente

pode ser visualizada no corpo social, por exemplo, quando o cidadão age

voluntariamente observando e respeitando as leis que a todos são impostas. Age,

em certa medida, de forma disciplinada, muito embora não haja alguém fisicamente

a lhe dar comandos impositivos. Sobre o receio da imposição de sanções, há

comandos normativos que não são seguidos sanção alguma por seu

descumprimento, a exemplo das normas dispositivas, em contraste às normas de

ordem pública, cujo caráter cogente destas últimas não deixa margem para a

sobreposição de vontades particulares em relação à do Estado que criou tais

normas.

3.3.1. Conceito de Direito Administrativo Disciplinar Militar

Na lição de Egberto Maia Luz32, o Direito Administrativo Disciplinar é o “ramo

do Direito Administrativo destinado a apurar, decidir e regular, por todos os aspectos

31

MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. p. 124. 32

LUZ, Egberto Maia. Direito Administrativo Disciplinar. Teoria e prática. 2 ed. São Paulo: RT, 1992. p. 64.

Page 31: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

30

pertinentes, as relações que o Estado mantém com seus servidores, visando ao

respeito das leis e das normas que regulam as atividades funcionais”.

José Armando da Costa33 define o Direito Disciplinar como “o conjunto de

princípios e normas que objetivam, através de institutos próprios, condicionar e

manter a normalidade do Serviço Público”.

Observando os conceitos acima ofertados pelos doutrinadores mencionados,

é possível entender que o Direito Administrativo Disciplinar Militar, sendo uma faceta

especializada no regramento das relações disciplinares dentro do Direito

Administrativo, é composto por normas jurídicas (regras e princípios) voltadas à

regular o comportamento disciplinar dos integrantes das Forças Armadas e de suas

Forças Auxiliares, com vistas à manutenção dessas instituições estatais e da

continuidade da prestação do serviço público pelo qual estas estão

constitucionalmente incumbidas.

3.3.2. O princípio da hierarquia e da disciplina como a base de sustentação das

Instituições Militares

É no princípio da hierarquia e da disciplina que as Instituições militares, seja

as Forças Armadas, seja as Forças Auxiliares (organizações militares dos Estados),

encontram o esteio necessário, a base de sustentação e a garantia de regularidade

e de permanência das FFAA. O asilo do princípio da hierarquia e da disciplina tem

seu manancial no Art. 42 e no Art. 142 de nosso Texto Maior:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998) (...) Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (Grifos nossos)

33

COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. p. 26. apud ASSIS, Jorge Cesar. Op. Cit. p. 63.

Page 32: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

31

Dos dispositivos constitucionais mencionados, verifica-se a importância dada

pelo legislador constituinte ao princípio da hierarquia e da disciplina como norma

nuclear, diretiva e embasante da atividade militar no Estado brasileiro. A hierarquia

aqui tratada se refere ao estrito escalonamento verticalizado dos membros

integrantes das instituições militares, como forma de organização e de sustentação

destas, proporcionando a realização de suas missões constitucionais e evitando a

solução de continuidade de uma atividade essencial para a garantia da soberania e

para a defesa de interesses diante de outros Estados igualmente soberanos.

3.4. O PROCESSO ADMINISTRATIVO

Ao se estudar a temática processual, uma questão que se coloca recorrente,

mormente no seio da Teoria Geral do Processo, é a de se saber as diferenciações

entre processo e procedimento.

Sobre a distinção entre os termos “processo” e “procedimento”, OCTAVIANO

e GONZALEZ apontam unicamente o interesse didático de compará-los, dizendo

que o termo procedimento seria mais recente e, portanto, a necessidade da

abordagem para melhor entender cada instituto e sua respectiva função34.

O procedimento é afeto ao modo de desenvolvimento do processo, tendo com

este íntimo liame. O procedimento é comumente tratado pela doutrina como o

mecanismo de desenvolvimento do processo, de aspecto formal, eminentemente

estrutural, que o faz desenvolver diante dos órgãos da jurisdição. É de se notar,

porém, que o processo, enquanto conjunto de atos encadeados tendentes a um fim,

não pertence somente à seara judicial, mas é inerente ao legislativo (quando edita

as leis que regem a sociedade) e ao executivo (na consecução de seus fins, seja

emitindo atos administrativos, seja na aplicação da lei de ofício).

Os autores afirmam ser o procedimento a dinâmica do processo. Deveras, o

procedimento é a alavanca, é a força motriz que impulsiona a prestação jurisdicional

pretendida pelos querelantes. Da mesma forma, o procedimento no processo

34

OCTAVIANO, Ernomar; GONZALEZ, Átila J. Sindicância e processo administrativo. 3 ed. São

Paulo: LEUD, 1985. p. 77.

Page 33: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

32

desenvolvido perante à Administração assumiria as mesmas características que

normalmente possui no processo judiciário, denotando, ainda, dois valores35:

O processo administrativo tem um duplo valor, já que representa uma segurança não só para a administração como igualmente para todos os seus servidores. Enquanto eles se põem a salvo do arbítrio das autoridades, estas, em nome da administração, zelam pela eficiência do serviço público, através não só do instituto processo administrativo disciplinar como do tributário, que dispõe sobre lançamento, a arrecadação e a fiscalização dos tributos devidos à administração.

Ou seja, além de primar pela segurança jurídica das relações travadas entre a

Administração e seus servidores ou entre a Administração e os demais

administrados, o processo administrativo exerce papel na consecução da eficiência

que deve permear as atividades estatais, sempre em prol do interesse público.

Citando Hely Lopes Meirelles36, os autores colacionam que não há processo

sem o procedimento, e dizem que a recíproca não é verdadeira. Afirmam que

existem procedimentos administrativos que não se constituem em um processo,

dando como modelo as licitações e o concurso público.

Com a devida vênia, não partilha-se, todavia, do mesmo posicionamento dos

referidos autores, uma vez que tanto o concurso público como a licitação envolve um

conjunto de atos administrativos tendentes a realização de um fim – no exemplo

dado pelo autores, o provimento de cargos públicos e a aquisição de bens e/ou

serviços para o Estado – o que marcaria a presença do processo como instituto

vocacionado a garantir persecução do interesse estatal e da sociedade.

Poderia se falar em procedimento e não em processo, vez que, na lição de

BACELLAR FILHO37, o que diferenciaria um do outro seria o critério do

CONTRADITÓRIO e não o critério da ROUPAGEM que o procedimento assume no

processo. Mesmo nos ditos procedimentos licitatórios ou nos procedimentos

concorrenciais para provimento de cargos públicos, há a possibilidade de se

impugnar certos atos ou decisões administrativas que criem lesões a direitos ou a

princípios relacionados a estes institutos, conforme disposições constitucionais e

35

Ibidem. p. 82. 36

MEIRELLES, Hely Lopes. O processo administrativo: in Revista dos Tribunais, 483, p. 11 apud OCTAVIANO, Ernomar; GONZALEZ, Átila J. Op. Cit. p. 78. 37

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 48-56.

Page 34: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

33

legais contidas na legislação aplicável a cada caso respectivamente (art. 109 da Lei

n° 8.666/93; art. 56 a 65 da Lei n° 9.784/99).

Considera-se coerente, porém, o ponto de vista que se deve separar a

definição de processo da de procedimento, não pelo critério do contraditório, pois se

assim fosse separado, e pela lógica dessa lição, o processo com contraditório seria

despido de procedimento, de rito, de forma de ser e de se desenvolver, o que parece

ser algo inconcebível processualmente falando, já que pela lição do autor acima

indicado a nota distintiva entre ambos seria o contraditório como elemento exclusivo

do processo. Há que se ver o procedimento como indumentária que reveste aquele

instrumento político e social para a resolução dos conflitos de interesses. É o

procedimento modus operandi, é forma de movimentação, e não propriamente o

instrumento estatal hábil a compor a parcela dos conflitos de interesses postos à

apreciação tanto na esfera judicial como na esfera administrativa.

Em verdade, o processo na esfera judicial tem um cunho finalístico, onde o

mesmo é empregado para atingir um fim social e político, qual seja: a pacificação

dos conflitos de interesse por intermédio de uma justa composição da lide, em pé de

igualdade, de possibilidades e de oportunidades de atuação por cada uma das

partes.

No mesmo sentido, Luiz Rodrigues Wambier leciona que o processo passou a

ter foco principal no seu aspecto teleológico, isto é, na busca da pacificação da

parcela dos conflitos de interesse submetidos ao Poder Judiciário. Contudo, tem

também um aspecto político pelo qual o processo serve de instrumento para que o

Estado atinja os fins colimados pela vedação da autotutela, a partir de uma

prestação jurisdicional que equilibre as relações sociais. Já o procedimento é o

mecanismo de desenvolvimento do processo, de aspecto formal, eminentemente

estrutural, que o faz se desenvolver diante dos órgãos da jurisdição38.

Transportando para o ramo do direito administrativo a lição do mestre acima

indicado, é possível inferir a adequação do conceito finalístico do processo, lapidado

pela corrente civilista que predomina na concepção da Teoria Geral do Processo.

Dessa maneira, além de ser o instrumento necessário à consecução das garantias

constitucionais direcionadas a proteger, sobretudo, as liberdades individuais, tem

ainda o papel fundamental na resolução dos conflitos sociais existentes não só

38

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Curso

avançado de processo civil. 9 ed. V.1. São Paulo: RT, 2007. p. 156.

Page 35: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

34

perante o Poder Judiciário, mas igualmente perante a Administração Pública, tanto

no segmento geral ou como no segmento militar.

3.5. CONCEITO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO

Explicando a etimologia do vocábulo processo, dizendo este ter sentido de

avanço, progresso, desenvolvimento, Maria Sylvia Zanella Di Pietro fala do processo

como instrumento utilizado pelos três poderes estatais para atingir seus fins

precípuos39. Fala a autora em processos estatais, cuja essência desses informa o

dever de observar, ao menos, princípios comuns da Teoria Geral do Processo, tais

como o da competência, o da formalidade, o da supremacia do interesse público

sobre o particular. E esses processos estatais, partindo da ideia de série de atos

coordenados para a realização dos fins estatais, ocorrem ao elaborar as leis

(legislativo) e ao aplicá-las (executivo e judiciário)40.

Diogenes Gasparini ao conceituar processo administrativo fala em duas

facetas deste: uma técnica e outra prática. Pela primeira, diz ser o processo

administrativo “o conjunto de atos ordenados, cronologicamente praticados e

necessários a produzir uma decisão sobre controvérsia de natureza

administrativa”41. A segunda faceta se traduz no “conjunto de medidas jurídicas e

materiais aplicadas com certa ordem e cronologia, necessárias ao registro dos atos

da Administração Pública, ao controle do comportamento dos administrados e de

seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder de polícia, os interesses

público e privado, a punir seus servidores e terceiros, a resolver controvérsias

administrativas e a outorgar direitos a terceiros”42.

3.6. ESPÉCIES DE PROCESSO ADMINISTRATIVO

Bandeira de Mello classifica as espécies de processo administrativo de

acordo com o âmbito de atuação e de acordo com o modo de atuação jurídica. Pelo

39

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 576-578. 40

Ibidem. p. 577. 41

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 933. 42

Ibidem. p. 934.

Page 36: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

35

primeiro, afirma o autor existir “processos internos”, que se circunscrevem à atuação

interna da própria Administração, e os “processos externos”, onde há a participação

dos administrados. Pelo modo de atuação jurídica, diz o doutrinador que há

“processos restritivos ou ablatórios” e os “processos ampliativos”43. Os processos

ampliativos seriam por este autor subdivididos em: de iniciativa do próprio

interessado e de iniciativa da Administração. Estes poderiam ser vistos ainda pela

ótica da existência ou não de concorrência. Os processos restritivos seriam

subdivididos em: meramente restritivos e sancionadores.

Diogenes Gasparini apresenta de maneira diversa as espécies de processos

administrativos, os dividindo em: de outorga, de polícia, de controle, de punição e de

expediente44.

Não entraremos aqui nas particularidades de cada processo por não ser

objeto de pesquisa deste trabalho de conclusão de curso.

3.7. FASES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Quanto às fases do processo administrativo, Bandeira de Mello45 ensina

existir cinco fases: propulsória, instrutória, dispositiva, controladora e de

comunicação.

Hely Lopes Meirelles divide as fases em: instauração, instrução, defesa,

relatório e julgamento46.

Por razões de objeto de pesquisa, não detalharemos cada uma das fases

elencadas pela doutrina citada.

3.8. DA IMPORTÂNCIA E DA FINALIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO

O Estado ganhou notoriedade e importância a partir do momento em que

avocou para si a tarefa de regular o convívio social entre os particulares que formam,

ou não, um dos elementos essenciais para a sua configuração, qual seja: o povo.

43

BANDEIRA DE MELLO. Op. Cit. p. 488-490. 44

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 946-951. 45

BANDEIRA DE MELLO. Op. Cit. p. 490 e 491. 46

MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. 691-693.

Page 37: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

36

Editando leis para harmonizar as condutas sociais ou mesmo para estruturar

a “máquina” estatal, o Estado evidentemente impõe sua força perante os

administrados para que os mesmos obedeçam aos regramentos estabelecidos e

que, assim, possa alcançar a paz social que tanto se almeja.

Essa ingerência estatal mostrou-se acentuada a partir da revolução industrial,

que fez eclodir uma grande expansão da produção de bens e riquezas em contraste

com o aumento da miséria do proletariado que servia de mão de obra barata e

vantajosa aos interesses dos detentores dos meios de produção disponíveis à

época.

A preocupação com as desigualdades sociais que vinham se agravando por

conta do liberalismo da economia então vigente e a necessidade de promover o bem

comum fizeram o Estado intervir no mercado econômico, campo até então visto

como de atuação exclusiva dos particulares, para buscar equilibrar os interesses em

conflito.

Nesse contexto, e transportando esses fatos históricos para os dias atuais, a

Administração Pública, representando parcela do Poder estatal de ingerência

compulsória, cumprindo com sua tarefa precípua, no ideal de tripartição do poder do

modelo federalista, ao aplicar a lei de ofício se manifesta de várias formas.

E como explanamos no tópico acima, a manifestação que interessa ao

processo administrativo disciplinar e à análise da sistemática recursal do RDE é

sobre os atos administrativos, que vão influir no interesse do agente público

processado.

O processo administrativo associado à ideia de defesa interesse público tem

por finalidade genérica a sua compatibilização com tal interesse. Especificamente,

teria a função de registro do ato administrativo produzido, função de controle da

conduta dos agentes públicos e privados envolvidos na criação desses atos, função

de outorga de direitos e solução de controvérsias47.

Exposto isso, resta clara e notória a possibilidade de se questionar os atos

que contrariem a assertiva acima esposada, mormente quando a afetação lesionar

direitos ou garantias constitucionalmente previstas, que militam, a toda prova, em

preservar um piso mínimo de dignidade ao particular lesado juridicamente.

47

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 939.

Page 38: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

37

Deste modo, a pretensão oriunda de lesões pode ser deduzida perante a

Administração, que tem a capacidade de rever seus atos, mediante a instauração do

devido processo legal. Por ser uma garantia constitucional estampada nos incisos

LIV e LV do artigo 5°, o processo administrativo ao ser reconstruído pela lei deve

observar a concepção consagrada em nosso Texto Maior, e não tornar-se tal

garantia em ilusão jurídica48.

Se ao legislador não é dado agir da maneira acima comentada (ignorar ou

desconsiderar direitos e garantias fundamentais), muito menos o é ao servidor

público, que deve pautar-se pelo cumprimento de suas obrigações segundo as leis e

regulamentos a que estiver sujeito. Assim, os servidores públicos e as autoridades

que dirigem a atividade administrativa, inclusive o segmento militar da Administração

Pública, devem observar os mandamentos constitucionais e não simplesmente

ignorá-los como não fizessem parte de nosso ordenamento jurídico.

Por tudo quanto foi dito, e concluindo esse tópico, as finalidades do processo

administrativo apontadas ganham importância, maior relevo na ordem jurídica atual

por se constituir numa via, em tese, mais acessível e mais célere aos agentes

públicos, podendo ser o caminho mais curto à satisfação de interesse ligado à

Administração.

3.9. O PROCESSO ADMINISTRATIVO NO ORDENAMENTO PÁTRIO

Vários são os diplomas legais que versam sobre a existência do processo

administrativo, em observância aos direitos individuais fundamentais e em respeito a

princípios pelos quais estão adstritos a Administração Pública.

Conforme se mencionou acima, a base constitucional do processo

administrativo decorre do princípio do devido processo legal inserto nos incisos LIV e

LV do artigo 5° de nossa Constituição Federal.

Assim, pode-se agora citar alguns dos dispositivos infraconstitucionais que

dizem respeito ao processo administrativo:

48

BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 60 e 61.

Page 39: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

38

- Pela Lei n° 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da

Administração Pública Federal, envolvendo os interesses de particulares perante

aquela;

- Pela Lei n° 8.112/90, versando sobre o Regime Único dos Servidores

Civis da União, onde encontramos o processo administrativo voltado à apuração e

eventual sanção das faltas cometidas pelos servidores estatais;

- Pelo Decreto n° 70.235/72, que dispõe sobre o processo administrativo

de determinação e exigência de créditos tributários da União e o de consulta sobre

aplicação da legislação tributária federal; e

- Pelo Decreto n° 4.346/02, que institui o novo Regulamento Disciplinar do

Exército (RDE), em substituição ao Decreto n° 90.608/84, onde encontramos as

regras para o desenvolvimento do processo administrativo disciplinar.

Sobre o processo administrativo desenvolvido neste último diploma normativo,

trataremos no próximo capítulo.

Page 40: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

39

4 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NO

ÂMBITO DAS FORÇAS ARMADAS

Trataremos neste capítulo da normatização do processo administrativo

disciplinar desenvolvido no âmbito do Exército Brasileiro, suas deficiências e

enfatizaremos o problema da aplicação imediata da sanção disciplinar, passando,

logo em seguida, a tratar do processo administrativo disciplinar desenvolvido na

Marinha e na Aeronáutica.

4.1. O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NO ÂMBITO DO

EXÉRCITO BRASILEIRO

Considerando as disposições constitucionais acerca das Instituições

Armadas, compostas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, fundadas nas

características da permanência, da regularidade49 e da organização hierarquizada e

disciplinada, o legislador infraconstitucional regulamentou os artigos 142 e 143,

editando leis e regulamentos a fim de implementar parcela dos mandamentos

existentes em nossa Carta Maior, e que dizem respeito à defesa nacional.

O primeiro parâmetro infraconstitucional é a recepção do Estatuto dos

Militares, por sua compatibilidade vertical com a Constituição Cidadã, que inaugurou

um novo ordenamento jurídico calcado no respeito à dignidade da pessoa humana e

na observância da cidadania, manancial dos direitos e garantias fundamentais,

determinando, de acordo com o Inciso X do §3° do Art. 142-CF, que a lei dispusesse,

entre outros, sobre os direitos e os deveres do militar.

49

MARTINS, Eliezer Pereira. Direito Constitucional Militar. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3854>. Acesso em: 14 dez. 2009.

Page 41: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

40

O Estatuto dos Militares, criado pela Lei Federal n° 6.880, de 9 de dezembro

de 1980, regula a situação, obrigações, deveres, direitos e prerrogativas dos

membros das Forças Armadas (Art. 1°).

No capítulo destinado a tratar das obrigações e dos deveres militares, o

Estatuto dos Militares informa, de acordo com o Art. 47, o seguinte:

Art. 47 Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

Assim, abre-se caminho para o Chefe do Poder Executivo da União – o

Presidente da República – editar, segundo o poder regulamentar que lhe é conferido

pela própria Constituição, os regulamentos disciplinares das Forças Armadas, pois é

destas o Comandante Supremo (incisos IV e XIII do Art. 84-CF).

4.1.1. A normatização do processo administrativo pelo Regulamento Disciplinar do

Exército (RDE)

Considerando os apontamentos acima realizados, sobre a constitucionalidade

da regulação da atividade militar por intermédio de leis e regulamentos vinculados a

estas, o Presidente da República editou o novo Regulamento Disciplinar do Exército,

aprovado pelo Decreto n° 4.346, de 26/08/2002.

Este novo diploma normativo veio em substituição ao anterior regulamento

disciplinar dos anos oitenta50, numa tentativa de adequar as questões antes

esquecidas ou mesmo ignoradas pelas autoridades militares, resquícios, certamente,

do período político conturbado enfrentado pelo país à época em que os militares

estavam no comando Brasil.

E as adequações se deram por conta de, entre outras medidas, reconhecer o

direito do militar ao devido processo legal; modificar o conceito de transgressão

disciplinar, antes sendo “qualquer violação dos preceitos de ética, dos deveres e das

obrigações militares”, eliminando a expressão em grifo antes utilizada em respeito,

ainda que minimamente, ao princípio da reserva legal, apesar das críticas

50

Decreto n° 90.608, de 4/12/1984.

Page 42: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

41

doutrinárias no sentido de que a reserva legal é observada a partir da competência

constitucional para a edição de leis, instrumento hábil para se implementar no

ordenamento os tipos delitivos legais e suas respectivas penas, em observância ao

princípio do nullum crimen/nulla poena sine lege, estampado no inciso XXXIX do

Art.5° da Constituição Federal.

4.1.2. As deficiências no processo administrativo disciplinar

Na tentativa de aprimorar e adequar o regulamento disciplinar às novas

exigências sociais, alinhando este instrumento disciplinar ao pensamento moderno

da defesa dos direitos individuais, cometeu-se alguns erros.

O primeiro deles nos parece ser a irracional intenção de padronizar o

contraditório e a ampla defesa, de maneira a instituir um modelo, um parâmetro para

se produzir uma defesa, da qual não poderá se afastar do molde imposto.

O Anexo IV do RDE traz as Instruções para Padronização do Contraditório e

da Ampla Defesa nas Transgressões Disciplinares, cuja finalidade é a de regular, no

âmbito do Exército Brasileiro, os procedimentos para padronizar a concessão do

contraditório e da ampla defesa nas transgressões disciplinares (Grifei).

Regular as normas para padronização da concessão do contraditório e da

ampla defesa? E desde quando o direito ao contraditório e da ampla defesa é uma

concessão que fica na margem discricionária da autoridade da Administração

Militar?

A doutrina tradicional e a doutrina moderna ensinam51 que o contraditório e a

ampla defesa seria um direito inalienável, imprescritível, irrenunciável, não ficando à

mercê dos caprichos e desmandos autoritários, daqueles que negam existir tais

direitos em prol de qualquer cidadão.

Outro ponto deficiente a se criticar no RDE é que a falta de defesa pode gerar

uma renúncia tácita ao direito de defesa. Assim diz o item d) do número 4 do Anexo

IV do RDE:

d) Se o militar não apresentar, dentro do prazo, as razões de defesa e não manifestar a renúncia à apresentação da defesa, nos termos

51

Cf. SILVA, José Afonso da. Op. Cit. p. 180-182; LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 742.

Page 43: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

42

do item "c", a autoridade que estiver conduzindo a apuração do fato certificará no Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar, juntamente com duas testemunhas, que o prazo para apresentação de defesa foi concedido, mas o militar permaneceu inerte; (Grifo nosso)

Ora, e se este, por circunstâncias alheias a sua vontade, não puder

apresentar sua defesa no exíguo tempo dispensado, será tido como revel?

Aliás, aqui se registre, também, que o prazo de três dias úteis52 para se

defender acusações nem sempre é suficiente, pois se o militar acusado tiver que

procurar um profissional que lhe faça uma defesa técnica e ainda tiver que juntar

provas que lhe favoreçam, o prazo dado sequer faz frente a essa eventual demanda

inerente à própria defesa.

Nesse ponto reside outra deficiência do processo administrativo disciplinar do

RDE, qual seja: não prevê a nomeação de um defensor dativo53, na hipótese de não

apresentação de defesa no “amplo” prazo disponibilizado.

Por se tratar de processo administrativo disciplinar que, por sua afinidade

material e principiológica com o direito penal e o seu respectivo processo54,

possibilitando ao seu fim o cerceamento de liberdade individual, nos parece que

seria bastante razoável a previsão no procedimento do RDE de um defensor dativo,

tal qual é previsto no parágrafo único do Art. 261 do Código de Processo Penal

(CPP) e no §1° do Art. 71 do Código de Processo Penal Militar (CPPM).

Não se quer aqui onerar o Estado gratuitamente, contudo aquele que está em

vias de ter a liberdade cerceada por ter supostamente cometido um ilícito, seja

delitivo ou transgressional, merece tratamento digno de modo a preservar um de

seus bens fundamentais, que é a liberdade de ir, vir e permanecer. Ademais, a

própria estrutura do Exército conta com assessorias jurídicas que existem para tratar

de questões que interessem à União, quando um dos figurantes é o Exército

Brasileiro. Não haveria problema, em tese, de se designar alguns dos membros

dessas assessorias jurídicas para atuar como defensores dativos em processos

administrativos disciplinares.

52

Item a) do número 4 do Anexo IV do RDE. 53

Conforme apontaremos abaixo, o Supremo Tribunal Federal se posicionou, a partir da Súmula Vinculante n° 5, de 16/5/2008, que falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. 54

Cf. MARTINS, Eliezer Pereira. Direito administrativo disciplinar militar e sua processualidade. Leme: Led:1996. p. 53-60; LUZ, Egberto Maia. Op. Cit. p. 74 e ss.

Page 44: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

43

Por outro lado, parece bastante retrógrada e desafinada com os fins sociais

constitucionais a previsão regulamentar de renúncia expressa ou tácita de defesa, já

que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo

legal (inciso LIV do Art. 5°-CF). Nota-se, portanto, o descompasso do novel RDE

perante o ordenamento pátrio.

Por fim, e nos parece ser a teratologia mor do RDE, nos deparamos com o

problema da limitação da argumentação na defesa, segundo disposição item e) do

número 5 das famigeradas Instruções para Padronização do Contraditório e da

Ampla Defesa nas Transgressões Disciplinares, verbis:

e) As justificativas ou razões de defesa, de forma sucinta, objetiva e clara, sem conter comentários ou opiniões pessoais e com menção de eventuais testemunhas serão aduzidas por escrito, de próprio punho ou impresso, no verso do Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar na parte de JUSTIFICATIVAS / RAZÕES DE DEFESA, pelo militar e anexadas ao processo. Se desejar, poderá anexar documentos que comprovem suas razões de defesa e aporá sua assinatura e seus dados de identificação; (Grifos nossos, negrito do legislador)

Apesar de o regulamento disciplinar mencionar em seu corpo que nenhuma

punição disciplinar será imposta sem que sejam assegurados o contraditório e a

ampla defesa (§§ 1° e 2° do Art. 35), o anexo IV vai em sentido contrário às

disposições regulamentares e o pior, contra os mandamentos constitucionais, fonte

de inspiração inclusive do Art. 35 do RDE.

Ora, como é possível o exercício do contraditório e da ampla defesa se não

se pode argumentar, contraditar, rebater acusações, expor opiniões pessoais, e até

mesmo manifestar posicionamento doutrinário pelo qual se filia, de modo a ampliar

seu campo defesa e evitar prejuízos para si.

A exigência de razões de defesa sucintas e acéfalas servia bem ao

regulamento disciplinar anterior, que sequer mencionava a existência desses

princípios hoje essenciais à preservação da dignidade da pessoa humana.

Hoje nos parece que essas disposições de anexo do RDE não fazem o menor

sentido diante dos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição, de modo

que resta inválida qualquer aplicação dessas instruções no processo administrativo

disciplinar do RDE.

Page 45: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

44

4.1.3. O problema da aplicação imediata da sanção disciplinar

Uma das consequências práticas da decisão emanada pela autoridade

competente em aplicar as punições disciplinares, em razão da supressão do lapso

temporal para se interpor algum recurso, é o recolhimento do militar infrator ao local

designado para o cumprimento de sua punição, conforme preconiza o §1° e caput do

Art. 47 do RDE, verbis:

Art. 47. O início do cumprimento de punição disciplinar deve ocorrer com a distribuição do boletim interno, da OM a que pertence o transgressor, que publicar a aplicação da punição disciplinar, especificando-se as datas de início e término. (Grifo nosso)

§ 1º Nenhum militar deve ser recolhido ao local de cumprimento da punição disciplinar antes da distribuição do boletim que publicar a nota de punição.

Tal procedimento ocorre, no mais das vezes, ao final do expediente diário e é

tido como normal na vida cotidiana da Organização Militar.

Entretanto, a norma contida no Art. 47 do RDE induz o mais desprevenido a

pensar que toda punição disciplinar deve sempre ocorrer imediatamente à

distribuição do Boletim Interno da Organização Militar a que pertence o acusado,

publicando a decisão da autoridade competente.

O que não é levado em consideração pelos comandantes é a norma contida

no mesmo Art. 47 do RDE, que informa que no Boletim Interno serão especificadas

as datas de início e de término da punição disciplinar.

Ora, a interpretação mais adequada e razoável é aquela no sentido de que a

sanção imposta não precisa, necessariamente, ser cumprida de imediato, ao

contrário do que leciona ASSIS55, que diz ser prejudicial a não aplicação imediata

das punições em virtude de um efeito suspensivo concedido em grau de recurso,

descaracterizando, assim, o direito disciplinar militar.

Nessa senda, não se deve confundir o caráter de imediato cumprimento da

pena disciplinar com o caráter educativo que ela deve trazer consigo. Não se trata

de pena de cunho ressocializador, cujo afastamento imediato e prolongado do seio

social (no caso das Forças Armadas, o afastamento do corpo da tropa) assim o

55

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 151 e 153.

Page 46: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

45

recomende. Até porque a única sanção disciplinar que segrega o infrator do corpo da

tropa, de fato, é a de prisão disciplinar, nos limites de dias impostos pelo

regulamento disciplinar, cuja regra é o cumprimento com prejuízo da instrução e dos

serviços internos (Art. 30 e 40 do RDE).

A transgressão disciplinar não tem o mesmo impacto repulsivo que teria um

crime militar ou mesmo o crime comum, que ensejaria uma reprovação em grau

maior. A punição disciplinar não se constitui, igualmente, em pena de caráter

retributivo, cuja essência seria unicamente castigar o militar acusado, sem qualquer

fundo socialmente benigno e proveitoso, ou mesmo uma finalidade capaz de lapidar

a personalidade humana.

O caráter didático e exemplar das punições disciplinares militares deve reinar

sempre, de modo a atingir o maior número possível de integrantes da corporação a

qual pertence o punido, mostrando aos demais que não se trata de mera

mesquinharia oriunda do ego humano envaidecido pelo poder de ingerir diretamente

na liberdade de cada um que ali serve ao seu país, mas se refere à correção do

comportamento a parâmetros adequados e aceitáveis para a disciplina castrense.

Sobre a preocupação em não descaracterizar o direito disciplinar militar, em

razão do efeito suspensivo ao recurso administrativo disciplinar56, cabe salientar que

a manutenção da hierarquia e da disciplina, princípios tão valorizados pelos chefes

militares mais vetustos e pelos doutrinadores mais afinados com a linha de

pensamento castrense, não ocorre somente pela imediatidade da sanha punitiva da

Administração Militar.

A hierarquia e a disciplina é relação duradoura e que é construída e mantida

diariamente, alicerçada ao longo do tempo. Não é algo que ocorre

instantaneamente, apressadamente.

Argumentar que esperar para aplicar a punição ao suposto transgressor seria

inaceitável e prejudicial à hierarquia e a disciplina é, em verdade, diminuir o valor da

liberdade daquele agente público em questão e reduzir o valor de outros princípios

consagrados em nosso Texto Maior, como por exemplo a duração razoável do

processo. Aliás, não se pode falar em economia processual quando o processo não

é desenvolvido com tempo suficiente e capaz de operacionalizar uma defesa digna

àqueles que dele se servem.

56

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 154.

Page 47: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

46

Dizer que a preservação da hierarquia e da disciplina depende da aplicação

imediata da punição é muito pouco no universo do saber humano. Aliás, diga-se de

passagem, o ato infracional combatido e a consequente punição não devem ser a

regra para a consolidação da hierarquia e da disciplina dentro de uma Organização

Militar.

A hierarquia e a disciplina se sustentam através dos atos e condutas daqueles

que vivem a atividade militar, com base no respeito, na educação, no diálogo, no

ensinamento diuturno, na correção individual de atitudes, que deve ser praticada do

general mais estrelado ao soldado recruta mais bisonho. Na verdade a hierarquia e a

disciplina encontram esteio nas virtudes acima mencionadas e em tantas outras que

não caberiam aqui elencar, e não nos desvios de conduta do ser humano, que é

falível e frágil em certas situações.

A hierarquia e a disciplina também sobrevivem com o reconhecimento do

subordinado, nas manifestações elogiosas, nas condecorações, nas dispensas do

serviço, entre outras formas de recompensa57.

O fato de aguardar para aplicar a punição disciplinar não pode diminuir a

estima ou prestígio do comandante, que poderia se considerar amarrado e

impotente frente aos acontecimentos que se apresentam a ele em determinadas

ocasiões. Ao agir dentro da legalidade, respeitando a Constituição e outros diplomas

legais, o comandante terá sua oportunidade de assim fazê-lo, acaso o recurso

administrativo disciplinar seja considerado insuficiente pela autoridade

imediatamente superior a este.

4.2. O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NA MARINHA E NA

AERONÁUTICA

Analisando ambos os diplomas regulamentares é possível observar o

seguinte:

O Regulamento Disciplinar da Marinha (RDM) sequer menciona a

possibilidade do militar acusado em processo administrativo disciplinar exercer a

57

Cf. Art. 64 e ss. do Regulamento Disciplinar do Exército.

Page 48: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

47

ampla defesa e o contraditório, pois o fato de o militar ser ouvido não implica,

necessariamente, que haverá a possibilidade deste defender-se a contento,

produzindo as provas que entender imprescindíveis ao exercício defensivo, bem

como argumentar qualquer tese em seu favor, dando a interpretação dos fatos e/ou

das normas que melhor se alinhe a seu interesse pessoal.

A interposição de recursos carece de previsão expressa para a aplicação do

efeito suspensivo, tendo ainda uma agravante: para recorrer é preciso cumprir a

pena, e só depois de cumprida é que se poderá recorrer dentro de oito dias úteis

(Art. 46 – RDM). Não há a previsão de um rito processual mínimo que assegure o

contraditório e a ampla defesa.

Na enumeração das transgressões disciplinares, chamadas pela Marinha de

contravenções, há o problema da indefinição taxativa dos tipos transgressionais,

abarcando contravenções disciplinares não especificadas no artigo 7°, em

desrespeito ao princípio da legalidade, traduzido no brocardo nullum crimen/nulla

poena sine lege, inserto no inciso XXXIX do Art.5° da Constituição Federal.

O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAer) padece de problemas

semelhantes ao RDM. O primeiro é relativo ao desrespeito ao princípio legalidade,

onde há semelhança na indefinição das transgressões disciplinares quanto à sua

taxatividade de tipos.

Tal como no RDM, não há expressa menção ao contraditório e à ampla

defesa, ficando o problema de o militar ser ouvido, mas não garantindo-lhe a

oportunidade de agir defensivamente.

Em verdade, o RDAer parece ser uma cópia quase idêntica do RDM, com

poucas variações, tal como o nome dado ao ilícito transgressional ou no número de

dias imponíveis na aplicação das penas cominadas em abstrato. Diferente também

entre ambos os regulamentos são os recursos disponíveis e os prazos recursais.

Como conclusão desse confronto, pode-se dizer que o RDE está um passo à

frente na escala evolutiva em relação aos demais regulamentos disciplinares das

Forças Armadas, mas está atrás de outros regulamentos disciplinares nacionais, tal

como o RDPMSP, o RDBMRS e o CDEMMG.

Tentando acompanhar as mudanças sociais e dos institutos jurídicos que

necessariamente devem acompanhá-las, o RDE apresenta muitas falhas persistem

em macular princípios constitucionais em voga, mas que podem ser contornados

usando-se o bom senso e a justiça como balizas para o atuar administrativo.

Page 49: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

48

No próximo capítulo analisaremos o sistema de recursos administrativos do

novo Regulamento Disciplinar do Exército.

Page 50: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

49

5 O SISTEMA RECURSAL NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR DO REGULAMENTO

DISCIPLINAR DO EXÉRCITO

Nesse capítulo analisaremos a dinâmica dos recursos administrativos

previstos no Regulamento Disciplinar do Exército e adentraremos na problemática

de se saber se haveria ou não ofensa ao princípio do devido processo legal no

processo administrativo apuratório de transgressões disciplinares militares, no

âmbito do Exército Brasileiro, por eventual supressão de algum daqueles meios de

impugnação encartados no regulamento disciplinar em análise.

A questão inicial do problema seria indagar se a decisão da autoridade

julgadora em aplicar, incontinenti, a punição disciplinar ao militar acusado afastaria a

possibilidade deste interpor algum dos recursos administrativos previstos no RDE, e

se tal efeito decisório se constituiria em uma ofensa ao princípio constitucional do

devido processo legal, redundando na limitação de uma possibilidade de defesa,

culminando com a nulidade do processo administrativo.

Contudo, mister se faz abordar alguns pontos acerca dos recursos

administrativos na perspectiva do regulamento de disciplina castrense, verificando a

noção de recurso e impugnação, eliminando quaisquer dúvidas existentes sobre

esses institutos jurídicos; e apontar quais são os recursos cabíveis, seus requisitos,

prazos de interposição, legitimados, efeitos, entre outras questões inerentes à

temática em comento.

Page 51: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

50

5.1. NOÇÃO DE RECURSO E IMPUGNAÇÃO

A irresignação é fenômeno inerente a condição humana, onde o homem

quase nunca acredita na justiça do julgamento que lhe é imposto, onde sempre paira

uma dúvida quanto aos critérios utilizados pelo julgador para abalizar sua decisão.

Assim, o homem almeja, nos mais das vezes, uma segunda opinião sobre o tema

em que gira o conflito de interesses, até porque sabe, ainda que inconscientemente,

que o ser humano é falível. A falibilidade humana é um dos motivos ensejadores do

reexame de questões controversas postas a apreciação tanto na esfera

administrativa quanto na esfera judicial.

Nessa mesma linha de raciocínio, SANTOS revela a importância dos meios

de impugnação, afirmando que as decisões proferidas pela autoridade competente

devem ser suscetíveis de reexame e de reforma, para assegurar a justiça e

minimizar a suscetibilidade de erros que podem ocorrer da atuação do julgador, que

é falivelmente humano58.

A partir do momento que o servidor se depara com uma decisão que lhe

afetará sua esfera jurídica poderá voltar-se contra ela. Basicamente, a doutrina

esclarece que em nosso ordenamento há instrumentos hábeis para rebelar-se contra

decisões que causem gravame indevidamente ao indivíduo exposto ao crivo do

julgador em um processo. Dentre eles despontam a impugnação e o recurso.

Convém explorar a noção desses dois institutos jurídicos capazes de levar a

cabo a insatisfação do agente público, com vistas à modificação ou à anulação do

ato administrativo lesivo.

Na lição de FRANCO SOBRINHO a divisão dos atos administrativos em atos

recorríveis e atos impugnáveis seria algo tido como válido para todo e qualquer

regime jurídico administrativo, dizendo que as formas de atuação para a averiguação

da ilicitude daqueles atos ocorrem interna e externamente, pondo em movimento a

tutela hierárquica e/ou a tutela jurisdicional59.

Nessa toada, e ainda sob o referencial de FRANCO SOBRINHO, o ato

administrativo, enquanto objeto na averiguação de sua licitude perante o

58

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. V 3. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 82. 59

FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira. Atos administrativos. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 239.

Page 52: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

51

ordenamento jurídico, deve pautar-se nas diretrizes da legalidade e ser produzido

por uma Administração organizada hierarquicamente, de modo a condicionar as

decisões gerais e em concreto aos ditames superiores desta organização.

Deve a Administração, ainda, ser ajustada às leis, mas não cometer o pecado

jurídico de imaginar que somente ela tem prerrogativas diante do ordenamento

jurídico, lembrando que os servidores também têm garantias, não se constituindo o

interesse público o único ponto a ser observado60.

É oportuno salientar que o respeito às garantias constitucionais individuais e à

legalidade constituem parcela significativa do interesse público, já que este também

é constituído a partir da conjunção de parcelas de interesses individuais, entendido

como algo racionalmente válido, digno de se dispor e necessário à manutenção da

vida em sociedade61.

O objetivo principal dos meios impugnatórios ou dos meios recorríveis é

desconstituir o ato administrativo posto no mundo jurídico, fazendo cessar seus

efeitos ou revertê-los em favor daquele que busca a tutela administrativa ou

jurisdicional62.

Esclarecida a tônica dos meios recorríveis e impugnáveis, passemos a

analisar estes dois modos de voltar-se contra atos administrativos lesivos ao

patrimônio jurídico do agente público.

Quanto à classificação dos meios de impugnação pela doutrina63, estes se

dividem em duas categorias: a dos recursos e a das ações autônomas de

impugnação.

José Armando da Costa ensina que “o vocábulo recurso alberga, no mínimo,

duas acepções, uma ampla e outra estrita”64. E continua explicando que em sua

significação ampla o termo abarcaria todos os meios legais pelos quais as partes

poderiam se valer para promover a defesa de seus interesses. No seu sentido

estrito, recurso seria o meio empregado pela parte derrotada para conseguir o

60

Ibidem. p. 239 e 240. 61

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 58-62. 62

Ibidem. p. 240. 63

Cf. FRANCO SOBRINHO, Op. Cit. p. 239; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 5, 1993.p. 204 apud FACCI, Lucio Picanço. Meios de impugnação dos atos jurisdicionais no direito brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 62, fev. 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3760>. Acesso em: 10 mar. 2010. 64

COSTA, José Armando da. Teoria e Prática do Processo Administrativo Disciplinar. 3 ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1999. p. 352.

Page 53: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

52

reexame da decisão que lhe fora contrária, objetivando a reforma desta por órgão de

jurisdição superior.

Os recursos somente podem ocorrer dentro de um processo já instalado, ou

seja, numa mesma relação jurídica processual e antes que a decisão atacada

viabilize a formação da coisa julgada, no caso dos atos administrativos, a coisa

julgada administrativa.

Nesse mesmo sentido é a lição de GRECO FILHO, que afirma ser o recurso

um remédio destinado a corrigir um desvio jurídico e que se desenvolve no mesmo

processo, Ou seja, não dá azo a uma nova relação jurídica processual. Diz esse

doutrinador que “o recurso dá continuidade, em nova fase, à ação anteriormente

proposta e em andamento” 65.

José Almir Pereira da Silva define o recurso como “o poder subjetivo,

juridicamente regulado, conferido à parte vencida, para invocar nova decisão a órgão

hierarquicamente superior, sobre objeto formal ou material do processo”66.

Portanto, pode-se descrever o recurso como a vontade livre e consciente do

vencido em demonstrar a sua contrariedade e impugnar a decisão que lhe seja

contrária ao pleito entabulado, requerendo um reexame, uma nova analise do órgão

hierarquicamente superior, ou ainda, em exigir uma retratação daquele que exarou

sua decisão.

As ações autônomas de impugnação são meios que possibilitam a apreciação

da questão litigiosa em um novo processo, em regra na esfera judiciária.

Em verdade, o recurso no bojo de dado processo não deixa de ser uma forma

de manifestação contrária a certo ato com conteúdo decisório, um legítimo meio de

impugnação. Assim, pode-se afirmar que os meios de impugnação, aqui no seu

sentido mais amplo, seria o gênero onde suas espécies integrantes seriam o recurso

(fenômeno endoprocessual) e as ações autônomas de impugnação (meios de

impugnação em sentido estrito), a exemplo do habeas corpus, da ação rescisória, do

mandado de segurança.

Existem, ainda, meios de impugnação que não se constituem em ação

autônoma e nem podem ser desenvolvidos em processo, a exemplo da correição

65

GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 20 ed. V 2. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 293 e 294. 66

SILVA, J. A. P. A ampla defesa nos recursos administrativos disciplinares da polícia militar do

Estado de São Paulo. Academia de Direito Militar. Disponível em:<http://www.academiadedireitomilita r.com/index.php?option=com_content&view=article&id=79&catid=35>. Acesso em: 15 abr 09.

Page 54: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

53

parcial e o pedido de reconsideração. Sobre a reconsideração, o RDE a inclui no rol

dos recursos cabíveis na dinâmica processual disciplinar, que será tratado

oportunamente.

Por fim, a nota distintiva entre o recurso e a impugnação por ação autônoma –

ambas as espécies do gênero “meios de impugnação” – não é o fato de o recurso

dever ser interposto antes da ocorrência do fenômeno da preclusão marcada pelo

trânsito em julgado da decisão proferida, mas sim pela característica de prolongar o

direito de ação (e de defesa) no mesmo processo67, o que é diametralmente

diferente no caso da ação de impugnação.

5.2. OS PRINCÍPIOS APLICÁVEIS NOS RECURSOS ADMINISTRATIVOS

Em se tratando da tarefa de definir o que seja um princípio, e nos filiando a

uma linha conceitual bastante respeitada e difundida entre juristas e estudiosos do

direito, trazemos à baila a definição dada por Celso Antônio Bandeira de Mello, que

assim leciona:

Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico68.

Cumpre anotar que os princípios, ao lado das regras, compõem aquilo que se

chama de NORMAS JURÍDICAS.

Citando Robert Alexy, Virgílio Afonso da Silva se posiciona afirmando a

divisão das normas jurídicas em duas categorias – regras e princípios –, e explicita

que os princípios são deveres primários, “cujo conteúdo somente é fixado após o

sopesamento com princípios colidentes”69. Entretanto, não se compartilha aqui da

mesma opinião acerca dos princípios. Dizer que o conteúdo de um princípio será

fixado, ficará condicionado à outro princípio, ou mesmo ao “choque” entre eles é

67

GRECO FILHO, Vicente. Op. Cit. p. 294. 68

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. Cit. p. 53. 69

SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 798, p. 23, 2002.

Page 55: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

54

retirar-lhe a sua essência e sua importância para a construção do ordenamento

jurídico.

Tomando emprestada a noção de princípio posta por SUNDFELD, os

“princípios são idéias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico,

harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de se organizar-se”70.

Daí que parece ser difícil, senão impensável, esperar o confronto de

princípios para que se possa definir o conteúdo destes e, por conseguinte, dar a

tônica de cada instituto do ordenamento jurídico. Cada princípio tem seu conteúdo,

independentemente de outros princípios, pois se assim não fosse não se poderia

considerá-lo como mandamento nuclear, mas, talvez, como uma regra jurídica, que

certamente necessita da inteligência, da coerência e de um conteúdo informativo

que lhe confira razão para existir.

Assim, das lições acima é possível inferir que princípio é a disposição

normativa fundamental, que pode estar explicitada em regras jurídicas ou mesmo

implícita em um sistema normativo, cujo conteúdo informa a lógica e a coerência de

um sistema, justamente por ser a base, o ponto de partida para a intelecção,

interpretação e aplicação das normas jurídicas de um ordenamento jurídico,

servindo, ainda, como critério de compreensão e de harmonização dessas normas

jurídicas.

Em razão da importância que os princípios representam para a construção do

direito moderno e visto estarem presentes em todas as searas jurídicas, vejamos

alguns dos princípios aplicáveis aos recursos administrativos, estes enquanto

estudados pela ótica da Teoria Geral dos Recursos.

Princípio da taxatividade – somente se pode recorrer na esfera administrativa

quando houver previsão na legislação, infraconstitucional ou em diplomas

regulamentares, da existência um recurso para atacar uma decisão desfavorável71.

Não cabe a interpretação extensiva de modo a criar algo que a lei não previu.

70

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 143. 71

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 539 e 540.

Page 56: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

55

Princípio da unirrecorribilidade – consiste na ideia de que contra uma dada

decisão somente deve caber um recurso72. Comporta, também, a noção de o

recurso deve ser interposto um de cada vez, tratando-se de recursos sucessivos.

De forma semelhante, o princípio da unirrecorribilidade se manifesta no

processo administrativo disciplinar do RDE, determinando este regulamento a

interposição única do pedido de reconsideração de ato (Art. 53)

Princípio da proibição da reformatio in pejus – na seara processual cível,

indiscutivelmente o foco de concentração dos estudiosos do fenômeno processual,

que se irradia para os demais ramos do saber jurídico, vigora princípios que

emolduram a atividade jurisdicional, tais como: o princípio da inércia; princípio da

disponibilidade processual; o princípio dispositivo, entre outros73.

Assim, a atividade jurisdicional para realizar sua prestação constitucional

depende da provocação das partes em conflito74. Das decisões proferidas cabem

recursos, vigorando a regra do tantum devolutum quantum appellatum, onde a

matéria submetida ao reexame é aquela limitada pelas razões do recurso

interposto75, não sendo lícito ao juiz conhecer de matéria diversa das que foram

aventadas, exceto se se tratar de questões de ordem pública, conhecíveis de ofício

pelo magistrado.

Da delimitação da matéria devolvida para reexame em sede de recurso, e do

próprio princípio da inércia, na seara cível é observável outra consequência: a

proibição da reforma de decisão contra o recurso interposto, agravando a situação

do recorrente. É o princípio da proibição da reformatio in pejus.

Na atividade administrativa esse princípio se revela de forma diversa. A

iniciativa para apreciar questões não depende da provocação de outrem, pois a

Administração Pública goza do poder de controlar os próprios atos, podendo os

anular ou os revogar, quando eivados de ilegalidade ou quando não mais

convenientes ou oportunos, independente de pleito ao Poder Judiciário76. Esse

72

Ibidem. p. 540. 73

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.p. 63-72. 74

WAMBIER. Op. Cit. p. 71 75

Ibidem. p. 558. 76

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 64.

Page 57: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

56

poder de controle decorre do princípio da autotutela, este, por sua vez, decorrente

do princípio da legalidade estampado no Art. 37 da CF77.

A doutrina afirma que no processo administrativo não vigora, em regra, a

proibição da reformatio in pejus, em razão da Administração estar subordinada ao

princípio da legalidade e ao princípio da supremacia do interesse público. Em razão

disso, poderá confirmar, modificar, anular ou revogar, total ou parcialmente, a

decisão recorrida78.

Na sistemática recursal do processo administrativo disciplinar do RDE é

possível verificar, ainda que implicitamente, a proibição da reformatio in pejus,

verbis:

Art. 55. Se o recurso disciplinar for julgado inteiramente procedente, a punição disciplinar será anulada e tudo quanto a ela se referir será cancelado.

Parágrafo único. Se apenas em parte, a punição aplicada poderá ser atenuada, cancelada em caráter excepcional ou relevada. (Grifos nosso)

Desse dispositivo é possível inferir que o reexame do recurso disciplinar deve

ter seu conteúdo decisório enquadrado nas possibilidades de atenuar ou

excepcionalmente cancelar a punição aplicada, e ainda relevá-la.

Reforçando a proibição da reformatio in pejus, constante no Art. 55 do RDE, é

de se notar certa limitação ao poder de autotutela da Administração na revisão de

seus atos administrativos, de modo implícito no Art. 41:

Art. 41. A punição disciplinar aplicada pode ser anulada, relevada ou atenuada pela autoridade para tanto competente, quando tiver conhecimento de fatos que recomendem este procedimento, devendo a respectiva decisão ser justificada e publicada em boletim. (Grifos nosso)

Resta evidente que o legislador optou em proibir a reforma para pior, tanto no

recurso interposto como na análise procedida de ofício pela autoridade aplicadora ou

por outra superior a esta. O novo RDE não açambarcou a norma do regulamento

anterior que permitia que a punição aplicada fosse “anulada, relevada, atenuada ou

77

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 19. 78

MEIRELLES, Hely Lopes. Op. Cit. p. 674. Este autor usa como parâmetro, para a não aplicação da proibição da reformatio in pejus, a Lei n° 9.784, de 29/01/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.

Page 58: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

57

agravada pela autoridade que a aplicar ou por outra, superior e competente, quando

tiver conhecimento de fatos que recomendem tal procedimento”79.

No processo administrativo disciplinar militar, por possibilitar a aplicação de

penas disciplinares caracterizadas pelo cerceamento da liberdade individual, a

exclusão da proibição da reformatio in pejus seria incompatível com o princípio da

ampla defesa. Se tal proibição não existisse o militar punido, receoso de ter sua

situação piorada, não recorreria da decisão proferida, o que inibiria o exercício de

uma garantia constitucional e poderia gerar um clima de desconfiança e injustiça no

seio das Forças Armadas80.

Desse modo, o recurso interposto no processo administrativo disciplinar do

RDE não poderá agravar a situação do recorrente, a exemplo do que ocorre com o

RDBMRS (Art. 51).

5.3. RECURSOS ADMINISTRATIVOS CABÍVEIS NO REGULAMENTO

DISCIPLINAR DO EXÉRCITO

A Seção I do Capítulo V do RDE elenca, atualmente, os recursos admitidos no

processo administrativo apuratório de transgressões disciplinares. São cabíveis duas

espécies de recursos no bojo do RDE: o pedido de reconsideração de ato e o

recurso disciplinar (inc. I e II do parágrafo único do Art. 52).

Com a alteração implementada pelo Decreto n° 4.346/02, o legislador não

incluiu no novo RDE os recursos denominados queixa e representação, previstos

anteriormente nos números 2) e 3) do parágrafo único do Art. 51 do Decreto n°

90.608, de 4/12/1984 (antigo regulamento disciplinar), criando uma figura recursal –

o recurso disciplinar – que açambarcou o conteúdo daqueles dois extintos institutos,

o que trataremos logo a seguir.

Pelo Art. 51 do novel regulamento disciplinar, tanto o militar prejudicado

quanto o superior hierárquico deste poderão interpor recursos no processo

administrativo disciplinar no âmbito do Exército Brasileiro, o que não se constitui

79

Art. 39 do Decreto n° 90.608, de 04/12/1984. 80

ROCHA, Eduardo Biserra. Os recursos disciplinares e a possibilidade de invocar a prestação jurisdicional do Estado para reexame de matéria administrativa disciplinar. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 45, jan/fev 2004. p. 35.

Page 59: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

58

propriamente em uma novidade, já que se podia proceder assim no regulamento

anterior, e será abordado no item 5.4, onde trataremos dos requisitos do recurso

administrativo disciplinar.

O pedido de reconsideração de ato é o recurso administrativo interposto pelo

militar interessado81 e dirigido à autoridade competente para aplicar sanções

disciplinares, em geral o Comandante, Chefe ou Diretor de OM, autoridade pela qual

estaria diretamente subordinado. O pedido de reconsideração de ato, conforme

redação do caput do Art. 53-RDE, não pode ser renovado, ou seja, não pode ser

interposto o mesmo recurso duas vezes, alinhando-se ao princípio da

unirrecorribilidade, que informa que para cada espécie de decisão somente caberá o

recurso uma única vez. Sobre o princípio em comento, tratamos dele no item 5.2.

acima.

O recurso disciplinar é o recurso administrativo interposto pelo militar

interessado, mediante requerimento e dirigido à autoridade imediatamente superior à

que tiver proferido a decisão, após não ter sido deferido o pedido de reconsideração

de ato, de acordo com o §1° do Art. 54 do RDE:

Art. 54 (...)

§ 1º O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que pertence o recorrente.

O RDE, em seu Art. 54, menciona também uma terceira espécie de recurso

administrativo ao possibilitar ao militar recorrer da decisão que indefere o pedido de

reconsideração de ato e das decisões dos recursos disciplinares interpostos de

maneira sucessiva, o que se constitui num verdadeiro recurso inominado. Contudo o

RDE não informa a dinâmica dessa espécie inominada de recurso. É certo, porém,

que em atendimento a um critério de justiça e de eficiência, tal espécie recursal deve

ser apreciada por autoridade diversa da que proferiu a decisão atacada em primeiro

plano.

Certamente a inspiração do legislador em acrescentar essa espécie recursal

foi a de garantir maior amplitude dos meios de defesa postos a disposição do

servidor, calcado no mandamento constitucional do direito de petição, constante do 81

Para fins de recurso adotamos o termo “militar interessado”, englobando como legitimados para tal fim o militar acusado ou seu superior hierárquico, conforme exposição no item 5.4.

Page 60: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

59

inciso XXXIV do Art. 5° da CF/88, que garante a qualquer indivíduo peticionar

perante as autoridades do Poder Público, incluindo-se aí a Administração Militar, em

defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

5.4. REQUISITOS DOS RECURSOS DISCIPLINARES

No que tange às exigências para o exercício do recurso cabível em caso de

irresignação do militar, ASSIS aponta os seguintes pressupostos recursais do Direito

Disciplinar Militar: a) decisão passível de ser reformada; b) sucumbência; c)

tempestividade; d) legitimidade; e e) amparo recursal82.

Passemos a analisar cada um desses requisitos.

a) Decisão passível de ser reformada – evidentemente que somente se pode

recorrer de algo que exista no mundo jurídico. Assim também é com os recursos

disciplinares, que exigem pelo menos a existência de uma decisão exarada por

autoridade competente para tanto.

b) Sucumbência – não basta a existência de uma decisão emanada segundo

as regras de competência para aplicabilidade das sanções disciplinares, prevista no

Art. 10 do RDE. O recorrente deve ter tido algum prejuízo advindo daquela decisão

administrativa. Se não houver sanção a ser aplicada ao militar, não há que se falar

em prejuízo, pois aí prevaleceu, certamente, a consistência da argumentação da

defesa.

c) Tempestividade – este requisito informa que os recursos devem ser

interpostos oportunamente, ou seja, devem formulados dentro do lapso temporal

previsto para cada espécie de recurso administrativo.

d) Legitimidade – quem estaria legitimado a interpor recursos administrativos?

Somente o militar que sofreu a sucumbência no processo administrativo ou poderia

outro interessado fazê-lo? O RDE, em seu Art. 52, permite que além do sucumbente,

o seu superior hierárquico também o faça em defesa daquele que eventualmente

esteja despreparado em defender-se.

e) Amparo recursal – trata-se da previsão em regulamento de recurso

específico para atacar determinada decisão administrativa. Em outras palavras, a

82

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p 147 e 148.

Page 61: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

60

cada decisão administrativa que cause gravame deve ser interposto o recurso

respectivo83.

Poderia se falar em pressupostos objetivos e subjetivos da atividade

recursal84. Nos pressupostos objetivos se observariam o cabimento, adequação, a

tempestividade e a regularidade.

O cabimento guarda estreita relação com o amparo recursal, vez que se não

há recurso previsto não há que se falar em cabimento. A adequação, por sua vez,

está relacionada com a correspondência do recurso previsto para cada tipo de

decisão. A tempestividade, como esposado acima, trata do prazo em que deve ser o

recurso interposto. A regularidade identifica-se com a observância das regras para o

desenvolvimento válido do processo administrativo disciplinar, de modo a não se

queimar etapas, observando para cada fase uma manifestação específica, de

maneira que não sejam apresentados recursos na fase inicial da instrução ou seja

solicitada alguma diligência na fase de decisão.

Os pressupostos subjetivos englobariam o interesse jurídico e a legitimidade.

Quanto ao interesse jurídico, este seria caracterizado pelo trinômio da necessidade-

utilidade-adequação, onde o servidor, sofrendo um prejuízo diante de uma decisão

administrativa, lança mão de um meio necessário e idôneo – o recurso

administrativo – para demonstrar sua insatisfação com o desfecho apresentado ao

caso concreto, com escopo de devolver a decisão proferida para um reexame que

lhe seja mais favorável.

Na questão da demonstração do pressuposto subjetivo da legitimidade para

interposição do recurso administrativo disciplinar, surge a possibilidade de ocorrer a

duplicidade de legitimados a questionar o mesmo ponto da decisão administrativa

atacada. Essa duplicidade de legitimados é algo sui generis no ordenamento jurídico

e pode ocorrer, conforme se mencionou acima, porque o Regulamento Disciplinar do

Exército possibilita ao superior hierárquico do militar prejudicado interpor o recurso

ao tomar ciência da decisão (Art. 52). A atuação de superior hierárquico constitui-se

numa hipótese de legitimidade concorrente, onde há a postulação em nome próprio

com o fim de resguardar direito de outrem.

Esse fenômeno de legitimados em concorrência não é exclusividade do RDE,

ocorrendo inclusive no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São

83

Ibidem. p. 148. 84

NEVES, Robson Cícero Coimbra. Direito Administrativo Disciplinar apud ASSIS, Loc. Cit.

Page 62: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

61

Paulo (RDPMSP)85, no Regulamento Disciplinar da Aeronáutica86, e no Regulamento

Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul87.

Mas e essa duplicidade de legitimados a interpor recursos poderia acarretar

algum prejuízo ao militar envolvido em um processo administrativo disciplinar? Será

que esse fato poderia causar embaraços ao principal interessado que já interpôs ou

não o recurso? Será que uma vez interposto o recurso, ainda que por terceiro em

relação ao militar prejudicado, isso seria motivo para obstar o recurso desse último?

Afinal, quem teria a preferência (ou prioridade) nessa hipótese?

Sobre esse ponto específico – o eventual prejuízo decorrente da legitimidade

concorrente – a doutrina consultada não se manifesta no sentido de ventilar tal

questão, muito menos em responder, evidentemente, o se esta a indagar.

Parece-nos que a legitimidade extraordinária instituída pelo legislador não

pode prejudicar o militar punido e interessado em recorrer, pois a interpretação que

deve ser dada é a de que a ampliação dos legitimados serviria para beneficiar o

necessitado de defesa, dando a ela amplitude desejável na linha constitucional

vigente, e não para minorar chances, pois se assim se pensar, estaremos

inevitavelmente diante de um dispositivo inconstitucional.

5.5. PRAZOS PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS

Para manifestar a irresignação quanto à decisão que lhe gere prejuízo, o

militar punido tem que obedecer a prazos para interposição do recurso cabível, sob

pena de preclusão, perdendo, assim, uma importante faculdade processual.

Para o pedido de reconsideração de ato o prazo regulamentar é, conforme o §

2° do Art. 53-RDE, de 5 (cinco) dias úteis, a contar do dia imediato ao que tomar

ciência, oficialmente, da publicação da decisão emanada da autoridade no Boletim

Interno da OM a que pertencer o militar punido.

No que diz respeito a tomar ciência oficial das publicações cotidianas do

Boletim Interno, convém fazer um parêntese e explorar o fato de que o militar nem

sempre está presente nas formaturas em que ocorre a leitura daquele documento,

85

Art. 46 da Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001. 86

Art. 62 do Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975. 87

Art. 47 c/c Art.54 do Decreto nº 43.245, de 19 de julho de 2004.

Page 63: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

62

tal como preceitua o inciso II do Art. 175 do Regulamento Interno e dos Serviços

Gerais (RISG).

É muito comum nas Organizações Militares a autoridade (Comandante, Chefe

ou Diretor) atribuir ao militar a obrigação de, diariamente, ler o Boletim Interno, que é

um documento diário que trata dos mais variados assuntos da Administração Militar,

fundamentando tal dever nos incisos IV e VI do Art. 175 do RISG88, verbis:

Art. 175. (…)

(…)

IV - o BI deve ser conhecido no mesmo dia de sua publicação por todos os oficiais e praças da unidade, e o aditamento pelos da respectiva SU, para isso, será aposto o ciente, pelos oficiais, na última página das cópias de sua SU ou dependência e as praças que por qualquer motivo hajam faltado à leitura do BI devem informar-se dos assuntos de seus interesses na primeira oportunidade.

(...)

VI - o desconhecimento do BI não justifica a falta ou o não cumprimento de ordens. (grifos nossos)

Nem sempre o militar punido está presente para tomar ciência via Boletim

Interno, nem sempre a autoridade que decide sabe o destino daquele que está

arrolado em processo administrativo disciplinar, pois tal tarefa – o controle dos

efetivos - fica a cargo de algum oficial, subalterno ao Comandante. Daí ser tal

exigência forçosa no sentido de atribuir ciência ao interessado em tais publicações,

mormente para quem tem prazo de recurso correndo sem poder sequer esboçar

alguma atitude.

Parece-nos que para evitar prejuízos a eventuais recursos, deve o militar

punido ser notificado pessoalmente da decisão, donde começará a fluir, no dia útil

seguinte, o prazo previsto para a reconsideração de ato, e não simplesmente

começar a fluir do dia útil posterior à publicação da decisão, como muitos no meio

castrense equivocamente pensam. A notificação pessoal, equivalente a intimação na

esfera judicial, é fundamental para que o interessado em recorrer tenha a

oportunidade de assim fazê-lo, sem surpresas e sem fluir in albis o prazo que teria

para formular suas razões de reconsideração. Importante destacar que o militar

88 Portaria n° 816, de 19/12/2003, do Gabinete do Comandante do Exército, que aprova o

Regulamento Interno e dos Serviços Gerais – R1 (RISG).

Page 64: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

63

punido deve ser notificado pessoalmente e pelos agentes encarregados de fazê-lo,

tomando estes por recibo a certificação do ato de notificação.

É ilusório por parte da autoridade que proferiu a decisão, senão utópico,

pensar que o ato de publicação em Boletim Interno seria suficiente para dar ciência

ao interessado em recorrer. A publicação é uma exigência do princípio da

publicidade estampado no caput do Art. 37 da Constituição Federal de 1988, um dos

princípios balizadores da atividade administrativa estatal, constituindo-se em um

instrumento de acompanhamento e fiscalização dos atos da Administração e dos

atos administrativos emanados por qualquer dos poderes do Estado. É uma

exigência que preza pela segurança jurídica, dando certeza e credibilidade aos atos

emanados pela Administração.

Essa publicação não tem o condão de satisfazer a exigência regulamentar de

dar ciência oficial ao interessado em recorrer, cabendo aqui lembrar, e a prática da

Administração castrense assim demonstra, que nem sempre o Boletim Interno é

devidamente assinado no dia em que deveria sê-lo. Se a assinatura não ocorre no

mesmo dia da publicação, como dar validade a um documento apócrifo e sujeito a

alterações de toda a ordem.

Utilizar o Boletim Interno nessas condições nos parece que é submeter o

interessado em recorrer em um gravame desnecessário, pois se houver de tê-lo

como meio hábil a dar ciência e depois houver de modificá-lo restará prejudicada a

data que marca o início do lapso temporal recursal e também sua confiabilidade

como meio de informação oficial.

Ademais, nem sempre o militar punido e interessado em recorrer toma

conhecimento imediato do conteúdo tratado no Boletim Interno, pois variadas são as

razões para que isso ocorra, tais como: estar de férias, participar de missões

externas, estar na instrução militar em campanha, estar de serviço, estar em baixa

hospitalar etc. Cresce de importância, assim, o ato de notificação pessoal, sob pena

de se invalidar o pseudo-ato notificatório, devolvendo-se o prazo recursal ao

interessado.

Considerar a publicação em Boletim Interno como suficiente a dar

conhecimento da decisão torna tal prática extremamente prejudicial, pois não

oportuniza ao militar punido fazer uso dos prazos regulamentares para desafiar

recurso, justamente por estar afastado de sua sede e não poder manejar um recurso

em seu favor, pois no mais das vezes não está assistido por advogado.

Page 65: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

64

Embora não seja proibido constituir defensor técnico, mesmo porque seria

algo inconstitucional, essa iniciativa por parte dos militares ficou bastante diminuída

no seio dos aquartelamentos após a edição da Súmula Vinculante n° 5, do Supremo

Tribunal Federal, que se manifestou pela não ofensa à constituição por motivo de

ausência de defesa técnica patrocinada por advogado em processo administrativo

disciplinar.

Logo que foi editada, essa súmula repercutiu nos quartéis na forma de

informativos, dando a ideia de que não era necessário constituir defensor no

processo administrativo disciplinar, o que é uma falácia do ponto de vista jurídico e

do ponto de vista pessoal.

Do ponto de vista jurídico, por ser uma ideia dissociada dos ditames do

estado democrático de direito, divorciada do princípio da ampla defesa que se

constitui, em parte, pela defesa técnica e dissociada da importância do advogado

como elemento indispensável à administração da justiça, única profissão

constitucionalmente incumbida do munus público fundamental na defesa da ordem

jurídica e constitucional, conforme disposição do Art. 133 de nosso Texto Maior.

Do ponto de vista pessoal, cada pessoa é livre para manifestar suas

necessidades e suas aspirações, podendo inclusive escolher se quer ou não ser

defendido em processo administrativo disciplinar, pois é uma faculdade individual

estreitamente relacionada com a garantia do devido processo legal, coligada a

dignidade da pessoa humana, superprincípio adotado pela ordem constitucional

(inciso III do Art. 1° da CF/88).

Esclarecida parcialmente esta polêmica da prática cotidiana de se dar

validade ao ato de cientificação das decisões em processo administrativo disciplinar,

continuemos a tratar dos prazos para interposição de recursos.

Quanto ao prazo do recurso disciplinar, este é de 5 (cinco) dias úteis, a contar

do dia imediato ao que o militar interessado tomar ciência, oficialmente, da

publicação da decisão recorrida, conforme o § 2° do Art. 54-RDE.

Questão intrigante é a de se saber se o prazo estipulado na alínea b) do §1°

do Art. 51 do Estatuto dos Militares, trata de prescrição ou de prazo recursal. Assim é

o dispositivo em análise:

Art. 51. O militar que se julgar prejudicado ou ofendido por qualquer ato administrativo ou disciplinar de superior hierárquico poderá recorrer ou interpor pedido de reconsideração, queixa ou

Page 66: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

65

representação, segundo regulamentação específica de cada Força Armada. § 1º O direito de recorrer na esfera administrativa prescreverá:

a) em 15 (quinze) dias corridos, a contar do recebimento da comunicação oficial, quanto a ato que decorra de inclusão em quota compulsória ou de composição de Quadro de Acesso; e b) em 120 (cento e vinte) dias, nos demais casos. (Grifos nossos)

À primeira vista, o legislador parece confundir como sinônimos ato

administrativo e ato disciplinar. Analisando o dispositivo em pauta sob outro ângulo,

parece que o legislador afasta do ato disciplinar a qualidade de ato administrativo

que lhe é inerente, como um meio de manifestação da vontade administrativa. Em

que pese a deficiência técnica do dispositivo legal em estudo, a interpretação a ser

dada a este é que qualquer ato administrativo, seja ele comum ou disciplinar, que

causem alguma lesão jurídica ao interessado, podem ser objeto de questionamento

administrativo, mediante a instauração de processo administrativo e da regular

observância do devido processo legal, com vistas à apuração da insatisfação

deduzida perante a Administração.

Assim, entende-se que o prazo versado no §1° do Art. 51 do estatuto

castrense não se refere aos recursos em sua acepção estrita89. Trata-se, sim, de

prazo prescricional para o exercício de “ação” na esfera administrativa, onde se

reconhece que seria exagerado pensar que tal prazo pudesse ou devesse ser

transportado para o processo administrativo disciplinar.

5.6. PROCEDIMENTO NO RDE

Caracterizado pela voluntariedade típica dos recursos em geral, os recursos

administrativos seguem a sistemática imposta no procedimento previsto nos Art. 51 a

56 do RDE.

A partir da decisão proferida pela autoridade competente, o militar que se

sentir prejudicado ou injustiçado tem a faculdade de interpor qualquer um dos

recursos admitidos no RDE.

89

Em matéria disciplinar, o Estatuto dos Militares menciona os recursos cabíveis no regulamento disciplinar de 1984 (pedido de reconsideração, queixa e representação), que foram substituídos, atualmente, pelos que constam no Decreto n° 4.346/02.

Page 67: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

66

No prazo de cinco dias uteis, contados do dia imediato em que o militar

acusado tomar conhecimento oficialmente da publicação da decisão em Boletim

Interno, cabe a interposição do pedido de reconsideração à autoridade que decidiu

pela sanção disciplinar.

Convém salientar que os prazos recursais, pela lógica procedimental do RDE,

somente devem correr em dias úteis, de modo que se a publicação de uma decisão

se der numa sexta-feira ou numa véspera de feriado, por exemplo, o lapso temporal

começará a fluir a partir do dia útil seguinte.

Com relação à sucessividade de recursos indicada no Art. 54 do RDE, esta

norma não indica claramente se o recurso hierárquico somente poderá ser interposto

após o ter sido o pedido de reconsideração de ato, tal como ocorre no Regulamento

Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo (RDPMSP)90 e no Regulamento

Disciplinar da Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul (RDBMRS)91.

O uso das expressões “decisão da autoridade” e “decisão recorrida”,

constante no §2° do Art. 53 e no §2° do Art. 54 do RDE, respectivamente, é o que

dificulta uma interpretação no sentido de esclarecer se existe ou não uma

sucessividade ou uma independência de recursos, sendo este um fenômeno

caracterizado pela interposição de um ou outro recurso livremente; aquele sendo

fenômeno caracterizado pela interposição de um recurso de forma subordinada à

ordem estipulada no parágrafo único do Art. 52 do RDE.

A dúvida se estabelece porque o prazo para a interposição de ambos é igual,

a contar do conhecimento oficial da decisão recorrida. A “decisão da autoridade” e a

“decisão recorrida” são suscetíveis de serem atacadas via recurso. Aliás, a

expressão “decisão recorrida” é confusa, pois pode se referir tanto a decisão final no

processo administrativo disciplinar, quanto se referir a decisão denegatória do

pedido de reconsideração de ato.

Parece-nos que a solução mais razoável é a de se pensar na sucessividade

recursal, constituindo-se uma oportunidade a mais para o recorrente ter seu pleito

acatado pela autoridade que decidiu em primeira mão.

Dirimida a questão da sucessividade ou concomitância recursal, o pedido de

reconsideração de ato deverá ser decidido no prazo máximo de dez dias úteis,

contados, adotando a lógica procedimental do RDE, do dia útil imediato ao protocolo

90

Art. 57 e 58 da Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001. 91

Art. 52 e 53 do Decreto nº 43.245, de 19 de julho de 2004.

Page 68: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

67

na OM de destino (§3° do Art. 53-RDE). O despacho consignado no requerimento do

recurso interposto, que defira ou indefira o pedido, deve ser publicado em Boletim

Interno (§4° do Art. 53-RDE). A toda evidência, este despacho trata da

admissibilidade do recurso, e não do seu mérito. Assim, se denegado deve tal

informação ser publicada no Boletim Interno.

A partir de denegação do pedido de reconsideração de ato, ou de sua

inadmissibilidade, abre-se a possibilidade de se interpor o recurso hierárquico, nos

seguintes termos do Art. 54 do RDE:

Art. 54. É facultado ao militar recorrer do indeferimento de pedido de reconsideração de ato e das decisões sobre os recursos disciplinares sucessivamente interpostos. § 1º O recurso disciplinar será dirigido, por intermédio de requerimento, à autoridade imediatamente superior à que tiver proferido a decisão e, sucessivamente, em escala ascendente, às demais autoridades, até o Comandante do Exército, observado o canal de comando da OM a que pertence o recorrente.

Assim, dirige-se o recurso à autoridade imediatamente superior à que tiver

proferido a decisão, para apreciar a irresignação do militar acusado de transgredir a

disciplina, podendo tal recurso ser interposto de forma sucessiva até o Comandante

do Exército, respeitado o canal de comando para se chegar a tal autoridade (§1° do

Art. 54-RDE).

5.7. EFEITOS DOS RECURSOS ADMINISTRATIVOS

Dentre os vários efeitos que um recurso pode produzir92, mormente na seara

judicial, destacam-se na doutrina93 o efeito devolutivo e o efeito suspensivo.

Embora os recursos, em seu sentido mais estrito, comportem vários efeitos no

âmbito judicial, no processo administrativo disciplinar, mormente no RDE, estes são

92

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 542. 93

Cf. GRECO FILHO, Vicente. Op.Cit. p. 312-314; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 674-675; MEIRELLES. Hely Lopes. Op. Cit. p. 675-676; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.Cit. p. 148.

Page 69: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

68

bem restritos, operando, na maioria dos diplomas normativos, a devolutividade e, por

exceção94, a suspensividade.

5.7.1. Efeito devolutivo

Para Greco Filho, “todo o recurso tem o efeito devolutivo”, consistindo na

remessa da questão objeto do recurso ao Tribunal ad quem95. Numa visão

administrativista, Alexandre Henriques Costa leciona que o efeito devolutivo é

inerente a todo e qualquer recurso e possibilita à autoridade disciplinar ad quem

apreciar a matéria defensiva sopesada em sede recursal96.

O efeito devolutivo aplicado ao recurso administrativo disciplinar se traduz na

possibilidade de se fazer retornar a decisão objeto de descontentamento à

autoridade administrativa, hierarquicamente superior àquela que a proferiu, de modo

a proporcionar o reexame da matéria posta sob o crivo da Administração em um

primeiro grau decisório. No caso do RDE, o efeito devolutivo diz respeito a devolver

a questão tanto ao órgão que proferiu a decisão, como para a autoridade ad quem.

5.7.2. Efeito suspensivo

Segundo Wambier, o efeito suspensivo é aquele que tem por finalidade obstar

o início da execução, e não simplesmente suspender a eficácia da decisão recorrida,

pois a mesma ainda nem teria irradiado seus efeitos97.

Alexandre Henriques Costa diz, ao comentar o RDPMSP, que o efeito

suspensivo susta ex tunc a eficácia da decisão proferida em desfavor do militar

submetido ao processo administrativo disciplinar98.

Em que pese o RDE não ter evoluído na parte recursal, ao contrário do que

ocorreu com os regulamentos disciplinares das polícias militares dos estados do Rio

94

A doutrina citada na nota anterior expõe que o efeito suspensivo do recurso administrativo é uma exceção, devendo ter disposição expressa na lei que trate do processo administrativo para se aplicar tal efeito. 95

GRECO FILHO, Vicente. Op.Cit. p. 312. 96

COSTA, Alexandre Henriques da. Manual do Procedimento Disciplinar – Teoria e Prática. São Paulo: Suprema Cultura, 2007. p. 132. 97

WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo. Op. Cit. p. 542. 98

COSTA, Alexandre Henriques da. Op. Cit. p. 133.

Page 70: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

69

Grande do Sul, de São Paulo e de Minas Gerais, que inseriram de forma expressa

em seus textos o efeito suspensivo ao recurso administrativo disciplinar99, tal

previsão nesses regulamentos é bastante criticada pela doutrina100, que entende ser

o efeito suspensivo prejudicial ao procedimento investigatório disciplinar, pois tal

efeito o “engessaria”.

Embora a doutrina seja parca pontualmente na questão da suspensividade

dos recursos administrativos em sede disciplinar, acredita-se sim que estes

revestidos de tal efeito, e quando não interpostos de maneira meramente

protelatória, sejam uma forma salutar de ampliar o espectro do devido processo

legal, em sintonia com princípio da razoável duração do processo, apesar das

críticas dirigidas quanto ao excesso de prazo101 e o suposto prejuízo à disciplina

pelo não cumprimento imediato da punição, que abordaremos logo abaixo.

Ademais, o prazo para interposição do recurso administrativo disciplinar e a

aplicação do efeito suspensivo neste não podem, por si só, por em risco o instituto

da hierarquia e da disciplina. Pelo contrário, o prazo recursal e o efeito atribuído ao

recurso servem como oportunidade para Administração Militar exercitar o controle

interno dos atos emanados por seus agentes, aferindo o nível de observância e de

acatamento aos mandamentos constitucionais e legais.

Apesar de a doutrina administrativista majoritária102 reconhecer que o efeito

suspensivo é a exceção, dependendo de previsão legal expressa ou, pelo menos, de

despacho da autoridade o concedendo103, há quem entenda ser tal efeito razoável

de ser atribuído.

Nessa corrente, encontramos José Armando da Costa, que entende

predominar o princípio da suspensividade, afirmando que as exceções devem ser

explicitadas em textos legais. E continua: “quando determinado recurso não puder

ser recebido com efeito suspensivo, deve a lei especificar essa circunstância”104.

99

Cf. Art. 50 do RDBMRS; §2° do Art. 57 e Art. 58 do RDPMSP; e Art. 60 do CEDMMG. 100

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 153. 101

Ibidem. p. 150-154. 102

Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. Cit. p. 675; MEIRELLES. Hely Lopes. Op. Cit. p. 675-676; BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op.Cit. p. 148. 103

COSTA, Alexandre Henriques da. et al. Direito Administrativo Disciplinar Militar: regulamento disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo anotado e comentado. São Paulo: Suprema Cultura, 2004. p. 232; No mesmo entendimento: MEIRELLES. Hely Lopes. Loc. Cit. 104

COSTA, José Armando da. Op. Cit. p. 358.

Page 71: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

70

Embora o RDE não traga expressamente a previsão do efeito suspensivo ao

recurso administrativo disciplinar, mas encampando a lição acima, é de se notar a

possibilidade de se aplicar tal efeito, de acordo com o Art. 56:

Art. 56. O militar que requerer reconsideração de ato, se necessário para preservação da hierarquia e disciplina, poderá ser afastado da subordinação direta da autoridade contra quem formulou o recurso disciplinar, até que seja ele julgado.

Assim, tal preceptivo regulamentar prevê a hipótese de afastamento do militar

que recorreu contra a decisão da autoridade competente, comumente o comandante

da Organização Militar a qual pertence, justificando o afastamento em questão com

o propósito de preservar a disciplina.

Ao ficar afastado, o militar poderá ficar na mesma localidade onde está

servindo, ficando a disposição de outra Organização Militar, aguardando a decisão

do seu recurso disciplinar, exceto se houver algum fato contra-indicativo para tanto

(§1° do Art. 56 - RDE). Mas não poderá ser punido antecipadamente e nem por

agente diverso daquele ao qual o regulamento disciplinar atribui competência (Art.

10 - RDE), sob pena de nulidade do ato administrativo.

Aqui a suspensividade do recurso e a não aplicação da punição antes da

decisão do recurso evita eventuais revanchismos e perseguições descabidas,

naturalmente destituídas de amparo regulamentar por aqueles que detêm o poder de

punir. Nesse quesito, ainda sim se estaria preservando a disciplina militar, evitando o

cometimento de deslizes por parte daqueles que devem ser os primeiros a dar o

exemplo, tal como o comandante de um batalhão, que lida com quase todos os seus

comandados.

O efeito suspensivo ao recurso administrativo disciplinar também encontraria

amparo no parágrafo 2° do Art. 35 do RDE, que informa vários direitos e faculdades

do militar acusado, como reflexo do princípio do contraditório e da ampla defesa, tais

como o direito de acompanhar todos os atos da apuração, inclusive o de estar

presente no local onde se tenha que colher alguma prova (pericial, v.g.) e o direito de

produzir as provas julgadas necessárias a sua defesa.

Nesse ponto, parece que a aplicação imediata da punição disciplinar105 traz

mais um prejuízo que propriamente um benefício. Se para a Administração Militar a

aplicabilidade incontinenti da sanção disciplinar é algo tido como imprescindível para

105

Cf. o tópico 4.1.3., onde tratamos do problema da aplicação imediata da sanção disciplinar.

Page 72: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

71

evitar uma sensação de impunidade perante os demais integrantes da Organização

Militar, para o servidor é um gravame e um obstáculo a mais para ser superado.

Diante do leque de possibilidades do Estado, representado pela

Administração Militar, o servidor acaba por ter sua defesa, de certo modo,

comprometida, cerceada, uma vez que, geralmente, é o militar acusado quem

produz a sua própria defesa, necessitando estar livre para exercer seu contraditório

e ampla defesa, de maneira a poder exprimir todas as suas teses de defesa

complementar em seu recurso, fato que não seria possível, p. ex., estando o militar

cumprindo uma pena de detenção ou de prisão disciplinar.

Outra possibilidade para a atribuição do efeito suspensivo ao recurso

administrativo disciplinar diz respeito, conforme dispõe o inciso IX do §2° do Art. 34

do RDE, que admite o cumprimento posterior da punição em razão de estar baixado

em hospital ou em enfermaria, estar afastado do serviço ou à disposição de outras

autoridades.

Nessa linha de raciocínio, Alexandre Henriques Costa aventa a possibilidade

de se conceder o efeito suspensivo ao recurso pela autoridade julgadora, mesmo

sem previsão legal, quando tal efeito seja necessário para evitar a ocorrência de um

prejuízo irreparável ao impetrante106.

Semelhantemente como ocorre com o juiz no processo civil, o citado autor

fala em um “poder geral de cautela” à autoridade disciplinar107. Comentando sobre a

falta de previsão do efeito suspensivo para a representação-recurso do Art. 30 do

RDPMSP, expõe que apesar da não previsão legal, a autoridade disciplinar ad quem,

ao apreciar o recurso, poderá atribuir tal efeito considerando seu poder para se

acautelar de forma geral. E justifica tal posicionamento:

Existem situações em que a prática do ato disciplinar combatido pela representação-recurso será irreversível, mesmo se dando provimento posterior ao recurso, o que se constituirá numa “injustiça” praticada pela Administração na aplicação do direito administrativo disciplinar militar (Aspas do autor). Imagine-se o militar do Estado cuja representação-recurso foi interposta, cumprindo a sanção disciplinar imposta e, após, sendo reformada a decisão da autoridade disciplinar a quo, anulou-se o procedimento, ou reconhece-se a existência de uma causa de

106

COSTA, Alexandre Henriques da. et al, 2004. p. 232. 107

COSTA, Alexandre Henriques da, 2007. p. 133; COSTA, Alexandre Henriques da. Os efeitos dos

recursos disciplinares Administrativo e o “poder geral de cautela” da autoridade disciplinar. Disponível em: <http://www.jusmilitaris.com.br/popup.php?cod=126>. Acesso em: 27 maio 09.

Page 73: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

72

justificação. Nesse contexto, não há a possibilidade de reverter-se a sujeição do militar ao cumprimento da sanção disciplinar, haja vista que fora exaurido. Esta inserção do efeito suspensivo à representação-recurso é plausível e necessária em razão da possível injustiça que se pode ser cometida se houver a aplicação e o cumprimento de uma sanção ilegal irreversível, seja por erro material ou processual, evitando-se gerar efeitos não somente na esfera disciplinar, mas também na civil e até penal.108 (Grifo nosso)

O mesmo ensinamento pode ser transportado para o processo punitivo do

Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro. Se o prazo para recorrer é de cinco

dias úteis, e se tal prazo for necessário na íntegra para produzir razões de recurso

minimamente elaboradas, como fica a situação jurídica do militar punido com

detenção ou prisão disciplinar de cinco dias corridos, e depois é reconhecido ou

reformada a decisão que determinou o cerceamento da liberdade?

Observando essas hipóteses pergunta-se: será mesmo que a imediatidade na

aplicação da punição disciplinar é fundamental para a mantença da hierarquia e da

disciplina militar?

Não nos parece que a imediatidade na aplicação de sanções assuma

tamanha importância na sobrevivência da hierarquia e da disciplina dentro dos

quartéis ou embarcações.

Isso porque a ocorrência de outras circunstâncias, conforme se verá logo

abaixo, ao tratarmos da aplicação imediata da sanção disciplinar, respondem tal

indagação, asseverando que o imediatismo, aliado ao preciosismo e à vaidade de

alguns chefes militares, deve ser, ao menos, sopesado, ponderado no momento em

que se vai defender a vida ou mesmo a liberdade, bens indiscutivelmente mais caros

para a sociedade que a simples argumentação que milita em prol da defesa da

hierarquia e da disciplina.

Apesar de não estar previsto de maneira explícita, o efeito suspensivo poderia

ser aplicado ao recurso interposto, contudo dependendo da conveniência para a

Administração, que em sendo concedido certamente evitaria eventuais prejuízos a

quem pudesse ter seu pleito revisto por outra autoridade.

108

COSTA, Alexandre Henriques, 2007. p. 133.

Page 74: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

73

5.8. A DECISÃO DA AUTORIDADE DISCIPLINAR E A DEFICIÊNCIA EM SUA

COMUNICAÇÃO

Nesta seção trabalharemos a questão do prejuízo à defesa ocasionado pela

ausência do recurso cabível contra a decisão proferida em processo administrativo

disciplinar. Trataremos da necessidade da intimação, como meio de comunicação

idôneo e eficaz de se dar ciência das decisões.

5.8.1. A ausência do recurso administrativo e os prejuízos à defesa do servidor

Conforme expusemos acima, ao pugnarmos pela necessidade de se atribuir o

efeito suspensivo ao recurso administrativo para viabilizar uma defesa ampla e

irrestrita ao agente público sujeito a processo administrativo disciplinar, cujo

desfecho na prática resulta quase sempre, pelo menos nas FFAA, no cerceamento

da liberdade de ir e vir do militar acusado de transgredir, com mais efeito se pode

afirmar que a ausência desse meio voluntário de extensão do direito de defesa,

provocado em parte pela Administração Militar, nos parece ser algo prejudicial na

medida em que restringe desnecessariamente uma faculdade processual posta a

disposição do interessado e que não faz uso dela por desconhecê-la justamente pela

omissão da Administração, que insiste em abreviar o processo administrativo

ocultando do interessado essa possibilidade.

Não se consegue vislumbrar a ocorrência da amplitude da defesa, tal como

informa o princípio norteador desta, e que está arraigada de forma pétrea no inciso

LV do Art. 5° de nossa Constituição, quando se tem um meio de defesa disponível,

mas que por razões desconhecidas não é efetivamente posto à disposição de quem

poderia usufruí-lo.

Junte a isso o fato da falta de comunicação das decisões administrativas que

impõem sanções, onde o militar acusado é quem deve buscar uma informação

importante, quando na verdade é dever da Administração fazê-lo por todos os meios

idôneos, não se restringindo à publicação da decisão disciplinar em Boletim Interno,

mas notificando pessoalmente o militar acusado ou seu representante regularmente

instituído. Sobre o problema da notificação trataremos no item 5.8.3.

Page 75: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

74

Quanto à morosidade citada por ASSIS109, é de se lembrar que o agente

público que se encontra sob o crivo disciplinar não pode ser penalizado pela

morosidade do trâmite administrativo. Dizer que a demora prejudica a instituição

Forças Armadas, prejudica o comando da Organização Militar ou que engessa a

disciplina é argumentar com poucas palavras e desprezar o devido processo legal.

Se a morosidade prejudica o legítimo interesse da Administração Militar em

perseguir o transgressor da disciplina, não menos prejudicial para o militar acusado

é o processo administrativo disciplinar levado a “toque de caixa”, sem observar as

formalidades que garantem o amplo direito de defesa e dão segurança jurídica e

certeza aos atos praticados.

O “engessamento” do procedimento em razão do cumprimento dos prazos

regulamentares para a interposição de recurso administrativo disciplinar, alegado

pelo doutrinador acima mencionado110, é que dá segurança jurídica ao pleito do

prejudicado irresignado com determinada punição disciplinar. Freia a sanha voraz da

Administração Militar em sacramentar um “castigo educativo”, mais preocupada com

o tempo em que ela (a Administração) levará para efetivá-lo, do que com a liberdade

e outros direitos do cidadão que veste a farda. Daí a importância do devido processo

legal no processo administrativo, tal como preceitua nossa Constituição Federal de

1988, no resguardo desses direitos.

Assim, a aplicação imediata da punição disciplinar traz mais um prejuízo que

propriamente um benefício. Se para a Administração Militar a aplicabilidade

incontinenti da sanção disciplinar é algo tido como salutar, evitando a sensação de

impunidade perante os demais integrantes da Organização Militar, para o agente

público é um gravame e um obstáculo a mais para ser superado, pois diante do

leque de possibilidades do Estado, representado pela Administração Militar, o

particular acaba por ter sua defesa, de certo modo, comprometida, cerceada, uma

vez que, geralmente, é o militar acusado quem produz a sua própria defesa,

necessitando estar livre para exercer seu contraditório e ampla defesa, de maneira a

poder exprimir todas as suas teses de defesa complementar em seu recurso, fato

que não seria possível estando o militar cumprindo prisão disciplinar.

109

ASSIS, Jorge Cesar de. Op. Cit. p. 151-153. 110

Ibidem. p. 153.

Page 76: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

75

5.8.2. Da ofensa ao devido processo legal em razão da falta de intimação de ato administrativo decisório

A questão que se coloca aqui é a de se saber se haveria ou não ofensa ao

princípio do devido processo legal por falta de ato intimatório da decisão proferida no

processo administrativo apuratório de transgressões disciplinares militares, sob o rito

do RDE.

Conforme tratamos no item 5.5 acima, relativo aos prazos para recorrer, de

todos os problemas aventados naquele tópico, a atual forma de dar conhecimento

oficial das decisões administrativas, via Boletim Interno, não satisfaz plenamente a

necessidade da defesa em manejar algum dos recursos previstos no RDE.

A publicação da decisão em Boletim Interno atende, certamente, ao princípio

da publicidade, estampado no Art. 37 da CF. Contudo, não alcança a segurança

jurídica desejável, quando deixa tal publicação de ser divulgada por outras formas,

não limitando o conhecimento do conteúdo decisório somente àqueles que estavam

presentes na leitura diária do Boletim Interno.

Se não há segurança e nem a certeza de que tal instrumento – o Boletim

Interno – será capaz de dar ciência efetiva dos atos processuais que impliquem

alguma consequência jurídica, por certo haverá a necessidade de praticar outro ato

capaz de cumprir a finalidade de garantia ao contraditório e à ampla defesa, sob

pena de ofensa a esses dois princípios constitucionais, o que não se pode tolerar

num estado democrático de direito.

A oportunidade de conhecer a decisão proferida pela autoridade disciplinar

deve ser clara e não fictícia, de modo a possibilitar o manejo, em tempo hábil, de

algum dos recursos do RDE, de modo a evitar prejuízos à defesa.

5.8.3. Da necessidade de intimação da decisão disciplinar

À luz do princípio da oficialidade, o mestre Diogenes Gasparini leciona que o

processo administrativo, uma vez instaurado, ainda que por provocação de

particulares, deve o mesmo ser movimentado pela Administração Pública, sendo, a

Page 77: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

76

partir de então, o impulso processual feito de ofício, independente da manifestação

das partes, em defesa do interesse público111.

Vicente Greco Filho ensina que no processo civil “as intimações efetuam-se

de ofício, independentemente de requerimento da parte, porque ao juiz e seus

auxiliares compete o andamento regular e rápido do processo”112.

O Código de Processo Civil113 em vigência prevê e traz a definição de

intimação:

Art. 234. Intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa.

No que tange ainda sobre a previsibilidade legal da intimação no

ordenamento jurídico, a Lei n° 9.784, de 29/01/1999, que regula o processo

administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, considerada pela

doutrina como lei geral do processo administrativo, andou bem em relação ao

Regulamento Disciplinar do Exército, que simplesmente nada menciona a

respeito114.

Sobre a Lei n° 9.784, Jorge Cesar de Assis diz que esta somente é aplicável

aos processos administrativos comuns dos quais não participem os servidores

públicos. É processo administrativo voltado aos interesses dos administrados

perante a Administração Pública. Diz ainda, que não deve ser aplicada aos

processos administrativos disciplinares, muito menos os de caráter militar, sob pena

de enfraquecer a disciplina e a hierarquia, dita por este autor como a própria

essência das Forças Armadas115.

Mas o próprio autor reconhece a aplicabilidade subsidiária da Lei n° 9.784 aos

processos administrativos disciplinares, desde que os processos regulados por

legislação específica não sejam desnaturados116.

Considerando os posicionamentos acima, é possível inferir que na falta de

disposição sobre as intimações no RDE, é possível aplicar subsidiariamente a regra

do Art. 26 e parágrafos, da Lei n° 9.784, que assim diz:

111

GASPARINI, Diogenes. Op. Cit. p. 937. 112

GRECO FILHO, Vicente. Op. Cit. p. 39. 113

Lei n° 5.869, de 11/01/1973. 114

A Lei em comento prevê em seu Art. 26 a intimação do interessado para ciência de decisão, ponto que nos interessa na análise do sistema de recursos do RDE. 115 ASSIS, Jorge Cesar de. A Lei n° 9.784/99 e a impossibilidade de sua aplicação nos processos disciplinares militares. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 59, maio/jun. 2006. p. 9-13. 116

Ibidem. p. 10. Sobre a aplicação subsidiária da regra do Art. 26 da Lei n° 9.784/99, o Art. 69 desta assim autoriza.

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77

Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências. § 1° A intimação deverá conter: I - identificação do intimado e nome do órgão ou entidade administrativa; II - finalidade da intimação; III - data, hora e local em que deve comparecer; IV - se o intimado deve comparecer pessoalmente, ou fazer-se representar; V - informação da continuidade do processo independentemente do seu comparecimento; VI - indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes. § 2° A intimação observará a antecedência mínima de três dias úteis quanto à data de comparecimento. § 3° A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado. § 4° No caso de interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio de publicação oficial. § 5° As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.

Vicente Greco Filho lembra o seguinte117:

(..) qualquer comparecimento ou manifestação nos autos dá, pelo menos a partir dessa data, como cientificado, e, portanto, intimado o advogado e a parte de tudo o que ocorreu até então, não podendo alegar desconhecimento.

Parece que esse é o espírito da Lei n° 9.784, que traz tal conteúdo em seu

bojo:

Art. 26. (...) § 5° As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais, mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.

Passada a abordagem sobre a necessidade da intimação, anteriormente

havia se dito que o militar punido nem sempre toma conhecimento do conteúdo do

Boletim Interno, e a exigência regulamentar do dever individual118 de estar sempre

ciente das matérias tratadas naquele documento é forçosa, principalmente para

quem recém ingressou nas Forças Armadas e sequer sabe marchar corretamente.

117

GRECO FILHO, Vicente. Op. Cit. p. 40. 118

Incisos IV e VI do Art. 175 da Portaria n° 816, de 19/12/2003, do Gabinete do Comandante do Exército, que aprova o Regulamento Interno e dos Serviços Gerais – R1 (RISG).

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78

Como operacionalizar a defesa, ou complemento desta, se não há

conhecimento do conteúdo da decisão administrativa que imponha algum gravame

ao servidor?

A resposta a esse questionamento certamente é a realização da intimação

dos atos processuais, inclusive dos atos decisórios, já que estes não são publicados

em diários oficiais119, ficando restrito a documento interno ostensivo somente aos

militares e servidores civis das Organizações Militares. Registre-se aqui que muitas

vezes os próprios agentes da Administração Militar sequer têm acesso aos boletins

em meios de pesquisa restritos aos próprios servidores, tal como o repositório de

documentos em rede local de computadores (intranet). E quando o tem, ocorre

depois de muitos dias em se veiculou os assuntos “publicados”.

Gritante é a falha administrativa que omite a existência da decisão e não a

divulga oportunamente, acreditando somente na eficácia do Boletim Interno. E como

pode o advogado do militar acusado no desempenho de seu mister postulatório, ou o

próprio acusado, voltar-se contra a decisão proferida se não tem acesso às

publicações?

Cite-se como exemplo a punição imposta a oficial ou aspirante-a-oficial, de

acordo com o Art. 36-RDE:

Art. 36. A publicação da punição disciplinar imposta a oficial ou aspirante-a-oficial, em princípio, deve ser feita em boletim reservado, podendo ser em boletim ostensivo, se as circunstâncias ou a natureza da transgressão assim o recomendarem. (Grifos nossos)

Ora, o boletim reservado, como documento sigiloso120 que é, tem como regra

corrente a não divulgação geral e irrestrita de seu conteúdo, tal como ocorre com o

boletim ostensivo. Daí que somente as pessoas credenciadas para acessá-lo podem

tomar conhecimento deste documento. Quem não é autorizado, a toda evidência,

não tomará ciência do que lhe esteja afetando juridicamente.

E como resolver este problema? Parece razoável, mais uma vez, falar no

procedimento intimatório, que deve dar conhecimento nesses casos onde não haja

acesso facilitado às informações que permitam o desenvolvimento da ampla defesa.

119

A jurisprudência em geral entende que a intimação pelo Diário Oficial é suficiente para validar o ato intimatório nos processos cíveis. 120

Vide Art.16 da Portaria n° 041, de 18/03/02, do Gabinete do Comandante do Exército, que trata das Instruções Gerais para correspondência, as publicações e os atos administrativos no âmbito do Exército (IG 10-42)

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79

Como pode se perceber, a intimação pessoal do militar acusado ou de seu

defensor, quando constituído, deveria ser uma regra estampada no RDE, que,

contudo, é omisso em relação a isso.

Ademais, e como se ventilou anteriormente, o Boletim Interno nem sempre é

devidamente assinado no dia em que deveria sê-lo. Muitas vezes o documento é lido

sem a assinatura do comandante, muito menos é afixado em local de acesso amplo

no mesmo dia ou no dia seguinte. O Boletim Interno é documento confeccionado e

que fica ao alvedrio do comandante, podendo este, inclusive, determinar

modificações de última hora, justamente por estar sob sua autoridade, o que

certamente poderia causar insegurança a respeito de seu conteúdo, mormente das

datas de quando começaria a correr o prazo recursal, tal como ocorreria com

publicações retroativas.

Essa questão da falta de intimação já seria o bastante para alegar

cerceamento de defesa, pois a omissão de informação essencial ofende a

capacidade de reagir a tempo, em relação a um ato administrativo impugnável.

Como dar valor jurídico a um documento apócrifo e sujeito a alterações de toda a

ordem? Sem dúvida que a incerteza nesses casos prejudica a contagem do lapso

temporal para recorrer.

A solução para evitar prejuízos parece ser o uso de meios alternativos de

cientificação da decisão administrativa. Cresce de importância a intimação pessoal

do defensor ou do próprio militar na ausência daquele.

Como exemplo da importância da intimação para interposição de recurso no

processo administrativo, cite-se o Decreto nº 2.181, de 20 de março de 1997, que

dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e

estabelece as normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no

Código de Defesa do Consumidor:

Art. 49. Das decisões da autoridade competente do órgão público que aplicou a sanção caberá recurso, sem efeito suspensivo, no prazo de dez dias, contados da data da intimação da decisão, a seu superior hierárquico, que proferirá decisão definitiva. Parágrafo único. No caso de aplicação de multas, o recurso será recebido, com efeito suspensivo, pela autoridade superior.

Como se pode notar, a intimação é ato processual idôneo a notificar quem

tenha interesse em recorrer, dando-se amplas condições para voltar-se, ou não,

Page 81: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

80

contra a decisão. Marca o início do prazo recursal, não dando margem para

incertezas.

Assim, a função do Boletim Interno é dar publicidade aos atos administrativos

que criem, modifiquem ou extinguem direitos, e não necessariamente dar ciência ao

interessado sobre a existência de tal ato e de seus efeitos no mundo fático.

Page 82: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

81

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando a pesquisa realizada e a abordagem sobre temas pouco

discutidos academicamente, pudemos perceber que é necessária a adaptação das

instituições nacionais ainda em desalinho com os mandamentos constitucionais

atuais.

Apesar do esforço do legislador em adequar o Regulamento Disciplinar do

Exército aos ditames constitucionais garantidores da liberdade individual, como o

exercício da ampla defesa e do contraditório em processo judicial ou administrativo

pelos litigantes ou acusados em geral, ainda é preciso que este regulamento avance

no sentido de efetivar as garantias constitucionais que militam em prol do ser

humano e combate a ingerência imotivada do Estado na esfera de liberdades

individuais.

E como prosseguir nesse avanço esboçado pelo novo RDE? Parece que é

pela correta interpretação do regulamento à luz dos princípios constitucionais que

revelem o interesse público de manter forças de defesa capazes de atuar em

benefício do país e de todos os cidadãos. Calha lembrar que a Instituição Forças

Armadas não existe somente em razão da hierarquia e da disciplina, princípios

fundantes destas encontrados na Constituição Federal, mas existem porque pessoas

as integram e, como qualquer cidadão, tem proteção contra o arbítrio gratuito e

desnecessário.

Page 83: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

82

As autoridades que aplicam o RDE devem perceber que os princípios da

disciplina e da hierarquia, principal fonte evocada na preservação das Forças

Armadas, não são os únicos a serem observados.

Há que se perceber que a correta aplicação do RDE, verticalizado à

Constituição Federal, não compromete o cumprimento da missão por ela atribuída

às Forças Armadas, de modo que esta atribuição constitucional não seria, de forma

alguma, inviabilizada. Aliás, é isso que legitima uma instituição estatal: pautar seu

agir segundo os princípios da legalidade, da supremacia do interesse público, da

dignidade da pessoa humana, do devido processo legal e dos demais princípios

norteadores constantes em nosso Texto Maior, de maneira a colaborar efetivamente

para crescimento do país.

E sobre a temática versada na presente monografia, qual o valor dos recursos

administrativos?

Poderíamos ser indagados acerca da utilidade de se discutir tal tema frente à

ampla acessibilidade da prestação jurisdicional no Estado moderno. Poderíamos ser

indagados por que consideramos interessante o recurso no processo administrativo

disciplinar militar.

Em resposta poderíamos dizer que seria uma oportunidade que favoreceria a

ambas as partes envolvidas no processo administrativo punitivo. Ao Estado,

possibilitaria potencializar suas atividades, invocando aqui o princípio da eficiência,

de modo a solucionar as controvérsias que surgem a partir da ingerência de seus

agentes, não sobrecarregando o Poder Judiciário com quizilas de menor

complexidade, porém de valor não inferior a qualquer outro assunto posto sob o

crivo dos magistrados.

Ao administrado economizaria tempo, pois não teria que esperar a longa lista

de casos a resolver no judiciário brasileiro, que tem pilhas de processos a resolver e

recursos humanos minguados a contribuir. Ademais, estamos falando da

possibilidade de ampliar o direito de defesa perante o órgão da Administração Militar

que aplicou a punição tida como injusta.

Os recursos em matéria de disciplina militar podem fazer outra autoridade,

diversa daquela que proferiu a decisão atacada, se convencer de que o

sancionamento ou a sua medida não seria a consequência mais ajustada para

aquele caso, culminando, mesmo nos casos em que não se apresente novos

Page 84: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

83

argumentos ou provas, na satisfação da pretensão suscitada sem ter que enfrentar o

moroso caminho das vias judiciais.

Seria uma excelente oportunidade de exercer na prática um controle dos atos

administrativos ou mesmo de revisão e retratação dos atos equivocamente emitidos,

avocando a Administração Militar para si a responsabilidade de corrigir seus erros ou

mesmo injustiças, elevando ainda mais a confiança que goza perante a sociedade

brasileira. Dizemos confiança, porque é veiculado em pesquisas de opinião o

posicionamento das Forças Armadas entre as instituições que mais inspiram

confiança na população brasileira e são bem avaliadas e lembradas como exemplo

de profissionalismo, de seriedade, de probidade na gestão dos interesses da nação

etc.

Desta feita, não assiste razão bastante desperdiçar tão precioso instrumento –

que é o recurso administrativo disciplinar – capaz de fazer valer os direitos que as

próprias Forças Armadas, por disposição constitucional e por vocação natural, tem o

dever de defender.

O recurso administrativo é vantajoso sobre os aspectos econômico, político, e

social. Economicamente, as vantagens temporais e pecuniárias de se recorrer aos

instrumentos administrativos na resolução de questões jurídicas faz o interessado

ganhar tempo pela celeridade que se pode obter na Administração e reduz custos

para quem, muitas vezes, não pode arcar com o pagamento de custas processuais e

honorários advocatícios.

Politicamente, é de se notar que as dificuldades estruturais do Poder

Judiciário em prestar a jurisdição de forma adequada, satisfatória e de maneira a

atingir o máximo de efetividade, credenciam a Administração, sem, contudo, afastar

do Poder Judiciário a apreciação de ameaças ou lesões a direitos, a atuar pela

solução de problemas oriundos de sua esfera de atribuições, aproveitando a sua

própria estrutura física e de recursos humanos.

Socialmente, o uso dos recursos administrativos seria uma exigência que

decorre dos princípios constitucionais, que determina a eficiência da Administração

na tutela dos interesses públicos postos sob sua responsabilidade.

Em verdade, pouco valor se dá aos recursos administrativos. Eles estão

presentes no RDE, que é pouco “folheado” pelos integrantes do Exército Brasileiro, e

que, no mais das vezes, são inteiramente desconhecidos. Há quem sustente que o

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84

recurso na esfera administrativa seria “chover no molhado”, ou seja, não resultaria

em nada. Não levaria o agente a obter uma efetiva tutela de seu interesse.

No entanto, deve-se ter em vista que o recurso administrativo é uma

excelente oportunidade de se fazer rever as decisões emanadas no próprio âmbito

da Administração. E observando a realidade atual, nota-se que cada vez mais as

pessoas procuram lutar por seus direitos, clamando por justiça e por uma prestação

jurisdicional do Estado que satisfaça os anseios sociais.

Em razão dessa acentuada procura pela prestação jurisdicional, o Poder

Judiciário vem enfrentando problemas de ordem estrutural, não permitindo fazer a

contento aquilo que constitucionalmente lhe cabe. Daí que cresce de importância as

campanhas para que os conflitos de interesse se resolvam de forma amistosa e

simplificada, mediante proposta de conciliação – judicial ou extrajudicial – , pela

mediação ou pela arbitragem.

E se o Poder Judiciário faz um esforço para apaziguar as querelas sociais,

principalmente as de menor relevo, sem fazer uso do processo judicial, que tem, no

mais das vezes, trâmite lento em razão dos inúmeros processos que aguardam a

sua vez nas prateleiras dos cartórios judiciais, por que não a Administração

contribuir com seu quinhão e tentar resolver as questões administrativas dentro de

suas possibilidades.

E essas possibilidades podem e devem se concretizar no processo

administrativo, com a observância ao princípio do devido processo legal,

açambarcando todos os meios que lhe são inerentes, inclusive com possibilidade de

se interpor os recursos com previsão legal ou regulamentar.

E como o direito é uma ciência que deve estar sempre em evolução,

acompanhando a realidade fática e atual, o mesmo deve acontecer com

Regulamento Disciplinar do Exército, para se alinhar aos anseios da sociedade, que

busca a justiça e realização do bem comum.

Assim, entende-se que seria relevante a alteração do RDE, nos pontos

deficientes antes mencionados, ou pelo menos mudar a interpretação dada a ele.

Mudanças no sentido de se reconhecer o valor dos recursos administrativos

disciplinares, no aperfeiçoamento do processo com a inserção em seu procedimento

da intimação das decisões finais, e por que não de todos os atos do processo; na

aplicação do efeito suspensivo aos recursos para que inibam injustiças posteriores; e

Page 86: A sistemática recursal no processo adm disciplinar militar

85

na proibição da reformatio in pejus, como um incentivo ao exercício dos direitos e

porto seguro à dignidade da pessoa humana.

Alguns passos já foram dados. A caminhada ainda é longa, mas o final dessa

trilha, em busca da justiça e do direito, um dia há de chegar. Mas isso só ocorrerá

quando estivermos maduros como cidadãos e como sociedade.

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ANEXO

Um texto para lembrar o valor do estado democrático de direito, e

esquecer-se dos tempos em que a nocividade do autoritarismo mostrava seu lado

cruel. Uma homenagem à Constituição Federal de 1988 e aos seus princípios

basilares que protegem o indivíduo contra os abusos do Estado.

A IDEAL COEXISTÊNCIA ENTRE A JUSTIÇA E A PECULIAR VIDA MILITAR

A hierarquia e a disciplina constituem, por assim dizer, a própria essência das

forças armadas. Se quisermos, portanto, preservar a integridade delas devemos começar pela tarefa de levantar um sólido obstáculo às pretensões do Judiciário, se é que existem, de tentar traduzir em conceitos jurídicos experiências vitais da caserna. Princípios como os da isonomia e da inafastabilidade do Judiciário têm pouco peso quando se trata de aferir situações específicas à luz dos valores constitucionais da hierarquia e da disciplina. O quartel é tão refratário àqueles princípios, como deve ser uma família coesa que se jacta de ter à sua frente um chefe com suficiente e acatada autoridade. E seria tão desastroso para a missão institucional das forças armadas que as ordens de um oficial pudessem ser contraditadas nos tribunais comuns, como para a coesão da família, se a legitimidade do pátrio poder dependesse, para ser exercido, do plebiscito da prole.

Princípios democráticos são muito bons onde há relações sociais de coordenação, mas não em situações específicas, onde a subordinação e a obediência são exigidas daqueles que, por imperativo moral, jurídico ou religioso, as devem aos seus superiores, sejam aqueles, filhos, soldados ou monges.

Se o Judiciário, por uma hipersensibilidade na aplicação dos aludidos princípios constitucionais, estimular ou der ensejo a feitos como os da espécie, pronto: os quartéis se superpovoaram de advogados e despachantes; uma continência exigida será tomada como afronta à dignidade do soldado e, como tal, contestada em nome da Constituição; uma mera advertência, por motivo de desalinho ou má conduta, dará lugar a pendengas judiciais intermináveis, e com elas, a inexorável derrocada da hierarquia e da disciplina.

Da mesma forma que a vocação religiosa implica o sacrifício pessoal e do amor próprio – e poucos sãos os que a têm por temperamento – a militar requer a obediência incontestada e a subordinação confiante às determinações superiores, sem o que vã será a hierarquia, e inócuo o espírito castrense. Se um indivíduo não

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está vocacionado à carreira das armas, com o despojamento que ela exige, que procure seus objetivos no amplo domínio da vida civil, onde a liberdade e a livre-iniciativa constituem virtudes. Erra rotundamente quem pretende afirmar valores individuais onde, por necessidade indeclinável, só os coletivos têm a primazia. Comete erro maior, porém, quem, colimando a defesa dos primeiros, busca a cumplicidade do Judiciário para, deliberadamente ou não, socavar os segundos, ainda que aos nossos olhos profanos, lídimo possa parecer tal expediente e constitucional a pretensão através dele deduzida.

(Mário Pimentel Albuquerque, Procurador da República, em parecer constante do HC 2.217/RJ – TRF/2ª Região – Rel. Des. Federal Sérgio Correa Feltrin – j. em 25.04.2001)