Revista Da Gazeta_2013_ Votorantim Meio Seculo de Vida Inteira
A Transicao e a Vida Inteira
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
A TRANSIO A VIDA INTEIRA: UMA ETNOGRAFIA SOBRE OS SENTIDOS
E A ASSUNO DA ADULTEZ
ELAINE MLLER
JUDITH CHAMBLISS HOFFNAGEL ORIENTADORA
RECIFE - 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
A TRANSIO A VIDA INTEIRA:
UMA ETNOGRAFIA SOBRE OS SENTIDOS E A ASSUNO DA ADULTEZ
ELAINE MLLER
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientao da Professora Doutora Judith Chambliss Hoffnagel, para a obteno do grau de Doutora em Antropologia
RECIFE - 2008
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Mller, Elaine A transio a vida inteira: uma etnografia sobre os sentidos e a assuno da adultez / Elaine Mller. Recife: O Autor, 2008. 284 folhas : il., tab., quadros. Tese (doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Antropologia, 2008.
Inclui bibliografia e apndices.
1. Antropologia. 2. Juventude. 3. Adultos. 4. Maturidade. 5. Responsabilidade. I. Ttulo.
39 390
CDU (2. ed.) CDD (22. ed.)
UFPE BCFCH2009/11
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Judith Chambliss Hoffnagel (orientadora) Programa de Ps-Graduao em Antropologia/UFPE ________________________________________ Prof. Dr. Russell Parry Scott (Examinador Titular Interno) Programa de Ps-Graduao em Antropologia/UFPE ________________________________________ Prof. Dr. Antonio Motta (Examinado Titular Interno) Programa de Ps-Graduao em Antropologia/UFPE ________________________________________ Prof. Dr. Elaine Reis Brando (Examinadora Titular Externa) Instituto de Estudos em Sade Coletiva/UFRJ ________________________________________ Prof. Dr. Maria de Ftima de Souza Santos (Examinadora Titular Externa) Departamento Psicologia/UFPE ________________________________________
Data da Defesa: 22 de agosto de 2008.
RECIFE - 2008
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A Magdalena, Pantera , Pirata
( In memoriam) Miguel, Sivuca, Valente e Tirir ica
meus primeiros fi lhos
vida que eu trago ao mundo e que me d uma nova vida
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AGRADECIMENTOS
CAPES pela concesso de bolsa nos dois primeiros anos do doutorado.
orientadora Judith C. Hoffnagel, pelo apoio e confiana, por no ter deixado desist ir pelo caminho.
Mrcia Longhi, Mnica Franch, Melissa Pimenta e Rosilene Alvim, pelos dilogos e troca de materiais.
Angela Sacchi, pela lei tura de parte da tese e pelos comentrios.
A meus pais, i rms, minha famlia inteira, pela torcida mesmo distncia, por acreditarem que tudo ia dar certo porque eu sou inteligente, mesmo quando eu mesma no acreditava.
Ao primo Shrtz e aos amigos que estavam sempre por perto, ainda que tocando uma irri tante flauta doce.
Ao marido, Marcelo, companheiro desde o incio e desde antes, pelas barras que agentamos, pelo o que crescemos e temos ainda a crescer, por sermos parte das transies na vida um do outro.
queles a quem chamo de Antnia, Bartira, Bruna, Donizete, Estela, JJ , Jlio, Marisa, Sandra, Slvia , Tiago e Vitria, porque sem eles esta tese no seria possvel .
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Desejo que voc, sendo jovem, no amadurea depressa demais,
e que sendo maduro, no insista em rejuvenescer e que sendo velho, no se dedique ao desespero. Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor
e preciso deixar que eles escorram por entre ns.
Victor Hugo
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RESUMO
Esta tese fruto de uma pesquisa fei ta entre 2004 e 2008, na cidade de Recife, Pernambuco, Brasil . Tomando um recorte do curso da vida, o da transio da juventude adultez, busca-se trazer algumas questes que contribuam para uma Antropologia das Idades da Vida. Uma primeira questo a de que se as idades so relacionais, como assumido teoricamente, este aspecto est presente no trabalho de campo e precisa ser trabalhado metodologicamente. Assim, a pesquisa no deixa de revelar de que forma a condio etria da autora esteve presente tanto no trabalho de campo, como nas lei turas fei tas dos dados e da bibliografia relat iva ao tema. A part ir das entrevistas fei tas com jovens com experincias diversas caminho assuno da adultez e com seus pais, foi possvel perceber que a idade assume diversos significados, extrapolando o sentido de fase ou estgio do curso da vida que um olhar cronologizador poderia tentar imprimir. Tambm os sentidos dados juventude, adultez e vida so diversos e mudam conforme os sujeitos se deslocam em seu curso. A tentativa de entendimento da transio adultez, desta forma, acaba por ser direcionada no apenas atravs de eventos como a sada da casa dos pais, o casamento ou a insero profissional (que tanto tm sentidos diferentes para os indivduos, como lhes colocam dilemas de ordem muito diversa), mas tambm pelas expectativas dos sujeitos quanto a suas trajetrias e a sua prpria viso sobre elas. Ao invs de se fazer classificaes destas experincias, optou-se por privilegiar as narrativas a seu respeito, t razendo a riqueza colocada pela diversidade. Algumas noes comumente art iculadas nos estudos sobre a juventude e a adultez, como responsabil idade e maturidade, foram pensadas a part ir do que os interlocutores/as entendiam sobre elas o que lhes revelou vrias dimenses, como a idia de que responsabil idade algo que se tem a vida inteira, ou que a maturidade diferente da adultez, por ser aquilo que se aprende a part ir das experincias. Quanto noo de transio, embora parea pert inente para se pensar o momento crucial da vida dos/as jovens entrevistados, que se sentem em crise ou numa encruzilhada, percebeu-se que a vida inteira percebida como uma transio, na qual a mudana e os novos desafios no so privilgio de nenhuma idade.
Palavras-chave: juventude, adultez, curso da vida, transio.
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ABSTRACT
This thesis is result of a research undertaken between 2004 and 2008 in the ci ty of Recife, Pernambuco, Brazil . Looking at the transition of youth to adulthood, from the perspective of the l ife course, i t seeks to bring up questions that contribute to an Anthropology Life Ages. The first question asks: if the ages are relat ional , how is this considered theoretically? This aspect is also present in the f ieldwork and needs to be worked out methodologically. Thus the research does not fai l to consider the ways in which the age of the author of the thesis was present not only in the fieldwork but also in the readings of the data and the bibliography relat ive to the theme. From interviews done with young people with diverse experiences on their way to assuming adulthood and with their parents, i t was possible to perceive that age assumes diverse meanings, going beyond the sense of phase or stage of the l ife course that a chronology perspective might try of imprint . Also the meanings given to youth, adulthood and l ife are diverse and change accordingly as the subjects move through the l ife course. An at tempt to understand the transit ion to adulthood, in this way, ends up being directed not only by events such as leaving the parental home, marriage or insert ion in the marketplace (that has both diverse meanings for the individuals and puts them in dilemmas of different kinds), but also by the subjects expectations with respect to their trajectories and their own view of them. Instead of making classifications of these experiences, emphasis is given to the narratives about the experiences bringing a rich diversi ty to the study. Some notions commonly art iculated in studies about youth and adulthood, l ike responsibil i ty and maturi ty are considered from the point of view of how the interviewees understood these notions which revealed various dimensions, such as the idea that responsibil i ty is something that one has throughout ones whole l ife, or that maturi ty is different than adulthood, because i t is what one learns through experience. Regarding the notion of transit ion, although i t seems pert inent to think about the crucial moment of the young interviewees l ives who feel that they are in a crisis or at a crossroads, our data reveal that al l of l ife is perceived as a transit ion in which change and new challenges are not the privilege of any one age.
Key-words: youth, adulthood, l ife course, transit ion.
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SUMRIO
12 1. INTRODUO: da transio da juventude adultez a uma vida inteira em transio
19 Idades em campo
24 Trabalho de campo: a trajetria desta tese, os/as interlocutores/as
34 Sobre trajetrias e narrativas
41 1. A GERAO PARENTAL: gerao milagre econmico
42 Dona Estela: a necessidade faz o adulto
57 Dona Bartira: eu acho que eu nunca fui adulta!
69 Seu Donizete: ser adulto agir com responsabilidade
82 2. AS NOVAS FORMAS DE SE TORNAR ADULTO
83 Vitria: dos ltimos anos da juventude juventude madura
103 Bruna: sou eu que amadureo muito lentamente?
121 JJ: vida de adulto uma matemtica
137 3. O CURSO DA VIDA
151 4. JUVENTUDE, ADULTEZ E AS IDADES DA VIDA
156 Natureza e cultura no corpo humano: para alm das idades como dados naturais ou como construes sociais
164 Os mltiplos discursos e dimenses das idades da vida
178 A tematizao da juventude, a no tematizao da adultez
184 Abordagens contemporneas da juventude: transio adultez, ou, o adulto em colapso?
192 Ser jovem, ser adulto... ser jovem e adulto
223 Responsabilidade, independncia, autonomia e emancipao familiar
232 O prolongamento da juventude
238 5. A TRANSIO
242 Tipologias da transio da juventude adultez
266 CONSIDERAES FINAIS
271 REFERNCIAS
284 APNDICE: Transies em curso
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LISTA DE TABELAS E QUADROS
255 Diversidade de itinerrios e segmentao social (Casal et. al., 2006)
256 Modalidades de transio vida adulta (Casal et. al., 2006)
259 Padres de transio para a vida adulta (Guerreiro e Abrantes, 2005)
260 Brasil: Proporo de jovens que fizeram a transio para a vida adulta por condio no domiclio e modalidade, 1982 e 2002 (IBGE/PNAD de 1982 e 2002, apud Camarano et. al.. 2004)
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NOTA SOBRE O PADRO DAS TRANSCRIES
nfases
Palavra Indica nfases minhas
Palavra Indica nfases dos prprios interlocutores
Palavra:::: Indica extenso do fonema anterior
Palavra Indica a mudana de entonao nas narrativas dos interlocutores (p. ex. lembrando dilogos com outras pessoas ou frases feitas)
(risos) As pausas, risos, tosses, gaguejos e suspiros so indicados com parnteses
Dvidas de transcrio
(inaud.) Indica os trechos inaudveis, sem transcrio
[palavra] Indica dvidas por parte da transcritora e transcries dbias
[...] Indica supresses
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1INTRODUO: da transio da juventude adulteza uma vida inteira em transio
Que as escolhas dos temas que pesquisamos no acontecem em vo todos
podemos supor. (Os porqus destas escolhas talvez alguns entendam com mais clareza.) O
fato que parece-me que toda tese traz em si em sua temtica, na forma de abord-la ou na
maneira de escrev-la - muito de seu autor ou autora.
Esta questo tem me acompanhado desde o momento que decidi escrever sobre um
momento do curso da vida que, de certa forma, eu tambm atravessava - por mais paradoxal
que parea ser, para alguns professores e professoras mais do que para outros, que se chegue a
um doutorado antes de se chegar a idade adulta (pensemos, afinal, o que significa ser jovem
e ser adulto...).
A idia desta tese apareceu quando comecei a observar um grupo de conhecidos1
com a mesma idade que eu e a forma como eles pareciam ser jovens e adultos ao mesmo
tempo. Jovens pelo ritmo de vida, pelas festas, pelos lazeres que me pareciam juvenis, os
namoros, as ficadas, as experimentaes. E adultos porque a maior parte deles j havia se
formado e tinha uma profisso e uma posio no mundo do trabalho. Eram jovens-adultos,
como eu, e com muitas diferenas.
Parecia-me que pessoas de minha classe social tinham que batalhar muito mais
para manter seu status de adulto porque as obrigaes financeiras, as responsabilidades com
uma casa, as decises com relao a minha carreira eram coisas que eu precisava administrar
sem muita ajuda e sem muitas facilidades. A eles parecia ter muito mais coisas mo (um
carro do ano que eu pensava conhecer melhor do que eles o valor, novidades tecnolgicas
para seu trabalho e entretenimento, um endereo invejvel com seu mundo particular num
quarto de um amplo apartamento beira mar). No me parecia que eles tivessem qualquer
1 Rendendo-me ao sexismo de nossa lngua, usarei o plural masculino para designar homens e mulheres, e evitarei termos como conhecidos/as, adultos/as, a no ser quando julgar absolutamente relevante. A diferenciao entre jovens homens e jovens mulheres ser feita quando for pertinente.
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pressa em crescer, em ficar adultos, e ao mesmo tempo eles j tinham muitas
responsabilidades que so comumente acionadas para definir a maturidade.
Nossas diferenas, em especial a de classe, faziam-me pensar que havia algo de
peculiar em se tornar adulto em diferentes contextos sociais. Nossas semelhanas, em especial
algumas ansiedades e inseguranas com relao ao nosso futuro, levavam-me a querer
entender o que podamos estar compartilhando enquanto gerao.
O projeto defendido quando da qualificao do doutorado, em 2005, embora no o
dissesse explicitamente (ou no fosse completamente convincente quanto a isto), estava
direcionado para as trajetrias de transio da juventude adultez2 de jovens homens e
mulheres de camadas mdias em Recife. Mas houve um momento em que, ao invs de passar
a ter um maior rigor com relao questo de classe3, no que concerne a escolha dos
interlocutores, passei a me deter cada vez menos nesta categoria. No que tenha deixado de
pensar classes ou posicionamentos sociais como sendo relevantes para as trajetrias de vida,
bem pelo contrrio, mas porque resolvi deixar para mais tarde esta reflexo, ou faz-la a partir
de outra perspectiva. O que acontecia que a noo de curso da vida e a viso de meu
trabalho como sendo algo enriquecedor para o debate sobre uma Antropologia das Idades da
Vida foram tomando cada vez mais vulto no que eu estava fazendo.
O trabalho aqui apresentado, assim, no diz respeito transio para a idade adulta
de um grupo ou classe social. Ele tenta discutir esta transio enquanto um perodo do curso
da vida, e se os meus interlocutores so de contextos sociais diversos, eles tambm tm
gneros, profisses, cores de pele e formaes familiares diferentes.
Alm da centralidade da perspectiva do curso da vida, que aos poucos foi tomando
corpo, a abordagem antropolgica a qual esta tese se filia tambm foi gradativamente se
mostrando relevante4. A bibliografia sobre a transio idade adulta no Brasil, bastante
escassa quando do incio de minha pesquisa, se expandiu consideravelmente nos ltimos
quatro anos. A temtica, que j se constitua enquanto um problema de pesquisa h alguns
anos na Europa, por exemplo, hoje se estabelece enquanto uma das questes mais emergentes
2 O termo adultez pouco utilizado no Brasil, e no consta de nossos dicionrios, mas tem sido utilizada por pesquisadores portugueses. interessante observarmos como a idade adulta, ao contrrio de infncia, juventude ou velhice, pede o emprego de substantivo e adjetivo. Cf. Boutinet (2001).
3 As importantes contribuies do professor Russell Parry Scott, na banca de qualificao, pareciam indicar que esta era uma deficincia do projeto de tese.
4 A descoberta da tese de Melissa de Mattos Pimenta, Ser jovem e ser adulto: identidades, representaes e trajetrias, defendida na USP em janeiro de 2007 foi um fator importante para o redirecionamento terico de minha tese, com um maior investimento na abordagem antropolgica do tema. A autora vinha utilizando um corpus te rico bastante semelhante ao de meu projeto, o que colocava questes para algum ineditismo do trabalho.
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dos estudos sobre juventude no Brasil. Num contexto de abordagens diversas, que vo da
Sociologia Demografia, novas categorias vo sendo incorporadas enquanto outras vo sendo
desconstrudas, por autores de diferentes filiaes tericas.
A tese aqui proposta tambm busca algumas destas desconstrues e novas
leituras. A princpio, filio-me ao conjunto de autores que tm proclamado a necessidade de se
trabalhar a partir de trajetrias de vida particulares, observando a sua relao com os
contextos sociais que circundam estes indivduos (Pimenta, 2007; Pais, 2003).
Outro ponto a se refletir a centralidade dada, por muitos estudos, nos eventos5
constituintes da aquisio do status de adulto. Trata-se de, por um lado, de relativizar o papel
que o casamento, o estabelecimento de um novo domiclio ou a insero no mercado de
trabalho tm na transio adultez. Por outro lado, para alm disso, preciso repensar a
definio feita a priori destes eventos definidores da aquisio do status de adulto6, j que os
mesmos tm diferentes importncias para cada jovem adulto e que a identificao do
momento certo de ocorrncia dos mesmos s vezes de difcil identificao. Assim, acredito
que a abordagem atravs destes eventos deva ser equacionada com a das expectativas e
subjetividades que as norteiam (Johnson-Hanks, 2002; Pais, 2003; Ramos, 2006).
Outra importante desconstruo de fcil defesa, mas de difcil alcance a
abordagem da vida como sendo constituda por uma srie sucessiva de etapas. O
embaralhamento cada vez maior das normas, comportamentos e papis prprios a cada idade;
a juvenilizao do mercado de consumo; o aumento da expectativa de vida e do perodo de
escolarizao; as mudanas no mercado de trabalho etc. so algumas das situaes que tm
levado a uma recronologizao do curso da vida. Percebemos, aqui, tanto o surgimento de
novas fases da vida (os beteens7, a aposentadoria ativa, a ps-adolescncia, a quarta idade,
etc.), quanto o embaamento dos limites entre as diferentes idades. De certa forma, por mais
que se defenda a limitao em se ver o curso da vida a partir de uma perspectiva linear (etapas
sucessivas e identificveis) os trabalhos sobre a transio adultez acabam por propor certas
5 A idia de evento vital parece ser oriunda da Psicologia do Desenvolvimento, como uma forma alternativa de pensar o curso da vida a partir do momento que a idade cronolgica passa a ser rejeitada como uma varivel significativa (Keith e Kertzer, 1984). Hultsch e Plemons (apud Keith e Kertzer, 1984), definem um evento vital como uma ocorrncia digna de nota na vida de um indivduo, podendo ser tanto aquelas experimentadas como sendo parte de um curso de vida usual (casamento, morte de uma pessoa querida), como eventos culturais com origem exgena (guerra, catstrofe natural).
6 Metodologicamente, precisei recorrer a alguns destes eventos para a identificao de jovens que estariam em transio idade adulta privilegiando, assim, aqueles que teriam assumido apenas algumas das responsabilidades com moradia, famlia e profisso. O decorrer do trabalho de campo levou-me a repensar o papel dos eventos que marcam a insero no mundo destas responsabilidades.
7 Corruptela dos termos between e teenager, em ingls, para designar os indivduos entre a infncia e a adolescncia.
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tipologias de transio, que buscam classificar de alguma forma (talvez por entenderem que
este um projeto do pensamento cientfico rigoroso) as mltiplas trajetrias dos jovens em
direo ao status de adulto.
No Brasil, o trabalho de maior flego e que utiliza noes mais prximas s que
aqui proponho, fala, por exemplo, de trs modalidades de transio: uma mais lenta, prpria
das camadas mais privilegiadas socialmente, outra mais precoce, associada aos segmentos
menos favorecidos e uma terceira transio errtica, apresentando reverses de algumas
etapas, como o abandono dos estudos, o desemprego e a volta ao lar familiar aps o divrcio
(Pimenta, 2007).
O que me parece importante observar, em um trabalho que se filie ou sugira uma
Antropologia das Idades da Vida, se os jovens que passam mais tempo na casa de seus pais
se vem como sendo mais jovens e menos adultos do que aqueles que estabeleceram um
novo domiclio; se aqueles que retornam casa dos pais aps terem tido sua prpria casa
sentem-se como tendo se tornado mais jovens novamente. Dito de outra maneira, de que
forma pensar em juventude e adultez como etapas distintas do curso da vida, com incio e fim
mais ou menos identificveis (seja atravs de eventos, seja atravs de elementos mais
subjetivos) faz sentido para estes jovens-adultos? E mais, de que forma as diferentes formas
de se assumir a adultez pois as trajetrias que conheci durante a pesquisa sempre revelavam
esta diversidade nos colocam questes sobre o que ser adulto?
Para o olhar antropolgico restam ainda importantes questes a serem includas
neste debate, que dizem respeito cara idia, para a disciplina, de categorias nativas. Como
os jovens em transio adultez se classificam etariamente? O que eles entendem sobre a sua
juventude e sua adultez? Como definem cada idade da vida o que entendem sendo prprio
da juventude e sendo prprio da adultez? Como eles percebem sua transio (se que se
identificam enquanto estando numa fase de transio)? Enfim, quando falam em idades da
vida como a juventude e a adultez, que dimenses esto implicadas? Neste sentido, o que uma
perspectiva antropolgica poderia estar trazendo de novo para contribuir neste debate
justamente partir destas categorias nativas, teorizar a partir delas.
A partir do olhar nativo, a prpria idia de transio precisa ser equacionada
de forma cuidadosa. Pode-se perceber, colocando-se frente a frente os discursos de duas
diferentes geraes, que a idia de que existe um perodo da vida em que se passa de uma
condio de jovem para outra de adulto muito mais clara para aqueles que esto
atravessando este perodo atualmente. Os pais, sejam os que definem um evento pontual a
partir do qual passaram a se sentir adultos, sejam aqueles que no conseguem identificar esta
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transio em um perodo de suas vidas, parecem no ter um discurso sobre a transio nos
mesmos termos como os seus filhos. Estas pistas indicam, eu imagino, que a construo da
transio vida adulta enquanto problema social ou problema de pesquisa (a ponto de
merecer uma sigla, nos estudos sociolgicos, TVA) ou ainda objeto da literatura de auto-
ajuda, so fenmenos mais ou menos recentes, certamente com a marca de um determinado
tempo, lugar e cultura.
Colaboram para que a transio para a adultez seja percebida enquanto um
fenmeno algumas mudanas relativamente recentes ocorridas na sociedade ocidental. Uma
delas diz respeito s mudanas no mercado de trabalho, que se torna mais instvel, com as
carreiras profissionais mais fragmentadas e incertas. Percebe-se que a transio ao mercado de
trabalho exige atualmente muito mais qualificao, principalmente para atividades
especializadas ou de formao superior, nas quais o diploma universitrio deixa de ser um
passaporte de insero profissional. Alguns interlocutores percebem que a gerao que
ingressou no mercado de trabalho nos anos 70 ou 80 conseguiu postos estveis com o diploma
secundrio ou a graduao. Hoje, sues filhos no conseguem ter seus cursos superiores
valorizados da mesma forma at porque ter uma faculdade no mais um privilgio de to
poucos como o era h algumas dcadas. O resultado que se precisa ter cada vez mais
qualificao para a ocupao de postos cada vez mais precrios. Ou seja, tanto o mercado de
trabalho como a formao profissional passou por mudanas (no que pese o nmero cada vez
maior de faculdades particulares contribuindo para que o curso superior tenha cada vez mais o
carter de formao tcnica que as escolas profissionalizantes tinham h algum tempo atrs).
Relacionado a estas mudanas no mercado de trabalho, pode-se pensar a respeito
do poder aquisitivo (notadamente das camadas mdias). Aqui -me difcil afirmar se esta
classe tem maiores dificuldades de conseguir atingir a independncia financeira, ou se os
padres de consumo e as necessidades que j no so as mesmas. O caso de Vitria
interessante neste sentido, quando ela fala de como no tinha condies de sair da casa dos
pais, mas, por outro lado, enumera uma srie de necessidades que lhe so impostas por sua
classe social e que no o eram para os seus pais. Os estilos de vida mudaram, e,
conseqentemente, as necessidades de consumo e os nveis de renda para manter estas
necessidades8.8 Alm disso, parece existir, nas camadas mdias, um sentimento de que se deve partir do ponto ao qual os pais
chegaram. Kehl (2004) fala, em termos do exerccio da sexualidade, que mais do que o direito de desfrutar as conquistas de liberdade sexual da gerao de seus pais, os jovens herdaram a obrigao de realizar os sonhos deles. Poderamos nos aventurar a pensar que mais do que a possibilidade de se iniciar a vida emancipada da famlia parental tendo-se uma base mais consolidada do que os pais tiveram (acesso educao, facilidade com transporte etc.), os jovens sentem-se na obrigao de manter esta base com o mesmo padro.
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Tambm a famlia no mais a mesma. Grosso modo, a gerao de pais que foi
aqui entrevistada tinha o casamento como o corolrio principal da independncia afetivo-
sexual mais que esperado, o casamento era praticamente inevitvel, como apontou Dona
Slvia. Alm da obrigao de se casar, disse Bruna, a gerao de seus pais tinha a obrigao de
se manter casada. A popularizao do divrcio pode ser percebida como a transio para um
novo sentido do casamento9, como uma relao que deve ser mantida enquanto tiver valor
para ambos os indivduos. Mais que uma desvalorizao do casamento, pode-se pensar na
valorizao de um tipo de relacionamento, que se espera que seja mantido enquanto houver
um sentimento (amor, lealdade, mas no apenas isto) compartilhado entre o casal.
Um outro aspecto a se notar a to percebida desvalorizao ou dissoluo de
certos rituais que eram marcadores da passagem de uma idade a outra da vida. A formatura da
faculdade no tem mais o mesmo sentido na medida em que no engendra uma nova condio
nos formandos. O casamento religioso ou civil no tem a mesma importncia quando os
casais experimentam formas diversas de relaes pr-maritais como a co-habitao. O
primeiro emprego no parece ser muito percebido como tendo mudado a forma como os
jovens se percebem enquanto a sua idade, at mesmo porque na maior parte das vezes se
experimentam ou empregos precrios ou uma srie de posicionamentos do tipo estgio
paralelamente a formao.
A transio da juventude adultez, parece ganhar, assim, uma existncia prpria,
quase se transforma ela mesma numa idade, na medida em que os sentidos dados juventude
e idade adulta no so mais to unvocos. Talvez o que todas estas mudanas podem estar
indicando que cada vez mais difcil delimitar o incio e o fim de cada idade da vida. Mais
que etapas estanques, falamos da vida como uma transio, um processo (Featherstone, 1994)
de auto-construo, aprendizado, micro-mudanas (Ramos, 2006) e acmulo de experincias.
Para alm disso, observar este momento especfico do curso da vida faz-me
perceber que a idade, enquanto construo social, uma categoria muito mais complexa e
multidimensional do que pode parecer primeira vista. Nas definies sobre o que
juventude e adultez, a idade aparece enquanto categoria social, biolgica e cronolgica.
Quando nos apoiamos nas narrativas sobre trajetrias de vida e nas classificaes nativas
sobre o tema, somos levados ao encontro de idias sobre qualidade de vida, dilatao do
perodo reprodutivo, responsabilidade, autonomia, independncia etc. e, sobretudo,
impossibilidade de se separar o cultural do natural no que tange o curso da vida e suas
idades. As narrativas sobre trajetrias das duas geraes nos levam a pensar, por um lado, a 9 Dona Marisa ressalta como a sua gerao se divorciou muito, e como as separaes foram traumticas.
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juventude e a adultez como algo alm de idades da vida (no sentido de fases); por outro lado,
as idades da vida como sendo definidas e marcadas tanto por fatores naturais como scio-
culturais. Remete-nos, desta forma, a mais um debate clssico da Antropologia o do par
natureza/cultura e para a necessidade de se pensar numa abordagem que rompa com
dualismos e classificaes reducionistas.
No fiz nesta tese uma pesquisa com uma amostra que pudesse dar conta de uma
leitura sobre como, em mdia, os jovens de determinado perfil tm se inserido no mundo
adulto. Talvez no por uma escolha epistemolgica na elaborao do projeto, mas pelas
circunstncias na qual esta tese foi concebida, busquei entender que uma tese pode surgir mais
do exerccio de reflexo do que da realidade social mais ampla que ela possa explicar.
Trabalho aqui com um nmero reduzido de interlocutores (embora eles tenham
sido muito mais numerosos do que se pode julgar pelos nomes citados). Mas cada trajetria
que eu e meus interlocutores narramos aqui est relacionada, de alguma forma, com algumas
das questes relevantes para se pensar a transio adultez. Alm disso, sua leitura muitas
vezes pode sugerir que algumas mudanas de foco nos atuais estudos sobre o tema poderiam
elucidar muitas outras questes, e incluir de forma mais positiva a diversidade das trajetrias
individuais. Por acaso no estamos sempre, alis, falando da mesma coisa, de uma espcie de
recorte (no este o sentido do real?)?
Apresento esta tese como uma contribuio para a discusso de uma temtica que
tm ganhado espao nas Cincias Sociais, e acredito que algumas das desconstrues que
trago aqui, muitas delas colocadas pelos prprios interlocutores, podem ser teis para futuros
trabalhos, ainda que no paream to elucidativas quanto algumas classificaes que tm sido
propostas. Mas talvez a maior contribuio desta tese possa estar na tentativa de pensar
antropologicamente uma questo que ao mesmo tempo nos faz retomar discusses clssicas
da Antropologia e refletir sobre um fenmeno ocidental contemporneo. A idia foi que esta
tentativa estivesse em dilogo com outras reas de conhecimento, ainda que no as privilegie
enquanto modelo explicativo.
No decorrer deste captulo introdutrio, na seo Idades em campo, trago uma
discusso de carter metodolgico sobre a forma como a condio etria do/a pesquisador/a
nunca deixa de estar presente antes, durante e aps o trabalho de campo. Depois, em Trabalho
de campo: a trajetria da tese, os/as interlocutores/as apresento o processo de construo
desta pesquisa e os indivduos que a tornaram possvel. Na seo Sobre trajetrias e
narrativas trago algumas questes que nortearam as entrevistas e as observaes, alm de
falar brevemente sobre o tipo de etnografia que eu escrevi.
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O restante da tese est dividido em cinco captulos. Em A gerao parental:
gerao milagre econmico trago as narrativas de vida de trs adultos com filhos em
transio adultez, que falam de sua trajetria, das questes que circundavam a sua
assuno da adultez, de como percebem este perodo da vida de seus filhos e as idades da
vida. Em As novas formas de se tornar adulto a gerao dos jovens em transio que tem
as suas trajetrias narradas: o momento atual de suas vidas, seus dilemas, expectativas, as
noes sobre o curso da vida em diferentes momentos desta transio.
No captulo O curso da vida retomo algumas idias importantes que tm permeado
as discusses nesta rea, da noo de ciclo de vida e seus pressupostos de linearidade e da
vida dividida em estgios, aos paradigmas do curso da vida e da vida como um processo.
Em Juventude, adultez e as idades da vida trago as discusses mais diretamente
ligadas ao tema desta tese e a uma Antropologia das Idades da Vida. Recupero algumas
colocaes dos interlocutores e discusses tericas, como por exemplo sobre a dicotomia
natureza-cultura, as mltiplas dimenses e discursos sobre idade, as idias sobre juventude e
adultez e seu tratamento pelos estudos das Cincias Sociais, a idia de responsabilidade e de
prolongamento da juventude.
No captulo sobre A transio, lembro de seu tratamento enquanto rea clssica da
Antropologia e algumas tipologias da transio adultez propostas por diferentes estudos.
Encerro com as Consideraes Finais, tentando dar um fechamento ao trabalho
que o localize enquanto uma contribuio tanto para o entendimento deste recorte do curso da
vida que me propus estudar, quanto a uma Antropologia das Idades da Vida.
Idades em campo
Lydia Alpizar e Marina Bernal (2003), fazendo uma crtica aos estudos sobre
juventude, afirmam que os mesmos so negadores ou no explicitadores da subjetividade de
quem os investiga. Poucos seriam os pesquisadores que trabalham com juventude (eu
ampliaria, e diria idade) que reconhecem e do conta de maneira explcita da carga subjetiva a
partir da qual realizam seu trabalho.
Quando falamos na transio vida adulta, em geral se trabalha com certos
eventos aqui, aqueles que instituem uma srie de responsabilidades do tipo
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conjugal/familiar, domiciliar, financeira/profissional. No meu caso, concomitantemente ao
doutorado eu vivenciei alguns dos eventos cruciais para o que geralmente se define como vida
adulta, na esfera familiar e profissional. Acredito que esta minha condio etria10 no pode
ser desprezada ao se falar da abordagem metodolgica deste trabalho. (E, se, como apontam
Alpizar e Bernal, eu ainda no dou conta desta carga de subjetividade, pelo menos acho mais
honesto express-la).
Afirmar que tambm atravesso o perodo que estou estudando no significa
assumir que estou fazendo uma tese para me compreender11. Pelo menos no s isso.
Mary Catherine Bateson, na obra (auto)biogrfica em que fala de seus pais, os
antroplogos Margaret Mead e Gregory Bateson, reflete sobre a proximidade entre
inquietaes pessoais e profissionais dos antroplogos. Segundo a autora,
These resonances between the personal and the professional are the source of both insight and error. You avoid mistakes and distortions not so much by trying to build a wall between the observer and the observed as by observing the observer observing yourself as well, and bringing the personal issues into consciousness. You can do some of that at the time of the work and more in retrospect. You dream, you imagine, you superimpose and compare images, you allow yourself to feel and try to put what you feel into words. Then you look at the record to understand the way in which observation and interpretation have been affected by personal factors, to know the characteristics of any instrument of observation that make it possible to look through it but that also introduce a degree of distortion in that looking. All light is refracted in the mind. To look through such a lens, it becomes important to know the properties of the lens. This is the scientific goal of biographical work on social scientists.In anthropology the relationship between observer and observed is complicated by the fact that one is constantly moving between two conflicting impulses, an impulse of closeness and an impulse of distance, the desire to leave home and the desire to discover oneself at the end of the journey, to go away to worlds rich and strange and to discover in them the or-dinary, recording and explaining what initially seems exotic. Occasionally, as in Audubos paintings of birds, the impulse to capture in precise description yields an object of beauty, but it is a different impulse (Bateson, 1994, pp.198-9).
Creio que no seja necessrio justificar novamente a viabilidade de um trabalho
em que a antroploga faz parte do contexto que estuda. Boa parte da Antropologia brasileira
tem sido feita nestas condies, e inmeros autores j deixaram claro que distanciamento
algo diferente de distncia. De certa forma, os riscos de se tomar o pessoal como algo
compartilhado pelos sujeitos da pesquisa equivale ao risco de impor categorias analticas
pautadas em padres culturais do pesquisador sobre fenmenos culturais de outros contextos.
10 Falo em condio etria no sentido no apenas do nmero de anos vividos (a idade cronolgica), mas tambm toda a construo simblica em torno dela (tudo o que transborda a idade cronolgica, mas que se refere a ela).
11 Para a discusso sobre auto-antropologia vide Rapport e Overing (2000); Marcus (1992); Lago-Falco (2003) e Velho (1986).
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Mas parece-me que com relao aos estudos sobre idade e curso de vida, a
explicitao do lugar do pesquisador especialmente importante. Na reviso da literatura
sobre o tema desta tese, pude observar que diferentes trabalhos tm tomado diferentes idades
como sendo as mais crticas e mais propensas a desencadear momentos de crise nos
indivduos. De certo, diferentes posicionamentos dos pesquisadores frente aos problemas de
suas pesquisas esto levando a leituras diversas sobre seus objetos.
Esta questo leva-me a esboar algumas proposies. A primeira diz respeito s
relaes que estabeleci, ou concretizei, durante o trabalho de campo para esta tese, mas
tambm em pesquisas que havia feito antes sobre juventude. Em todas estas situaes,
parecia- me que a questo da minha idade de alguma forma refletia-se no trabalho de campo12,
na maneira como via meus interlocutores e como era vista por eles13. O trabalho de campo
antropolgico parece-me ser de fato o campo onde se refletem as especificidades do objeto,
dos pressupostos terico-metodolgicos articulados pelo/a pesquisador/a, e dos sujeitos desta
relao (quem so eles, como so vistos e aceitos, suas bagagens e subjetividades). Neste
sentido, o trabalho de campo sobre idades, estabelecendo relaes nas quais a idade importa,
parece refletir algumas questes que nos so colocadas pelas idades da vida. E se as vimos
como sendo construes sociais, como critrios classificatrios, como relacionais (e
instituindo relaes de poder, de luta e de negociao) no se pode esperar que estes seus
aspectos apaream apenas no referencial terico. So questes metodolgicas a serem
enfrentadas e problematizadas.
Alis, as escolhas tericas que fazemos tambm refletiro em questes
metodolgicas. O que foi acumulado desde os primeiros estudos sobre idades da vida forma
um repertrio variado de abordagens. Assumir uma ou outra destas abordagens significa ver a
criana, o/a jovem, o/a adulto/a ou o/a idoso/a de forma mais ou menos articulada com as
outras idades, com culturas mais ou menos compartilhadas, como indivduo socializado ou
como agente social. No difcil imaginar que a forma como percebemos nossos/as
interlocutores/as se reflete na relao que estabelecemos com eles/as.
A segunda proposio que sugiro ainda diz respeito a este tema, mas o relativiza.
12 Desenvolvo melhor este aspecto em Mller (2006).13 Em muitas situaes da pesquisa para a tese as falas dos interlocutores apenas pontuavam a minha idade,
geralmente em comparao com a dos jovens que estariam em transio para a adultez:Dona Estela: no, foi, vocs no devem lembrar, implantao da Sudene aqui, na poca do vamo crescer o nordeste [...] vocs precisam estudar um pouquinho ainda um pouquinho da histria do nordeste aqui...
Vitria: Na nossa faixa etria em Recife, a turma inteira casou, eu, Tone, da turma que a gente conhece em comum, eu, Tone e mais uns trs gatos pingados que ns somos os... como que ?
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Se a condio etria de quem faz pesquisas com determinada idade se reflete no trabalho de
campo, o faz de formas diversas assim como o gnero importa mais ou menos de acordo
com a pesquisa que realizada. Ou seja, o tema que estudamos serve de mote e de norte para
as relaes que estabelecemos em campo. Talvez se nas minhas trs pesquisas14 eu estivesse
perguntando coisas sobre hbitos de consumo ou gosto musical e no sobre como aqueles
indivduos vivenciam suas idades, teria estabelecido outras relaes, com outro peso para
minha idade e de meus/minhas interlocutores/as.
Em algumas falas dos interlocutores adultos, por exemplo, observamos um tom de
aconselhamento que me foi dirigido, como quando Dona Bartira sugere que eu d logo a
minha me um netinho uma experincia muito especial para ela.
Outras vezes, percebia-se a contestao de que ramos de geraes diferentes:
Dona Estela: mas a vida de vocs, passou, a vida de todo mundo difcil, mas eu acho que o jovem hoje ele tem muito mais dificuldade, muito mesmo. De manter uma famlia, de ter uma carreira, muito mais difcil pra vocs, esse mundo t muito competitivo agora.
Dona Estela: , vocs to ainda em pleno, em pleno estudo ainda, ainda vo, n, enfrentar depois o trabalho, agora s estudo, s, ainda no t ganhando a vida com isso. N?
E em outros momentos, nossas idades serviam tambm de parmetros para falar de
maturidade, do quanto eu, como os seus filhos e filhas, ainda tenho muito pela frente e muito
a aprender em minha vida:
Dona Estela: Eu acho que trabalho o fundamental da vida da gente, n, porque se voc... aonde que voc cresce? Onde que voc consegue experincia na vida, n? Claro que a vida vai passando, o tempo vai passando, hoje eu sou uma mulher mais experiente do que vocs, tenho que ser porque eu j vivi, eu levei muito tempo pra chegar a 66 anos, foram 66 anos.[...]Dona Estela: a nossa faculdade foi o trabalho, entendeu? A gente tava, voc tava aprendendo l, terica, a gente t na prtica. Quer dizer, voc t aprendendo ali junto com que j sabe, voc t aprendendo, aprendendo andando. Hoje a gente tem o que, 66 anos. No foi fcil assim tambm como , vocs to com 26, gente, pelo amor de Deus. Vocs tm um caminho muito grande, que vo aprender tambm.
Dona Slvia: Eu acho que uma coisa, a juventude hoje, vocs a questo de adultos vai por a, da responsabilidade, da da o jovem um empreendedor, uma pessoa que quer, ele quer, ele quer e eu acho que depende muito da gente que tem mais experincia ter saco pra dizer dez vezes a voc que no daquele jeito. No ? Que voc, pelo amor de Deus, Elaine, no cometa os erros que eu cometi no, invente um novo, invente um erro, faa o seu! Mas no file15 uma coisa que voc sabe que no vai dar certo, entendeu?
14 Mller (2000; 2004) e a presente tese.15 Filar, em Pernambuco, tem o sentido de colar, no sul do Brasil: trapacear para completar um exame ou
responder a perguntas em uma prova.
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O fato que a minha idade estava presente em cada entrevista e em cada conversa
estabelecida.
Vale ressaltar que o resultado da condio etria do/a antroplogo/a em campo
variado. s vezes ser um dificultador para o acercamento do cotidiano dos indivduos, por
conta do grande nmero de anos que separam as idades cronolgicas (como relata Pais
(1993)); ou por conta da grande diferenciao simblica que se constri na brecha de um
pequeno intervalo de anos vividos (o caso de minhas pesquisas feitas na graduao e no
mestrado). Outras vezes ser uma forma de enxergar determinadas questes de forma mais
inclusiva, ou vivencial16, como no trabalho de campo para esta tese. Resultados da dimenso
relacional das idades mais do que algo dado, algo em constante negociao.
Um terceiro aspecto diz mais respeito dimenso interpretativa de um trabalho
etnogrfico. Quando falamos de pesquisas sobre idades, no temos consenso nas leituras
feitas sobre o que cada uma representa com relao s outras. Nenhum problema com relao
a isto, sinal de que se trata de um campo frtil para ricos debates. Mas se assumirmos que a
pesquisa com idades envolve algo do mundo do sensvel, como se se tratasse de uma
realidade que no pode ser submetida apenas s ferramentas lgicas da cincia, como sugere
Pais (1993), podemos pensar que na falta de consenso podem estar refletidas diferentes
intersubjetividades. Ou seja, quem o/a pesquisador/a, o que j vivenciou em sua vida e
carrega em seus ombros como sua bagagem est presente, de alguma forma, na leitura que faz
de seus objetos (Pais, 2003).
Por fim, por tudo isso, parece-me que nos estudos sobre idade e curso da vida a
explicitao do lugar do/a pesquisador/a especialmente importante. No seria o momento de
realmente aceitarmos a categoria idade (guardadas suas especificidades) como sendo to
relacional como gnero, e (tal como j acontece com esta ltima categoria) comearmos a
explicitar tambm nossa condio etria em nossos trabalhos, na medida em que ela um
importante fator no estabelecimento de relaes com nossos/as interlocutores/as?
16 Talvez se chegando perto de uma auto-antropologia...
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Trabalho de campo: a trajetria desta tese, os/as
interlocutores/as
A pesquisa para a tese foi feita com dois grupos (no sentido de duas populaes,
pois no so necessariamente indivduos que formem grupos): o de jovens em transio para a
adultez e a de seus pais.
A faixa etria dos jovens adultos foi estabelecida, a princpio, entre 20 e 30 anos,
no sendo este um critrio muito rgido. De fato a vivncia do momento de transio foi o
critrio mais valorizado, e neste sentido foram entrevistados/as jovens com idades com menos
de 20 ou mais de 30 anos. Para a identificao deste perodo, partiu-se da trade de
responsabilidades que tm sido utilizadas para a definio do status de adulto17:
responsabilidades residenciais, profissionais e conjugais/familiares. Desta forma, foram
identificados como estando em transio para a adultez aqueles jovens que eram os
responsveis por pelo menos um destes domnios em sua vida18.
Com relao gerao dos pais, a prioridade foi dada para o trabalho com os
prprios pais dos jovens entrevistados (ou o pai, ou a me, de acordo com a disponibilidade
dos mesmos em fazer parte da pesquisa), recorrendo-se a outros adultos identificados como
fazendo parte desta mesma gerao, e que, preferencialmente, tinham filhos em transio para
a idade adulta. Como j foi apontado por outros/as pesquisadores/as que estudavam sobre
famlia, as entrevistas com as mes foram muito mais fceis de serem marcadas. A maior parte
dos/as jovens no vive com o pai e a me, e, nos casos em que estes so separados, a maioria
dos/as jovens mora apenas com a me. Vrios/as entrevistados/as tambm pareciam ter
relaes mais conflituosas com os pais do que com as mes, privilegiando, assim, a indicao
delas para as entrevistas.
J explicitei minha proximidade com o campo de minha tese, e o fato de ter
atravessado importantes eventos da assuno da vida adulta durante o perodo do doutorado.
Com relao ao trabalho de campo propriamente dito no foi diferente. A procura dos/as
interlocutores foi feita a partir de meus contatos pessoais o que por si s aponta a minha
17 No decorrer do trabalho, ficar claro como este critrio merecedor de reviso sua funcionalidade se restringiu escolha dos interlocutores.
18 Houve apenas um caso em que a auto-identificao de uma entrevistada no pareceu condizer com o olhar da pesquisadora (no caso, a jovem se via como sendo adulta).
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proximidade com outros jovens-adultos/as em transio para a adultez. Minha trajetria e a
construo desta tese parecem-me to interligadas a ponto de eu ter dificuldade de falar em
uma sem citar a outra.
Pois bem, no princpio, era o caos. Literalmente. Por mais que eu j estivesse
independente de minha famlia h muitos anos, o incio do doutorado foi marcado por uma
importante ruptura: a que tivemos, eu e meu ento namorado, com a sua famlia. Naquele
momento uma frase nos soava muito significativa. Esta vida de adulto uma roubada. Era o
que melhor parecia definir a nova situao de casal-no casado, de responsabilidades com
despesas ordinrias, de rotina de administradores do lar e de importantes escolhas que
precisvamos fazer com relao nossas carreiras profissionais.
Este era o primeiro momento do doutorado: o de cursar disciplinas, entregar
trabalhos finais que ajudassem a esboar um problema de pesquisa, de fazer recortes para o
projeto de tese. Para auxiliar nesta construo de uma problemtica, fiz, no final de 2004, uma
espcie de pr-campo, no qual entrevistei algumas pessoas conhecidas que me pareciam ser
jovens e adultas ao mesmo tempo. Uma destas entrevistas foi com Vitria19, uma jovem
diretora de arte/criao que trabalhava em um bureau de criao20 em Recife. Vitria21 falou
muito sobre as angstias de se perceber nos ltimos anos de sua juventude, das ansiedades
geradas pela esfera profissional, instvel, e sobre o aporte familiar que recebia e lhe era
fundamental para a fase da vida que estava.
Outra entrevista foi com Antnia22, formada em Jornalismo e funcionria de uma
agncia de publicidade, que estava grvida de oito meses na ocasio. Antnia tambm falou
de aspectos profissionais, mas marcou-me muito em sua entrevista o quanto a condio de
me era importante para a forma como ela via o mundo ao seu redor e fazia planos pessoais.
Tambm foi interessante perceber o quo independente e autnoma ela parecia ser desde
muito jovem, e como o tipo de educao que seu pai lhe deu rgida, com muitas
responsabilidades, mas que pareciam transparecer grande confiana em seus filhos teria sido
importante para que ela no atravessasse crises de transio.
Na poca ocorria-me a idia de fazer a tese apenas com profissionais da rea de
comunicao cujas funes e estilos juvenilizantes pareciam-me ser bastante paradoxais
19 Os jovens sero apresentados de acordo com a sua condio no momento da primeira entrevista. No decorrer do trabalho ficar claro como suas vidas foram mudando durante a pesquisa.
20 Um bureau de criao uma espcie de agncia de publicidade, mas que trabalha apenas com criao publicitria, ou seja, no realiza outras etapas tpicas da rotina de agncias, como a veiculao de material na mdia.
21 Nascida em 14/02/1978.22 Nascida em 02/08/1980.
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com relao ao ver-se adulto. Entrevistei tambm, na poca, um professor desta rea,
Leandro, que por sinal tinha filhos jovens-adultos. Leandro falou-me muito deste aspecto
juvenil do trabalho em agncias de publicidade, da dinmica do mercado de trabalho na rea,
e de algumas caractersticas que ele acreditava serem prprias do perfil daqueles que so hoje
jovens profissionais. Tambm comparou as relaes estabelecidas no ramo da comunicao
com aquelas da famlia patriarcal pernambucana, descrita por Gilberto Freyre. Sua entrevista
colocou-me muitas indagaes sobre reprodues e rupturas que acontecem em cada
gerao.
Ainda como um pr-campo, mas durante todo o perodo do doutorado, conversei
com vrios amigos e conhecidos sobre o tema de minha tese, freqentei festas de casamento e
visitei casais que recm moravam juntos, conversei com pais que me falavam da situao de
seus filhos que procuravam trabalho, que terminavam o curso superior, enfim, recebi amigos
em minha casa e a temtica do morar junto, cuidar de uma casa, ter o prprio espao e
independncia financeira parecia sempre estar presente.
A configurao da pesquisa, muito mais aberta diversidade do que pensei a
princpio, se deu a partir desta primeira aproximao com o campo um campo que de fato
rodeava-me em todos os aspectos de minha vida que eu compartilhava com pessoas com a
mesma idade que eu (existia, claro, sempre a esfera mais adulta de minha vida, muito em
torno do prprio curso de doutoramento).
No ano de 2005 fiz novas entrevistas, j depois de ter defendido o projeto de tese.
Uma delas foi com Dona Estela23, me de Vitria, que fez um belo relato de sua trajetria de
vida e deu-me muitos subsdios para pensar questes que j haviam aparecido na entrevista
com sua filha. Com Dona Estela pude pensar nas mudanas no mercado de trabalho nos
ltimos anos e em alguns fardos que parecem carregar os jovens filhos de pais bem-
sucedidos, que vivem em contextos bem diferentes dos de seus pais.
Outra entrevista foi com Sandra24 e Jlio25, um casal de namorados que s
consegui entrevistar junto, numa tarde atribulada e numa casa que no era de nenhum de ns.
Os dois, que faziam a mesma faculdade de Relaes Internacionais, tinham modos diferentes
de se imaginar em sua rea, por um lado, mas compartilhavam de desafios semelhantes, por
outro lado. Sandra foi minha primeira informante afro-descendente, e fez-me pensar em mais
uma dimenso de diversidade que ainda no havia me dado conta (por mais bvio que seja)
do quanto influenciava um curso de vida.23 Nascida em 10/12/1940.24 Nascida em 13/01/1982.25 Nascido em 15/12/1980.
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De certa forma esta dimenso racial do curso de vida apareceu ainda mais
vivamente na entrevista que fiz com Dona Slvia26, a me de Sandra, j no ano de 2006. Dona
Slvia falou-me muito de seu casamento, do tipo de homem que seu marido parecia
representar para ela no incio da relao, e o que ele representa hoje. Falou da forma como via
suas filhas enquanto jovens-adultas, to diferentes uma da outra, mas ambas despertando
muito sua confiana. Lembrou dos tempos de juventude do black is beautiful, do curso
ginasial clssico e de uma vida entrecortada pela militncia poltica no movimento negro27.
Em muitos momentos destas entrevistas, e mais ainda nas observaes que eu
fazia no dia-a-dia, os problemas de insero no mercado de trabalho e a instabilidade deste
mercado eram lembrados e problematizados pelos jovens e pelos adultos. E no seria exagero
dizer que para uma parcela da classe mdia pernambucana apenas uma sada era vislumbrada:
prestar um concurso pblico. Eu conhecia algumas jovens adultas, ou adultas jovens,
formadas em Direito que estavam estudando j h alguns anos para concursos. Uma delas
estava passando por uma fase de transio domiciliar, com a venda repentina, por sua me, do
apartamento onde morava sozinha. A entrevista com Sofia28 foi bastante diferente de todas as
outras, pela forma como ela se colocava como uma mulher adulta fazendo com que muitas
de minhas indagaes parecessem sem sentido. De fato, Sofia tinha j 32 anos, trabalhava e se
sustentava sozinha h alguns anos, mas sua concepo de si mesma como adulta no passava
apenas por isso. Ela parecia sempre ter tido certeza de muitas coisas de sua opo
profissional, do tipo de advogada que gostaria de ser, de seu tipo de lazer, seus gostos, enfim.
E parecia-me que a maneira como vivenciou sua adolescncia quase sem ser uma
adolescente se refletia na ausncia de qualquer tipo de crise ou insegurana em se assumir
como adulta, independentemente da idade cronolgica.
At este momento todos os entrevistados eram moradores do Bairro de Boa
Viagem, com exceo de Leandro e Sofia, mas que no destoavam dos demais o que dava
certo contorno de classe pesquisa j que se trata de um bairro de classe mdia/alta do
Recife. O tipo de proximidade que eu tinha com alguns jovens desta rea (no exatamente os
mesmos que eu havia entrevistado) acabava, no entanto, fazendo-me pensar em minha prpria
condio social: ia ficando cada vez mais ntido para mim que assumir uma condio de
adulto era algo muito diferente, ou colocava dilemas bastante distintos, para jovens mais ou
menos abonados economicamente. Foi a partir da que comecei a buscar trajetrias um pouco
mais diversas.26 Nascida em 04/02/1952.27 Ficar a indicao de que as questes tnicas precisam ser aprofundadas em outra oportunidade.28 Nascida em 03/04/1974.
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A entrevista que fiz com JJ29, um jovem morador de uma favela de Olinda, fez-me
repensar muitas coisas de meu projeto. Toda sua histria parecia ser marcada pelo estigma: ele
era o jovem negro, pobre, com pouco estudo e sem emprego formal. Para ele, os dilemas de
passar a ser adulto j estavam colocados desde muito cedo, e no diziam respeito,
necessariamente, a sua idade. Ter um emprego estvel, que lhe rendesse um salrio mnimo,
no era um sonho de independncia, mas a certeza de sobrevivncia. E infelizmente, as portas
no pareciam estar abertas para ele. Com um passado que inclua uma fase de atividade
criminosa e de vcio em crack, JJ parecia ter conseguido o mais difcil sair da vida errada.
A converso para uma religio evanglica, alis, era como um divisor de guas em sua
histria e parecia dar sentido a sua viso de mundo.
Pedi ento que JJ me apresentasse uma jovem de sua comunidade, e assim conheci
Cris30. Fui at a casa onde ela morava com sua av, ou melhor, onde passava o dia cuidando
de sua av, j que Cris era casada e tinha uma outra casinha que compartilhava com seu
marido, mas apenas durante a noite. A idia de casamento dela era bastante distinta daquela de
outros jovens que havia entrevistado anteriormente, e no envolvia necessariamente nem uma
cerimnia civil ou religiosa, nem o compartilhar e administrar um lar em tempo integral.
Ela percebia seu curso de vida bem dividido em fases da seguinte forma: ela era criana at a
primeira menstruao, quando se tornou moa; e moa foi at o dia em que se perdeu, no
sentido de ter perdido a virgindade, embora no seja apenas isso. Quando Cris virou mulher,
ela automaticamente virou a mulher do homem para quem se entregou, e assim passou a ser
casada. Mas Cris se via tambm como uma menina. Disse que gostava de jogar bola com as
crianas da vizinhana, e que sabia que duas coisas a fariam se sentir completamente adulta.
Uma, quando ela comeasse a cozinhar, que ento a tia dela no mandaria mais o almoo para
ela e a av almoarem. Outra, quando ela tivesse filhos, o que ela no parecia estar
planejando.
Fiz apenas estas duas entrevistas com jovens mais empobrecidos. Depois, voltei-
me para o Bairro da Vrzea, uma regio de populao de classe mdia e popular, nas
redondezas da Universidade Federal de Pernambuco (e, portanto, com muitos estudantes)31.
Bruna32 morava com seu companheiro no terceiro andar de um prdio, e sua me morava no
29 Nascido em 29/08/1985.30 Nascida em 13/04/1988.31 Esta minha classificao dos bairros de origem dos interlocutores no corresponde, necessariamente, ao modo
como eles se percebiam quanto ao seu pertencimento de classe. As questes a este respeito foram bastante abertas, e a idia era tentar captar, mais que a renda familiar dos entrevistados, a forma como eles se classificavam quanto classe social. A maior parte dos entrevistados se disse como sendo de classe mdia.
32 Nascida em 12/04/1976.
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primeiro. O apartamento havia sido ocupado por sua irm, que se separou do marido na
mesma poca em que Bruna engravidou. Elas fizeram ento uma troca, com o retorno da irm
para a casa da me e o casamento de Bruna. Duas coisas me chamaram muito a ateno no
relato da jovem. Primeiro, o mesmo que j havia percebido com Antnia, o carter
organizador da maternidade nos planos da vida de uma mulher, na sua forma de enxergar o
mundo, nas suas aflies. Ter um filho parecia ser o momento-chave da existncia, a partir do
qual se deixa de viver para si e comea-se a viver para um outro ser humano. Segundo, a
questo das escolhas, do peso das escolhas mal feitas ou das no-escolhas, das dvidas do tipo
e se eu tivesse feito diferente?. Bruna era formada em Relaes Pblicas, rea na qual
nunca trabalhou, e organizava um plano bastante longo de como chegar a cursar aquilo que
havia descoberto ser a sua paixo, Cincias Biolgicas.
Entrevistei tambm a me de Bruna, Dona Bartira33. Ela falou-me de seus dois
casamentos, de seus filhos, e fez uma reflexo interessante sobre sua experincia de trabalhar
fora e a de suas filhas. Dona Bartira foi dona-de-casa a maior parte de sua vida, mas foi
vendedora de artigos para o lar durante um tempo ocasio em que usava a sua experincia
em cuidar da casa para demonstrar a eficincia dos produtos que vendia. Sua filha mais velha
tinha um emprego bastante estvel numa empresa multinacional, na qual trabalhava j h
muitos anos. E Bruna, que pensava agora em investir novamente nos estudos, se preparando
para prestar um concurso pblico, tinha um emprego que dependia da situao poltica do
municpio, j que era um cargo de confiana na Prefeitura, e precisava pagar uma empregada
para cuidar de seu menino enquanto estava fora de casa. Eram trs experincias bastante
distintas de entrada no mercado de trabalho, e Dona Bartira questionava, entre outras coisas,
se valia a pena para uma mulher perder a oportunidade de estar mais prxima de seu filho
para receber um salrio que no era muito superior ao que ela tinha que pagar para outra
mulher cuidar de sua criana e sua casa.
Outro entrevistado da Vrzea foi Tiago34, um jovem estudante e msico, que
aguardava ser chamado para trabalhar no Banco do Brasil, onde tinha sido aprovado num
concurso pblico. Eu o entrevistei em seu primeiro dia morando sozinho sua irm, com
quem dividia apartamento, havia acabado de mudar-se para a casa de seu namorado. As
despesas de Tiago eram pagas, em sua maioria, pela av, que morava prximo de seu
apartamento, junto com a me, uma outra irm e uma sobrinha do jovem. O que era
interessante em conversar com Tiago era a forma como ele parecia no nutrir expectativas
33 Nascida em 18/04/1950.34 Nascido em 31/08/1980.
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com relao a nada, ou seja, ele prprio dizia que seguia esta estratgia com relao vida
para no se decepcionar com as adversidades. Tiago estava trilhando o seu caminho, e embora
estivesse ansioso para comear a trabalhar, no parecia compartilhar com os outros jovens
entrevistados das mesmas ansiedades e angstias com relao ao futuro.
Entrevistei tambm Dona Marisa35, uma senhora com a qual eu tinha uma grande
proximidade (a ponto de lhe chamar e considerar uma tia). Dada esta relao, entrevistei-a
nem tanto pensando em lhe pedir que me contasse sua trajetria, mas mais para que ela me
falasse um pouco sobre como via a transio para a adultez em seus filhos todos j
formados, casados, com bons empregos e com idades entre 28 e 33 anos na ocasio. Dona
Marisa sempre deu um grande suporte para a formao de seus filhos, financiando-lhes
cursos, automveis e ajudando-lhes com outras despesas extraordinrias. Ela falou-me sobre
as escolhas profissionais de seus filhos, e a sua influncia nestas escolhas. Em sua fala eu
sentia muito do que parece ser o pensamento da classe mdia tradicional do Recife, que
valoriza determinados cursos superiores mais do que outros, e coloca a estabilidade
econmica como uma prioridade para decises sobre carreira e a carreira antes da formao
da famlia. Dona Marisa tambm falou-me de seu casamento e do tipo de casamento de sua
poca, em comparao com os relacionamentos de hoje em dia, bastante diferentes.
A esta altura do doutorado, eu havia prestado um concurso pblico e tinha sido
chamada para assumir o cargo de antroploga, mas numa rea de trabalho bastante diversa
daquela que eu vinha estudando h alguns anos. Evidentemente, algumas mudanas
aconteceram em minha vida. A que mais importa dizer aqui que o tempo que tinha para
dedicar-me ao doutorado ficou bastante exguo. Tambm que passei por um longo processo de
adaptao nova rotina, no qual praticamente estacionei na elaborao da tese e na busca de
novos informantes.
Este tempo maior antes de comear a analisar as entrevistas j feitas (pelo fato
delas no terem sido ainda todas feitas), acabou dando uma nova caracterstica a minha tese.
Percebi, pelo contato que eu continuava tendo com quase todos os meus interlocutores, que
suas vidas passavam por grandes mudanas a cada ms. Quando entrevistei Vitria, por
exemplo, ela me disse que no estava namorando. Depois, teve um namoro bastante srio com
um rapaz e cogitou a idia de os dois irem morar junto (de fato, eles j viviam uma situao
irregular, como dizia o pai dela a respeito dos namorados que praticamente moram juntos,
mas que no assumem um casamento). Vitria ento decidiu que precisava passar pela
experincia de morar sozinha antes de assumir um casamento e dividir uma casa com outra 35 Nascida em 01/02/1947.
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pessoa. E como tinha j planos de passar algum tempo em So Paulo fazendo alguns cursos e
reciclando-se para mudar de funo, mudou-se para l em 2007.
Bruna e seu marido mudaram do apartamento em que moravam para um outro no
mesmo condomnio, onde pagavam aluguel. Dada a dificuldade em arcar com as despesas,
decidiram voltar cada um para a casa de sua me (bastante prximas uma da outra). Depois se
separaram, e reataram, mas continuam morando em casas separadas.
Tiago chamou alguns amigos para dividir o apartamento com ele. Depois foi
chamado para trabalhar no Banco do Brasil e se mudou de casa. Com a sada dos colegas de
apartamento, passou a morar s. O dinheiro que primeira vista parecia muito bom para
quem mora s foi ficando apertado, e Tiago frequentemente comentava que s trabalhava pra
pagar contas, que tinha vontade de voltar para a casa da av.
JJ conseguiu tirar seus documentos e pode voltar a estudar (ele recebia uma bolsa
para terminar os estudos). Ultimamente, estava pensando muito em casamento. Estava
tentando levantar dinheiro para comprar as alianas para o noivado.
As entrevistas feitas em 2007 tiveram ento dois objetivos: complementar uma
amostra mnima e reencontrar alguns dos interlocutores.
Assim cheguei a Seu Donizete36, que tem duas filhas, uma engenheira civil e a
outra cursava Arquitetura. As duas moram com ele e a sua esposa. Ele engenheiro eletricista/
eletrnico e tem a sua prpria empresa, aberta depois de ter sido demitido de uma empresa
onde trabalhava h muitos anos. A experincia da demisso foi rememorada por Seu
Donizete, que hoje pensa que foi algo que aconteceu no momento adequado de sua vida,
quando estava na hora de ter seu prprio negcio. Ele falou-me bastante de suas filhas, do tipo
de educao que deu a elas, da importncia do esporte nesta educao. E refletiu muito sobre
o momento em que ele entrou no mercado de trabalho quando as empresas iam contratar os
recm-formados na universidade e todos tinham oportunidades; o perodo do milagre
econmico, segundo ele e sobre o momento vivido por suas filhas que lhes exige muito
mais qualificao para um mercado cada vez mais instvel e que remunera mal os
profissionais. De certa forma, so reflexes que aparecem em boa parte das entrevistas feitas
com os adultos.
Tambm entrevistei novamente Vitria, em seu apartamento em So Paulo. Ela
falou-me muito sobre o morar sozinha, sobre a montagem do apartamento, sobre receber seus
pais e sua irm de visita na sua casa uma experincia muito marcante para ela. Falou sobre
trabalho, sobre no voltar para o Recife, nem para agncias de publicidade. E sobre a forte 36 Nascido em 27/03/1954.
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mudana em seu relacionamento com seus pais a partir do momento que no estava mais
morando com eles. Vitria disse que percebia que agora era vista como uma adulta, e que o
dilogo com o seu pai se fortaleceu muito. Hoje ele at lhe pede conselhos com relao a
decises que precisa tomar em sua empresa. Ela falou-me sobre a vida em So Paulo e sobre
como jovens maduros como ns tm por l vidas diferentes das de Recife. Se em Recife
todos os amigos dela esto casando (e com o mesmo padre), em So Paulo ningum fala em
casamento; a prioridade a vida profissional, que parece no deixar muito tempo para
outras esferas da vida.
Na segunda entrevista com JJ, ele explicou melhor porque queria se casar - queria
assumir que sua namorada j era a sua mulher. Ns conversamos sobre as relaes com as
famlias dos dois e sobre a igreja. Ele falou sobre o projeto social que estava permitindo que
ele voltasse a estudar, sobre querer ter um emprego e conseguir manter a casa com a esposa, e
sobre no ter filhos neste momento de sua vida.
Tambm entrevistei novamente Bruna. Foi uma entrevista um pouco atribulada,
feita em minha casa e com hora para terminar por causa de sua volta para atender o filho. Ela
falou sobre voltar a morar com a me, os problemas de relacionamento e sobre como o olhar
que ela recebia de sua famlia influenciava na forma como ela se via com relao idade.
Pelo andar dos prazos para a finalizao da tese, as entrevistas acabaram sendo
encerradas por aqui. O convvio com os interlocutores no. Tambm os eventos que so
tradicionalmente tidos como definidores do status de adulto continuaram a acontecer em
minha prpria trajetria. Ainda em 2006, eu e meu companheiro resolvemos nos casar no civil
um evento que no teve um grande impacto na maneira como eu percebia-me com relao
idade, j que era a oficializao de uma relao que de fato j havia sido estabelecida h
algum tempo. Em 2007, resolvemos comprar um apartamento financiado pela Caixa
Econmica Federal este sim um passo importante na assuno de uma nova
responsabilidade, j que a administrao da casa prpria, as escolhas com relao a reforma
de um apartamento antigo e, principalmente, o compromisso financeiro, cartorial, to mais
srio que o pagamento de um aluguel, eram coisas novas para ns dois. Tambm era nova a
responsabilidade de se passar pelas inmeras etapas burocrticas at a assinatura do contrato,
em muitas das quais sentamos o peso de nossas idades nos atendimentos que recebamos nos
rgos pblicos onde precisvamos expedir uma srie de documentos. Fazia-me lembrar que
numa faculdade onde eu havia dado aula algum tempo atrs eu sempre era tratada com certo
desprezo na central de fotocpias, at que percebiam que eu era professora e passava a ser
chamada de senhora com muita gentileza. A desculpa era sempre a mesma: a senhora to
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jovem que parece ser aluna.
J na fase final e mais delicada da escrita da tese, fui surpreendida por aquele que
parece ter sido apontado por diversos interlocutores como sendo o evento marcador da
irreversibilidade da assuno da condio de adulto, o ponto a partir do qual deixamos de
viver para ns mesmos (prprio da juventude) e passamos a viver para outro (coisa de adulto).
A gravidez foi confirmada no final do ms de maro de 2008, e as primeiras conversas sobre o
assunto que eu tive com o meu marido poderiam bem merecer um captulo extra.
Acredito ter deixado claro que alm das entrevistas que fiz, que buscaram
estimular as narrativas de vida sobre um determinado perodo do curso da vida, e que neste
sentido se enquadram na concepo de Daniel Bertaux, minha experincia de vida foi um
fator muito importante de coleta de dados. No que eu tenha baseado a tese na anlise de
minha prpria trajetria, ou tenha planejado fazer de minha vida um laboratrio. Mas no
sentido de que foi o compartilhar com outros indivduos de experincias comuns e diversas de
assuno da vida adulta que me deu acesso a eles, me permitiu observar importantes eventos e
conversar sobre eles, e em certos momentos, mesmo no sendo este meu objetivo nem meu
deleite, me sentir como uma confidente de muitas ansiedades, angstias e inseguranas com
relao ao futuro. Alm disso, o sentir-se um pouco informante de minha prpria pesquisa
fez-me ler de uma forma particular a bibliografia sobre a transio da juventude adultez.
Neste sentido, algumas colocaes tericas pareciam-me no mnimo estranhas, como a
classificao das trajetrias segundo critrios absolutamente exteriores aos jovens-adultos,
enquadrando-as em categorias como precoces, tardias, precrias ou bem-sucedidas.
Minha experincia contou para que eu questionasse, alm disso, uma espcie de
obsesso pela adultez, como se os jovens tivessem planos ou estratgias para atingir este
status, quando no fundo parece-me que os planos e estratgias para a estabilidade profissional,
a constituio de uma famlia ou a independncia financeira e domiciliar no so
necessariamente pensadas a partir de uma concepo de vida como uma sucesso de etapas
distintas e bem delimitadas. Um bom exemplo a idia de que as transies para a idade
adulta podem ser reversveis. Ora, nossas trajetrias so nossas experincias, algo que no nos
tiram, e se voltar a morar com os pais aps experimentar um perodo de moradia independente
significar voltar a ser jovem aps ter sido adulto, talvez precisemos repensar: juventude e
adultez so aqui idades da vida? Qual o significado das idades da vida, so etapas de nossa
existncia? Como disse Dona Slvia, tendendo a uma viso da vida como um continuum,
simplesmente a gente... vive. Ou, nas palavras de Tiago:
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A vida uma s, n, vai se acrescentando com coisas, vai ocorrendo coisas aqui, coisas acol, acho que a transio a vida inteira, que voc t se transformando sempre assim, nunca voc vai ser a mesma coisa, n, t sempre ganhando conhecimentos, tendo experincias, t sempre em transio eu acho.
Sobre trajetrias e narrativas
Nesta pesquisa lido principalmente com dados biogrficos, e procuro abord-los a
partir das proposies de trs autores principais: o historiador Giovanni Levi (1998), etno-
socilogo Daniel Bertaux (1997), e o socilogo da juventude Jos Machado Pais (2003).
Bertaux (1997) fala das narrativas de vida como narrativas de prticas em situao.
Assim, ao invs de procurar reconstruir toda a trajetria de um indivduo, o autor trabalha a
partir da descrio de um fragmento da experincia vivida uma categoria de situao
compartilhada com outros indivduos. Desta forma, cada sujeito entrevistado convidado
pelo pesquisador a considerar as suas experincias passadas atravs de um filtro, que no
seno o prprio objeto da pesquisa, apresentado nos primeiros contatos estabelecidos entre
pesquisador e entrevistado. Dito de outra forma, os testemunhos so orientados pelas
intenes de conhecimento do pesquisador que os recolhe.
Esta abordagem dos dados biogrficos pareceu-me ser adequada para esta pesquisa
por poder ser utilizada tanto com os jovens como com os seus pais. A idia foi estimular os
jovens a narrarem o momento que vivenciam e suas perspectivas com relao ao futuro. Com
relao aos pais, o estmulo foi para que eles falassem sobre este perodo de suas trajetrias. A
entrevista foi ainda uma forma de buscar elementos para pensar como pais e filhos se
percebem no que toca este perodo da vida.
No que tange a relao entre as trajetrias de transio adultez dos sujeitos da
pesquisa e suas narrativas biogrficas, assume-se aqui, tambm, as proposies dos autores
supracitados. Pais (2003) fala da tendncia dos indivduos em organizar os relatos de vida
pela continuidade. Quando as pessoas falam que suas vidas so compostas de altos e baixos,
existe uma tendncia em aplainar estes contornos em um antes e um depois. Embora a
vida seja composta de mudanas e descontinuidades, existe uma necessidade de compreender
a continuidade desta descontinuidade real, atravs da iluso de um todo que reduz o tempo
ao espao euclidiano.
Para Pais, os alinhamentos da vida so to importantes quanto os desalinhamentos,
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as conexes da vida so to relevantes quanto suas desconexes sendo as ltimas muito
mais difceis de apreender. As aparentes ilhas de descontinuidade so, na verdade, como um
arquiplago, unido sob a superfcie da gua. A nica forma de descobrir estas unies
investigando profundamente estas aparentes brechas atravs de uma interconectividade
(Pais, 2003).The post-linear methods permit us to account for the ruptures in life experienced or repor-ted amply suggested by their tendency to fragment. Fragments of life that seem to have fallen loose from the whole to which they belong (Pais, 2003, p. 122).
O desafio, portanto, seria encontrar como interconectar os fragmentos da realidade
um desafio de anlise interpretativa, segundo Pais (2003) e que eu considero como estando
bastante prximo dos desafios da Antropologia.
Tambm Levi (1998) aponta que uma das questes fundamentais suscitadas pelo
recurso a narrativas de vida se refere ao papel das incoerncias entre as prprias normas e
no mais apenas as contradies entre a norma e seu efetivo funcionamento em cada sistema
social. O autor ento afirma que, no caso, alguns historiadores, embora assumam que todo
sistema normativo sofre transformaes ao longo do tempo, consideram que num dado
momento ele se torna totalmente coerente, transparente e estvel. Segundo o autor,[...] deveramos indagar mais sobre a verdadeira amplitude da liberdade de escolha. Decerto essa liberdade no absoluta: culturalmente limitada, pacientemente conquistada, ela continua sendo no entanto uma liberdade consciente, que os interstcios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores (Levi, 1998, p. 179).
Para Levi, a biografia o campo ideal para verificar o carter intersticial da
liberdade de que dispem os agentes e para observar como funcionam os sistemas normativos
(jamais isentos de contradies). Assim, a perspectiva diferente mas no contraditria
daquela sugerida por Bourdieu (1998), que prefere se deter nos elementos de determinao.
Segundo Levi (1998), h uma relao permanente e recproca entre biografia e contexto, com
a soma infinita de suas inter-relaes. A biografia assim descreve as normas e o seu
funcionamento efetivo, e este considerado tambm o resultado de incoerncias estruturais e
inevitveis entre as normas.
A idia de se trabalhar com dados biogrficos, mais precisamente com narrativas
de vida, mostrar como as trajetrias individuais podem ser uma fonte importante para o
estudo do curso da vida, em geral, e a assuno da adultez, particularmente. Atravs das
trajetrias de indivduos de duas distintas geraes, pode-se acessar uma srie de aspectos
importantes para o entendimento deste recorte do curso da vida, e outros tantos sentidos dados
a diferentes idades da vida.
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Trabalhar com questes em torno do (conceito de) curso da vida nos remete a uma
srie de outros domnios, e outros conceitos. Uma trajetria de vida, assim, seria a
interconexo de distintas trajetrias (familiar, profissional, habitacional), cujas fronteiras no
so bem ntidas e esta seria a caracterstica definidora da consistncia interna do conceito de
trajetria de vida tomada num sentido dinmico (Pais, 2003). Assim, as entrevistas orientadas
para o relato de um perodo da vida buscaram abranger outros domnios que esto
relacionados a ele, como a famlia, o trabalho e a moradia. Estes domnios acabam por ser
mais bem trabalhados em outros momentos da tese. Aqui, s trago algumas questes que
nortearam o trabalho de campo.
O lugar da (e na) famlia: Sendo o locus do problema de pesquisa aqui proposto,
lugar das relaes intergeracionais e exercendo seu papel na transio dos jovens adultez, a
famlia coloca uma srie de questes para a construo de uma leitura antropolgica das
idades da vida e deste momento de assuno da adultez.
A bibliografia recente sobre o tema tem apontado para um crescente processo de
individualizao, que estaria transformando as relaes familiares e colocando a famlia a
servio dos indivduos. Concomitantemente, haveria um estreitamento dos laos afetivos,
sendo a famlia apenas concebida na medida em que h sentimentos como o amor.
Para Singly (2000), esse duplo processo de individualizao pois envolve
autonomia e independncia resulta de um longo trabalho de socializao, efetuado
principalmente durante a infncia e a adolescncia. Nas sociedades contemporneas, o que
estaria acontecendo que este modelo de identidade pessoal s estaria sendo elaborado
integralmente muito tardiamente e os jovens adultos sofreriam por no conseguir chegar a
uma conjuno entre autonomia e independncia.
Alm das dinmicas em torno da autonomia e da independncia dos jovens no
ncleo familiar, as quais se referem s relaes familiares mesmas dos jovens adultos, outras
questes que foram estimuladas dizem respeito formao de uma nova famlia por parte
destes jovens: eles desejam se casar, so casados ou tm unies estveis? Como seria esta
nova famlia? Eles tm filhos ou pretendem t-los? O que percebem como sendo comum e
distinto entre sua trajetria familiar e a de seus pais? Quanto aos pais, o que se buscou foi
apreender a sua trajetria familiar e a forma como vem ou tm expectativas quanto a
trajetria de seus filhos.
Os diversos dilemas da insero no mundo do trabalho: Esteves (1995) diz que ao
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invs de falar-se em transio na vida ativa ou insero profissional, fala-se cada vez
mais, no discurso das agncias de estudo e de planificao, no campo do ensino e do emprego
de jovens e nas anlises sociolgicas e econmicas, na transio ao trabalho.no caso da linguagem elaborada em torno da imagem da insero, o que se visa, antes de mais, o movimento para uma colocao (mise em poste) estvel, se no fixa, garantida e adequada s capacidades dos jovens num espao profissional pr-existente e disponvel. No caso da linguagem desenvolvida a partir da noo de transio, a imagem est centrada no prprio movimento de deslocao, sem referncia a um ponto terminal (Esteves, 1995, p. 82).
Com a idia de transio, para o autor, coloca-se a passagem em si mesma
enquanto movimento que no definido nem determinado por nenhum ponto de chegada.
Alis, ele afirma que este ponto de chegada pode ser algo problemtico, seja porque os
indivduos no se adequam a ele, seja porque simplesmente ele no existe. Assim, a imagem de transio, ela prpria, contm um efeito multiplicador: ao contrrio da imagem de insero, que marca a ocupao de uma posio uma vez por todas, a transio refora a expectativa de acordo com a qual um mal nunca vem s. A incerteza diante do futuro ocupacional torna-se o ncleo central da aco social dos indivduos envolvidos, dos jovens neste caso (Esteves, 1995, p. 82).
As questes que orientaram a pesquisa, neste nterim, se referiram situao dos
jovens adultos quanto ao trabalho, os modos de transio ao mundo profissional, suas
expectativas de carreira; e, no caso dos pais, tambm sua situao (se trabalhando ou no) e
sua trajetria profissional. Algo que foi estimulado tanto nos jovens como nos adultos foi a
comparao entre as transies ao trabalho nas duas geraes.
As expectativas com relao moradia: Quais so as formas de habitao dos
jovens adultos? Eles realmente tm deixado mais tarde a casa dos pais? Eles gostariam de
estar vivendo como e onde? Como os pais vem esta questo?
Um aspecto importante de se pensar se a decoabitao (a sada da casa dos pais)
pode ser vista como um indicador vlido para se pensar na assuno da adultez. Este seria um
evento importante para todos os jovens? No existiriam significados diversos para a
permanncia prolongada na casa dos pais, at pelo o que indicamos acima a respeito das
mudanas na famlia contempornea?
Foi possvel perceber que o mesmo conjunto de perguntas revelava percepes
distintas. Para alm dos diferentes significados atribudos juventude, adultez, transio
ou eventos e expectativas a eles relacionados, o que podemos notar, a partir de cada
interlocutor, so diferentes formas de construo narrativa. Alguns interlocutores centravam
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seus relatos nos acontecimentos de sua vida - os lugares onde trabalharam, as mudanas de
cidade, os diferentes cursos feitos. Ou ento falavam mais dos aspectos subjetivos que
perpassam estes eventos - os sentimentos vivenciados, os superados, o que ainda sentem com
relao a cada acontecimento. Haviam aqueles que precisavam as