Ana Cardoso da Silva Santos - ULisboa · Ana Cardoso da Silva Santos Dissertação de Mestrado em...
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Direito
O Papel das Autoridades Administrativas no Processo
Contraordenacional
Ana Cardoso da Silva Santos
Dissertação de Mestrado em Direito das Contraordenações
no Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, pela
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob a
orientação do Prof. Doutor Augusto Silva Dias.
FDUL
2017
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Direito
O Papel das Autoridades Administrativas no Processo Contraordenacional
Ana Cardoso da Silva Santos
Dissertação de Mestrado em Direito das Contraordenações no Mestrado
em Ciências Jurídico-Forenses, pela Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa, sob a orientação do Prof. Doutor Augusto
Silva Dias.
FDUL
2017
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Índice
.Resumo…………………………………………………………………………………..…………4
.Abstract……………………………………………………………………………………..……...5
.Introdução…………………........................................................................................................... 8
I. O Processo de Contraordenação
1. Enquadramento Histórico-Constitucional do Direito de Mera Ordenação Social……………...…10
2. Fases do Processo Contraordenacional…………………………………………………………...14
2.1. Fase Administrativa do Processo de Contraordenação………………………………………… 14
2.2. Fase Judicial do Processo de Contraordenação………………………………………………....15
3. Conclusões do Capítulo………………………………………………………………………..…18
II. A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo Contraordenacional
1. O Direito de Participação da Autoridade Administrativa………………………………………....22
2. A Aplicação Subsidiária dos Preceitos de Processo Criminal ao Ilícito de Mera Ordenação Social
– A Figura do Assistente em Especial……………………………………………………………….24
3. O Papel da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de
Contraordenação……………………………………………...……………………………………. 31
3.1. Da Concreta Aplicabilidade Subsidiária da Figura do Assistente ao Regime Geral das
Contraordenações…………………………………………………………………………………...33
3.2. Da Possibilidade de Constituição como Assistente por Parte da Autoridade
Administrativa……………………………………………………………………………………....38
3.3. Da Posição da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de
Contraordenação………………………………………………………………………………….…47
3.4. Da Alteração do Regime Geral das Contraordenações Abrindo a Porta à Constituição como
Assistente por Parte da Autoridade Administrativa – Breve Referência à Posição de Alexandra
Vilela………………………………………………………………………………………………..57
4. Conclusões do Capítulo…………………………………………………………………………...60
III. Conclusão – Posição Defendida……………………………………………………………….68
.Bibliografia………………………………………………………………………………………...77
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Resumo
A dissertação «O Papel da Autoridade Administrativa no Processo Contraordenacional» consiste
numa reflexão sobre os diferentes papeis ocupados pela autoridade administrativa no seio do processo
de contraordenação definido no Regime Geral das Contraordenações.
Trata-se de um processo complexo, com uma primeira fase organicamente administrativa e uma
segunda fase organicamente judicial. Durante a primeira fase, a autoridade administrativa tem a seu
cargo a tramitação do processo, culminando com o proferimento de decisão final que pode ser de
arquivamento ou condenatória. A segunda fase do processo, a denominada fase judicial, inicia-se com
a impugnação dessa decisão final condenatória por parte do arguido.
Na passagem da fase administrativa do processo para a fase judicial, o papel da autoridade
administrativa tem, necessariamente, de se alterar uma vez que passa de entidade instrutora e decisora,
para ver a sua decisão sindicada por um tribunal judicial.
A questão fundamental subjacente a esta dissertação é, então, a de saber qual o papel ocupado pela
autoridade administrativa na fase organicamente judicial do processo de contraordenação e,
concretamente, se a mesma se pode constituir como assistente nessa fase do processo.
Para tanto, assume relevância o estudo da aplicabilidade subsidiária dos preceitos de processo penal
ao regime geral das contraordenações, em especial a possibilidade de importação da figura do
assistente no contexto do Direito de Mera Ordenação Social.
Esse estudo é feito com recurso tanto a posições doutrinárias sobre o tema como decisões
jurisprudenciais. Neste particular, tomarei por base os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação
de Lisboa em 11 de novembro de 1997 e em 20 de maio de 1998, cujos relatores foram,
respetivamente SOUSA NOGUEIRA e MIRANDA JONES.
Em ambos os casos, foi levantada a questão sobre a constituição como assistente por parte de uma
autarquia local (a Câmara Municipal do Seixal) em sede da impugnação judicial de decisões por si
proferidas em processos de contraordenação.
No final da presente dissertação apresento a minha posição tanto quanto à possibilidade de
constituição como assistente por parte da autoridade administrativa, como em relação ao papel que
considero que a mesma detém na fase judicial do processo de contraordenação.
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Palavras-Chave: Contraordenações, Autoridade Administrativa, Assistente, Subsidiariedade,
Direito Processual Penal.
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Abstract
The dissertation «O Papel da Autoridade Administrativa no Processo Contraordenacional» consists
of a reflection on the different roles occupied by the administrative authority in the process defined
in the Regime Geral das Contraordenações.
It is a complex process, with a first organically administrative phase and a second organically judicial
phase. During the first phase, the administrative authority is in charge of the process, culminating in
the final decision that can be to file it or to condemn the accused. The second phase of the process,
the so-called judicial phase, begins with the challenging of the final conviction by the accused.
In the transition from the administrative phase of the procedure to the judicial phase, the role of the
administrative authority must necessarily change once it goes from an instructing and decision-maker
to see its decision syndicated by a court of law.
The basic question underlying this dissertation is what role the administrative authority has in the
organically judicial phase of the misconduct process and whether it can play the role of “assistant” at
that stage of the procedure.
Therefore, the study of the subsidiary applicability of the criminal procedure rules to the general
regime of administrative misconduct, in particular the possibility of importing the assistant figure in
the context of the Administrative Infractions, is relevant.
This study is done using both doctrinal positions on the subject and jurisprudential decisions. In this
regard, I shall take as a basis the judgments given by the Tribunal da Relação de Lisboa on 11
November 1997 and 20 May 1998, the rapporteurs of which were, respectively, SOUSA NOGUEIRA
and MIRANDA JONES.
In both cases, the question was raised about the constitution as an assistant by a local authority (the
Municipality of Seixal) in the judicial challenge to decisions handed down in cases of administrative
misconduct.
At the end of this dissertation, I present my position both as to the possibility of being an assistant to
the administrative authority, and to the role that I consider the administrative authority to have in the
judicial phase of the process.
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Keywords: Administrative Misconduct, Administrative Authority, Assistant, Subsidiarity, Criminal
Procedural Law.
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Introdução
O Direito de Mera Ordenação Social surgiu no nosso ordenamento jurídico através do DL n.º
232/79, de 24 de julho, inspirado no regime alemão e associado a um movimento de
descriminalização motivado pela crescente intervenção penal na sociedade.
Este regime foi pensado para existir ao lado do Direito Penal, mas com autonomia em relação
a ele. Tendo uma natureza diferente, assentando em diferentes princípios e protegendo interesses
distintos para que o Direito Penal pudesse assumir verdadeiramente o seu papel ultima ratio da
política criminal, destinando-se a punir as ofensas intoleráveis aos valores e interesses fundamentais
da convivência humana.
Ainda que, hoje em dia, com a evolução deste ramo do direito público sancionatório, não se
possa afirmar que o mesmo se destina à punição de bagatelas penais, o certo é que a sua intenção de
ser um regime mais célere para sancionar condutas que não acarretam a mesma censura ética e que
se prendem mais com a organização da vida em comum e da realização de interesses públicos do
Estado, manteve-se no DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que revogou o anterior regime geral e o veio
substituir até aos dias de hoje.
Este regime geral regula o processo das contraordenações, sem prejuízo dos regimes setoriais
que se foram multiplicando ao longo dos anos, complementando ou alterando o regime geral
conforme as necessidades e especificidades técnicas de cada setor.
Na presente dissertação de mestrado pretendo discutir os diferentes papeis ocupados pela
autoridade administrativa ao longo do processo de contraordenação.
Se quanto à sua posição na fase organicamente administrativa do processo não restarão
dúvidas de que é a esta autoridade que cabe tanto a instrução do processo, como a decisão final de
arquivamento ou de condenação, cabendo-lhe simultaneamente a investigação e a decisão final; já
não será tão linear o seu papel no recurso de impugnação da sua decisão.
Com o presente estudo, pretendo contribuir para a análise do papel que deve ser assumido
pela autoridade administrativa acoimante durante a fase de impugnação judicial da decisão
condenatória.
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Para tanto, no Capítulo I, O Processo de Contraordenação, após um breve enquadramento
histórico-constitucional do Direito de Mera Ordenação Social, procedo a uma sucinta exposição sobre
as duas fases do processo contraordenacional e a tramitação do processo em cada uma delas.
No Capítulo II, A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo
Contraordenacional, farei uma exposição sobre o alcance e a efetivação do direito de participação da
autoridade administrativa na fase judicial, que lhe é atribuído pelo art. 70.º do Regime Geral das
Contraordenações. De seguida apresento também um estudo sobre a aplicação subsidiária dos
preceitos de processo penal ao Ilícito de Mera Ordenação Social, como especial ênfase na
aplicabilidade do art. 68.º do CPP, ou seja, da figura do assistente.
Neste ponto em específico, tomo como base os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa
de 11 de novembro de 1997 e de 20 de maio de 1998, cujos relatores foram respetivamente SOUSA
NOGUEIRA e MIRANDA JONES, nos quais foi levantada, por parte de uma autarquia local, a
questão sobre a possibilidade de a autoridade administrativa acoimante se constituir como assistente
na fase judicial do processo de contraordenação. Conduzindo, então, à pergunta: poderá a autoridade
administrativa ocupar a posição de assistente, ou seja, de verdadeiro sujeito processual durante o
recurso de impugnação da sua decisão?
Termino a presente dissertação pela apresentação da minha posição sobre as questões
levantadas, tanto em relação à possibilidade de aplicação da figura do assistente ao Regime Geral das
Contraordenações, a possibilidade de a autoridade administrativa se constituir como assistente e sobre
a posição que a mesma autoridade deve ocupar na fase judicial do processo de contraordenação.
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I
O Processo de Contraordenação
1. Breve Enquadramento Histórico-Constitucional do Direito de Mera Ordenação Social
O Direito de Mera Ordenação Social nasce, entre nós, muito pela mão, desenvolvimentos
doutrinais e anteprojetos de Código Penal do Professor EDUARDO CORREIA (1), manifestando-se
na nossa ordem jurídica através do DL 232/79, de 24 de julho, ainda durante a vigência do Código
Penal de 1886, denotando, no entanto, desde o início um afastamento entre o regime concretamente
criado e os planos do seu maior impulsionador.
Desde logo, EDUARDO CORREIA defendia uma maior aproximação do Direito de Mera
Ordenação Social ao Direito Administrativo, ainda que sancionatório, sendo, por exemplo, avesso à
solução de recurso da decisão administrativa para os tribunais comuns (2). Tendo sido essa a solução
que vingou no diploma concretamente produzido.
Este diploma nascido em julho de 1979, teve difícil acolhimento na ordem jurídica portuguesa,
sendo prontamente alterado, através do DL 411-A/79, de 1 de outubro e pedida a sua declaração de
inconstitucionalidade ao Conselho da Revolução, dando origem ao Parecer n.º 4/81 da Comissão
Constitucional (3), no qual essa inconstitucionalidade não veio a ser declarada.
Em sede do Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, a Comissão pronunciou-se sobre
questões relativas à competência para o processamento das contraordenações e aplicação das coimas
por parte das autoridades administrativas, sobre o recurso e o processo judicial, sobre a
1 EDUARDO CORREIA, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social” in Boletim da Faculdade de Direito de
Coimbra, Vol. XLIX, 1973, Pp. 257 a 281. 2 EDUARDO CORREIA, “Direito Penal…”, Ob. Cit., Pp. 14 e 15: «Por um lado, uma vez assente que cabe à
Administração a aplicação de tais reações, não se vê por que se deva retirar às instâncias administrativas,
normalmente competentes, o controlo da sua legalidade. […]
[…] Depois, e isso parece decisivo, admitir um recurso para os tribunais comuns, seria, afinal, criminalizar decisões
que, justamente, se quer que não tenham o sentido das sentenças penas criminais. Para além de que se voltaria,
afinal, a massificar a competência destes tribunais, inconveniente que, desde sempre, fomentou a descriminalização
do direito e constituiu ponto de partida das críticas à hipertrofia da legislação criminal extravagante.» 3 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º Vol., INCM, Lisboa,
1983, Pp. 205 a 272.
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constitucionalidade da competência dos tribunais judiciais para conhecer dos recursos interpostos de
decisões de autoridades administrativas, além de eventual inconstitucionalidade orgânica do diploma.
Em relação à competência das autoridades administrativas para o processamento de
contraordenações e aplicação de coimas, pronunciou-se a Comissão Constitucional no sentido de que
não existiria qualquer inconstitucionalidade na assunção dessas funções por parte das autoridades
administrativas, uma vez que, quer o ilícito contraordenacional, quer a coima se tratavam de matérias
do foro administrativo (4). Já no que respeita à constitucionalidade da competência dos tribunais
judiciais para apreciar o recurso das decisões administrativas, a Comissão Constitucional pronunciou-
se no sentido de que tal não configuraria inconstitucionalidade já que não se trataria de um verdadeiro
recurso, mas de uma impugnação de decisão sancionatória sem caráter definitivo, «atribuindo-se
plena jurisdição aos tribunais encarregados de julgar as questões de facto e de direito relativas ao
domínio do ilícito de mera ordenação social» (5). Não tendo esta Comissão encontrado também
qualquer inconstitucionalidade orgânica no DL 232/79, de 24 de julho.
Em síntese, a Comissão Constitucional, entendeu que o referido diploma apenas se encontraria
ferido de inconstitucionalidade caso vedasse o acesso aos órgãos judiciais para controlo da decisão
final condenatória:
«Não obstante todas as dificuldades doutrinais que possam subsistir acerca da natureza do
ilícito de mera ordenação social e todas as dúvidas pertinentes acerca da possibilidade de
encontrar uma diferença de grau entre este ilícito e o ilícito criminal ou penal de justiça – e já
sem aludir à problemática da bondade da solução, do ponto de vista de política legislativa
acerca da autonomização deste ramo de direito – supomos que não há nenhum preceito
constitucional ou de direito internacional convencional que impeça de forma perentória que o
legislador adote como solução a administrativização no âmbito do ilícito de mera ordenação
social, desde que fiquem salvaguardados os recursos aos órgãos judiciais.» (6)
No plano da doutrina, refiro apenas a título de exemplo que TEREZA BELEZA salientava
que sendo o Direito de Mera Ordenação Social um «sistema sancionatório que põe em causa, da
mesma forma que o direito penal, os direitos e garantias individuais» (7), deveriam ser transportados
4 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 254 e 255. 5 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 259. 6 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 255. 7 TEREZA BELEZA, Lições de Direito Penal, I, Ap. Ud., ALEXANDRA VILELA, O Direito de Mera Ordenação
Social, Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.ª Ed., Coimbra Editora,
Coimbra, março de 2013, Pp. 338.
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para este tipo de Ilícito os princípios constitucionais do direito penal, com especial ênfase para a
aplicação de sanções pelos tribunais e a proibição de responsabilização objetiva.
Em 1982, a Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, veio alterar o então art. 168.º da
CRP, que corresponde ao atual art. 165.º, introduzindo na reserva de competência relativa da
Assembleia da República os atos de ilícito de mera ordenação social e o seu processo.
Também em 1982, o DL 232/79, de 24 de julho, viria a ser revogado pelo DL 433/82, de 27
de outubro, por aquele que é, ainda atualmente, o Regime Geral das Contraordenações ou Ilícito de
Mera Ordenação Social. Este diploma conheceu, ao longo do tempo, desenvolvimentos específicos,
setoriais, de acordo com as diferentes áreas e domínios da sua aplicação, como por exemplo no
domínio fiscal, estradal, laboral, ambiental, entre muitos outros.
O Ilícito de Mera Ordenação Social, nasceu no contexto do movimento de descriminalização,
como alternativa à excessiva intromissão do Direito Penal na sociedade, de forma a que este pudesse,
de facto, ocupar o seu papel de ultima ratio. Foi, muito sumariamente, neste contexto e com este
objetivo, que nasceu este tertium genus de direito público sancionatório cuja natureza ainda hoje
suscita discussões doutrinárias e jurisprudenciais.
Trata-se de um processo complexo, com uma estrutura organicamente administrativa na sua
primeira fase e judicial no momento de impugnação da decisão condenatória. Encontrando-se a
sindicância desta decisão nas mãos dos tribunais judiciais e não no foro administrativo. Não sendo o
escopo deste trabalho a discussão da distinção entre o Direito Contraordenacional e o Direito Penal,
é, no entanto, útil referir que se tratam, de facto, de ramos diferentes dentro do direito público
sancionatório. Considero, portanto, conforme mencionado acima e na senda de MÁRIO GOMES
DIAS (8) que o Direito de Mera Ordenação Social não é nem Direito Administrativo, nem Direito
Penal, mas sim uma terceira via, um verdadeiro Tertium Genus dentro do Direito Público
Sancionatório.
É de salientar que, através da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho, o legislador
constitucional veio assumir uma maior aproximação do Direito de Mera Ordenação Social à ciência
do direito penal através do aditamento, à data, do n.º 8 ao art. 32.º da CRP, que corresponde hoje ao
n.º 10 do mesmo artigo, no qual se pode ler que nos processos de contraordenação, são assegurados
ao arguido os direitos de audição e defesa, tendo mantido como epígrafe desse artigo «Garantias
8 MÁRIO GOMES DIAS, “Breves Reflexões Sobre o Processo de Contraordenação”, in Contraordenações, Notas e
Comentários ao DL n.º 433/82, de 27 de outubro, Escola Superior de Polícia, Lisboa, 1.ª Ed., outubro de 1985.
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de Processo Criminal». Sem que essa “maior aproximação” signifique identidade de natureza, não se
aplicando ao Direito de Mera Ordenação Social todos os princípios constitucionais da constituição
penal.
Quanto aos princípios constitucionais aplicáveis no processo de contraordenação, começa por
escrever JOÃO SOARES RIBEIRO (9):
«A primeira e fundamental razão por que se não podem considerar em vigor na fase
administrativa do processo contraordenacional as regras dominantes no processo de tipo
inquisitório é porque a tanto se opõe a Constituição através das suas normas, designadamente
as constantes do artigo 32.º, e dos princípios que as regem.»
Desde logo, tem de se considerar que ao processo de contraordenação, na fase administrativa
se aplica o Princípio da Constitucionalidade, estribado no art. 266.º da CRP que determina que a
Administração Pública prossegue um interesse público, respeitando os direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, sendo esse princípio diretamente aplicável a toda a sua atuação
por ação do art. 18.º da CRP, e ao Princípio da Igualdade, plasmado no art. 13.º da CRP. Encontra-se
a Administração também vinculada ao Princípio da Legalidade, previsto também no art. 266.º e no
art. 3.º da CRP, significando este princípio que, no âmbito do processo, tem a Administração de
respeitar todas as normas jurídicas que limitam os seus poderes, estando este princípio expressamente
consagrado no Regime Geral das Contraordenações, no seu art. 43.º, não se permitindo, portanto, à
Autoridade Administrativa qualquer juízo de oportunidade na instauração ou não de procedimento de
contraordenação quando a infração seja conhecida. Enquadram-se também aqui os Princípios da
igualdade e imparcialidade que se devem encontrar subjacentes a toda a atuação da Administração.
A este leque, acrescem ainda os Princípios da Imparcialidade decorrente do art. 266.º, n.º 2 da
CRP, devendo a atuação da autoridade administrativa ser objetiva e isenta, sem qualquer tipo de
favoritismo; da Oficialidade, devendo a autoridade administrativa atuar de forma oficiosa sempre que
tenha conhecimento de uma infração; do Contraditório, sendo este um dos princípios fundamentais
do direito processual penal, tendo ao longo do tempo passado a integrar o núcleo essencial de qualquer
processo sancionatório, assentando na ideia de que ninguém deve ser condenado sem ter tido
conhecimento dos factos que lhe são imputados e oportunidade de defesa, encontrando-se previsto
no art. 50.º do Regime Geral das Contraordenações; e, finalmente, o da Verdade Material.
9 JOÃO SOARES RIBEIRO, Contraordenações Laborais – Regime Jurídico Anotado Contido no Código do
Trabalho, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, novembro de 2003, Pp. 146.
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Não se encontrando no Regime Geral das Contraordenações muitas regras relativas à
aquisição e produção de prova no processo contraordenacional, concordo com MÁRIO GOMES
DIAS quando refere que «por força do art. 41.º, n.º 1 têm inteira aplicação os preceitos contidos na
legislação processual penal sobre esta matéria.» (10)
Por ação do art. 32.º, n.º 10 da CRP, são aplicáveis, ao longo de todo o processo
contraordenacional, os direitos de audição e defesa do arguido, bem como da jurisdicionalidade,
consagrado no art. 20.º da CRP, que não se encontra violado pela possibilidade de o arguido recorrer
aos tribunais para controlo da decisão sancionatória que lhe seja aplicada, momento em que lhe será
concedido novamente direito de audição e defesa.
2. Fases do Processo Contraordenacional
2.1. Fase Administrativa do Processo de Contraordenação
Dispõe o art. 33.º do Regime Geral das Contraordenações, DL 433/82, de 27 de outubro, na
mais recente redação dada pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro, que “o processamento das
contraordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades
administrativas, ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma” (11).
Conjugando este artigo com o 41.º, n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal, depressa se conclui que
a natureza desta primeira fase do processo de contraordenação, apesar de apelidada de
“administrativa” mais se aproxima de um processo de natureza penal, embora não judicial. Tal
conclusão facilmente se extrai da letra do artigo referido, no qual se estabelece que as autoridades
administrativas têm os mesmos direitos e encontram-se sujeitas aos mesmos deveres das entidades
10 MARIO GOMES DIAS, “Breves Reflexões…”, Ob. Cit., Pp. 138. 11 Ou seja, quando se verifique a existência de concurso de crime e contraordenação (art. 38.º), caso em que o
processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo crime, ou quando a autoridade
administrativa considere que a infração constitui um crime (art. 40.º), caso em que o processo deverá ser remetido ao
Ministério Público.
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competentes para o processo criminal (12), sendo, por imposição constitucional, assegurados ao
arguido os direitos de audiência e defesa, logo desde esta primeira fase (13).
Este procedimento tem início oficiosamente, com a participação das autoridades policiais ou
fiscalizadoras, ou ainda através de denúncia particular, terminando com a decisão final que pode ser
de arquivamento ou condenatória. No caso desta última devem ser respeitados os requisitos
plasmados no art. 58.º do Regime Geral das Contraordenações, podendo haver lugar à aplicação de
sanções acessórias além da aplicação de coima.
Assim, cabe à autoridade administrativa nesta primeira fase toda a investigação e
instrução do processo. Ou seja, toda a tramitação conducente à formação da decisão final de
arquivamento ou condenação é efetuada pela autoridade administrativa, sem prejuízo da possibilidade
dessa autoridade confiar, totalmente ou em parte, a investigação e instrução às autoridades policiais
ou contar com a colaboração de outras autoridades ou serviços públicos, de acordo com o estipulado
no art. 54.º do Regime Geral das Contraordenações. Não lhe sendo, portanto, aplicável a estrutura
acusatória associada a um processo de natureza penal, nem o princípio da judicialização da instrução
plasmado no n.º 4 do art. 32.º da CRP.
Em suma, a Autoridade Administrativa assume a posição de dominus do processo de
contraordenação nesta primeira fase.
2.2. Fase Judicial do Processo de Contraordenação
Outro argumento no sentido de, em processo de contraordenação, o papel da autoridade
administrativa mais se assemelhar ao das entidades competentes para o processo criminal é que da
decisão condenatória, bem como dos despachos e demais medidas tomadas pela autoridade
administrativa no decurso do processo, cabe recurso para os tribunais judiciais e não para os
tribunais administrativos, conforme estipulado no art. 59.º do referido diploma legal. Assim se
iniciando a denominada fase judicial do processo de contraordenação.
12 No mesmo sentido, ALEXANDRA VILELA; O Direito de Mera Ordenação Social…” 13 Art. 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Artigo este que trata das Garantias do Processo
Criminal, tendo o legislador constitucional optado por regular os direitos do arguido em processo de contraordenação
(e processos sancionatórios em geral) sob esta epígrafe e não no Título dedicado à Administração Pública.
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Nesta fase, o recurso de impugnação deve ser apresentado à autoridade administrativa que
aplicou a coima, devendo esta proceder ao envio dos autos ao Ministério Público que os tornará
presentes ao juiz (14). Este ato vale como acusação. Ou seja, não é atribuído o valor de acusação
apenas à decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, mas sim a todo o processo
coligido durante a fase administrativa do processo. (15)
Ao receber os autos, o Ministério Público deve proceder ao saneamento do processo:
«– [...] nomeadamente, apreciar alguma questão que considere relevante para o processo. Ex:
solicitar à autoridade administrativa elementos sobre a notificação do arguido de modo a
apreciar se o recurso está em prazo, solicitar a indicação de provas ou de outros elementos que
entenda faltar na decisão administrativa;
– Indicar as provas, caso remeta o processo para julgamento – art. 72.º, n.º 1. “Compete ao
Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a
decisão.» (16)
Quando exista interposição de recurso de impugnação da decisão condenatória proferida pela
autoridade administrativa (17), deve essa autoridade proceder ao envio dos autos ao Ministério Público
junto do tribunal competente para conhecer do recurso no prazo de 5 dias. Até ao momento desse
envio, a autoridade administrativa tem a faculdade de revogar a decisão de aplicação da coima.
Ao receber os autos, o Ministério Público torná-los-á presentes ao juiz, sendo que este ato vale
como acusação. Ou seja, todo o processo tramitado pela autoridade administrativa tem o valor
de acusação na fase judicial e não apenas a decisão final condenatória, embora seja esta que
encerra o conteúdo recorrível.
Poderá então o juiz rejeitar, por meio de despacho, o recurso caso o considere intempestivo,
ou com fundamento em desrespeito pelas exigências de forma. Quando o recurso seja aceite, pode o
14 Tendo a autoridade administrativa, até ao envio dos autos ao Ministério Público, a possibilidade de revogar a decisão
impugnada. 15 No mesmo sentido, ALEXANDRA VILELA; O Direito de Mera Ordenação Social…”, Ob. Cit., Pp. 386. 16 ANA CRISTINA AFONSO; Aspetos Práticos Sobre Processo de Contraordenação; Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público; disponível em: http://www.smmp.pt/ 17 Que deve ser interposto por escrito, apresentado à autoridade administrativa acoimante, no prazo de 20 dias úteis
após o conhecimento da decisão pelo arguido.
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juiz proferir a sua decisão por simples despacho nos casos em que a tal possa haver lugar (18) ou, em
regra, deve proceder à marcação de audiência de julgamento.
É estabelecido no art. 65.º-A do Regime Geral das Contraordenações que, até à sentença em
1ª instância, ou até ser proferido o despacho previsto no art. 64.º, n.º 2, pode o Ministério Público
retirar a acusação bastando para tal que obtenha o acordo do arguido. No n.º 2 do artigo é referido
que a autoridade administrativa deve ser ouvida, no entanto não se postula uma obrigatoriedade de o
fazer, podendo preterir essa formalidade quando considere que tal não é indispensável a uma
adequada decisão. Não se prevendo, em ponto nenhum do Regime Geral das Contraordenações,
que a autoridade administrativa possa reagir quanto a esta preterição.
Por seu lado, é também permitido ao arguido a retirada do recurso até à sentença em 1ª
instância ou até ao despacho que decida a causa, sendo que após o início da audiência de julgamento
se exige o acordo do Ministério Público.
Quanto à participação do arguido na audiência, o mesmo não é obrigado a comparecer a menos
que o juiz considere que a sua presença é necessária ao esclarecimento dos factos. Caso o arguido
não compareça na audiência, nem se faça representar por advogado, serão tomadas em conta as
declarações já prestadas na fase administrativa do processo de contraordenação, ou será registado que
o arguido nunca se pronunciou sobre a matéria dos autos e julgar-se-á a causa.
Em relação ao papel do Ministério Público, o mesmo deve estar presente na audiência
de julgamento, sendo a esta entidade que cabe promover a prova de todos os factos que
considere relevantes para a decisão (19).
Já no que respeita às autoridades administrativas, estabelece o art. 70.º do Regime Geral das
Contraordenações que «o tribunal concederá às autoridades administrativas a oportunidade de
trazerem à audiência os elementos que reputem convenientes para uma correta decisão do caso,
podendo um representante daquelas autoridades participar na audiência», o mesmo acontecendo
quando o processo seja arquivado. Estabelece-se igualmente que a data da audiência, a sentença e
demais decisões finais lhe devem ser comunicadas.
Assim, da letra da lei, retira-se apenas que é dada à autoridade administrativa a
possibilidade de trazer à audiência os elementos que considere necessários para a produção de
uma correta decisão do caso. Não lhe sendo atribuído qualquer papel em concreto no decorrer dessa
18 Nos casos previstos no art. 64.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações. 19 Representando o Estado, conforme determinado no Estatuto do Ministério Público, Lei n.º 47/86, de 15 de outubro,
nos seus artigos 1.º e 3.º, n.º 1, al. a).
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17
audiência, nem se especificando se os tais “elementos que reputem convenientes para uma correta
decisão do caso” deverão ser distintos dos já constantes dos autos, ou seja, da acusação, ou se, por
outro lado, se poderão restringir ao reforçar dos elementos já obtidos na primeira fase do processo
contraordenacional ou a esclarecimentos técnicos.
3. Conclusões do Capítulo
Em relação ao contexto histórico e constitucional do Direito de Mera Ordenação Social, este
surgiu em 1979 através do DL 232/79, de 24 de junho cuja aceitação não foi pacífica. Este diploma
vinha incorporar no âmbito no Ilícito de Mera Ordenação Social as contravenções e transgressões
vigoravam no nosso ordenamento jurídico, retirando-as do domínio penal em que se inseriam.
Esse diploma foi prontamente alterado e teve a sua constitucionalidade escrutinada logo em
1981, através de Parecer da Comissão Constitucional que, apesar dos argumentos apresentados nesse
sentido, não declarou a inconstitucionalidade do diploma.
Veio o mesmo a ser revogado em 27 de outubro de 1982 pela publicação do DL 433/82 que
regula ainda hoje o Ilícito de Mera Ordenação Social.
Os princípios que deram origem à primeira versão do Direito de Mera Ordenação Social entre
nós não abandonaram este ramo do Direito Público Sancionatório neste segundo diploma. Manteve-
se o propósito de autonomia deste ramo face ao Direito Penal e Processual Penal, por forma até a
garantir que a intervenção penal do Estado se manteria, conforme desejável, numa lógica de garantia
do mínimo ético e da intervenção mínima na vida em sociedade.
Este Ilícito de Mera Ordenação Social, como o próprio nome indica, visa essencialmente
salvaguardar aspetos da vida coletiva que foram, ao longo do tempo, ganhando relevância nas
sociedades modernas, como sejam a cultura, o ambiente, o sistema financeiro, o trabalho, entre outros.
Delineou-se então este processo de contraordenação como uma forma mais célere de sanção
de comportamentos indesejáveis, mas sem dignidade penal, tendo como escopo a defesa de interesses
coletivos do Estado e não se coadunando, portanto, com a defesa de interesses particulares.
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18
A nível constitucional, na Revisão Constitucional de 1982 foi o então artigo 168.º da CRP
(atual 165.º) alterado de modo a introduzir na reserva de competência relativa da Assembleia de
República os atos relativos ao Ilícito de Mera Ordenação Social.
Já na revisão constitucional de 1989 houve uma aproximação do Direito de Mera Ordenação
Social ao Direito Criminal, enquadrando-o como constitucionalmente mais próximo deste do que do
Direito Administrativo, através da introdução do n.º 8 do art. 32.º da CRP (atual n.º 10 do mesmo
artigo), no qual se consagram os direitos de audição e defesa do arguido em qualquer fase do processo
de contraordenação, bem como em qualquer processo público de caráter sancionatório, mantendo-se
a epígrafe desse artigo «Garantias do Processo Criminal».
No que concerne os princípios constitucionais aplicáveis ao processo de contraordenação, de
forma sumária, os mesmos serão o Princípio da Constitucionalidade; da Igualdade; Legalidade;
Imparcialidade; do Contraditório; da Verdade Material e da Jurisdicionalidade.
O Regime Geral das Contraordenações, trouxe ao nosso ordenamento jurídico um processo
complexo que assenta na fusão entre duas fases distintas, uma fase organicamente administrativa, no
âmbito da qual o processo é tutelado pela autoridade administrativa a que a lei confira competência
para o processamento da contraordenação e uma segunda fase organicamente judicial que
corresponde à possibilidade de impugnação dessa decisão condenatória administrativa para os
tribunais comuns.
Em suma, na fase denominada de “administrativa” do processo de contraordenação, cabe à
autoridade administrativa toda a tramitação do processo, desde o seu início, toda a investigação e
instrução do processo. O que compreende, necessariamente, a audição de testemunhas e do próprio
arguido. Terminando esta fase com o proferimento de decisão final pela mesma entidade que é a
titular do processo de contraordenação.
A autoridade administrativa goza dos mesmos direitos e deve obedecer aos mesmos deveres
que as entidades competentes para o processo penal, nos termos do art. 41.º, n.º 2 do RCGO, o que,
aliado à competência dos tribunais judiciais para a interposição do recurso da decisão daí resultante,
contribui para o entendimento de que a primeira fase do processo contraordenacional se aproxima
mais do direito sancionatório de natureza penal do que do direito administrativo, embora não se
identifique com nenhum deles.
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19
O ato de envio dos autos ao Ministério Público após a interposição de recurso de impugnação
vale como acusação. Ainda que com especial incidência na decisão final condenatória, não deixa de
se entender como acusação todo o processo coligido pela autoridade administrativa e não apenas à
decisão final recorrida, o que reforça a posição de investigador e decisor na primeira fase atribuída à
autoridade administrativa.
O Regime Geral das Contraordenações atribui à autoridade administrativa o direito de
participar na audiência na fase judicial, não mencionando outro tipo de intervenção por parte desta
entidade durante essa fase do processo. É certo que se determina que esta autoridade deve ser ouvida
nos casos em que o Ministério Público decida retirar a acusação, no entanto não existe qualquer
consequência para a preterição dessa formalidade, não podendo a autoridade administrativa reagir
contra essa preterição, estando-lhe vedado o direito de recurso.
Sendo o Ministério Público o representante do Estado, é a este que cabe a produção de prova
no contexto da fase judicial do processo, concedendo-se à autoridade administrativa o direito de
participação na audiência, nos termos do art. 70.º do DL 433/82, de 27 de outubro.
Esta possibilidade de participação na audiência por parte da autoridade administrativa traduz-
se na possibilidade de a mesma poder trazer à audiência os elementos que considere necessários à
boa decisão do caso, não especificando a lei em que se materializa essa participação.
Tem sido defendido que a autoridade administrativa, na audiência de julgamento, não será
equiparada a uma testemunha, não depondo como tal nem tendo as mesmas obrigações legais,
podendo ser apresentado um funcionário dessa autoridade como “representante” e um outro como
testemunha. Entendendo-se que a sua participação na audiência de julgamento visa o auxílio técnico
ao Ministério Público e ao Tribunal pelos conhecimentos técnicos e capacidades profissionais que a
mesma em princípio terá.
No entanto, a configuração exata dessa participação da autoridade administrativa não se
encontra cabalmente definida no Regime Geral das Contraordenações, abrindo-se, assim, a porta para
diferentes entendimentos, desde a equiparação desta ao mandatário do arguido à possibilidade da sua
constituição como assistente, já que a lei diz-nos apenas que é dada à autoridade administrativa a
possibilidade de trazer à audiência os elementos que considere necessários à produção de uma correta
decisão do caso.
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20
Assim, fica por saber qual será concretamente a posição ocupada pela autoridade
administrativa na fase judicial do processo de contraordenação. Questão a que procurarei responder
infra.
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21
II
A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo Contraordenacional
1. O Direito de Participação da Autoridade Administrativa
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA (20), na anotação ao art. 70.º do Regime Geral das
Contraordenações, sob a epígrafe «Participação das Autoridades Administrativas», entende que da
primeira parte do n.º 1 resulta que a faculdade conferida à autoridade administrativa para
oferecimento de prova deverá ser tida como análoga ao estabelecido no art. 315.º, n.º 1 do Código de
Processo Penal. O que significa que a autoridade administrativa deverá, querendo, apresentar a prova
pretendida no prazo de 20 dias contados do despacho que designou data para a audiência. Entendendo,
também, que a participação em sede de audiência deve ocorrer de forma equiparada ao mandatário
do arguido, ou seja, podendo o representante da autoridade administrativa inquirir testemunhas e
produzir alegações.
FREDERICO COSTA PINTO, entende que, em regra, os interesses representados pela
autoridade administrativa e pelo Ministério Público são coincidentes, sendo desejável uma
colaboração recíproca. No entanto, na audiência de julgamento, defende que o papel da autoridade
administrativa é mais específico, podendo oferecer elementos que considere relevantes para a boa
decisão do caso, colaborando tanto com o Ministério Público como com o Tribunal. Concordando
com ANTÓNIO BEÇA PEREIRA no tocante à equiparação da autoridade administrativa ao
mandatário do arguido em termos de direitos e deveres, discordando apenas quanto à produção de
alegações finais. Neste particular, considera o Autor que as alegações finais ficarão a cargo do
Ministério Público, podendo, de todo o modo, a autoridade administrativa expor ao Tribunal a sua
apreciação das questões que consideres relevantes para a decisão da causa, nomeadamente, quanto à
área técnica da sua competência (21).
20 ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral das Contraordenações e Coimas Anotado, 8.ª Ed., Almedina, Coimbra,
setembro de 2009, Pp. 176 21 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Jurisprudência Sobre Contraordenações no Âmbito dos Mercados
de Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, junho de 2000, Pp.
164 e 165.
-
22
Por seu lado, também na anotação ao art. 70.º, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE (22)
refere que a autoridade administrativa não tem o estatuto de testemunha, não depondo como tal, nem
tendo as mesmas obrigações legais. O que conduz à conclusão que a autoridade administrativa poderá
indicar um seu funcionário como “representante”, ao mesmo tempo que apresenta outros funcionários
que tenham assistido à infração como testemunhas.
O Autor enquadra a participação da autoridade administrativa na audiência como tendo uma
“atividade processual acessória do Ministério Público”:
«O representante da autoridade administrativa tem uma atividade processual acessória do
Ministério Público, uma vez que a “acusação” assenta na decisão da autoridade administrativa
e, portanto, o Ministério Público assume a defesa dos interesses públicos tutelados pela
administração pública e cristalizados na “acusação”. Destarte, cabe ao Ministério Público
definir a estratégia da “acusação” na fase judicial do processo contraordenacional, o que
também significa que o representante da autoridade administrativa não pode ter uma
atividade processual autónoma do Ministério Público na fase judicial do processo
contraordenacional, desempenhando antes um papel de assessoria técnica, dada a
especialidade dos seus conhecimentos e capacidades profissionais.» (23)
Parece, então, que o legislador pretendeu atribuir à autoridade administrativa, que, recorde-
se, se trata do julgador da primeira fase deste processo, o papel de mero coadjuvante do tribunal e
não a qualidade de sujeito processual como o são o Arguido e o Ministério Público.
Todavia, este entendimento não é pacífico, surgindo, assim, a questão sobre qual é, de facto,
o papel da autoridade administrativa nesta fase judicial do processo de contraordenação.
Poderá esta autoridade constituir-se como assistente e assumir, deste modo, o papel de
verdadeiro sujeito processual?
22 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à Luz da Constituição
da República e da Convenção dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, outubro de 2011, Pp.
284 – 288. 23 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, Ob. Cit., Pp. 285.
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23
2. A Aplicação Subsidiária dos Preceitos de Processo Criminal ao Ilícito de Mera Ordenação
Social – A Figura do Assistente em Especial
Nos termos do art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações, o direito subsidiariamente
aplicável a este processo é o direito processual penal. No entanto, o referido preceito legal não
determina uma aplicabilidade em bloco do Código de Processo Penal, mas apenas na parte que não
contrarie o Regime Geral das Contraordenações. Tal entendimento encontra-se, além da consagração
legal, também plasmado na jurisprudência constitucional, por exemplo, no Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 659/2006 (24):
«Dentre os processos sancionatórios é o processo contraordenacional um dos que mais se
aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa
ser equiparado.
Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não
aplicabilidade direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais
próprios do processo criminal, desde logo o princípio da judicialização da instrução
consagrado no n.º 4 do artigo 32.º (neste sentido Acórdão n.º 158/92). A diferença de
“princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a
legislação penal e a legislação das contraordenações” reflete-se no “regime processual próprio
de cada um desses ilícitos”, não exigindo um “automático paralelismo com os institutos e
regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de
conformação legislativa própria do legislador”, por exemplo, a não atribuição ao assistente
(admitindo que a lei consente em processo contraordenacional esta figura) de legitimidade
para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações
apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão n.º 344/93).»
Também no sentido da autonomia entre o Direito de Mera Ordenação Social e o Direito Penal
se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 11 de abril de 2012, cujo relator foi
JOAQUIM GOMES, no qual se defende que em consequência desta diferente natureza, não são os
princípios e as regras de processo penal automaticamente aplicáveis ao Direito das Contraordenações,
estribando este entendimento nas posições veiculadas pelo Tribunal Constitucional nos seus diversos
24 Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt
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24
acórdãos (25), bem como no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, de 28 de novembro
de 2002, publicado no DR n.º 21/2003, Série I-A, em 25 de janeiro de 2003.
Nesta fase judicial o processo de contraordenação conduzido anteriormente pela autoridade
administrativa vale, no seu todo, como acusação. Ou seja, o juiz irá avaliar não apenas a decisão
condenatória, mas todo o processado. O que acaba por ultrapassar os poderes normais de cognição de
um tribunal de recurso. É neste contexto que se determina nova produção de prova, nos termos do
art. 72.º do Regime Geral das Contraordenações. Podendo o resultado final da audiência de
julgamento ser de arquivamento ou absolvição do arguido e não apenas de manter ou revogar a
decisão proferida pela autoridade administrativa.
Determina o art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações que as disposições reguladoras
do processo penal são aplicáveis ao processo contraordenacional, mutatis mutandis e sempre que o
contrário não resulte do próprio Regime Geral das Contraordenações. Ou seja, as disposições de
processo penal serão aplicáveis ao Ilícito de Mera Ordenação Social sempre que nele existam
omissões e não haja motivo que obste a essa aplicação e não de forma automática.
Importa, na presente Dissertação, fazer uma breve exposição sobre a figura do Assistente no
Processo Penal português de modo a aferir, adiante, se essa subsidiariedade do Direito Processual
Penal permite o acolhimento da figura do assistente no âmbito do Ilícito de Mera Ordenação Social.
No processo penal, o assistente surge como sujeito processual, sendo o seu regime regulado
nos artigos 68.º a 70.º, desde as pessoas e entidades com legitimidade para se constituir como
assistentes, a sua posição processual e atribuições, à representação judiciária. Sendo que ao longo do
diploma legal existem várias referências e normas quanto a este sujeito processual.
Dispõem os artigos 68.º e 69.º do CPP, referentes, respetivamente, à legitimidade para
constituição como assistente e sua posição processual e atribuições:
«Art. 68.º (Assistente):
1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem
leis especiais conferirem esse direito:
25 Dos quais salienta, a título de exemplo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/93, 278/99, 160/2004,
537/2011 e 85/2012, todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt
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25
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei
especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não
separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com
o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adotados,
ascendentes e adotantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma
destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante
legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida,
ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de proteção,
tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua
responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no
crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de
tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de
justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de
poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem
lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º
3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em
que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:
a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;
b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido
para a prática dos respetivos atos.
c) No prazo para interposição de recurso da sentença.
4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se
pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles.
-
26
5 - Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem
correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.»
E
«Art. 69.º (Posição Processual e Atribuições dos Assistentes):
1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja atividade
subordinam a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei.
2 - Compete em especial aos assistentes:
a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se
afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;
b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento
dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;
c) Interpor recurso das decisões que os afetem, mesmo que o Ministério Público o não tenha
feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem
prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.»
Tendo em conta que as alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 68.º do CPP representam apenas uma
extensão de competência para os casos em que o ofendido ou o titular do direito de queixa se
encontrem impossibilitados de se constituir como assistente pessoalmente, temos então que essa
faculdade assiste: ao ofendido, às pessoas de cuja queixa ou acusação particular dependa o
procedimento, ou qualquer pessoa, no leque de crimes previsto na al. e) do n.º 1 do art. 68.º.
A figura que assume maior relevância discutir é a do ofendido, prevista na al. a) do art. 68.º,
n.º 1, à luz do qual se considera como ofendido o titular dos interesses que a lei especialmente quis
proteger com a incriminação.
A qualidade de assistente no processo penal adquire-se através do ato de constituição, que
pode ser requerido por quem se integre em qualquer das categorias referidas no art. 68.º, bem como
quando tal direito seja conferido por legislação especial.
Com maior ou menor autonomia, dependendo se se trata de crime público, semipúblico ou
particular, o papel do assistente é de colaborador do Ministério Público, conforme expressamente
-
27
estipulado pelo legislador no art. 69.º do CPP, sendo, por isso, a atividade daquele sempre
subordinada à atuação deste. (26)
Duma forma muito sumária, por não ser esse diretamente o objeto do presente estudo, importa,
neste ponto, densificar um pouco o conceito de ofendido, entendido pelo art. 68.º, n.º 1, al. a) do CPP
como sendo «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».
Pela definição legal é possível perceber de imediato que não é ofendido qualquer pessoa
que tenha sido prejudicada com o crime, mas apenas quem seja o titular do interesse que
constitui o objeto jurídico imediato do crime, uma vez que o objeto mediato será sempre de
natureza pública (27).
No entendimento de alguma doutrina, é através da norma incriminadora que é possível
entender qual o interesse que a lei quis proteger com a tipificação de um determinado comportamento
como crime (28).
Esta necessidade de uma relação especial entre o particular e o bem jurídico que a norma
incriminatória visa proteger determina necessariamente que nem todos os crimes permitem a
constituição de assistente, uma vez que nem todos os crimes têm ofendido particular.
«Só o terão aqueles cujo objeto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é
titular um particular. Assim, ninguém poderá constituir-se assistente quando o interesse
protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público, como sucede v.g.,
com os crimes contra o Estado, o crime de desobediência, de violação de providências
públicas.» (29)
Tal entendimento é acompanhado, a título de exemplo, por GERMANO MARQUES DA
SILVA (30), encontrando-se também plasmado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do
Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003 (31), segundo o qual quando o interesse imediatamente
26 No mesmo sentido, a título de exemplo: HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 69.º do CPP, Código de Processo
Penal Comentado, Almedina, Coimbra, fevereiro de 2014, Pp. 246; M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES,
Anotação ao art. 68.º do CPP, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I., 2ª Ed. (reimpressão), Editora Rei dos
Livros, Lisboa, agosto de 2004, Pp. 354; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal I Noções
Gerais, Elementos do Processo Penal, 6.ª Ed., Verbo – Babel, novembro de 2010, Lisboa, Pp. 352. 27 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente em Processo Penal – Subsídios para o Estudo das Formas de Intervenção dos
Particulares no Processo” in Scientia Iuridica, Tomo XLV, n.º 262/264, julho – dezembro de 1996, Universidade do
Minho, Pp. 247 e 248. 28 M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES, Anotação ao art. 68.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 356. 29 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 248. 30 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 357. 31 Publicado no Diário da República n.º 49, de 27 de Fevereiro, Série I-A, disponível em http://www.dre.pt
-
28
protegido pela norma incriminatória pertença, ao mesmo tempo, ao Particular e ao Estado, pode o
Particular constituir-se como assistente. Já se o interesse for apenas público não existe
legitimidade para constituição como assistente.
O assistente surge no CPP, conforme foi já referido, como colaborador do Ministério Público,
subordinando à atividade daquele a sua intervenção no processo.
Tal subordinação implica que:
«(…) a iniciativa, projeto, estratégia e direção da investigação permanece intacta na
titularidade do MP (arts. 48.º a 53.º, 262.º e 267.º do CPP). Assim, o assistente pode ter uma
pretensão processual autónoma, independente, porventura diferente ou antagónica
relativamente à do MP, a quem, no entanto estará em princípio subordinado.» (32)
No contexto da fase de julgamento, que é o momento que maior relevância assume na presente
dissertação, o assistente tem o direito de oferecer provas e requerer diligências que considere
necessárias para o apuramento da verdade material, ocorrendo a sua produção de prova após o
Ministério Público nos termos do art. 341.º do CPP. Cabendo-lhe, também, interpor recurso das
decisões que o afetem, ainda que o Ministério Público não o faça, mesmo que de sentenças
absolutórias.
Nas palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA:
«O assistente não exerce autonomamente a ação penal e mesmo quando a sua atuação
condiciona o exercício da ação penal pelo MP não lhe cabem nunca, para além do direito
de acusar, os poderes ou funções do Ministério Público, nomeadamente, os de
investigação na fase de inquérito para fundamentar a acusação.» (33)
É consensual na doutrina que a posição do assistente no processo penal é de colaboração com
o Ministério Público e não de seu par, sendo que os poderes e atribuições que lhe assistem servem
precisamente o propósito de auxílio direto ao Ministério Público, no inquérito, e na apresentação
de outra perspetiva do objeto do processo, participando na discussão, no debate instrutório, no
julgamento e nos recursos, ou seja, de «colaboração indireta com o Ministério Público na busca da
solução justa para cada caso» (34). Ainda que lhe assistam poderes de conformação autónomos, sendo
32 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 249. 33 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 352. 34 Por todos: GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit. Pp. 353.
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29
possível que o assistente divirja do Ministério Público (35), tal não bule com a sua posição de
colaborador.
Destarte, GERMANO MARQUES DA SILVA, numa definição possível de assistente
apresenta-o como:
«(…) o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público
na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido,
de especiais relações com o ofendido pelo crime ou pela natureza do próprio crime.» (36)
A legitimidade para constituição como assistente é hodiernamente alargada, compreendendo
a vítima de crimes difusos, além da vítima/ofendido tout court, conforme resulta da al. e) do n.º 1 do
art. 68.º do CPP.
No entanto, este conceito amplo de ofendido acolhido no art. 68.º do CPP, acaba por não
abandonar a ideia de quase identidade entre assistente e particular (pessoa singular ou pessoa
coletiva) enquanto vítima, em paridade com o arguido, na busca de justiça. (37)
«Os assistentes estão materialmente legitimados pela existência subjacente de interesses,
próprios no caso dos ofendidos, ou de cidadania nos casos referidos na al. e) do n.º 1 do
art. 68.º ou em outras disposições avulsas, a realizar no processo penal; sendo o MP o órgão
constitucional a que compete a realização dos interesses a prosseguir através do exercício
da ação penal – a efetivação da pretensão punitiva do Estado, segundo critérios de legalidade
e por meios processualmente adequados – a intervenção do assistente, que representa
interesses convergentes, só se compreende como auxiliar e colaborador do MP na
prossecução, pelo processo, de interesses que, no rigor, são comuns. Por isso, a intervenção
e a atuação do assistente está subordinada à atividade do MP.» (38)
Em suma, ainda que se tenha vindo a alargar o leque de entidades com legitimidade para
constituição de assistente nalguns tipos de crime, nomeadamente no que toca à defesa de interesses
difusos (39), é importante chamar a atenção para que essas entidades não foram, em momento
35 AUGUSTO SILVA DIAS, “A Tutela do Ofendido e Posição do Assistente no Processo Penal Português” in Jornadas
de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coord. Maria Fernanda Palma, Almedina, Coimbra, junho de
2004, Pp. 55. 36 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, ob. Cit., Pp. 355. 37 AUGUSTO SILVA DIAS, “A Tutela…”, Ob. Cit., Pp. 65. 38 HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 69.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 246. 39 PAULA ARGAÍNHA FONSECA, Sujeitos Processuais e Reforma – A Posição Processual do Assistente, Relatório
de Mestrado em Direito Processual Penal, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005.
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30
algum, titulares do processo em que se constituem como assistentes. Ou seja, não procederam à
instrução do mesmo, recolhendo prova e proferindo decisão final condenatória. É-lhes permitida a
colaboração subordinada ao Ministério Público na tutela de interesses difusos.
Portanto, da breve exposição ora apresentada importa reter que o art. 41.º do Regime Geral
das Contraordenações não determina a aplicabilidade automática de todos os preceitos processuais
penais no contexto do Regime Geral das Contraordenações, ainda que de forma adaptada, mas apenas
daqueles que não o contrariem.
3. O Papel da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de Contraordenação
Neste ponto, cumpre apreciar da concreta aplicabilidade subsidiária dos arts. 68.º e 69.º do
CPP ao Ilícito de Mera Ordenação Social e, em concreto, se a autoridade administrativa se pode
constituir como assistente na fase judicial deste processo.
Com esse fim, tomarei por base os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de
novembro de 1997 (40), cujo Relator foi SOUSA NOGUEIRA e de 20 de maio de 1998 (41), cujo
relator foi MIRANDA JONES. Este último acórdão foi alvo de um comentário por parte de
FREDERICO COSTA PINTO (42), que serve também de alicerce ao presente estudo.
Ambos os acórdãos referidos têm origem em processos de contraordenação instruídos pela
Câmara Municipal do Seixal por violação de legislação relativa ao licenciamento de obras, tendo
sido, na fase administrativa do processo, aplicadas coimas aos arguidos que recorreram dessas
decisões finais condenatórias. Em sede desses recursos, a Câmara Municipal do Seixal requereu ao
Tribunal a sua constituição como assistente de modo a participar da fase judicial do processo na
qualidade de verdadeiro sujeito processual. Também em ambos os casos essa pretensão foi indeferida
pelo tribunal de 1.ª Instância, o que conduziu aos subsequentes recursos para o Tribunal da Relação
com o fundamento de que a autoridade administrativa teria a posição de ofendido e, por isso,
40 Coletânea de Jurisprudência, ano XXII, 1997, Tomo V, Associação Sindical dos Juízes Portugueses. 41 Coletânea de Jurisprudência, ano XXIII, 1998, Tomo III, Associação Sindical dos Juízes Portugueses. 42 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente e o Processo de Contraordenação, Anotação
ao Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de maio de 1998” in RPCC, Ano 12 (1-2), 2002, Pp. 105 a 128.
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legitimidade para a constituição como assistente já que os interesses tutelados pela lei do
licenciamento de obras públicas seriam interesses próprios da Câmara Municipal.
A resposta dada à questão por parte do Tribunal da Relação de Lisboa foi idêntica nestes dois
casos, quer no Acórdão relatado por SOUSA NOGUEIRA, quer no Acórdão cujo relator foi
MIRANDA JONES, considerou o Tribunal da Relação que a autoridade administrativa não tem
legitimidade para se constituir como assistente em processo contraordenacional.
Essa conclusão é alcançada tanto com fundamento no próprio Regime Geral das
Contraordenações e no facto de o mesmo não prever a figura do assistente, devendo essa omissão ser
considerada como intencional por parte do legislador, não sendo de importar para esse Regime Geral
a figura do assistente por via da subsidiariedade do processo criminal prevista no art. 41.º do DL
433/82, como com fundamento na falta de interesse em agir que a Câmara Municipal do Seixal teria
nessa constituição como assistente, uma vez que os interesses em causa não seriam diretamente dessa
autoridade administrativa, mas sim interesse público que a mesma prossegue enquanto parte do
Estado e não em nome próprio, não podendo, assim, ser considerada ofendido para os efeitos de
constituição como assistente.
Destarte, os acórdãos sumariamente descritos levantam, essencialmente, duas questões a que
cumpre dar resposta sobre a fase judicial do processo contraordenacional:
A primeira questão prende-se com a possibilidade de importação da figura do assistente para
o processo comum de contraordenação por via da subsidiariedade do processo penal prevista no
Regime Geral das Contraordenações.
A segunda questão é a de saber se, em caso de aplicação da figura do assistente em sede do
Ilícito de Mera Ordenação Social, a autoridade administrativa poderá ocupar esse lugar.
Existe, no entanto, uma terceira questão a que cumpre responder em sede da presente
dissertação: a de saber qual o concreto papel ocupado pela autoridade administrativa na fase judicial
do processo de contraordenação.
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3.1 Da Concreta Aplicabilidade Subsidiária da Figura do Assistente ao Regime Geral das
Contraordenações
Conforme expendido supra (43), o assistente em processo penal é uma figura com contornos
muito próprios e uma posição processual singular. Enquadrado enquanto colaborador do Ministério
Público, o assistente acaba por ter um papel de especial relevo nos crimes particulares, já que neste
caso o próprio Ministério Público depende da sua constituição e acusação particular, sem as quais
não tem legitimidade para prosseguir a ação penal (44).
O assistente é mais do que um participante processual, é um sujeito processual a par com o
arguido e o Ministério Público. A legitimidade para constituição como assistente assenta, conforme
já referido, quase em exclusivo na qualidade de ofendido. Ou seja, de titular do interesse que a lei
especialmente quis proteger com a incriminação, o que, apesar do desenvolvimento e alargamento
do conceito, não deixa de traduzir uma quase identidade entre o ofendido e a vítima (45).
Complementando este quadro geral, é conveniente também salientar que o assistente não
assume nunca os poderes e funções do Ministério Público no contexto do processo penal,
mantendo-se sempre a instrução do processo no domínio do Ministério Público. Mesmo nos casos
em que ao assistente é permitido deduzir acusação particular, sublinhe-se que nunca a decisão final
do processo cabe ao assistente.
Ambos os acórdãos citados, acabam por resolver a questão da possibilidade de constituição
como assistente por parte da autoridade administrativa pela apreciação dos pressupostos de
legitimidade para constituição como assistente e pela decisão no sentido de que a autoridade
acoimante não se poderá constituir como assistente por não preencher esses requisitos.
No entanto, concordo com FREDERICO DA COSTA PINTO (46) quando considera que, antes
mesmo de analisar tais pressupostos e o seu preenchimento pela autoridade administrativa, tem de
43 Ponto 2 deste Capítulo II. 44 Por todos, HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 68.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 240. 45 «(…) a sua participação ativa [dos particulares, na posição de assistente] no processo permite dar-lhe satisfação pela
ofensa sofrida, convencendo-o da efetivação da justiça no caso e trazer ao processo a sua colaboração.», GERMANO
MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 353 46 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 112 ss.
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ser discutida a concreta aplicabilidade da própria figura do assistente no âmbito do Regime
Geral das Contraordenações.
Em primeiro lugar, devem ser tidos em conta os critérios para a aplicação subsidiária do direito
processual penal ao processo de contraordenação.
Foi já largamente demonstrado que existe consenso quanto à não aplicação dos preceitos de
direito processual penal em bloco e de forma automática, mas antes precedida de interpretação no
sentido de determinar da necessidade e admissibilidade de recurso ao regime subsidiário e
posteriormente da adaptação dos preceitos ao contexto ilícito de mera ordenação social.
«Na primeira operação decide-se sobre a possibilidade de aplicar o Direito subsidiário,
enquanto na segunda se decide sobre o conteúdo do Direito subsidiário aplicável. Os dois
momentos são essenciais, mas o primeiro é prejudicial ao segundo: se o aplicador do Direito
chegar à conclusão que não é necessário recorrer ao Direito subsidiário ou que do Regime
Geral das Contraordenações resulta que um certo regime processual penal não é aplicável, a
questão fica resolvida por aí quanto à invocação do Direito subsidiário.» (47)
Ou seja, antes de proceder à “importação” de qualquer figura prevista no processo penal para
o processo de contraordenação, é conveniente saber se a sua não previsão será intencional e se o
preceito em causa se coaduna com a natureza e valores do ilícito de mera ordenação social, de forma
a não o descaraterizar enquanto Direito sancionatório público autónomo do processo penal (48), tendo
presente que o Direito de Mera Ordenação Social nasceu, precisamente, com a ideia de garantir que
o Direito Penal poderia ocupar o seu lugar como ultima ratio de intervenção.
O legislador determina que um determinado conjunto de regras será aplicável a um outro ramo
de direito quando reconhece que existe aproximação entre ambos, tanto a nível estrutural como
material, assumindo, independentemente da verificação de qualquer lacuna, que o corpo de um dos
ramos do Direito pode ser integrado através de outro. É este o caso entre o Direito de Mera Ordenação
Social e o Direito Penal (para a parte substantiva do Regime Geral das Contraordenações, através do
47 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 113. 48 Também no sentido da preservação da autonomia do Direito de Mera Ordenação Social: JORGE FIGUEIREDO
DIAS, “O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social”, in CEJ, Jornadas de Direito
Criminal, Vol. I, Lisboa, 1983 e FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O Ilícito de Mera Ordenação Social
e a Erosão do Princípio da Subsidiariedade da Intervenção Penal”, in RPCC, ano 7, 1997, Pp. 7 a 100. e “Acesso de
Particulares…”, Ob. Cit.
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art. 32.º) e o Direito Processual Penal. Sendo essa afinidade decorrente de ambos constituírem direito
sancionatório público.
No caso concreto da figura do assistente, coloca-se a questão de saber se a sua omissão do
Regime Geral das Contraordenações constitui uma intencionalidade do legislador, ou se, por outro
lado, poderá encontrar ali aplicação por via do art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações.
Ora, o Regime Geral das Contraordenações prevê as figuras e papéis do Tribunal, Ministério
Público, Arguido, Defensor, Testemunhas, Perito e até a Autoridade Administrativa. Não se
encontrando no seu seio qualquer referência ao Assistente ou ao Lesado.
É certo que simples não previsão de um instituto, por si só, não mata a questão já que se
poderia considerar que o legislador não o havia previsto especificamente precisamente por se lhe
aplicarem subsidiariamente as disposições de processo penal, de onde se retira essa figura.
No entanto, creio que tal omissão foi intencional por parte do legislador, não sendo a sua
intenção que o processo contraordenacional comportasse as figuras acima referidas.
Este ponto de vista é sustentado, além da posição expressada por FREDERICO DA COSTA
PINTO (49), na própria natureza do Ilícito de Mera Ordenação Social, cuja estrutura não se encontra
pensada para garantir direitos e interesses particulares, daí não comportar a tutela de qualquer lesão
civil, ao contrário do Direito Processual Penal.
Tal intenção de tutelar apenas interesses coletivos, do Estado, é expressa logo nos preâmbulos
dos diplomas legais do Regime Geral das Contraordenações. No caso do DL n.º 232/79, de 24 de
julho, aí se podia ler que:
«(…) Ora, nenhum Estado que promova a justiça social e que, portanto, desenvolve nesse
sentido uma larga intervenção da Administração, pode atingir os fins que se propõe sem
uma aparelhagem de ordenação social a que corresponde um ilícito e sanções próprias.
É certo que da intervenção do Estado nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura,
ambiente, etc., pode resultar a conformação de infrações tão socialmente danosas e tão
eticamente censuráveis que em tudo se justifique o seu tratamento como autênticos crimes.
Ao que de modo algum se opõe o facto de o direito criminal se destinar reconhecidamente
49 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “Acesso de Particulares…”, Ob. Cit., Pp. 619.
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a tutelar o mínimo ético-social da vida em comum. Tal circunstância não pode fazer
esquecer nem a historicidade dos valores criminais, nem a possibilidade de aquele «mínimo
ético ser enriquecido com a descoberta de novos valores incarnados na prossecução de
certos interesses sociais» (Eduardo Correia, «Direito penal e direito de mera ordenação
social», in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 266).
Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem
sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético-
pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima,
sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, com o sentido
dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às
pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos
corolários do princípio da oportunidade.
Para obviar, contudo, a quaisquer perigos ou abusos, submete-se a aplicação da coima a um
estrito princípio de legalidade e ressalva-se, sem reservas, um direito de defesa e audiência e
um inderrogável direito de recurso para as instâncias judiciais.
(…)
A consagração do regime geral relativo às contraordenações tem como finalidade
imediata permitir à Administração recorrer à cominação de uma coima para garantir a
eficácia dos comandos normativos nos domínios já mencionados.»
Desejando-se desde o início que este regime geral viesse trazer um processo mais simples e
célere que o processo penal atendendo à diferente natureza das suas infrações. Intenção que se
manteve com a revogação daquele primeiro Regime Geral das Contraordenações e sua substituição
pelo atual DL n.º 433/82, de 27 de outubro:
«(…). Resumidamente, o aparecimento do direito das contraordenações ficou a dever-se ao
pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente
alargando a sua ação conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura,
equilíbrios ecológicos, etc. (…). A necessidade de dar consistência prática às injunções
normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as
em regras efetivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de
sanções. Só que tal não pode fazer-se, como unanimemente reconhecem os cultores mais
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qualificados das ciências criminológicas e penais, alargando a intervenção do direito criminal.
Isto significaria, para além de uma manifesta degradação do direito penal, com a
consequente e irreparável perda da sua força de persuasão e prevenção, a
impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas
da prevenção e repressão da criminalidade mais grave. Ora é esta que de forma mais
drástica põe em causa a segurança dos cidadãos, a integridade das suas vidas e bens e, de um
modo geral, a sua qualidade de vida.»
Também FREDERICO DA COSTA PINTO (50), evidencia que o legislador, no Regime Geral
das Contraordenações, não se refere em nenhum momento à existência de lesados civilmente. O que
é demonstrativo de que este processo se encontra pensado ab initio para garantir em exclusivo
interesses públicos e não interesses particulares cumulativamente, acrescentando:
«Os poucos casos em que se conjuga de forma explícita interesses públicos e interesses
privados no processo de contraordenações encontram-se nos regimes especiais de suspensão
da execução da sanção que surgem em legislação contraordenacional do setor financeiro, na
exata medida em que aceita que a reparação ao ofendido pode ser uma das formas de
prosseguir as finalidades das sanções do DMOS. Mas trata-se de soluções especiais,
formuladas com base em lei expressa, pois o RGCords [Regime Geral das Contraordenações]
não contém soluções equivalentes.» (51)
Na esteira de MÁRIO GOMES DIAS (52), entendo também que, enquanto que a fase
organicamente administrativa do Ilícito de Mera Ordenação Social traduz uma forma de
realização da função administrativa do Estado e que a fase organicamente judicial, de que me
ocupo neste ponto, representa a realização da sua função jurisdicional, na primeira fase a
prossecução do interesse público compete à autoridade administrativa, na segunda fase essa função
passa para as mãos do Ministério Público.
Até pela apresentação que foi feita no Ponto 2. do presente capítulo, é possível verificar que
a posição ocupada pela figura do assistente no processo penal não encontra paralelo no Regime Geral
do Processo de Contraordenação, tanto porque não existe, em regra, interesse particular a tutelar,
50 FREDERICO DA COSTA PINTO, “Acesso de Particulares a Processos de Contraordenação Arquivados – Um
Estudo Sobre o Sentido e os Limites da Aplicação Subsidiária do Direito Processual do Direito Processual Penal ao
Processo de Contraordenação” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Vol.
II, Almedina, Coimbra, novembro de 2002, Pp.602 a 624. 51 FREDERICO