Ana Cardoso da Silva Santos - ULisboa · Ana Cardoso da Silva Santos Dissertação de Mestrado em...

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Universidade de Lisboa Faculdade de Direito O Papel das Autoridades Administrativas no Processo Contraordenacional Ana Cardoso da Silva Santos Dissertação de Mestrado em Direito das Contraordenações no Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob a orientação do Prof. Doutor Augusto Silva Dias. FDUL 2017

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  • Universidade de Lisboa

    Faculdade de Direito

    O Papel das Autoridades Administrativas no Processo

    Contraordenacional

    Ana Cardoso da Silva Santos

    Dissertação de Mestrado em Direito das Contraordenações

    no Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, pela

    Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob a

    orientação do Prof. Doutor Augusto Silva Dias.

    FDUL

    2017

  • 1

    Universidade de Lisboa

    Faculdade de Direito

    O Papel das Autoridades Administrativas no Processo Contraordenacional

    Ana Cardoso da Silva Santos

    Dissertação de Mestrado em Direito das Contraordenações no Mestrado

    em Ciências Jurídico-Forenses, pela Faculdade de Direito da

    Universidade de Lisboa, sob a orientação do Prof. Doutor Augusto

    Silva Dias.

    FDUL

    2017

  • 2

    Índice

    .Resumo…………………………………………………………………………………..…………4

    .Abstract……………………………………………………………………………………..……...5

    .Introdução…………………........................................................................................................... 8

    I. O Processo de Contraordenação

    1. Enquadramento Histórico-Constitucional do Direito de Mera Ordenação Social……………...…10

    2. Fases do Processo Contraordenacional…………………………………………………………...14

    2.1. Fase Administrativa do Processo de Contraordenação………………………………………… 14

    2.2. Fase Judicial do Processo de Contraordenação………………………………………………....15

    3. Conclusões do Capítulo………………………………………………………………………..…18

    II. A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo Contraordenacional

    1. O Direito de Participação da Autoridade Administrativa………………………………………....22

    2. A Aplicação Subsidiária dos Preceitos de Processo Criminal ao Ilícito de Mera Ordenação Social

    – A Figura do Assistente em Especial……………………………………………………………….24

    3. O Papel da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de

    Contraordenação……………………………………………...……………………………………. 31

    3.1. Da Concreta Aplicabilidade Subsidiária da Figura do Assistente ao Regime Geral das

    Contraordenações…………………………………………………………………………………...33

    3.2. Da Possibilidade de Constituição como Assistente por Parte da Autoridade

    Administrativa……………………………………………………………………………………....38

    3.3. Da Posição da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de

    Contraordenação………………………………………………………………………………….…47

    3.4. Da Alteração do Regime Geral das Contraordenações Abrindo a Porta à Constituição como

    Assistente por Parte da Autoridade Administrativa – Breve Referência à Posição de Alexandra

    Vilela………………………………………………………………………………………………..57

    4. Conclusões do Capítulo…………………………………………………………………………...60

    III. Conclusão – Posição Defendida……………………………………………………………….68

    .Bibliografia………………………………………………………………………………………...77

  • 3

    Resumo

    A dissertação «O Papel da Autoridade Administrativa no Processo Contraordenacional» consiste

    numa reflexão sobre os diferentes papeis ocupados pela autoridade administrativa no seio do processo

    de contraordenação definido no Regime Geral das Contraordenações.

    Trata-se de um processo complexo, com uma primeira fase organicamente administrativa e uma

    segunda fase organicamente judicial. Durante a primeira fase, a autoridade administrativa tem a seu

    cargo a tramitação do processo, culminando com o proferimento de decisão final que pode ser de

    arquivamento ou condenatória. A segunda fase do processo, a denominada fase judicial, inicia-se com

    a impugnação dessa decisão final condenatória por parte do arguido.

    Na passagem da fase administrativa do processo para a fase judicial, o papel da autoridade

    administrativa tem, necessariamente, de se alterar uma vez que passa de entidade instrutora e decisora,

    para ver a sua decisão sindicada por um tribunal judicial.

    A questão fundamental subjacente a esta dissertação é, então, a de saber qual o papel ocupado pela

    autoridade administrativa na fase organicamente judicial do processo de contraordenação e,

    concretamente, se a mesma se pode constituir como assistente nessa fase do processo.

    Para tanto, assume relevância o estudo da aplicabilidade subsidiária dos preceitos de processo penal

    ao regime geral das contraordenações, em especial a possibilidade de importação da figura do

    assistente no contexto do Direito de Mera Ordenação Social.

    Esse estudo é feito com recurso tanto a posições doutrinárias sobre o tema como decisões

    jurisprudenciais. Neste particular, tomarei por base os Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação

    de Lisboa em 11 de novembro de 1997 e em 20 de maio de 1998, cujos relatores foram,

    respetivamente SOUSA NOGUEIRA e MIRANDA JONES.

    Em ambos os casos, foi levantada a questão sobre a constituição como assistente por parte de uma

    autarquia local (a Câmara Municipal do Seixal) em sede da impugnação judicial de decisões por si

    proferidas em processos de contraordenação.

    No final da presente dissertação apresento a minha posição tanto quanto à possibilidade de

    constituição como assistente por parte da autoridade administrativa, como em relação ao papel que

    considero que a mesma detém na fase judicial do processo de contraordenação.

  • 4

    Palavras-Chave: Contraordenações, Autoridade Administrativa, Assistente, Subsidiariedade,

    Direito Processual Penal.

  • 5

    Abstract

    The dissertation «O Papel da Autoridade Administrativa no Processo Contraordenacional» consists

    of a reflection on the different roles occupied by the administrative authority in the process defined

    in the Regime Geral das Contraordenações.

    It is a complex process, with a first organically administrative phase and a second organically judicial

    phase. During the first phase, the administrative authority is in charge of the process, culminating in

    the final decision that can be to file it or to condemn the accused. The second phase of the process,

    the so-called judicial phase, begins with the challenging of the final conviction by the accused.

    In the transition from the administrative phase of the procedure to the judicial phase, the role of the

    administrative authority must necessarily change once it goes from an instructing and decision-maker

    to see its decision syndicated by a court of law.

    The basic question underlying this dissertation is what role the administrative authority has in the

    organically judicial phase of the misconduct process and whether it can play the role of “assistant” at

    that stage of the procedure.

    Therefore, the study of the subsidiary applicability of the criminal procedure rules to the general

    regime of administrative misconduct, in particular the possibility of importing the assistant figure in

    the context of the Administrative Infractions, is relevant.

    This study is done using both doctrinal positions on the subject and jurisprudential decisions. In this

    regard, I shall take as a basis the judgments given by the Tribunal da Relação de Lisboa on 11

    November 1997 and 20 May 1998, the rapporteurs of which were, respectively, SOUSA NOGUEIRA

    and MIRANDA JONES.

    In both cases, the question was raised about the constitution as an assistant by a local authority (the

    Municipality of Seixal) in the judicial challenge to decisions handed down in cases of administrative

    misconduct.

    At the end of this dissertation, I present my position both as to the possibility of being an assistant to

    the administrative authority, and to the role that I consider the administrative authority to have in the

    judicial phase of the process.

  • 6

    Keywords: Administrative Misconduct, Administrative Authority, Assistant, Subsidiarity, Criminal

    Procedural Law.

  • 7

    Introdução

    O Direito de Mera Ordenação Social surgiu no nosso ordenamento jurídico através do DL n.º

    232/79, de 24 de julho, inspirado no regime alemão e associado a um movimento de

    descriminalização motivado pela crescente intervenção penal na sociedade.

    Este regime foi pensado para existir ao lado do Direito Penal, mas com autonomia em relação

    a ele. Tendo uma natureza diferente, assentando em diferentes princípios e protegendo interesses

    distintos para que o Direito Penal pudesse assumir verdadeiramente o seu papel ultima ratio da

    política criminal, destinando-se a punir as ofensas intoleráveis aos valores e interesses fundamentais

    da convivência humana.

    Ainda que, hoje em dia, com a evolução deste ramo do direito público sancionatório, não se

    possa afirmar que o mesmo se destina à punição de bagatelas penais, o certo é que a sua intenção de

    ser um regime mais célere para sancionar condutas que não acarretam a mesma censura ética e que

    se prendem mais com a organização da vida em comum e da realização de interesses públicos do

    Estado, manteve-se no DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que revogou o anterior regime geral e o veio

    substituir até aos dias de hoje.

    Este regime geral regula o processo das contraordenações, sem prejuízo dos regimes setoriais

    que se foram multiplicando ao longo dos anos, complementando ou alterando o regime geral

    conforme as necessidades e especificidades técnicas de cada setor.

    Na presente dissertação de mestrado pretendo discutir os diferentes papeis ocupados pela

    autoridade administrativa ao longo do processo de contraordenação.

    Se quanto à sua posição na fase organicamente administrativa do processo não restarão

    dúvidas de que é a esta autoridade que cabe tanto a instrução do processo, como a decisão final de

    arquivamento ou de condenação, cabendo-lhe simultaneamente a investigação e a decisão final; já

    não será tão linear o seu papel no recurso de impugnação da sua decisão.

    Com o presente estudo, pretendo contribuir para a análise do papel que deve ser assumido

    pela autoridade administrativa acoimante durante a fase de impugnação judicial da decisão

    condenatória.

  • 8

    Para tanto, no Capítulo I, O Processo de Contraordenação, após um breve enquadramento

    histórico-constitucional do Direito de Mera Ordenação Social, procedo a uma sucinta exposição sobre

    as duas fases do processo contraordenacional e a tramitação do processo em cada uma delas.

    No Capítulo II, A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo

    Contraordenacional, farei uma exposição sobre o alcance e a efetivação do direito de participação da

    autoridade administrativa na fase judicial, que lhe é atribuído pelo art. 70.º do Regime Geral das

    Contraordenações. De seguida apresento também um estudo sobre a aplicação subsidiária dos

    preceitos de processo penal ao Ilícito de Mera Ordenação Social, como especial ênfase na

    aplicabilidade do art. 68.º do CPP, ou seja, da figura do assistente.

    Neste ponto em específico, tomo como base os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa

    de 11 de novembro de 1997 e de 20 de maio de 1998, cujos relatores foram respetivamente SOUSA

    NOGUEIRA e MIRANDA JONES, nos quais foi levantada, por parte de uma autarquia local, a

    questão sobre a possibilidade de a autoridade administrativa acoimante se constituir como assistente

    na fase judicial do processo de contraordenação. Conduzindo, então, à pergunta: poderá a autoridade

    administrativa ocupar a posição de assistente, ou seja, de verdadeiro sujeito processual durante o

    recurso de impugnação da sua decisão?

    Termino a presente dissertação pela apresentação da minha posição sobre as questões

    levantadas, tanto em relação à possibilidade de aplicação da figura do assistente ao Regime Geral das

    Contraordenações, a possibilidade de a autoridade administrativa se constituir como assistente e sobre

    a posição que a mesma autoridade deve ocupar na fase judicial do processo de contraordenação.

  • 9

    I

    O Processo de Contraordenação

    1. Breve Enquadramento Histórico-Constitucional do Direito de Mera Ordenação Social

    O Direito de Mera Ordenação Social nasce, entre nós, muito pela mão, desenvolvimentos

    doutrinais e anteprojetos de Código Penal do Professor EDUARDO CORREIA (1), manifestando-se

    na nossa ordem jurídica através do DL 232/79, de 24 de julho, ainda durante a vigência do Código

    Penal de 1886, denotando, no entanto, desde o início um afastamento entre o regime concretamente

    criado e os planos do seu maior impulsionador.

    Desde logo, EDUARDO CORREIA defendia uma maior aproximação do Direito de Mera

    Ordenação Social ao Direito Administrativo, ainda que sancionatório, sendo, por exemplo, avesso à

    solução de recurso da decisão administrativa para os tribunais comuns (2). Tendo sido essa a solução

    que vingou no diploma concretamente produzido.

    Este diploma nascido em julho de 1979, teve difícil acolhimento na ordem jurídica portuguesa,

    sendo prontamente alterado, através do DL 411-A/79, de 1 de outubro e pedida a sua declaração de

    inconstitucionalidade ao Conselho da Revolução, dando origem ao Parecer n.º 4/81 da Comissão

    Constitucional (3), no qual essa inconstitucionalidade não veio a ser declarada.

    Em sede do Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, a Comissão pronunciou-se sobre

    questões relativas à competência para o processamento das contraordenações e aplicação das coimas

    por parte das autoridades administrativas, sobre o recurso e o processo judicial, sobre a

    1 EDUARDO CORREIA, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social” in Boletim da Faculdade de Direito de

    Coimbra, Vol. XLIX, 1973, Pp. 257 a 281. 2 EDUARDO CORREIA, “Direito Penal…”, Ob. Cit., Pp. 14 e 15: «Por um lado, uma vez assente que cabe à

    Administração a aplicação de tais reações, não se vê por que se deva retirar às instâncias administrativas,

    normalmente competentes, o controlo da sua legalidade. […]

    […] Depois, e isso parece decisivo, admitir um recurso para os tribunais comuns, seria, afinal, criminalizar decisões

    que, justamente, se quer que não tenham o sentido das sentenças penas criminais. Para além de que se voltaria,

    afinal, a massificar a competência destes tribunais, inconveniente que, desde sempre, fomentou a descriminalização

    do direito e constituiu ponto de partida das críticas à hipertrofia da legislação criminal extravagante.» 3 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º Vol., INCM, Lisboa,

    1983, Pp. 205 a 272.

  • 10

    constitucionalidade da competência dos tribunais judiciais para conhecer dos recursos interpostos de

    decisões de autoridades administrativas, além de eventual inconstitucionalidade orgânica do diploma.

    Em relação à competência das autoridades administrativas para o processamento de

    contraordenações e aplicação de coimas, pronunciou-se a Comissão Constitucional no sentido de que

    não existiria qualquer inconstitucionalidade na assunção dessas funções por parte das autoridades

    administrativas, uma vez que, quer o ilícito contraordenacional, quer a coima se tratavam de matérias

    do foro administrativo (4). Já no que respeita à constitucionalidade da competência dos tribunais

    judiciais para apreciar o recurso das decisões administrativas, a Comissão Constitucional pronunciou-

    se no sentido de que tal não configuraria inconstitucionalidade já que não se trataria de um verdadeiro

    recurso, mas de uma impugnação de decisão sancionatória sem caráter definitivo, «atribuindo-se

    plena jurisdição aos tribunais encarregados de julgar as questões de facto e de direito relativas ao

    domínio do ilícito de mera ordenação social» (5). Não tendo esta Comissão encontrado também

    qualquer inconstitucionalidade orgânica no DL 232/79, de 24 de julho.

    Em síntese, a Comissão Constitucional, entendeu que o referido diploma apenas se encontraria

    ferido de inconstitucionalidade caso vedasse o acesso aos órgãos judiciais para controlo da decisão

    final condenatória:

    «Não obstante todas as dificuldades doutrinais que possam subsistir acerca da natureza do

    ilícito de mera ordenação social e todas as dúvidas pertinentes acerca da possibilidade de

    encontrar uma diferença de grau entre este ilícito e o ilícito criminal ou penal de justiça – e já

    sem aludir à problemática da bondade da solução, do ponto de vista de política legislativa

    acerca da autonomização deste ramo de direito – supomos que não há nenhum preceito

    constitucional ou de direito internacional convencional que impeça de forma perentória que o

    legislador adote como solução a administrativização no âmbito do ilícito de mera ordenação

    social, desde que fiquem salvaguardados os recursos aos órgãos judiciais.» (6)

    No plano da doutrina, refiro apenas a título de exemplo que TEREZA BELEZA salientava

    que sendo o Direito de Mera Ordenação Social um «sistema sancionatório que põe em causa, da

    mesma forma que o direito penal, os direitos e garantias individuais» (7), deveriam ser transportados

    4 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 254 e 255. 5 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 259. 6 Parecer n.º 4/81 da Comissão Constitucional, Ob. Cit., Pp. 255. 7 TEREZA BELEZA, Lições de Direito Penal, I, Ap. Ud., ALEXANDRA VILELA, O Direito de Mera Ordenação

    Social, Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, 1.ª Ed., Coimbra Editora,

    Coimbra, março de 2013, Pp. 338.

  • 11

    para este tipo de Ilícito os princípios constitucionais do direito penal, com especial ênfase para a

    aplicação de sanções pelos tribunais e a proibição de responsabilização objetiva.

    Em 1982, a Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, veio alterar o então art. 168.º da

    CRP, que corresponde ao atual art. 165.º, introduzindo na reserva de competência relativa da

    Assembleia da República os atos de ilícito de mera ordenação social e o seu processo.

    Também em 1982, o DL 232/79, de 24 de julho, viria a ser revogado pelo DL 433/82, de 27

    de outubro, por aquele que é, ainda atualmente, o Regime Geral das Contraordenações ou Ilícito de

    Mera Ordenação Social. Este diploma conheceu, ao longo do tempo, desenvolvimentos específicos,

    setoriais, de acordo com as diferentes áreas e domínios da sua aplicação, como por exemplo no

    domínio fiscal, estradal, laboral, ambiental, entre muitos outros.

    O Ilícito de Mera Ordenação Social, nasceu no contexto do movimento de descriminalização,

    como alternativa à excessiva intromissão do Direito Penal na sociedade, de forma a que este pudesse,

    de facto, ocupar o seu papel de ultima ratio. Foi, muito sumariamente, neste contexto e com este

    objetivo, que nasceu este tertium genus de direito público sancionatório cuja natureza ainda hoje

    suscita discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

    Trata-se de um processo complexo, com uma estrutura organicamente administrativa na sua

    primeira fase e judicial no momento de impugnação da decisão condenatória. Encontrando-se a

    sindicância desta decisão nas mãos dos tribunais judiciais e não no foro administrativo. Não sendo o

    escopo deste trabalho a discussão da distinção entre o Direito Contraordenacional e o Direito Penal,

    é, no entanto, útil referir que se tratam, de facto, de ramos diferentes dentro do direito público

    sancionatório. Considero, portanto, conforme mencionado acima e na senda de MÁRIO GOMES

    DIAS (8) que o Direito de Mera Ordenação Social não é nem Direito Administrativo, nem Direito

    Penal, mas sim uma terceira via, um verdadeiro Tertium Genus dentro do Direito Público

    Sancionatório.

    É de salientar que, através da Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho, o legislador

    constitucional veio assumir uma maior aproximação do Direito de Mera Ordenação Social à ciência

    do direito penal através do aditamento, à data, do n.º 8 ao art. 32.º da CRP, que corresponde hoje ao

    n.º 10 do mesmo artigo, no qual se pode ler que nos processos de contraordenação, são assegurados

    ao arguido os direitos de audição e defesa, tendo mantido como epígrafe desse artigo «Garantias

    8 MÁRIO GOMES DIAS, “Breves Reflexões Sobre o Processo de Contraordenação”, in Contraordenações, Notas e

    Comentários ao DL n.º 433/82, de 27 de outubro, Escola Superior de Polícia, Lisboa, 1.ª Ed., outubro de 1985.

  • 12

    de Processo Criminal». Sem que essa “maior aproximação” signifique identidade de natureza, não se

    aplicando ao Direito de Mera Ordenação Social todos os princípios constitucionais da constituição

    penal.

    Quanto aos princípios constitucionais aplicáveis no processo de contraordenação, começa por

    escrever JOÃO SOARES RIBEIRO (9):

    «A primeira e fundamental razão por que se não podem considerar em vigor na fase

    administrativa do processo contraordenacional as regras dominantes no processo de tipo

    inquisitório é porque a tanto se opõe a Constituição através das suas normas, designadamente

    as constantes do artigo 32.º, e dos princípios que as regem.»

    Desde logo, tem de se considerar que ao processo de contraordenação, na fase administrativa

    se aplica o Princípio da Constitucionalidade, estribado no art. 266.º da CRP que determina que a

    Administração Pública prossegue um interesse público, respeitando os direitos e interesses

    legalmente protegidos dos cidadãos, sendo esse princípio diretamente aplicável a toda a sua atuação

    por ação do art. 18.º da CRP, e ao Princípio da Igualdade, plasmado no art. 13.º da CRP. Encontra-se

    a Administração também vinculada ao Princípio da Legalidade, previsto também no art. 266.º e no

    art. 3.º da CRP, significando este princípio que, no âmbito do processo, tem a Administração de

    respeitar todas as normas jurídicas que limitam os seus poderes, estando este princípio expressamente

    consagrado no Regime Geral das Contraordenações, no seu art. 43.º, não se permitindo, portanto, à

    Autoridade Administrativa qualquer juízo de oportunidade na instauração ou não de procedimento de

    contraordenação quando a infração seja conhecida. Enquadram-se também aqui os Princípios da

    igualdade e imparcialidade que se devem encontrar subjacentes a toda a atuação da Administração.

    A este leque, acrescem ainda os Princípios da Imparcialidade decorrente do art. 266.º, n.º 2 da

    CRP, devendo a atuação da autoridade administrativa ser objetiva e isenta, sem qualquer tipo de

    favoritismo; da Oficialidade, devendo a autoridade administrativa atuar de forma oficiosa sempre que

    tenha conhecimento de uma infração; do Contraditório, sendo este um dos princípios fundamentais

    do direito processual penal, tendo ao longo do tempo passado a integrar o núcleo essencial de qualquer

    processo sancionatório, assentando na ideia de que ninguém deve ser condenado sem ter tido

    conhecimento dos factos que lhe são imputados e oportunidade de defesa, encontrando-se previsto

    no art. 50.º do Regime Geral das Contraordenações; e, finalmente, o da Verdade Material.

    9 JOÃO SOARES RIBEIRO, Contraordenações Laborais – Regime Jurídico Anotado Contido no Código do

    Trabalho, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, novembro de 2003, Pp. 146.

  • 13

    Não se encontrando no Regime Geral das Contraordenações muitas regras relativas à

    aquisição e produção de prova no processo contraordenacional, concordo com MÁRIO GOMES

    DIAS quando refere que «por força do art. 41.º, n.º 1 têm inteira aplicação os preceitos contidos na

    legislação processual penal sobre esta matéria.» (10)

    Por ação do art. 32.º, n.º 10 da CRP, são aplicáveis, ao longo de todo o processo

    contraordenacional, os direitos de audição e defesa do arguido, bem como da jurisdicionalidade,

    consagrado no art. 20.º da CRP, que não se encontra violado pela possibilidade de o arguido recorrer

    aos tribunais para controlo da decisão sancionatória que lhe seja aplicada, momento em que lhe será

    concedido novamente direito de audição e defesa.

    2. Fases do Processo Contraordenacional

    2.1. Fase Administrativa do Processo de Contraordenação

    Dispõe o art. 33.º do Regime Geral das Contraordenações, DL 433/82, de 27 de outubro, na

    mais recente redação dada pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro, que “o processamento das

    contraordenações e a aplicação das coimas e das sanções acessórias competem às autoridades

    administrativas, ressalvadas as especialidades previstas no presente diploma” (11).

    Conjugando este artigo com o 41.º, n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal, depressa se conclui que

    a natureza desta primeira fase do processo de contraordenação, apesar de apelidada de

    “administrativa” mais se aproxima de um processo de natureza penal, embora não judicial. Tal

    conclusão facilmente se extrai da letra do artigo referido, no qual se estabelece que as autoridades

    administrativas têm os mesmos direitos e encontram-se sujeitas aos mesmos deveres das entidades

    10 MARIO GOMES DIAS, “Breves Reflexões…”, Ob. Cit., Pp. 138. 11 Ou seja, quando se verifique a existência de concurso de crime e contraordenação (art. 38.º), caso em que o

    processamento da contraordenação cabe às autoridades competentes para o processo crime, ou quando a autoridade

    administrativa considere que a infração constitui um crime (art. 40.º), caso em que o processo deverá ser remetido ao

    Ministério Público.

  • 14

    competentes para o processo criminal (12), sendo, por imposição constitucional, assegurados ao

    arguido os direitos de audiência e defesa, logo desde esta primeira fase (13).

    Este procedimento tem início oficiosamente, com a participação das autoridades policiais ou

    fiscalizadoras, ou ainda através de denúncia particular, terminando com a decisão final que pode ser

    de arquivamento ou condenatória. No caso desta última devem ser respeitados os requisitos

    plasmados no art. 58.º do Regime Geral das Contraordenações, podendo haver lugar à aplicação de

    sanções acessórias além da aplicação de coima.

    Assim, cabe à autoridade administrativa nesta primeira fase toda a investigação e

    instrução do processo. Ou seja, toda a tramitação conducente à formação da decisão final de

    arquivamento ou condenação é efetuada pela autoridade administrativa, sem prejuízo da possibilidade

    dessa autoridade confiar, totalmente ou em parte, a investigação e instrução às autoridades policiais

    ou contar com a colaboração de outras autoridades ou serviços públicos, de acordo com o estipulado

    no art. 54.º do Regime Geral das Contraordenações. Não lhe sendo, portanto, aplicável a estrutura

    acusatória associada a um processo de natureza penal, nem o princípio da judicialização da instrução

    plasmado no n.º 4 do art. 32.º da CRP.

    Em suma, a Autoridade Administrativa assume a posição de dominus do processo de

    contraordenação nesta primeira fase.

    2.2. Fase Judicial do Processo de Contraordenação

    Outro argumento no sentido de, em processo de contraordenação, o papel da autoridade

    administrativa mais se assemelhar ao das entidades competentes para o processo criminal é que da

    decisão condenatória, bem como dos despachos e demais medidas tomadas pela autoridade

    administrativa no decurso do processo, cabe recurso para os tribunais judiciais e não para os

    tribunais administrativos, conforme estipulado no art. 59.º do referido diploma legal. Assim se

    iniciando a denominada fase judicial do processo de contraordenação.

    12 No mesmo sentido, ALEXANDRA VILELA; O Direito de Mera Ordenação Social…” 13 Art. 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Artigo este que trata das Garantias do Processo

    Criminal, tendo o legislador constitucional optado por regular os direitos do arguido em processo de contraordenação

    (e processos sancionatórios em geral) sob esta epígrafe e não no Título dedicado à Administração Pública.

  • 15

    Nesta fase, o recurso de impugnação deve ser apresentado à autoridade administrativa que

    aplicou a coima, devendo esta proceder ao envio dos autos ao Ministério Público que os tornará

    presentes ao juiz (14). Este ato vale como acusação. Ou seja, não é atribuído o valor de acusação

    apenas à decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, mas sim a todo o processo

    coligido durante a fase administrativa do processo. (15)

    Ao receber os autos, o Ministério Público deve proceder ao saneamento do processo:

    «– [...] nomeadamente, apreciar alguma questão que considere relevante para o processo. Ex:

    solicitar à autoridade administrativa elementos sobre a notificação do arguido de modo a

    apreciar se o recurso está em prazo, solicitar a indicação de provas ou de outros elementos que

    entenda faltar na decisão administrativa;

    – Indicar as provas, caso remeta o processo para julgamento – art. 72.º, n.º 1. “Compete ao

    Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a

    decisão.» (16)

    Quando exista interposição de recurso de impugnação da decisão condenatória proferida pela

    autoridade administrativa (17), deve essa autoridade proceder ao envio dos autos ao Ministério Público

    junto do tribunal competente para conhecer do recurso no prazo de 5 dias. Até ao momento desse

    envio, a autoridade administrativa tem a faculdade de revogar a decisão de aplicação da coima.

    Ao receber os autos, o Ministério Público torná-los-á presentes ao juiz, sendo que este ato vale

    como acusação. Ou seja, todo o processo tramitado pela autoridade administrativa tem o valor

    de acusação na fase judicial e não apenas a decisão final condenatória, embora seja esta que

    encerra o conteúdo recorrível.

    Poderá então o juiz rejeitar, por meio de despacho, o recurso caso o considere intempestivo,

    ou com fundamento em desrespeito pelas exigências de forma. Quando o recurso seja aceite, pode o

    14 Tendo a autoridade administrativa, até ao envio dos autos ao Ministério Público, a possibilidade de revogar a decisão

    impugnada. 15 No mesmo sentido, ALEXANDRA VILELA; O Direito de Mera Ordenação Social…”, Ob. Cit., Pp. 386. 16 ANA CRISTINA AFONSO; Aspetos Práticos Sobre Processo de Contraordenação; Sindicato dos Magistrados do

    Ministério Público; disponível em: http://www.smmp.pt/ 17 Que deve ser interposto por escrito, apresentado à autoridade administrativa acoimante, no prazo de 20 dias úteis

    após o conhecimento da decisão pelo arguido.

  • 16

    juiz proferir a sua decisão por simples despacho nos casos em que a tal possa haver lugar (18) ou, em

    regra, deve proceder à marcação de audiência de julgamento.

    É estabelecido no art. 65.º-A do Regime Geral das Contraordenações que, até à sentença em

    1ª instância, ou até ser proferido o despacho previsto no art. 64.º, n.º 2, pode o Ministério Público

    retirar a acusação bastando para tal que obtenha o acordo do arguido. No n.º 2 do artigo é referido

    que a autoridade administrativa deve ser ouvida, no entanto não se postula uma obrigatoriedade de o

    fazer, podendo preterir essa formalidade quando considere que tal não é indispensável a uma

    adequada decisão. Não se prevendo, em ponto nenhum do Regime Geral das Contraordenações,

    que a autoridade administrativa possa reagir quanto a esta preterição.

    Por seu lado, é também permitido ao arguido a retirada do recurso até à sentença em 1ª

    instância ou até ao despacho que decida a causa, sendo que após o início da audiência de julgamento

    se exige o acordo do Ministério Público.

    Quanto à participação do arguido na audiência, o mesmo não é obrigado a comparecer a menos

    que o juiz considere que a sua presença é necessária ao esclarecimento dos factos. Caso o arguido

    não compareça na audiência, nem se faça representar por advogado, serão tomadas em conta as

    declarações já prestadas na fase administrativa do processo de contraordenação, ou será registado que

    o arguido nunca se pronunciou sobre a matéria dos autos e julgar-se-á a causa.

    Em relação ao papel do Ministério Público, o mesmo deve estar presente na audiência

    de julgamento, sendo a esta entidade que cabe promover a prova de todos os factos que

    considere relevantes para a decisão (19).

    Já no que respeita às autoridades administrativas, estabelece o art. 70.º do Regime Geral das

    Contraordenações que «o tribunal concederá às autoridades administrativas a oportunidade de

    trazerem à audiência os elementos que reputem convenientes para uma correta decisão do caso,

    podendo um representante daquelas autoridades participar na audiência», o mesmo acontecendo

    quando o processo seja arquivado. Estabelece-se igualmente que a data da audiência, a sentença e

    demais decisões finais lhe devem ser comunicadas.

    Assim, da letra da lei, retira-se apenas que é dada à autoridade administrativa a

    possibilidade de trazer à audiência os elementos que considere necessários para a produção de

    uma correta decisão do caso. Não lhe sendo atribuído qualquer papel em concreto no decorrer dessa

    18 Nos casos previstos no art. 64.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações. 19 Representando o Estado, conforme determinado no Estatuto do Ministério Público, Lei n.º 47/86, de 15 de outubro,

    nos seus artigos 1.º e 3.º, n.º 1, al. a).

  • 17

    audiência, nem se especificando se os tais “elementos que reputem convenientes para uma correta

    decisão do caso” deverão ser distintos dos já constantes dos autos, ou seja, da acusação, ou se, por

    outro lado, se poderão restringir ao reforçar dos elementos já obtidos na primeira fase do processo

    contraordenacional ou a esclarecimentos técnicos.

    3. Conclusões do Capítulo

    Em relação ao contexto histórico e constitucional do Direito de Mera Ordenação Social, este

    surgiu em 1979 através do DL 232/79, de 24 de junho cuja aceitação não foi pacífica. Este diploma

    vinha incorporar no âmbito no Ilícito de Mera Ordenação Social as contravenções e transgressões

    vigoravam no nosso ordenamento jurídico, retirando-as do domínio penal em que se inseriam.

    Esse diploma foi prontamente alterado e teve a sua constitucionalidade escrutinada logo em

    1981, através de Parecer da Comissão Constitucional que, apesar dos argumentos apresentados nesse

    sentido, não declarou a inconstitucionalidade do diploma.

    Veio o mesmo a ser revogado em 27 de outubro de 1982 pela publicação do DL 433/82 que

    regula ainda hoje o Ilícito de Mera Ordenação Social.

    Os princípios que deram origem à primeira versão do Direito de Mera Ordenação Social entre

    nós não abandonaram este ramo do Direito Público Sancionatório neste segundo diploma. Manteve-

    se o propósito de autonomia deste ramo face ao Direito Penal e Processual Penal, por forma até a

    garantir que a intervenção penal do Estado se manteria, conforme desejável, numa lógica de garantia

    do mínimo ético e da intervenção mínima na vida em sociedade.

    Este Ilícito de Mera Ordenação Social, como o próprio nome indica, visa essencialmente

    salvaguardar aspetos da vida coletiva que foram, ao longo do tempo, ganhando relevância nas

    sociedades modernas, como sejam a cultura, o ambiente, o sistema financeiro, o trabalho, entre outros.

    Delineou-se então este processo de contraordenação como uma forma mais célere de sanção

    de comportamentos indesejáveis, mas sem dignidade penal, tendo como escopo a defesa de interesses

    coletivos do Estado e não se coadunando, portanto, com a defesa de interesses particulares.

  • 18

    A nível constitucional, na Revisão Constitucional de 1982 foi o então artigo 168.º da CRP

    (atual 165.º) alterado de modo a introduzir na reserva de competência relativa da Assembleia de

    República os atos relativos ao Ilícito de Mera Ordenação Social.

    Já na revisão constitucional de 1989 houve uma aproximação do Direito de Mera Ordenação

    Social ao Direito Criminal, enquadrando-o como constitucionalmente mais próximo deste do que do

    Direito Administrativo, através da introdução do n.º 8 do art. 32.º da CRP (atual n.º 10 do mesmo

    artigo), no qual se consagram os direitos de audição e defesa do arguido em qualquer fase do processo

    de contraordenação, bem como em qualquer processo público de caráter sancionatório, mantendo-se

    a epígrafe desse artigo «Garantias do Processo Criminal».

    No que concerne os princípios constitucionais aplicáveis ao processo de contraordenação, de

    forma sumária, os mesmos serão o Princípio da Constitucionalidade; da Igualdade; Legalidade;

    Imparcialidade; do Contraditório; da Verdade Material e da Jurisdicionalidade.

    O Regime Geral das Contraordenações, trouxe ao nosso ordenamento jurídico um processo

    complexo que assenta na fusão entre duas fases distintas, uma fase organicamente administrativa, no

    âmbito da qual o processo é tutelado pela autoridade administrativa a que a lei confira competência

    para o processamento da contraordenação e uma segunda fase organicamente judicial que

    corresponde à possibilidade de impugnação dessa decisão condenatória administrativa para os

    tribunais comuns.

    Em suma, na fase denominada de “administrativa” do processo de contraordenação, cabe à

    autoridade administrativa toda a tramitação do processo, desde o seu início, toda a investigação e

    instrução do processo. O que compreende, necessariamente, a audição de testemunhas e do próprio

    arguido. Terminando esta fase com o proferimento de decisão final pela mesma entidade que é a

    titular do processo de contraordenação.

    A autoridade administrativa goza dos mesmos direitos e deve obedecer aos mesmos deveres

    que as entidades competentes para o processo penal, nos termos do art. 41.º, n.º 2 do RCGO, o que,

    aliado à competência dos tribunais judiciais para a interposição do recurso da decisão daí resultante,

    contribui para o entendimento de que a primeira fase do processo contraordenacional se aproxima

    mais do direito sancionatório de natureza penal do que do direito administrativo, embora não se

    identifique com nenhum deles.

  • 19

    O ato de envio dos autos ao Ministério Público após a interposição de recurso de impugnação

    vale como acusação. Ainda que com especial incidência na decisão final condenatória, não deixa de

    se entender como acusação todo o processo coligido pela autoridade administrativa e não apenas à

    decisão final recorrida, o que reforça a posição de investigador e decisor na primeira fase atribuída à

    autoridade administrativa.

    O Regime Geral das Contraordenações atribui à autoridade administrativa o direito de

    participar na audiência na fase judicial, não mencionando outro tipo de intervenção por parte desta

    entidade durante essa fase do processo. É certo que se determina que esta autoridade deve ser ouvida

    nos casos em que o Ministério Público decida retirar a acusação, no entanto não existe qualquer

    consequência para a preterição dessa formalidade, não podendo a autoridade administrativa reagir

    contra essa preterição, estando-lhe vedado o direito de recurso.

    Sendo o Ministério Público o representante do Estado, é a este que cabe a produção de prova

    no contexto da fase judicial do processo, concedendo-se à autoridade administrativa o direito de

    participação na audiência, nos termos do art. 70.º do DL 433/82, de 27 de outubro.

    Esta possibilidade de participação na audiência por parte da autoridade administrativa traduz-

    se na possibilidade de a mesma poder trazer à audiência os elementos que considere necessários à

    boa decisão do caso, não especificando a lei em que se materializa essa participação.

    Tem sido defendido que a autoridade administrativa, na audiência de julgamento, não será

    equiparada a uma testemunha, não depondo como tal nem tendo as mesmas obrigações legais,

    podendo ser apresentado um funcionário dessa autoridade como “representante” e um outro como

    testemunha. Entendendo-se que a sua participação na audiência de julgamento visa o auxílio técnico

    ao Ministério Público e ao Tribunal pelos conhecimentos técnicos e capacidades profissionais que a

    mesma em princípio terá.

    No entanto, a configuração exata dessa participação da autoridade administrativa não se

    encontra cabalmente definida no Regime Geral das Contraordenações, abrindo-se, assim, a porta para

    diferentes entendimentos, desde a equiparação desta ao mandatário do arguido à possibilidade da sua

    constituição como assistente, já que a lei diz-nos apenas que é dada à autoridade administrativa a

    possibilidade de trazer à audiência os elementos que considere necessários à produção de uma correta

    decisão do caso.

  • 20

    Assim, fica por saber qual será concretamente a posição ocupada pela autoridade

    administrativa na fase judicial do processo de contraordenação. Questão a que procurarei responder

    infra.

  • 21

    II

    A Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo Contraordenacional

    1. O Direito de Participação da Autoridade Administrativa

    ANTÓNIO BEÇA PEREIRA (20), na anotação ao art. 70.º do Regime Geral das

    Contraordenações, sob a epígrafe «Participação das Autoridades Administrativas», entende que da

    primeira parte do n.º 1 resulta que a faculdade conferida à autoridade administrativa para

    oferecimento de prova deverá ser tida como análoga ao estabelecido no art. 315.º, n.º 1 do Código de

    Processo Penal. O que significa que a autoridade administrativa deverá, querendo, apresentar a prova

    pretendida no prazo de 20 dias contados do despacho que designou data para a audiência. Entendendo,

    também, que a participação em sede de audiência deve ocorrer de forma equiparada ao mandatário

    do arguido, ou seja, podendo o representante da autoridade administrativa inquirir testemunhas e

    produzir alegações.

    FREDERICO COSTA PINTO, entende que, em regra, os interesses representados pela

    autoridade administrativa e pelo Ministério Público são coincidentes, sendo desejável uma

    colaboração recíproca. No entanto, na audiência de julgamento, defende que o papel da autoridade

    administrativa é mais específico, podendo oferecer elementos que considere relevantes para a boa

    decisão do caso, colaborando tanto com o Ministério Público como com o Tribunal. Concordando

    com ANTÓNIO BEÇA PEREIRA no tocante à equiparação da autoridade administrativa ao

    mandatário do arguido em termos de direitos e deveres, discordando apenas quanto à produção de

    alegações finais. Neste particular, considera o Autor que as alegações finais ficarão a cargo do

    Ministério Público, podendo, de todo o modo, a autoridade administrativa expor ao Tribunal a sua

    apreciação das questões que consideres relevantes para a decisão da causa, nomeadamente, quanto à

    área técnica da sua competência (21).

    20 ANTÓNIO BEÇA PEREIRA, Regime Geral das Contraordenações e Coimas Anotado, 8.ª Ed., Almedina, Coimbra,

    setembro de 2009, Pp. 176 21 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Jurisprudência Sobre Contraordenações no Âmbito dos Mercados

    de Valores Mobiliários”, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, junho de 2000, Pp.

    164 e 165.

  • 22

    Por seu lado, também na anotação ao art. 70.º, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE (22)

    refere que a autoridade administrativa não tem o estatuto de testemunha, não depondo como tal, nem

    tendo as mesmas obrigações legais. O que conduz à conclusão que a autoridade administrativa poderá

    indicar um seu funcionário como “representante”, ao mesmo tempo que apresenta outros funcionários

    que tenham assistido à infração como testemunhas.

    O Autor enquadra a participação da autoridade administrativa na audiência como tendo uma

    “atividade processual acessória do Ministério Público”:

    «O representante da autoridade administrativa tem uma atividade processual acessória do

    Ministério Público, uma vez que a “acusação” assenta na decisão da autoridade administrativa

    e, portanto, o Ministério Público assume a defesa dos interesses públicos tutelados pela

    administração pública e cristalizados na “acusação”. Destarte, cabe ao Ministério Público

    definir a estratégia da “acusação” na fase judicial do processo contraordenacional, o que

    também significa que o representante da autoridade administrativa não pode ter uma

    atividade processual autónoma do Ministério Público na fase judicial do processo

    contraordenacional, desempenhando antes um papel de assessoria técnica, dada a

    especialidade dos seus conhecimentos e capacidades profissionais.» (23)

    Parece, então, que o legislador pretendeu atribuir à autoridade administrativa, que, recorde-

    se, se trata do julgador da primeira fase deste processo, o papel de mero coadjuvante do tribunal e

    não a qualidade de sujeito processual como o são o Arguido e o Ministério Público.

    Todavia, este entendimento não é pacífico, surgindo, assim, a questão sobre qual é, de facto,

    o papel da autoridade administrativa nesta fase judicial do processo de contraordenação.

    Poderá esta autoridade constituir-se como assistente e assumir, deste modo, o papel de

    verdadeiro sujeito processual?

    22 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contraordenações à Luz da Constituição

    da República e da Convenção dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, outubro de 2011, Pp.

    284 – 288. 23 PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário…, Ob. Cit., Pp. 285.

  • 23

    2. A Aplicação Subsidiária dos Preceitos de Processo Criminal ao Ilícito de Mera Ordenação

    Social – A Figura do Assistente em Especial

    Nos termos do art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações, o direito subsidiariamente

    aplicável a este processo é o direito processual penal. No entanto, o referido preceito legal não

    determina uma aplicabilidade em bloco do Código de Processo Penal, mas apenas na parte que não

    contrarie o Regime Geral das Contraordenações. Tal entendimento encontra-se, além da consagração

    legal, também plasmado na jurisprudência constitucional, por exemplo, no Acórdão do Tribunal

    Constitucional n.º 659/2006 (24):

    «Dentre os processos sancionatórios é o processo contraordenacional um dos que mais se

    aproxima, atenta a natureza do ilícito em causa, do processo penal, embora a este não possa

    ser equiparado.

    Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da não

    aplicabilidade direta e global aos processos contraordenacionais dos princípios constitucionais

    próprios do processo criminal, desde logo o princípio da judicialização da instrução

    consagrado no n.º 4 do artigo 32.º (neste sentido Acórdão n.º 158/92). A diferença de

    “princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a

    legislação penal e a legislação das contraordenações” reflete-se no “regime processual próprio

    de cada um desses ilícitos”, não exigindo um “automático paralelismo com os institutos e

    regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito da liberdade de

    conformação legislativa própria do legislador”, por exemplo, a não atribuição ao assistente

    (admitindo que a lei consente em processo contraordenacional esta figura) de legitimidade

    para recorrer, legitimidade que o artigo 73.º, n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações

    apenas reconhece ao arguido e ao Ministério Público (Acórdão n.º 344/93).»

    Também no sentido da autonomia entre o Direito de Mera Ordenação Social e o Direito Penal

    se pronunciou o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 11 de abril de 2012, cujo relator foi

    JOAQUIM GOMES, no qual se defende que em consequência desta diferente natureza, não são os

    princípios e as regras de processo penal automaticamente aplicáveis ao Direito das Contraordenações,

    estribando este entendimento nas posições veiculadas pelo Tribunal Constitucional nos seus diversos

    24 Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt

  • 24

    acórdãos (25), bem como no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003, de 28 de novembro

    de 2002, publicado no DR n.º 21/2003, Série I-A, em 25 de janeiro de 2003.

    Nesta fase judicial o processo de contraordenação conduzido anteriormente pela autoridade

    administrativa vale, no seu todo, como acusação. Ou seja, o juiz irá avaliar não apenas a decisão

    condenatória, mas todo o processado. O que acaba por ultrapassar os poderes normais de cognição de

    um tribunal de recurso. É neste contexto que se determina nova produção de prova, nos termos do

    art. 72.º do Regime Geral das Contraordenações. Podendo o resultado final da audiência de

    julgamento ser de arquivamento ou absolvição do arguido e não apenas de manter ou revogar a

    decisão proferida pela autoridade administrativa.

    Determina o art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações que as disposições reguladoras

    do processo penal são aplicáveis ao processo contraordenacional, mutatis mutandis e sempre que o

    contrário não resulte do próprio Regime Geral das Contraordenações. Ou seja, as disposições de

    processo penal serão aplicáveis ao Ilícito de Mera Ordenação Social sempre que nele existam

    omissões e não haja motivo que obste a essa aplicação e não de forma automática.

    Importa, na presente Dissertação, fazer uma breve exposição sobre a figura do Assistente no

    Processo Penal português de modo a aferir, adiante, se essa subsidiariedade do Direito Processual

    Penal permite o acolhimento da figura do assistente no âmbito do Ilícito de Mera Ordenação Social.

    No processo penal, o assistente surge como sujeito processual, sendo o seu regime regulado

    nos artigos 68.º a 70.º, desde as pessoas e entidades com legitimidade para se constituir como

    assistentes, a sua posição processual e atribuições, à representação judiciária. Sendo que ao longo do

    diploma legal existem várias referências e normas quanto a este sujeito processual.

    Dispõem os artigos 68.º e 69.º do CPP, referentes, respetivamente, à legitimidade para

    constituição como assistente e sua posição processual e atribuições:

    «Art. 68.º (Assistente):

    1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem

    leis especiais conferirem esse direito:

    25 Dos quais salienta, a título de exemplo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 344/93, 278/99, 160/2004,

    537/2011 e 85/2012, todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt

  • 25

    a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei

    especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

    b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;

    c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não

    separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com

    o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adotados,

    ascendentes e adotantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma

    destas pessoas houver comparticipado no crime;

    d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante

    legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida,

    ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de proteção,

    tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua

    responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no

    crime;

    e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de

    tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de

    justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de

    poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

    2 - Tratando-se de procedimento dependente de acusação particular, o requerimento tem

    lugar no prazo de 10 dias a contar da advertência referida no n.º 4 do artigo 246.º

    3 - Os assistentes podem intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no estado em

    que se encontrar, desde que o requeiram ao juiz:

    a) Até cinco dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;

    b) Nos casos do artigo 284.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 287.º, no prazo estabelecido

    para a prática dos respetivos atos.

    c) No prazo para interposição de recurso da sentença.

    4 - O juiz, depois de dar ao Ministério Público e ao arguido a possibilidade de se

    pronunciarem sobre o requerimento, decide por despacho, que é logo notificado àqueles.

  • 26

    5 - Durante o inquérito, a constituição de assistente e os incidentes a ela respeitantes podem

    correr em separado, com junção dos elementos necessários à decisão.»

    E

    «Art. 69.º (Posição Processual e Atribuições dos Assistentes):

    1 - Os assistentes têm a posição de colaboradores do Ministério Público, a cuja atividade

    subordinam a sua intervenção no processo, salvas as exceções da lei.

    2 - Compete em especial aos assistentes:

    a) Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se

    afigurarem necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;

    b) Deduzir acusação independente da do Ministério Público e, no caso de procedimento

    dependente de acusação particular, ainda que aquele a não deduza;

    c) Interpor recurso das decisões que os afetem, mesmo que o Ministério Público o não tenha

    feito, dispondo, para o efeito, de acesso aos elementos processuais imprescindíveis, sem

    prejuízo do regime aplicável ao segredo de justiça.»

    Tendo em conta que as alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 68.º do CPP representam apenas uma

    extensão de competência para os casos em que o ofendido ou o titular do direito de queixa se

    encontrem impossibilitados de se constituir como assistente pessoalmente, temos então que essa

    faculdade assiste: ao ofendido, às pessoas de cuja queixa ou acusação particular dependa o

    procedimento, ou qualquer pessoa, no leque de crimes previsto na al. e) do n.º 1 do art. 68.º.

    A figura que assume maior relevância discutir é a do ofendido, prevista na al. a) do art. 68.º,

    n.º 1, à luz do qual se considera como ofendido o titular dos interesses que a lei especialmente quis

    proteger com a incriminação.

    A qualidade de assistente no processo penal adquire-se através do ato de constituição, que

    pode ser requerido por quem se integre em qualquer das categorias referidas no art. 68.º, bem como

    quando tal direito seja conferido por legislação especial.

    Com maior ou menor autonomia, dependendo se se trata de crime público, semipúblico ou

    particular, o papel do assistente é de colaborador do Ministério Público, conforme expressamente

  • 27

    estipulado pelo legislador no art. 69.º do CPP, sendo, por isso, a atividade daquele sempre

    subordinada à atuação deste. (26)

    Duma forma muito sumária, por não ser esse diretamente o objeto do presente estudo, importa,

    neste ponto, densificar um pouco o conceito de ofendido, entendido pelo art. 68.º, n.º 1, al. a) do CPP

    como sendo «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

    Pela definição legal é possível perceber de imediato que não é ofendido qualquer pessoa

    que tenha sido prejudicada com o crime, mas apenas quem seja o titular do interesse que

    constitui o objeto jurídico imediato do crime, uma vez que o objeto mediato será sempre de

    natureza pública (27).

    No entendimento de alguma doutrina, é através da norma incriminadora que é possível

    entender qual o interesse que a lei quis proteger com a tipificação de um determinado comportamento

    como crime (28).

    Esta necessidade de uma relação especial entre o particular e o bem jurídico que a norma

    incriminatória visa proteger determina necessariamente que nem todos os crimes permitem a

    constituição de assistente, uma vez que nem todos os crimes têm ofendido particular.

    «Só o terão aqueles cujo objeto imediato da tutela jurídica é um interesse ou direito de que é

    titular um particular. Assim, ninguém poderá constituir-se assistente quando o interesse

    protegido pela incriminação é, a qualquer luz, exclusivamente público, como sucede v.g.,

    com os crimes contra o Estado, o crime de desobediência, de violação de providências

    públicas.» (29)

    Tal entendimento é acompanhado, a título de exemplo, por GERMANO MARQUES DA

    SILVA (30), encontrando-se também plasmado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do

    Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2003 (31), segundo o qual quando o interesse imediatamente

    26 No mesmo sentido, a título de exemplo: HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 69.º do CPP, Código de Processo

    Penal Comentado, Almedina, Coimbra, fevereiro de 2014, Pp. 246; M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES,

    Anotação ao art. 68.º do CPP, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I., 2ª Ed. (reimpressão), Editora Rei dos

    Livros, Lisboa, agosto de 2004, Pp. 354; GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal I Noções

    Gerais, Elementos do Processo Penal, 6.ª Ed., Verbo – Babel, novembro de 2010, Lisboa, Pp. 352. 27 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente em Processo Penal – Subsídios para o Estudo das Formas de Intervenção dos

    Particulares no Processo” in Scientia Iuridica, Tomo XLV, n.º 262/264, julho – dezembro de 1996, Universidade do

    Minho, Pp. 247 e 248. 28 M. SIMAS SANTOS e M. LEAL-HENRIQUES, Anotação ao art. 68.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 356. 29 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 248. 30 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 357. 31 Publicado no Diário da República n.º 49, de 27 de Fevereiro, Série I-A, disponível em http://www.dre.pt

  • 28

    protegido pela norma incriminatória pertença, ao mesmo tempo, ao Particular e ao Estado, pode o

    Particular constituir-se como assistente. Já se o interesse for apenas público não existe

    legitimidade para constituição como assistente.

    O assistente surge no CPP, conforme foi já referido, como colaborador do Ministério Público,

    subordinando à atividade daquele a sua intervenção no processo.

    Tal subordinação implica que:

    «(…) a iniciativa, projeto, estratégia e direção da investigação permanece intacta na

    titularidade do MP (arts. 48.º a 53.º, 262.º e 267.º do CPP). Assim, o assistente pode ter uma

    pretensão processual autónoma, independente, porventura diferente ou antagónica

    relativamente à do MP, a quem, no entanto estará em princípio subordinado.» (32)

    No contexto da fase de julgamento, que é o momento que maior relevância assume na presente

    dissertação, o assistente tem o direito de oferecer provas e requerer diligências que considere

    necessárias para o apuramento da verdade material, ocorrendo a sua produção de prova após o

    Ministério Público nos termos do art. 341.º do CPP. Cabendo-lhe, também, interpor recurso das

    decisões que o afetem, ainda que o Ministério Público não o faça, mesmo que de sentenças

    absolutórias.

    Nas palavras de GERMANO MARQUES DA SILVA:

    «O assistente não exerce autonomamente a ação penal e mesmo quando a sua atuação

    condiciona o exercício da ação penal pelo MP não lhe cabem nunca, para além do direito

    de acusar, os poderes ou funções do Ministério Público, nomeadamente, os de

    investigação na fase de inquérito para fundamentar a acusação.» (33)

    É consensual na doutrina que a posição do assistente no processo penal é de colaboração com

    o Ministério Público e não de seu par, sendo que os poderes e atribuições que lhe assistem servem

    precisamente o propósito de auxílio direto ao Ministério Público, no inquérito, e na apresentação

    de outra perspetiva do objeto do processo, participando na discussão, no debate instrutório, no

    julgamento e nos recursos, ou seja, de «colaboração indireta com o Ministério Público na busca da

    solução justa para cada caso» (34). Ainda que lhe assistam poderes de conformação autónomos, sendo

    32 JORGE REIS BRAVO, “O Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 249. 33 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 352. 34 Por todos: GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit. Pp. 353.

  • 29

    possível que o assistente divirja do Ministério Público (35), tal não bule com a sua posição de

    colaborador.

    Destarte, GERMANO MARQUES DA SILVA, numa definição possível de assistente

    apresenta-o como:

    «(…) o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público

    na promoção da aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido,

    de especiais relações com o ofendido pelo crime ou pela natureza do próprio crime.» (36)

    A legitimidade para constituição como assistente é hodiernamente alargada, compreendendo

    a vítima de crimes difusos, além da vítima/ofendido tout court, conforme resulta da al. e) do n.º 1 do

    art. 68.º do CPP.

    No entanto, este conceito amplo de ofendido acolhido no art. 68.º do CPP, acaba por não

    abandonar a ideia de quase identidade entre assistente e particular (pessoa singular ou pessoa

    coletiva) enquanto vítima, em paridade com o arguido, na busca de justiça. (37)

    «Os assistentes estão materialmente legitimados pela existência subjacente de interesses,

    próprios no caso dos ofendidos, ou de cidadania nos casos referidos na al. e) do n.º 1 do

    art. 68.º ou em outras disposições avulsas, a realizar no processo penal; sendo o MP o órgão

    constitucional a que compete a realização dos interesses a prosseguir através do exercício

    da ação penal – a efetivação da pretensão punitiva do Estado, segundo critérios de legalidade

    e por meios processualmente adequados – a intervenção do assistente, que representa

    interesses convergentes, só se compreende como auxiliar e colaborador do MP na

    prossecução, pelo processo, de interesses que, no rigor, são comuns. Por isso, a intervenção

    e a atuação do assistente está subordinada à atividade do MP.» (38)

    Em suma, ainda que se tenha vindo a alargar o leque de entidades com legitimidade para

    constituição de assistente nalguns tipos de crime, nomeadamente no que toca à defesa de interesses

    difusos (39), é importante chamar a atenção para que essas entidades não foram, em momento

    35 AUGUSTO SILVA DIAS, “A Tutela do Ofendido e Posição do Assistente no Processo Penal Português” in Jornadas

    de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Coord. Maria Fernanda Palma, Almedina, Coimbra, junho de

    2004, Pp. 55. 36 GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso…, ob. Cit., Pp. 355. 37 AUGUSTO SILVA DIAS, “A Tutela…”, Ob. Cit., Pp. 65. 38 HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 69.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 246. 39 PAULA ARGAÍNHA FONSECA, Sujeitos Processuais e Reforma – A Posição Processual do Assistente, Relatório

    de Mestrado em Direito Processual Penal, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2005.

  • 30

    algum, titulares do processo em que se constituem como assistentes. Ou seja, não procederam à

    instrução do mesmo, recolhendo prova e proferindo decisão final condenatória. É-lhes permitida a

    colaboração subordinada ao Ministério Público na tutela de interesses difusos.

    Portanto, da breve exposição ora apresentada importa reter que o art. 41.º do Regime Geral

    das Contraordenações não determina a aplicabilidade automática de todos os preceitos processuais

    penais no contexto do Regime Geral das Contraordenações, ainda que de forma adaptada, mas apenas

    daqueles que não o contrariem.

    3. O Papel da Autoridade Administrativa na Fase Judicial do Processo de Contraordenação

    Neste ponto, cumpre apreciar da concreta aplicabilidade subsidiária dos arts. 68.º e 69.º do

    CPP ao Ilícito de Mera Ordenação Social e, em concreto, se a autoridade administrativa se pode

    constituir como assistente na fase judicial deste processo.

    Com esse fim, tomarei por base os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11 de

    novembro de 1997 (40), cujo Relator foi SOUSA NOGUEIRA e de 20 de maio de 1998 (41), cujo

    relator foi MIRANDA JONES. Este último acórdão foi alvo de um comentário por parte de

    FREDERICO COSTA PINTO (42), que serve também de alicerce ao presente estudo.

    Ambos os acórdãos referidos têm origem em processos de contraordenação instruídos pela

    Câmara Municipal do Seixal por violação de legislação relativa ao licenciamento de obras, tendo

    sido, na fase administrativa do processo, aplicadas coimas aos arguidos que recorreram dessas

    decisões finais condenatórias. Em sede desses recursos, a Câmara Municipal do Seixal requereu ao

    Tribunal a sua constituição como assistente de modo a participar da fase judicial do processo na

    qualidade de verdadeiro sujeito processual. Também em ambos os casos essa pretensão foi indeferida

    pelo tribunal de 1.ª Instância, o que conduziu aos subsequentes recursos para o Tribunal da Relação

    com o fundamento de que a autoridade administrativa teria a posição de ofendido e, por isso,

    40 Coletânea de Jurisprudência, ano XXII, 1997, Tomo V, Associação Sindical dos Juízes Portugueses. 41 Coletânea de Jurisprudência, ano XXIII, 1998, Tomo III, Associação Sindical dos Juízes Portugueses. 42 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente e o Processo de Contraordenação, Anotação

    ao Acórdão da Relação de Lisboa de 20 de maio de 1998” in RPCC, Ano 12 (1-2), 2002, Pp. 105 a 128.

  • 31

    legitimidade para a constituição como assistente já que os interesses tutelados pela lei do

    licenciamento de obras públicas seriam interesses próprios da Câmara Municipal.

    A resposta dada à questão por parte do Tribunal da Relação de Lisboa foi idêntica nestes dois

    casos, quer no Acórdão relatado por SOUSA NOGUEIRA, quer no Acórdão cujo relator foi

    MIRANDA JONES, considerou o Tribunal da Relação que a autoridade administrativa não tem

    legitimidade para se constituir como assistente em processo contraordenacional.

    Essa conclusão é alcançada tanto com fundamento no próprio Regime Geral das

    Contraordenações e no facto de o mesmo não prever a figura do assistente, devendo essa omissão ser

    considerada como intencional por parte do legislador, não sendo de importar para esse Regime Geral

    a figura do assistente por via da subsidiariedade do processo criminal prevista no art. 41.º do DL

    433/82, como com fundamento na falta de interesse em agir que a Câmara Municipal do Seixal teria

    nessa constituição como assistente, uma vez que os interesses em causa não seriam diretamente dessa

    autoridade administrativa, mas sim interesse público que a mesma prossegue enquanto parte do

    Estado e não em nome próprio, não podendo, assim, ser considerada ofendido para os efeitos de

    constituição como assistente.

    Destarte, os acórdãos sumariamente descritos levantam, essencialmente, duas questões a que

    cumpre dar resposta sobre a fase judicial do processo contraordenacional:

    A primeira questão prende-se com a possibilidade de importação da figura do assistente para

    o processo comum de contraordenação por via da subsidiariedade do processo penal prevista no

    Regime Geral das Contraordenações.

    A segunda questão é a de saber se, em caso de aplicação da figura do assistente em sede do

    Ilícito de Mera Ordenação Social, a autoridade administrativa poderá ocupar esse lugar.

    Existe, no entanto, uma terceira questão a que cumpre responder em sede da presente

    dissertação: a de saber qual o concreto papel ocupado pela autoridade administrativa na fase judicial

    do processo de contraordenação.

  • 32

    3.1 Da Concreta Aplicabilidade Subsidiária da Figura do Assistente ao Regime Geral das

    Contraordenações

    Conforme expendido supra (43), o assistente em processo penal é uma figura com contornos

    muito próprios e uma posição processual singular. Enquadrado enquanto colaborador do Ministério

    Público, o assistente acaba por ter um papel de especial relevo nos crimes particulares, já que neste

    caso o próprio Ministério Público depende da sua constituição e acusação particular, sem as quais

    não tem legitimidade para prosseguir a ação penal (44).

    O assistente é mais do que um participante processual, é um sujeito processual a par com o

    arguido e o Ministério Público. A legitimidade para constituição como assistente assenta, conforme

    já referido, quase em exclusivo na qualidade de ofendido. Ou seja, de titular do interesse que a lei

    especialmente quis proteger com a incriminação, o que, apesar do desenvolvimento e alargamento

    do conceito, não deixa de traduzir uma quase identidade entre o ofendido e a vítima (45).

    Complementando este quadro geral, é conveniente também salientar que o assistente não

    assume nunca os poderes e funções do Ministério Público no contexto do processo penal,

    mantendo-se sempre a instrução do processo no domínio do Ministério Público. Mesmo nos casos

    em que ao assistente é permitido deduzir acusação particular, sublinhe-se que nunca a decisão final

    do processo cabe ao assistente.

    Ambos os acórdãos citados, acabam por resolver a questão da possibilidade de constituição

    como assistente por parte da autoridade administrativa pela apreciação dos pressupostos de

    legitimidade para constituição como assistente e pela decisão no sentido de que a autoridade

    acoimante não se poderá constituir como assistente por não preencher esses requisitos.

    No entanto, concordo com FREDERICO DA COSTA PINTO (46) quando considera que, antes

    mesmo de analisar tais pressupostos e o seu preenchimento pela autoridade administrativa, tem de

    43 Ponto 2 deste Capítulo II. 44 Por todos, HENRIQUES GASPAR, Anotação ao art. 68.º do CPP, Código…, Ob. Cit., Pp. 240. 45 «(…) a sua participação ativa [dos particulares, na posição de assistente] no processo permite dar-lhe satisfação pela

    ofensa sofrida, convencendo-o da efetivação da justiça no caso e trazer ao processo a sua colaboração.», GERMANO

    MARQUES DA SILVA, Curso…, Ob. Cit., Pp. 353 46 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 112 ss.

  • 33

    ser discutida a concreta aplicabilidade da própria figura do assistente no âmbito do Regime

    Geral das Contraordenações.

    Em primeiro lugar, devem ser tidos em conta os critérios para a aplicação subsidiária do direito

    processual penal ao processo de contraordenação.

    Foi já largamente demonstrado que existe consenso quanto à não aplicação dos preceitos de

    direito processual penal em bloco e de forma automática, mas antes precedida de interpretação no

    sentido de determinar da necessidade e admissibilidade de recurso ao regime subsidiário e

    posteriormente da adaptação dos preceitos ao contexto ilícito de mera ordenação social.

    «Na primeira operação decide-se sobre a possibilidade de aplicar o Direito subsidiário,

    enquanto na segunda se decide sobre o conteúdo do Direito subsidiário aplicável. Os dois

    momentos são essenciais, mas o primeiro é prejudicial ao segundo: se o aplicador do Direito

    chegar à conclusão que não é necessário recorrer ao Direito subsidiário ou que do Regime

    Geral das Contraordenações resulta que um certo regime processual penal não é aplicável, a

    questão fica resolvida por aí quanto à invocação do Direito subsidiário.» (47)

    Ou seja, antes de proceder à “importação” de qualquer figura prevista no processo penal para

    o processo de contraordenação, é conveniente saber se a sua não previsão será intencional e se o

    preceito em causa se coaduna com a natureza e valores do ilícito de mera ordenação social, de forma

    a não o descaraterizar enquanto Direito sancionatório público autónomo do processo penal (48), tendo

    presente que o Direito de Mera Ordenação Social nasceu, precisamente, com a ideia de garantir que

    o Direito Penal poderia ocupar o seu lugar como ultima ratio de intervenção.

    O legislador determina que um determinado conjunto de regras será aplicável a um outro ramo

    de direito quando reconhece que existe aproximação entre ambos, tanto a nível estrutural como

    material, assumindo, independentemente da verificação de qualquer lacuna, que o corpo de um dos

    ramos do Direito pode ser integrado através de outro. É este o caso entre o Direito de Mera Ordenação

    Social e o Direito Penal (para a parte substantiva do Regime Geral das Contraordenações, através do

    47 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “A Figura do Assistente…”, Ob. Cit., Pp. 113. 48 Também no sentido da preservação da autonomia do Direito de Mera Ordenação Social: JORGE FIGUEIREDO

    DIAS, “O Movimento de Descriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social”, in CEJ, Jornadas de Direito

    Criminal, Vol. I, Lisboa, 1983 e FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “O Ilícito de Mera Ordenação Social

    e a Erosão do Princípio da Subsidiariedade da Intervenção Penal”, in RPCC, ano 7, 1997, Pp. 7 a 100. e “Acesso de

    Particulares…”, Ob. Cit.

  • 34

    art. 32.º) e o Direito Processual Penal. Sendo essa afinidade decorrente de ambos constituírem direito

    sancionatório público.

    No caso concreto da figura do assistente, coloca-se a questão de saber se a sua omissão do

    Regime Geral das Contraordenações constitui uma intencionalidade do legislador, ou se, por outro

    lado, poderá encontrar ali aplicação por via do art. 41.º do Regime Geral das Contraordenações.

    Ora, o Regime Geral das Contraordenações prevê as figuras e papéis do Tribunal, Ministério

    Público, Arguido, Defensor, Testemunhas, Perito e até a Autoridade Administrativa. Não se

    encontrando no seu seio qualquer referência ao Assistente ou ao Lesado.

    É certo que simples não previsão de um instituto, por si só, não mata a questão já que se

    poderia considerar que o legislador não o havia previsto especificamente precisamente por se lhe

    aplicarem subsidiariamente as disposições de processo penal, de onde se retira essa figura.

    No entanto, creio que tal omissão foi intencional por parte do legislador, não sendo a sua

    intenção que o processo contraordenacional comportasse as figuras acima referidas.

    Este ponto de vista é sustentado, além da posição expressada por FREDERICO DA COSTA

    PINTO (49), na própria natureza do Ilícito de Mera Ordenação Social, cuja estrutura não se encontra

    pensada para garantir direitos e interesses particulares, daí não comportar a tutela de qualquer lesão

    civil, ao contrário do Direito Processual Penal.

    Tal intenção de tutelar apenas interesses coletivos, do Estado, é expressa logo nos preâmbulos

    dos diplomas legais do Regime Geral das Contraordenações. No caso do DL n.º 232/79, de 24 de

    julho, aí se podia ler que:

    «(…) Ora, nenhum Estado que promova a justiça social e que, portanto, desenvolve nesse

    sentido uma larga intervenção da Administração, pode atingir os fins que se propõe sem

    uma aparelhagem de ordenação social a que corresponde um ilícito e sanções próprias.

    É certo que da intervenção do Estado nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura,

    ambiente, etc., pode resultar a conformação de infrações tão socialmente danosas e tão

    eticamente censuráveis que em tudo se justifique o seu tratamento como autênticos crimes.

    Ao que de modo algum se opõe o facto de o direito criminal se destinar reconhecidamente

    49 FREDERICO LACERDA DA COSTA PINTO, “Acesso de Particulares…”, Ob. Cit., Pp. 619.

  • 35

    a tutelar o mínimo ético-social da vida em comum. Tal circunstância não pode fazer

    esquecer nem a historicidade dos valores criminais, nem a possibilidade de aquele «mínimo

    ético ser enriquecido com a descoberta de novos valores incarnados na prossecução de

    certos interesses sociais» (Eduardo Correia, «Direito penal e direito de mera ordenação

    social», in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 266).

    Não é, por isso, admissível qualquer forma de prisão, preventiva ou sancionatória, nem

    sequer a pena de multa ou qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético-

    pessoal que aqui não intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima,

    sanção de natureza administrativa, aplicada por autoridades administrativas, com o sentido

    dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às

    pessoas coletivas e adotar-se um processo extremamente simplificado e aberto aos

    corolários do princípio da oportunidade.

    Para obviar, contudo, a quaisquer perigos ou abusos, submete-se a aplicação da coima a um

    estrito princípio de legalidade e ressalva-se, sem reservas, um direito de defesa e audiência e

    um inderrogável direito de recurso para as instâncias judiciais.

    (…)

    A consagração do regime geral relativo às contraordenações tem como finalidade

    imediata permitir à Administração recorrer à cominação de uma coima para garantir a

    eficácia dos comandos normativos nos domínios já mencionados.»

    Desejando-se desde o início que este regime geral viesse trazer um processo mais simples e

    célere que o processo penal atendendo à diferente natureza das suas infrações. Intenção que se

    manteve com a revogação daquele primeiro Regime Geral das Contraordenações e sua substituição

    pelo atual DL n.º 433/82, de 27 de outubro:

    «(…). Resumidamente, o aparecimento do direito das contraordenações ficou a dever-se ao

    pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente

    alargando a sua ação conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura,

    equilíbrios ecológicos, etc. (…). A necessidade de dar consistência prática às injunções

    normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as

    em regras efetivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de

    sanções. Só que tal não pode fazer-se, como unanimemente reconhecem os cultores mais

  • 36

    qualificados das ciências criminológicas e penais, alargando a intervenção do direito criminal.

    Isto significaria, para além de uma manifesta degradação do direito penal, com a

    consequente e irreparável perda da sua força de persuasão e prevenção, a

    impossibilidade de mobilizar preferencialmente os recursos disponíveis para as tarefas

    da prevenção e repressão da criminalidade mais grave. Ora é esta que de forma mais

    drástica põe em causa a segurança dos cidadãos, a integridade das suas vidas e bens e, de um

    modo geral, a sua qualidade de vida.»

    Também FREDERICO DA COSTA PINTO (50), evidencia que o legislador, no Regime Geral

    das Contraordenações, não se refere em nenhum momento à existência de lesados civilmente. O que

    é demonstrativo de que este processo se encontra pensado ab initio para garantir em exclusivo

    interesses públicos e não interesses particulares cumulativamente, acrescentando:

    «Os poucos casos em que se conjuga de forma explícita interesses públicos e interesses

    privados no processo de contraordenações encontram-se nos regimes especiais de suspensão

    da execução da sanção que surgem em legislação contraordenacional do setor financeiro, na

    exata medida em que aceita que a reparação ao ofendido pode ser uma das formas de

    prosseguir as finalidades das sanções do DMOS. Mas trata-se de soluções especiais,

    formuladas com base em lei expressa, pois o RGCords [Regime Geral das Contraordenações]

    não contém soluções equivalentes.» (51)

    Na esteira de MÁRIO GOMES DIAS (52), entendo também que, enquanto que a fase

    organicamente administrativa do Ilícito de Mera Ordenação Social traduz uma forma de

    realização da função administrativa do Estado e que a fase organicamente judicial, de que me

    ocupo neste ponto, representa a realização da sua função jurisdicional, na primeira fase a

    prossecução do interesse público compete à autoridade administrativa, na segunda fase essa função

    passa para as mãos do Ministério Público.

    Até pela apresentação que foi feita no Ponto 2. do presente capítulo, é possível verificar que

    a posição ocupada pela figura do assistente no processo penal não encontra paralelo no Regime Geral

    do Processo de Contraordenação, tanto porque não existe, em regra, interesse particular a tutelar,

    50 FREDERICO DA COSTA PINTO, “Acesso de Particulares a Processos de Contraordenação Arquivados – Um

    Estudo Sobre o Sentido e os Limites da Aplicação Subsidiária do Direito Processual do Direito Processual Penal ao

    Processo de Contraordenação” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Vol.

    II, Almedina, Coimbra, novembro de 2002, Pp.602 a 624. 51 FREDERICO