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Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas ISBN 978-85-65957-03-8 1 Servir em vida, ritualizar a morte: a Casa Real Portuguesa e as exéquias da Rainha D. Maria I no Rio de Janeiro do período Joanino Giovanna Milanez de Castro 1 1. Introdução Este artigo resulta de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UNICAMP, intitulada “Serviço e celebração nos trópicos: a Casa Real Portuguesa no Rio de Janeiro do período Joanino (1808-1821) 2 . Ele tem por objetivo analisar as cerimônias das exéquias da rainha D. Maria I ocorridas no Rio de Janeiro no ano de 1816, e perceber nelas a presença de uma instituição de enorme importância para a realeza lusitana: a Casa Real Portuguesa. 2. Aspectos da domesticidade régia A monarquia, forma de governo que imperou por muitos séculos em Portugal, teve junto a si uma importante instituição: a Casa Real Portuguesa 3 . Ela era responsável por cuidar e gerenciar o âmbito doméstico e privado régio nos mais diferentes aspectos: dentro dos aposentos do rei (a câmara real), nas práticas religiosas (a Capela Real), na alimentação e comensalidade (Cozinha, Mesa e Ucharia), no exercício da caça, no âmbito das cavalariças e nas questões de proteção (a guarda) 4 . 1 Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, com bolsa da CAPES. 2 Pesquisa orientada pela Profª Drª Leila Mezan Algranti, e desenvolvida dentro da área de estudos “Política, Memória e Cidade” (IFCH/UNICAMP). 3 A existência da Casa Real junto à monarquia de Portugal não era algo recente: podem-se encontrar referências sobre essa estrutura, por exemplo, nas Ordenações Afonsinas, baseadas nas práticas do tempo do rei D. Afonso V (século XV), e que deram a primeira regulamentação escrita ao principal ofício da estrutura: o Mordomo-Mor. A extinção da Casa Real se deu junto ao fim da monarquia portuguesa, no ano de 1910. 4 Os estudos do mestrado, ainda em andamento, mostram que essa configuração da domesticidade régia, dividida basicamente em seis áreas de atuação, se assentou junto aos monarcas do século XVII em diante. Em períodos mais afastados do que este é possível ver diferentes divisões, mas que já apontavam para esta que se apresentou no período absolutista e que, salvo algumas modificações seguiu até o início do século XX. Rita Costa Gomes, em seu estudo sobre a corte dos reis portugueses no final da Idade Média (seu recorte são os séculos XIV e XV), apresentou uma Casa Real dividida em três grandes setores: Aula, Câmara e Capela, já sendo possível verificar nesses espaços cargos como o Mordomo-Mor, Camareiros, Físicos, Reposteiros, Capelães (oficias importantes e que atuaram na Casa por longo período em alguns casos até sua extinção). (GOMES, 1995: 12-18)

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Saberes e práticas científicas ISBN 978-85-65957-03-8

1

Servir em vida, ritualizar a morte: a Casa Real Portuguesa e as exéquias da Rainha

D. Maria I no Rio de Janeiro do período Joanino

Giovanna Milanez de Castro1

1. Introdução

Este artigo resulta de uma pesquisa de mestrado em andamento no Programa de

Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da

UNICAMP, intitulada “Serviço e celebração nos trópicos: a Casa Real Portuguesa no Rio

de Janeiro do período Joanino (1808-1821)2”. Ele tem por objetivo analisar as cerimônias

das exéquias da rainha D. Maria I ocorridas no Rio de Janeiro no ano de 1816, e perceber

nelas a presença de uma instituição de enorme importância para a realeza lusitana: a Casa

Real Portuguesa.

2. Aspectos da domesticidade régia

A monarquia, forma de governo que imperou por muitos séculos em Portugal, teve

junto a si uma importante instituição: a Casa Real Portuguesa3. Ela era responsável por

cuidar e gerenciar o âmbito doméstico e privado régio nos mais diferentes aspectos: dentro

dos aposentos do rei (a câmara real), nas práticas religiosas (a Capela Real), na

alimentação e comensalidade (Cozinha, Mesa e Ucharia), no exercício da caça, no âmbito

das cavalariças e nas questões de proteção (a guarda)4.

1 Mestranda em História pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, com bolsa da CAPES.

2 Pesquisa orientada pela Profª Drª Leila Mezan Algranti, e desenvolvida dentro da área de estudos “Política,

Memória e Cidade” (IFCH/UNICAMP). 3 A existência da Casa Real junto à monarquia de Portugal não era algo recente: podem-se encontrar

referências sobre essa estrutura, por exemplo, nas Ordenações Afonsinas, baseadas nas práticas do tempo do

rei D. Afonso V (século XV), e que deram a primeira regulamentação escrita ao principal ofício da estrutura:

o Mordomo-Mor. A extinção da Casa Real se deu junto ao fim da monarquia portuguesa, no ano de 1910. 4 Os estudos do mestrado, ainda em andamento, mostram que essa configuração da domesticidade régia,

dividida basicamente em seis áreas de atuação, se assentou junto aos monarcas do século XVII em diante.

Em períodos mais afastados do que este é possível ver diferentes divisões, mas que já apontavam para esta

que se apresentou no período absolutista e que, salvo algumas modificações seguiu até o início do século XX.

Rita Costa Gomes, em seu estudo sobre a corte dos reis portugueses no final da Idade Média (seu recorte são

os séculos XIV e XV), apresentou uma Casa Real dividida em três grandes setores: Aula, Câmara e Capela,

já sendo possível verificar nesses espaços cargos como o Mordomo-Mor, Camareiros, Físicos, Reposteiros,

Capelães (oficias importantes e que atuaram na Casa por longo período – em alguns casos até sua extinção).

(GOMES, 1995: 12-18)

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A Casa Real era um espaço onde se materializavam muitas das relações de serviço

prestadas diretamente ao monarca. A mentalidade cortesã que imperava na época

absolutista (com resquícios de práticas medievais baseadas nos laços de vassalidade), via

no serviço ao rei uma das mais importantes ocupações: uma troca atestada, por exemplo,

em descrições do século XVIII, que afirmavam ser obrigação dos vassalos empregarem-se

nos serviços dos soberanos e, em contrapartida, o régio poder deveria conservar a paz e a

justiça (CARDIM, 2002: 15-16). Ainda sob este pensamento cortesão, os ofícios da Casa

Real poderiam significar a muitos um dia-a-dia na constante presença da realeza,

participando ativamente de seu cotidiano e angariando prestígio e proteção junto ao

soberano. Essa tentativa de proximidade, certamente, perpassava a questão do serviço ao

rei e ia além dela: envolvia todo o contexto social da vida em Corte, como mostrou Norbert

Elias. Era importante estar em meio ao rei, e ali se manter e ser reconhecido por ele. Nesse

sentido, a Casa Real espelhava a vida cortesã e todas as suas especificidades.

“As cortes dos príncipes incluíam centenas, por vezes milhares de servidores, de

conselheiros, de ‘privados’ dos reis que julgavam que governavam o seu país

como senhores absolutos e da vontade dos quais dependiam, em certa medida, e

dentro de certos limites, o destino, a posição social, a subsistência, a ascensão ou

a queda de todos estes homens. Estavam ligados uns aos outros por estranhas

obrigações de que beneficiavam ou eram vitimas. Estavam ligados por uma

ordem hierárquica mais ou menos rígida e por uma etiqueta minuciosa. A

necessidade de se imporem e de se manterem no seio dessa formação social

dava-lhes um caráter particular, o de cortesão (ELIAS, 1995: 13; alguns grifos

nossos).

Este misto de necessidade e dever de servir ao rei fez da Casa Real um dos grandes

redutos em que os nobres e Grandes da Corte puderam empregar-se: a eles só era permitido

o trabalho em funções nobilitantes5. Os ofícios disponíveis na Casa eram divididos em dois

5 Segundo o Tratado jurídico das pessoas honradas, àqueles que possuíam honras (os títulos de distinção

política) era vedado o exercício público de ofício mecânico, sob pena de perda da mercê obtida. O trabalho

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pólos: os oficiais-mores (ou maiores) e os oficiais menores. No primeiro grupo, os cargos

eram ocupados por membros da alta nobreza do reino, muitos deles titulares (duques,

marqueses, condes, viscondes, barões). No outro, os ocupantes poderiam ser desde

membros destacados na sociedade até plebeus, entendidos como aqueles que se dedicavam

a ofícios mecânicos6.

Um dos grandes espaços de atuação dos oficiais da Casa Real era o Paço, morada

do monarca. Nele também viviam a rainha, o príncipe e os infantes e, dependendo do

contexto, outros parentes diretos. O conjunto da Casa Real, o maior e mais abrangente nas

questões privadas, convivia com outros séquitos domésticos de pessoas reais, menores e

mais enxutos. A relação desses outros grupos com o rei e sua Casa era, em certos aspectos,

direta. Primeiro porque, em muitos casos, pertencia ao monarca a prerrogativa de escolher

quem ocuparia os cargos desses “séquitos-anexos”7. Em segundo lugar porque, por serem

menores e não contarem com algumas estruturas e oficiais, esses outros grupos dependiam,

por vezes, de estruturas e oficiais da Casa Real. E, por fim, era muito comum que

empregados do rei (sobretudo os mores) também exercessem alguma ocupação na

domesticidade de outros membros da Família Real.

mecânico era associado à condição plebéia. Tratado jurídico das pessoas honradas escrito segundo a

legislação vigente à morte D´Elrei D. João VI. Lisboa: Imprensa de Lucas Evangelista, 1851, Título I). 6 Muitos eram os cargos mores dentro da Casa Real no período absolutista. Eles se ligavam geralmente à

chefia de algumas das áreas da domesticidade régia, ou desempenhavam funções de importância em alguns

dos setores ou para a estrutura como um todo. Para o governo de D. José I (1750 – portanto próximo ao

contexto tratado neste artigo), José Subtil apresentou uma listagem de aproximadamente 37 cargos mores nas

seguintes posições: Alferes-Mor, Almotacé-Mor, Aposentador-Mor, Armeiro-Mor, Capelão-Mor, Capitão da

Guarda Real, Capitão da Guarda Real Alemã, Copeiro-Mor, Corregedor do Crime da Corte e Casa, Esmoler-

Mor, Estribeiro-Mor, Gentil-Homem da Câmara, Meirinho-Mor, Mestre-Sala, Monteiro-Mor, Mordomo-

Mor, Porteiro-Mor, Provedor das Obras Reais, Reposteiro-Mor, Tesoureiro da Casa Real, Trinchante, Vedor.

(SUBTIL, 2008: 144). A título de perceber como a Casa empregava um número elevado de pessoas, vale

apontar que Pedro Cardim, tratando da estrutura no século XVII, afirmou que, no total de oficiais maiores e

menores, ela beirava meio milhar de pessoas. Pensando, como também apontou Cardim, que a Casa Real era

regulada grandemente pela tradição e normas fixas em sua disciplina, pode-se concluir que no início do

século XIX, apesar da extinção de alguns cargos, a Casa certamente tivesse um numero igualmente elevado

de servidores (CARDIM, 2002: 22-27). 7 Tratado jurídico das pessoas honradas. Op. Cit, Título II.

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Interessa entender aqui um desses outros séquitos domésticos: a Casa da Rainha,

instituição de longa data junto às soberanas.8 Nessa privacidade é possível perceber um

número maior de mulheres, que a auxiliavam em suas atividades cotidianas, muitas vezes

distintas e separadas daquilo que o rei desempenhava (SUBTIL, 2008: 130). Para a metade

do século XVIII, Subtil apresentou uma lista dos cargos que compunham a Casa da

Rainha: entre oficiais mores e os demais, esse séquito somava aproximadamente 90

pessoas9.

A monarca em destaque neste artigo, D. Maria I, foi a primeira rainha reinante de

Portugal: filha de D. José I, assumiu o trono em 1777. Ao exercer o poder régio, ela

assumiu o controle da Casa Real Portuguesa e, como rainha, também assumiu a Casa da

Rainha. Ocorreu, assim, uma justaposição de instituições que, pouco a pouco, foi diluindo

a administração da Casa da Rainha na Casa Real, fazendo a primeira perder sua autonomia.

A partir de 1786, um novo fato aumentou este atrelamento: a incapacidade mental de D.

Maria em exercer o ofício régio, deixando progressivamente a seu filho D. João o governo

do reino, da Casa Real e da Casa da Rainha.

Por fim, em 1807, um acontecimento sem precedentes trouxe impactos: a Família

Real, os nobres e as estruturas de governo se dirigiram para o Brasil. A cidade do Rio de

Janeiro foi escolhida para abrigar os ilustres chegados, que ali permaneceram até 1821.

Nesta nova capital do império, a realeza e suas domesticidades vivenciaram alguns

momentos singulares. A seguir, o artigo se debruçará sobre um deles: as exéquias de D.

Maria I, ocorridas em 1816.

8O único regimento conhecido para a Casa da Rainha, que tentou organizar as atividades que há muito eram

desempenhadas, data do século XVI. É importante frisar que, de uma forma geral, cada membro da Família

Real possuía junto de si um núcleo de oficiais para tratar de seus assuntos domésticos: um secretário, um

mordomo, etc. Mas apenas três séquitos tinham destaque, porque envolviam um número maior de servidores

e, também, porque envolviam o trato e administração dos bens da Coroa como um todo (títulos, terras,

rendimentos), divididos entre eles: a Casa Real, a Casa da Rainha e a Casa do Infantado. 9Esse séquito se dividia nos seguintes cargos: Mordomo-Mor, Estribeiro-Mor, Camareira-Mor, Estribeiro-

Menor, Vedor, Secretário, Confessor, Capelão, Porteiro da Câmara, Porteiro da Câmara Escura, Tesoureiro,

Escrivão, Guarda-Damas, Oficial da Secretaria, Porteiro, Varredor, Vesteeiro, Damas de Honor, Damas,

Meninas da Vela, Açafatas, Moças da Câmara, Moças do Retrete, Porteiro das Damas, Sangrador,

Reposteiro, Alfaiate (SUBTIL 2008: 143-144).

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3. As exéquias de D. Maria I no Rio de Janeiro

Descrições existentes sobre a vida de D. Maria I alegaram que, com suas

enfermidades, ela foi ficando cada vez mais reclusa. Em sua estada no Rio de Janeiro, o

memorialista Luis Gonçalves dos Santos apontou que suas únicas aparições públicas eram

passeio pelas ruas, encerrada num coche (SANTOS, 1825: 38). Em 20 de março de 1816,

após o agravamento de suas doenças, ela faleceu com 81 anos. Iniciaram-se,

imediatamente, a celebração de ritos fúnebres. Este trabalho abordará como foi o processo

desde sua morte até o sepultamento: deseja-se perceber como se deu a participação da Casa

Real no evento e, ao mesmo tempo, acaba sendo impossível não perceber também a

presença do séquito da Casa da Rainha.

Inscritos na dupla questão da partida de um soberano e sua sucessão, já no período

medieval a celebração da morte dos monarcas portugueses era um processo de extrema

importância para a Coroa, desdobrando-se em vários estágios: o imediato velório e

sepultamento solene, a quebra de escudos e as exéquias realizadas em honra da alma do

soberano (GOMES, 1995: 304-305)10

. Esses eventos eram marcados por toda uma

simbologia: um momento da passagem do régio morto para o além, ajudado pela

religiosidade e devoção de seus súditos. Assinalavam a mortalidade do corpo do monarca,

e a imortalidade de sua memória, que de várias formas era evocada e homenageada nas

decorações, nos símbolos, nas orações, nos escritos elogiosos, etc (LOURENÇO, 2003:

579-580).

A comoção coletiva gerava espaço para celebrar a continuação da dinastia: a catarse

em torno da morte reanimava um sentimento de pertencimento a uma comunidade, e de

acolhimento e obediência ao novo reinante. O desempenho de tais cerimoniais dependia,

em larga medida, da presença de determinados oficiais da domesticidade régia, atuantes

dentro da simbologia e ritualidade desses momentos. De um lado, a Casa da Rainha,

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O evento da morte de D. Maria I teve várias etapas: iniciou-se pelo imediato sepultamento da monarca

numa cerimônia de três dias. Depois, o Senado da Câmara procedeu à tradicional celebração da quebra dos

Escudos Reais. No oitavo dia após a morte, D. João VI mandou realizar um beijamão para receber as

condolências. E por fim, após as celebrações da Páscoa, o rei mandou que fossem celebradas grandiosas

exéquias na Capela Real.

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envolvida naquele que era o derradeiro momento de serviço à sua soberana. Do outro, a

Casa Real, prestando as últimas homenagens e atuando para prover o evento.

“As cerimônias têm (...) certos participantes que agem inseridos num conjunto de

papéis. Estes papéis são distribuídos pelos diferentes ‘ofícios’ da corte, o que nos

faz sublinhar a importância da relação entre a organização de cargos da corte e o

seu cerimonial – entre a corte enquanto conjunto estruturado de cargos, e os ritos

que aí podem ter lugar” (GOMES, 1995: 298).

Ocorrida a morte de D. Maria I, suas criadas passaram a prepará-la, vestindo-a com

roupas de luto, com todas as insígnias das ordens militares em que era Grã-Mestre e o

manto real. Dessa forma, colocaram-na em sua cama, com a mão esquerda sobre o peito e

a direita a ser beijada pelos que a viriam visitá-la em sua câmara no dia seguinte. Ali ela

permaneceu durante toda a noite, rodeada por quatro tocheiros com tochas nas mãos.

(SANTOS, 1825: 41-42). No dia 21 pela manhã a rainha D. Carlota Joaquina,

acompanhada da princesa e infantas, se dirigiu à câmara para beijar a mão da monarca

defunta, rezar e aspergir água benta em seu corpo. O mesmo foi feito, na parte da tarde,

pelo rei D. João VI, o príncipe e o infante. Após as reais visitas, a entrada foi permitida aos

membros da Corte e demais pessoas distintas.

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À noite, D. Maria I foi retirada por suas damas do leito onde estava, e colocada em

um caixão. Este foi posto dentro de um segundo, feito de chumbo. Assim acomodado, dois

oficiais da Casa Real, os Cirurgiões da Câmara, colocaram dentro drogas aromáticas. Tudo

foi fechado e depositado num terceiro caixão, ricamente ornado. A operação de

“Esquema que representa o quarto em que Sua Majestade faleceu, e

esteve até ir para a Sala Pública” - feito pelo padre Dâmaso (religioso que

segundo Santos estava em reza com o Bispo Capelão-Mor na câmara da rainha

no momento de sua morte), ele mostra qual era a configuração do quarto da

monarca no tempo em que o corpo ali permaneceu: seu leito (I) aparece rodeado

pelos tocheiros (M), e à sua esquerda (L) está o lugar em que D. João VI esperou

que o príncipe e o infante beijassem a mão da rainha defunta. BNRJ, Coleção

Casa Real Portuguesa, Documento II-30,24,18.

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fechamento deste último depositório ficou a cargo de duas pessoas, as mais importantes da

domesticidade da rainha: sua Camareira-Mor (que fechou o caixão) e seu Mordomo-Mor, o

Marques de Angeja (que ficou com as chaves). O caixão permaneceu dentro da câmara da

rainha até a noite do dia 22, quando a Camareira-Mor e o Mordomo-Mor voltaram a abri-lo

para que fosse presa no chumbo uma placa contendo a indicação, em latim, de quem estava

ali dentro. Ao fim, as chaves voltaram ao poder do Marques de Angeja (SANTOS, 1825:

42-44).

Ainda na noite do dia 22, o caixão foi levado a aposentos do Paço da cidade que

foram destinados para o evento denominado Depósito Público: o conjunto estava ricamente

ornado com uma cúpula (que abrigou o caixão com a coroa e o cetro), altares laterais, um

Sólio principal e cadeiras a todos os cônegos, religiosos e cantores da Capela Real

(SANTOS, 1825: 46). Por toda a madrugada D. Maria foi velada por diversos oficiais,

tanto da Casa da Rainha - Mordomo-Mor, Estribeiro-Mor, Damas do Paço - como da Casa

Real - Moços da Câmara, Porteiros da Câmara de Cavalo do Número e Clérigos da Capela

Real. (Gazeta do Rio de Janeiro, 1816).

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Nesse outro esquema do padre Dâmaso é possível ver a o

conjunto que compôs a sala da cerimônia de Depósito Público.

Legenda: (A)Porta da Casa da Tocha; (B)Segunda Porta; (C)Terceira

Porta; (D)Entrada da Quadrativa; (E)Cadeiras dos Cônegos,

Monsenhores e Capelães; (F)Lugar em que estava a coroa e o cetro;

(G)Paus das colunas que sustentavam a cúpula que cobria o régio

depósito; (H)Dez Tocheiros; (I)Lugar em que estava o Mordomo-

Mor; (L)Sólio Episcopal; (M) Credencia (?); (N)Altar; (O)Credencia

(?); (P)Lugar em que estavam a Camareira-Mor, as Damas de Honor

e as Damas; (Q)Lugar em que estava o Guarda-Damas; (R)Janelas

que distam para o Largo; (círculos pretos)Altares. BNRJ, Coleção

Casa Real Portuguesa, Documento II-30,24,18.

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O dia 23 começou com uma série de celebrações dos clérigos. Às 11 da manhã todo

o corpo religioso da Capela Real adentrou a sala presidido pelo Bispo Capelão-Mor, que se

acomodou no Sólio para celebrar o Ofício dos Defuntos, para o qual o caixão foi

descoberto do pano que o cobria pelo Conde de Cavaleiros, que servia no evento como

Reposteiro-Mor (um cargo disponível apenas na Casa Real). No início da noite D. João VI,

acompanhado de seus filhos, se dirigiu até a Sala do Depósito: ali eles prestaram as últimas

reverências à D. Maria, aspergindo água benta sobre o caixão com a ajuda do Mordomo-

Mor. Após os cânticos de encomendação do corpo, o Reposteiro-Mor levantou novamente

o pano de veludo que cobria o caixão e entregou ao Guarda-Tapeçarias da Casa Real. Em

seguida, um Guarda-Roupa do rei levou o cetro e a coroa para o coche que aguardava do

lado de fora. Então dez Grandes do Reino, com a ajuda de dez Reposteiros, pegaram as

tiras do caixão e o levaram, em procissão, até o coche que o aguardava. À frente deste

cortejo ia a Dama Camarista D. Francisca Telles da Silva, e após o Mordomo-Mor de D.

Maria I. Seguiam-se Moços da Câmara da Casa Real levando tochas acesas. Depois, o

caixão levado pelos Grandes e auxiliado pelos Reposteiros, vindo imediato a ele D. João

VI e seus filhos. Atrás, criados (possivelmente do rei) vestidos de luto pesado. Por fim, a

Camareira-Mor, Damas de Honor e outras Damas da monarca. Ao fim da escadaria do

Paço que dava acesso à rua, o rei, seus filhos e todas as Damas pararam. O caixão foi posto

no coche que o transportaria e as últimas vênias foram feitas com a ajuda do Mestre-Sala

da Casa Real designado para o evento, Marques de Aguiar. Dali, e sem a companhia das

pessoas reais e das serviçais da rainha, partiu o cortejo que levaria D. Maria I ao seu local

de sepultamento, o Convento da Ajuda (SANTOS, 1825: 46-47).

Tal aparato circulou por ruas da cidade onde se prostravam os Regimentos de

Cavalaria, o Corpo da Guarda Real de Polícia, o Batalhão de Caçadores Henriques e

corpos religiosos. Iniciava-se com uma Guarda de Cavalaria composta de 24 soldados, 02

cabos e 01 sargento, todos armados de carabinas em funeral. Atrás, oficiais da Casa Real:

Porteiros da Cana a cavalo, seguidos do Tenente da Guarda Real e do Corregedor do Crime

da Corte e Casa. Em seguida vinham a cavalo em duas alas (e acompanhados dos

respectivos criados de libré portando suas armas) os Grandes da Corte, outros oficiais da

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Casa Real e os que possuíam carta de Conselho. Imediatamente e também a cavalo, vinha

o corpo do Cabido e da Capela Real, formado pela Cruz do Cabido, os Capelães, os

Cônegos e Cantores (todos acompanhados de oficiais da Casa Real). Seguia-se o coche que

transportava o caixão de D. Maria I, acompanhado pelo lado esquerdo de seu Mordomo-

Mor, e do lado direito pelo Conde Reposteiro-Mor. Ao redor do caixão, Moços da Câmara

do rei vinham a pé com tochas na mão. Fechando todo este grupo havia soldados da

Guarda Real dos Arqueiros, com seu capitão seguindo o coche pelo lado esquerdo e o

Estribeiro-Mor no lado direito. Posteriormente, mais três outros coches seguiam o cortejo:

um primeiro contendo o cetro e a coroa real; o segundo, um coche de Estado; e o terceiro

trazia o Cura do Paço e um sacristão da Capela Real com uma cruz de prata. Fechava o

acompanhamento um corpo militar: Tenente General encarregado do governo das Armas

da Corte, Marechais de Campo, Comandantes de Infantaria, Artilharia, Cavalaria. E mais:

em marcha, vinham Regimentos de Cavalaria do Exército e a Cavalaria da Guarda Real de

Polícia, todos com espadas em funeral. A ordem era que os corpos militares prostrados na

rua, após a passagem do cortejo, se juntassem a ele (SANTOS, 1825: 48-50).

Chegando ao Convento da Ajuda, o caixão foi retirado do coche por membros da

Irmandade da Misericórdia. À porta do Convento, os oficiais da Casa Real quebraram

publicamente suas insígnias: uma prática simbólica vista pela primeira vez no Brasil, e que

poderia significar tanto um sinal do luto quanto um gesto que demonstrava a quebra das

relações de serviço com aquela que partia. Adentrando a igreja do Convento, o corpo foi

colocado sob eças dispostas ao longo da nave. Nas duas primeiras, o caixão descansou sob

cânticos religiosos. Na terceira, próximo ao altar, o Bispo Capelão-Mor da Capela Real

encomendou o corpo. Findo este ato, os Grandes do reino pegaram o caixão e fizeram o

caminho contrário das eças, retornando ao fundo da igreja. Ali, o Mordomo-Mor da rainha

entregou solenemente o corpo à Abadessa do Convento, jurando sob os Santos Evangelhos

e na presença do Secretário de Estado (e Mestre-Sala da Casa Real na ocasião), Marques

de Aguiar, que aquele caixão continha o corpo da soberana. Um termo de entrega foi

lavrado e assinado pelos Grandes do Reino presentes, pela Abadessa e o Secretário de

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Estado11

. Recebido pelo Convento, o corpo de D. Maria I foi enterrado junto ao corpo de

sua irmã D. Mariana. No momento do sepultamento, salvas da artilharia colocada do lado

de fora da igreja foram disparadas. Assim, e já tarde da noite do dia 23, o funeral de D.

Maria I se encerrava (SANTOS, 1825: 51-52).

4. Conclusão

Vários são os estudos sobre o absolutismo europeu, que buscam entender aspectos

da sociedade, política, economia e a cultura do chamado Antigo Regime. Uma dessas

facetas tinha relação com o serviço privado à realeza, materializado em estruturas

conhecidas como Casas Reais, que com seus setores e cargos cuidavam do âmbito

doméstico dos monarcas do Velho Mundo. Em Portugal não foi diferente: a Casa Real

Portuguesa esteve atuante ao lado dos soberanos.

Servir ia além do âmbito privado: perpassava a ritualidade em que esta realeza

estava inserida. No cotidiano, as idas à igreja, as refeições, a intimidade da câmara estavam

revestidos de protocolos, de hierarquias que definiam quem deveria estar presente ou

ausente. Nas grandes efemérides, tudo ficava ainda mais destacado: a presença dos oficiais

da domesticidade e sua atuação minimamente definida marcavam sua participação. Nelas o

protagonista seria algum dos membros da régia família, e independente de quem fosse a

Casa Real estava presente de alguma forma: com seus membros servindo seu amo,

fornecendo oficiais e estruturas para prover os acontecimentos, ou ambos. As exéquias,

cerimônias que marcavam a morte de pessoas reais, eram um desses acontecimentos que

movimentavam toda a realeza e seus séquitos.

Em março de 1816, no Rio de Janeiro, faleceu a rainha D. Maria I. Imediatamente

as cerimônias fúnebres se iniciaram, e, até seu sepultamento, todo um protocolo foi

seguido para enterrá-la com as honras e rituais devidos. Os oficiais da Casa da Rainha,

ocupados naquilo que foi o derradeiro serviço à sua ama, se fizeram presentes em todo o

processo, como atestaram as fontes analisadas. Além disso, a documentação mostrou que a

Casa Real atuou, num misto entre a última homenagem à monarca e o serviço, já que

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ANRJ, Fundo Casa Real e Imperial Mordomia Mor, códice 568, fls. 114-117.

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cargos da Casa precisaram agir para se somar à grandiosidade desse cerimonial. Analisar

este evento específico mostrou ainda mais do que a participação da Casa Real ou da Casa

da Rainha: evidenciou a importância e a íntima ligação entre o serviço à realeza e a

celebração dessa realeza. Aspectos fundamentais para a continuidade e perpetuação do

poder régio, presentes nas celebrações da vida (batismos, casamentos), da monarquia (as

aclamações) e da morte.

5. Fontes e Bibliografia

Exéquias de D. Maria I (original, manuscrito, letra do padre Dâmaso). Biblioteca

Nacional do Rio de Janeiro, Coleção Casa Real Portuguesa, Documento II-

30,24,18.

Gazeta do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: nº 25, 27 de março de 1816.

Termo de entrega do cadáver da Srª Rainha D. Maria I ao Convento da Ajuda em

23 de março de 1816. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Fundo Casa Real e

Imperial Mordomia Mor, códice 568, fls. 114-117

Tratado jurídico das pessoas honradas escrito segundo a legislação vigente à

morte D´Elrei D. João VI. Lisboa: Imprensa de Lucas Evangelista, 1851.

SANTOS, Luis Gonçalves dos. Memórias para servir a história do reino do Brasil

(Vol. II). Lisboa: Impressão Régia, 1825.

CARDIM, Pedro. “A Casa Real e os órgãos centrais de governo no Portugal da

segunda metade de seiscentos”. In: Revista Tempo. Rio de Janeiro: UFF, nº 13,

2002, p. 13-58.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1995.

GOMES, Rita Costa. A corte dos reis de Portugal no final da idade média. Lisboa:

Difel, 1995.

LOURENÇO, Maria Paula Marçal. “Morte e exéquias das rainhas de Portugal

(1640-1754). In: Actas do II Congresso Internacional. Porto: Universidade do

Porto, 2003.

NEVES, Lúcia Bastos Pereira das; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Dicionário do

Brasil Joanino 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

ORSO, Steven N. “Praising the queen: the decorations at the royal exequies for

Isabella of Bourbon”. In: The art bulletin. S/L, Vol. 72, nº 1, março de 1990.