Angela de Castro Gomes_A nova Velha República - um pouco de história e historiografia

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    A nova Velha Repblica: um pouco de histria e historiografia

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    Apresentaongela de Castro Gomes*

    Martha Abreu**

    A Primeira Repblica, em especial as dcadas iniciais do novo regime,vem ganhando crescente interesse e espao na produo historiogrfica bra-sileira. Muitos so os historiadores, sobretudo os dedicados histria polticae cultural, que tm retomado o perodo numa chave distinta daquela que oconsagrou como a Repblica Velha. Por essa razo, este dossi se iniciacom uma reflexo de teor historiogrfico que objetiva desnaturalizar o usode tal designao, ainda muito utilizada e compartilhada, tanto na literatura

    acadmica como na escolar. Afinal, periodizar, nomeando um tempo, umato de poder, como os historiadores sabem por dever de ofcio. Nessa opera-o nada ingnuo, sendo necessrio pensar que sentidos uma determinadanomenclatura deseja atribuir a um espao de tempo, o que necessariamenteimplica considerar quem e quando se constri tal designao. No caso, a deRepblica Velha, uma autntica frmula mental,1que certamente exigequestionamentos, a comear pela indicao de que, no casualmente, foi ima-ginada e adotada pelos idelogos autoritrios das dcadas de 1920/30.2Desde

    ento, ela foi propagada, com nfase durante os anos do Estado Novo, outra

    *Professora Titular de Histria do Brasil na Universidade Federal Fluminense e ProfessoraTitular do CPDOC/FGV. Coordenadora do programa de Ps-Graduao de Histria, Polti-ca e Bens Culturais do CPDOC/FGV. E-mail: [email protected].**Professora Associada do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense.Coordenadora do programa de Ps-Graduao de Histria da UFF. E-mail: [email protected] A noo de frmula mental remete idia de um hbito mental que, aprendido, conduzo pensamento sem maiores questionamentos.2 Entre os mais conhecidos e reconhecidos esto Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Fran-cisco Campos, sobre os quais h uma ampla e rica literatura produzida por historiadores ecientistas sociais.

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    frmula de periodizar a histria poltica brasileira, diretamente ligada, porcontraste, s dcadas que o precederam.

    Com essas breves observaes, fica evidente a imensa carga de disputaspolticas e memoriais que tais designaes contm, e como elas se associamclaramente aos projetos dos intelectuais que estiveram mais fortemente en-volvidos em sua produo, legando-as ao pensamento social e historiografiabrasileira. Por isso, consideramos interessante transcrever o primeiro pargrafode uma dissertao de mestrado em Histria, defendida em 2008, na medidaem que ele pode materializar, com esmero, a longa durao e o forte com-partilhamento dos sentidos de um projeto poltico, passvel de ser datado das

    dcadas iniciais do sculo XX.

    H algum tempo tenho interesse pelo perodo denominado Primeira Repblica.(...) A idia que ficava recorrente, assim que saamos do ensino mdio, era ade que a Repblica Velha um perodo de verdadeiro caos, de desorgani-zao; afinal, o Imprio havia desmoronado e os poderes se tornariam cadavez mais descentralizados. Aparentemente, o que fica no nosso imaginrio a identificao dos anos que vo de 1889 a 1930 como uma desordem oubaguna generalizada, um tempo marcado pelo vazio de idias, propostas e

    aes significativas para a nao brasileira.3

    A partir dessas constataes, possvel defender e postular uma neces-sria e urgente reviso historiogrfica do perodo, ou seja, sua retomada deforma inteiramente diversa, assinalando-se sua importncia e riqueza para odebate de idias e a experimentao de aes polticas e culturais no Brasil.Sendo assim, bom realizar um percurso, que embora parea tortuoso, justificvel, e tem seu incio marcado por consideraes que envolvem umretorno, mesmo que muito rpido, ao Estado Novo. Vale lembrar, ento,que tal perodo recebeu essa designao por obra dos polticos e intelectuaisnele engajados, com a ntida inteno de acentuar sua fora transformadora;na verdade, sua fora revolucionria. O golpe que instalou o Estado Novo,uma ditadura com chefe civil amplamente sustentada por foras militares, emespecial pelo Exrcito, j foi destrinchado e caracterizado como um golpesilencioso.4Um silncio de protestos e reaes de qualquer tipo e origem, que evidencia no apenas o poder dos que ascendiam direo do Estado,3 Vanessa Carvalho Nofuentes, Um desafio do tamanho da Nao: a campanha da Liga Brasilei-ra contra o analfabetismo (1915-1922), Dissertao de Mestrado em Histria, Rio de Janeiro,PUC, 2008, p. 9.4 Aspsia Camargo et al, O golpe silencioso, Rio de Janeiro, Rio Fundo, 1989.

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    como tambm a existncia de um projeto poltico que inclua a construode uma imagem para o presente que se inaugurava e, em decorrncia, para o

    passado que o antecedia e para o futuro que seria sua prpria criao.Exatamente por atentarmos para a existncia desse ambicioso projeto

    poltico-cultural, algumas observaes so convenientes. Em primeiro lugar,a da existncia de uma interpretao que considera o Estado Novo, em bloco,como um evento que se articula diretamente s intenes dos revolucionriosde 1930 e um desdobramento natural da revoluo, produzindo um corteradical com o passado do pas. Em segundo lugar, que a Primeira Repblica,a partir da decididamente velha, tambm em bloco, passa a ser avaliadacomo um grande fracasso e equvoco, praticamente desde seu comeo, em1889 ou 1891, anos da Proclamao ou da Constituio, no importa. Assim,nessa narrativa, vemos como as elites vitoriosas do ps-1930 inauguravam umprojeto poltico que se conclua com o Estado Novo, enterrando definitiva-mente uma Repblica Velha e tornando os anos que vo de 1931 a 1936 umaantecmara da presena inevitvel do golpe de novembro de 1937. Uma verso/interpretao de um conjunto de acontecimentos, absolutamente teleolgica,mas nem por isso menos eficiente e duradoura. Em outros termos, queremoschamar a ateno para os vnculos existentes entre uma proposta fundadora(em vrias dimenses) do Estado Novo e o estabelecimento das bases de umaperiodizao da histria republicana do Brasil, ainda muito vigente, na qualesse regime autoritrio tem posio estratgica e decisiva. Nos termos dessainterpretao, a Revoluo de 1930 assinalaria um novo e grande ponto departida na histria do Brasil, rompendo definitivamente com o passado; valedizer, com os erros da Primeira Repblica: liberal, oligrquica, fraca, inepta,

    europeizante e poltica e culturalmente afastada do povo brasileiro.Esse o aspecto que queremos destacar. Isto , que tal periodizao,reforando formas de nomear/compreender o tempo, est defendendo valorese criando concepes ligadas a uma tradio inventada de antiliberalismo,que condena no s as idias liberais, como tambm suas prticas, seus atoressociais e suas instituies e organizaes poltico-culturais. As eleies, osparlamentos, os partidos polticos e os variados tipos de associativismo so,assim, geralmente desqualificados como ineptos e/ou desnecessrios. Essas

    prticas participativas, expressas em organizaes e movimentos que reuniamatores diversos so, assim, minimizadas e/ou apagadas. Tais associaes, queeram muito numerosas e diversificadas, ligavam-se expresso e demanda

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    de direitos que eram, ao mesmo tempo, civis e polticos, pois envolviam aliberdade de pensamento e sua expresso, inclusive para lutar pelos novos

    direitos sociais, que se tornavam mais conhecidos e desejados.Sabemos que no de fato nenhuma novidade assinalar os vnculos entre

    a construo de um pensamento autoritrio no Brasil e as crticas ao libera-lismo, encarnado e identificado na poltica e nos polticos profissionais daRepblica velha e oligrquica. Contudo, alguma novidade existe em registrara eficincia desse processo de construo de tradies e enquadramento damemria nacional. O objetivo destacar como ele foi capaz de abarcar e esgotara experincia poltica, social e cultural da Primeira Repblica em um tipo denarrativa que, identificando, selecionando e valorizando apenas determinadasvivncias do campo da poltica formal, transforma-as em smbolos do fracassoda experincia liberal do perodo, como um todo.

    Nesse sentido, vale atentar para dois aspectos dessa construo me-morial, ainda pouco comentados. Primeiro: como ela seleciona e enfatiza umconjunto de procedimentos exercidos no espao da representao poltico-parlamentar, traduzidos especialmente pelo momento das eleies, silen-ciando toda uma variada e numerosa gama de formas de participao polticae cultural, ocorridas nesse espao de tempo. Ou seja, como, nesse tipo denarrativa, no se destaca e mesmo se ignora uma srie de experincias demobilizao e organizao de atores coletivos (e de atores coletivos modernos,como os trabalhadores e o patronato), em torno de questes de seu interesse.Quer dizer, marginaliza-se, nunca ingenuamente, todo um conjunto de vi-vncias, envolvendo diferenciados grupos sociais, que demandavam polticass autoridades pblicas, propondo e implementando uma srie de iniciativas

    atravs de suas formas de associativismo, fossem elas na rea da educao, dasade, da poltica econmica, da regulamentao do mercado de trabalho eda expresso cultural, entre outras. Um processo de escolhas do que lembrare do que esquecer que obra poltica articulada desde os anos 1920, mas quepermanece tendo vigncia na historiografia e no ensino de histria sobre aPrimeira Repblica.

    Assim, podemos afirmar que ainda se desconhece, basicamente por faltade estudos, uma rica movimentao de atores intelectuais, trabalhadores,

    setores de classes mdias e populares empreendida no campo da participaopoltica, que alcanou desenhos variados e mais ou menos formalizados eminstituies e associaes muito variadas. De toda forma, o que desejamos

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    ressaltar como esse apagamento da esfera da participao poltica durante aPrimeira Repblica est relacionado com o diagnstico ento construdo e

    desde ento acreditado de que o povo brasileiro no tem capacidade deao coletiva; que a sociedade brasileira, sendo inorgnica, insolidria e, porisso, pouco afeita (praticamente de forma ontolgica) s formas de associaode um modelo liberal-democrtico.

    Segundo: como essa seleo que d destaque esfera da representaopoltica plena de sentidos, pois seu objetivo , claramente, rebaixar tal tipode experincia participativa, ressaltando que ela estava pautada em procedi-

    mentos fraudados e fictcios, portanto, desprezveis e incuos, devendo serafastada e negada de maneira definitiva. Algo que ganhou brilhante formulaona concepo de Brasil legal: um Brasil irreal, porque fundado em leisinaplicveis ao pas, por terem sido copiadas de experincias estrangeiras e,por isso, desconhecerem o Brasil real. Uma dicotomia clebre, fortementepresente no pensamento poltico e social brasileiro, que tem como seu ncleoduro a descrena no poder da institucionalidade jurdico-poltica liberal. Dessaforma, as leis, inclusive e com destaque as constituies, so vistas como peas

    que tm, por definio, pequeno ou nenhum grau de eficincia na transfor-mao da realidade social. Seus enunciados, por conseguinte, no so vistoscomo guardando uma diretriz normativa, um horizonte de possibilidadespara o futuro. O descolamento, como se postula, entre o legal e o real , aocontrrio, geralmente postulado na chave da ignorncia das verdadeirascaractersticas do Brasil, gerenciado por leis utpicas, feitas para no pegarou para ingls ver. Alis, por isso mesmo, seria possvel incluir quase tudonas leis brasileiras, j que elas tradicionalmente e at propositalmente , no

    so feitas a srio e, portanto, no devem ser levadas a srio.Talvez o exemplo de um documento, certamente paradigmtico, seja

    til para se entender como se estabeleceu esse tipo de cultura histrica sobrea Primeira Repblica que, como se pode perceber, transborda o perodo dops-30 e se expande em sua desconfiana para com os princpios liberais, atos dias de hoje. Trata-se de um misto de conto e depoimento (de fico e no-fico), publicado em 1941, na revista Cultura Poltica, um peridico oficial do

    Estado Novo, direcionado a fazer propaganda do regime e de seu presidente.De autoria de Raimundo de Atade, intitula-se: Recordaes de um cidadoque nunca votou. Como era usual na revista, o texto precedido de uma

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    apresentao da editoria, que contextualiza o que vai ser lido, apropriando-sedo texto e ressignificando-o segundo as diretrizes polticas do Estado Novo.

    Jornalista militante na imprensa do Rio de Janeiro, porm natural do estadodo Cear, onde viveu longo tempo d-nos o autor um sugestivo flagrantede um momento de eleio no interior do Brasil da Repblica Velha. umtestemunho curioso de como se processavam as eleies, naquela poca que jse distancia tanto do Brasil Novo, alentado por impulsos de progresso polticomais sadios e mais viris.5

    A seguir o que se l um delicioso relato de um dia de eleio emPacatuba, pequena cidade do interior do Cear. Preciso quanto s prticasvigentes nessas ocasies, no h uma data cronolgica a localizar os fatosnarrados. Assumindo-se o ponto de vista de Cultura Poltica, eles permitemum acompanhamento detalhado do poder dos coronis da regio, os grandesinimigos dos revolucionrios de 1930 e de 1937, e tambm os grandes smbolosdo liberalismo decadente da Repblica Velha. O texto permite, assim, umareencenao das crticas e acusaes feitas s prticas liberais, em funo dasfraudes eleitorais, muito comuns e sabidamente violentas, nos sertes brasi-leiros. Como se percebe desde a apresentao, tratava-se de algo j distantedo Brasil Novo, mas ainda no inteiramente superado, o que justifica o desejode serem lembradas e combatidas.

    Do ponto de vista do historiador, o relato muito valioso. De um lado,porque descreve o que certamente ocorria em boa parte do pas quando dessasocasies, mas assumindo o ponto de vista de um eleitor de oposio, j queo pai do autor/narrador era o Juiz de Direito da cidade; mas um juiz que nose conformava com aquelas mascaradas eleitorais. Ou seja, um juiz que nofazia parte do arranjo coronelista ento dominante e que o relato faz crer noparticipar de qualquer outro tipo de arranjo, o que atribui ao que dito umaveracidade suplementar ao prprio carter, si s apresentado como verdadei-ro, do testemunho. De outro, porque retomando o evento eleitoral a partir daretrica de um cidado que nunca votou, navega entre a Primeira Repblicae o Estado Novo, contrapondo suas crenas e valores e militando em favor dosegundo, que advogava uma democracia autoritria mais sadia e que, paratanto, havia suprimido todos os procedimentos e instituies liberais.

    5 Raimundo de Atade, Recordaes de um cidado que nunca votou, Cultura Poltica, Ano1, n. 5, julho, 1941, p. 247.

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    De forma absolutamente abreviada, o narrador mostra que o dia deeleio era um dia de festa na cidade, cheia de matutos, que para l afluam

    alegres e bem arranjados para votar, embora mal soubessem assinar seus nomes.Havia tambm muitos soldados, alm de missa, tragos de bebida e at almoona Casa da Cmara. Havia, o que vale assinalar, algum grau de disputa entreos coronis, tanto que o carter extraordinrio do acontecimento acaba sendoalterado, durante seu decorrer. Isso porque o clima de espetculo, meio cvico,meio cmico, pois os granfinos do lugar se riam socapa daqueles cidados,6 rompido pelo assassinato de um homem, ocorrido aps uma discusso polticaem defesa do chefo poltico em que fora votar. O episdio, que tem lugar

    quando o autor era moo, marca-o para sempre, no s porque o criminoso,preso por seu pai e do partido do governo, logo posto em liberdade, comoporque ele fica sabendo de muitas outras safadices e intrujices dos politi-queiros, pelo Brasil afora. Quer dizer, decncia e honestidade nas eleiesconstituam excees regra geral. (...) Esse estado perigoso de coisas foi quea minha gerao encontrou (...).7Entende-se, ento, o fenmeno de ordeminteiramente psquica, o complexo que inibia o comparecimento s urnasdesse eleitor, que no acreditava no xito de seu gesto, na eficcia daquela

    atitude coletiva, o que explicava, como se v no ltimo pargrafo, o fato dobrasileiro no se ter entrosado com sucesso no sistema representativo pelovoto (...).8

    preciso ficar claro, contudo, que com a mobilizao desse texto, noestamos querendo negar ou minimizar a ocorrncia de fraudes e violnciaseleitorais na Primeira Repblica, o que efetivamente existia, limitando edesestimulando a representao poltica dos cidados; porm, como diversosestudos tm demonstrado, a despeito de sua existncia, a realizao de elei-

    es cumpria papel chave no sistema poltico de ento. De um lado, porqueeram fundamentais para uma relativa, mas estratgica, circulao de elites,introduzindo na cena poltica um mnimo de competio e renovao. Deoutro, porque eram responsveis por uma incipiente, porm pedaggica,mobilizao de eleitores, o que ocorria certamente de formas muito diversas,fundamentando um aprendizado poltico constante pela realizao sistemticados pleitos. Afinal, o dia de eleies era ao menos um dia de alegria, encontros

    6 Idem, p. 248.7 Ibidem, p. 249.8 Ibidem, p. 247 e 249.

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    e disputas um dia de festa na avaliao do autor para os muitos matutosque tambm participavam, a seu modo, daquele espetculo cvico-cmico.

    Alm disso, possvel argumentar, com slidas evidncias histricas, que aPrimeira Repblica tinha tantos problemas de governabilidade e de incorpora-o de atores, como vrias outras liberais-democracias europias, consideradasclssicas. Nelas, tambm os partidos polticos se apresentavam como clubesde elites; tambm os critrios de incluso ao corpo poltico passavam pelosaber ler e escrever e por critrios de idade e sexo, admitindo-se apenas omasculino; e tambm havia fraudes, clientelismo etc.9Importa assinalar igual-mente que, nos anos 1910/20/30, esses exemplos internacionais foram vistos,

    primeiro como modelos a serem seguidos, ainda que no copiados; e depois,embora no de forma generalizada, como experincias a serem abandonadas,em nome de uma originalidade a ser alcanada, que passava justamente peloquestionamento das idias liberais.

    Portanto, desde o incio dos anos 1920, avanava uma contundente crticaao reduzido grau de governo do Estado liberal republicano. Este, por sua fra-gilidade institucional, no estava conseguindo um bom desempenho na tarefade forar os principais atores polticos (as oligarquias) a cooperarem, abando-

    nando seus interesses mais particulares e imediatos, em nome de horizontesde mais longo prazo. Era o que se identificava como o domnio dos interessesegosticos, o mundo do caudilhismo, do coronelismo. Essa fragilidade, quese expressava na insuficiente consolidao e funcionamento das instituiespolticas brasileiras, bloqueava a criao de um verdadeiro espao pblico,para o qual os conflitos privados pudessem ser canalizados e solucionados. Sassim seria possvel a incorporao de novos atores, que se agregariam atravsde novos arranjos polticos, capazes de limitar a fora excessiva do privatismo,

    sustentando uma autoridade centralizadora incontestvel. A imagem que,durante a prpria Primeira Repblica, dela se construiu pelos que a critica-vam com um claro objetivo de desautorizar o modelo poltico-institucionalestabelecido, era a de uma Repblica instvel e ineficiente, distante do Brasilreal, fundamentalmente devido sua adeso ao liberalismo poltico.

    Os idelogos do Estado Novo, portanto, iro aprimorar e, sobretudo,divulgar e consolidar essa verso interpretativa. Nela, a Primeira Repblica,conformada a partir da experincia representativa, vista pelo que tem de pior

    (e esse pior existe, mas no tudo que existe), lanada de forma ampla e9 Nesse caso, bom lembrar que a Frana, um dos paradigmas maiores de defesa da liberal-democracia, s reconheceu o voto feminino aps a Segunda Guerra Mundial.

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    geral em um poo de incompetncia poltica. Ela nada acrescentaria nossahistria, estando completamente apartada e atrasada em relao a outras

    experincias internacionais que lhe eram contemporneas. Alis, quando asaproximaes so feitas, o que se evidencia essa decalagem ante as de-mocracias avanadas, onde haveria opinio pblica, eleitores conscientes epolticos autnticos: competentes, ticos etc. Naturalmente, uma realidadedistante do Brasil, lugar de ausncias e descaminhos; lugar de atraso e deinsolidarismo.

    Interessa aqui notar o fato de tal interpretao estar considerando esse

    perodo do regime republicano um total fracasso, por no fazer jus nem aseu passado, especialmente o do Segundo Reinado, nem a seu futuro, odos sucessos da Revoluo de 1930. A Repblica Velha, nessa verso, teriase excedido na adoo da frmula federativa, copiada dos EUA, o que nos comprometera definitivamente o prprio liberalismo no Brasil, como nosdesviara do caminho centralizador j apontado pela monarquia. Por fim, todaa elite poltico-intelectual daquele perodo, em suas vrias correntes, teriafalhado completamente no campo simblico, pois no conseguira construir

    nem um imaginrio republicano poderoso, nem um sentimento cvico deamor nova ptria.

    Sabemos, h algum tempo, que as expresses culturais no so prisio-neiras dos regimes polticos. Mas impressionante constatar como as versese interpretaes sobre essas expresses no primeiro perodo republicano,inclusive posteriormente reproduzidas pela historiografia, possuem enormecorrespondncia com as avaliaes polticas sobre o perodo, divulgadas pelosidelogos do Estado Novo. Assim, se a Primeira Repblica, atravs de seus

    polticos e intelectuais, no tinha sido bem sucedida na construo de umimaginrio republicano e de um sentimento cvico de amor nova ptria,tambm no tinha conseguido valorizar e incorporar o Brasil real, formadopela contribuio racial e cultural de ndios, negros e portugueses.

    O Estado Novo e seus idelogos conseguiram trazer para si todos osmritos da criao de um pas de todos, unificado poltica e culturalmente,atravs da construo de um povo mestio, em termos festivos e musicais, tanto

    no samba e no carnaval, como em diversas manifestaes folclricas de todasas partes do pas. O governo Vargas e a dcada de 1930 passaram a representar,na memria nacional, um momento de ruptura do passado cultural brasileiro.

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    A valorizao da msica popular, do carnaval e at mesmo da capoeira tudonos faz crer precisava esperar esses novos tempos.

    A Primeira Repblica, para seus crticos, teria tambm sido fraca e in-competente culturalmente, pois havia buscado um ideal nacional imitativo dasnaes mais civilizadas, no investindo na valorizao de gneros popularese nacionais. A Primeira Repblica era mesmo velha por no ter rompidocom antigos cnones literrios, artsticos e musicais elitistas, ligados msicauniversal e eurocentrista. Seus polticos e intelectuais no teriam conseguidoassociar as manifestaes populares, suas peculiaridades e potencialidades, identidade da nao e da arte brasileiras. As crticas ao liberalismo poltico daPrimeira Repblica se irradiaram para o mundo cultural pela sua associao aosvalores europeus, distantes de nossas originalidades e tradies populares.

    Sem dvida, o Estado Novo, com grande apoio das ondas do rdio,investiu pesadamente numa poltica cultural que buscava romper com umpretenso e velho passado cultural. Visava construir uma nova cultura nacionalatravs da valorizao de certas expresses afrodescendentes e populares; es-pecialmente as musicais, definidas como sertanejas, folclricas ou populares,foram vistas como uma forma de arte que uniria todo o pas sob a gide de umnovo Estado, responsvel por uma nova poltica cultural. Msicos popularese sambistas ganharam destaque; os desfiles de carnaval receberam renovadoapoio oficial. O canto orfenico, por sua vez, difundido em todas as escolas dopas, representaria o combate, no campo cultural, ao individualismo e egos-mo das tradicionais oligarquias regionais os condenveis atores polticos doregime anterior a 1930.

    Foi inegvel o investimento dos idelogos do Estado Novo na produo

    de uma imagem de Estado forte e construtor de uma nao real, em termosde cultura e histria nacionais. Da mesma forma que no campo da histriaestritamente poltica, o maior problema para quem se dedica histria culturaldo perodo tambm assumir as verses sobre o protagonismo do Estado Novocomo a verdade da histria, incorporando-as historiografia brasileira.

    Como vrios estudos j demonstraram, a Primeira Repblica est repletade exemplos de intelectuais e polticos que, numa conjuntura marcada pelasdisputas em torno dos direitos dos recm-libertos e dos trabalhadores de for-

    ma geral, investiram na construo de uma nao com traos europeizantese condenaram at mesmo pela fora o Brasil mestio, africano, negro epopular. Mas isso no foi tudo! Muito menos podemos apostar numa escala

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    evolutiva e gradual em relao s polticas de valorizao das culturas dos se-tores populares (dentre eles muitos afrodescendentes) que, teleologicamente,

    tenderiam a ficar mais receptivas medida que o Estado Novo se aproximava.Inverter os sinais, lenta ou rapidamente, quando se trata de avaliar, negativaou positivamente, as polticas da Primeira Repblica e dos governos de Var-gas, no ajuda compreenso das relaes entre poltica e cultura, entre ossujeitos sociais e seus mecanismos de participao poltica e cultural ao longoda histria recente do Brasil. Atribuir todo o protagonismo da valorizao dacultura popular aos governos Vargas tambm abrir mo de reconhecer osinvestimentos dos setores populares, por esse reconhecimento, muito antesdo Estado Novo e do chamado movimento modernista, nos anos 1920.

    Diversas pesquisas recentes tm aberto caminho para se pensar o quantoassociaes recreativas, esportivas, carnavalescas e danantes da populaonegra e pobre das cidades, especialmente na capital, conseguiram legitimar-sena Primeira Repblica, ao buscarem (e conseguirem) autorizaes e direitosna relao com as instituies republicanas, autoridades municipais e policiais.E bem antes dos anos 20! Em meio a perseguies policiais cotidianas quetambm eram comuns no ps-30 grupos carnavalescos impuseram s cida-des suas formas de socializao e de brincar o carnaval. Por outro lado, se oapoio dos rgos culturais e polticos do Estado Novo valorizaram expressesculturais negras e populares, as operaes de escolha do que era o verdadeiropopular e nacional nunca deixaram de ser seletivas e de envolver uma boadose de perseguio ou de censura aos candombls, s organizaes de lazerpopulares e s letras de samba. A cultura, em qualquer perodo histrico, um campo aberto a conflitos e disputas polticas.

    A msica popular e o samba, associados idia de alma da naomestia, no precisaram esperar as bnos dos chamados modernistas oudas autoridades do Estado Novo. Desde pelo menos o final do sculo XIXe as duas primeiras dcadas do XX, os maxixes, os lundus, os sambas e asmodinhas ao violo eram gneros divulgados por editoras populares, como aQuaresma, ou por casas de disco, como a Casa Edison. Nos catlogos das edi-toras e gravadoras, esses gneros afro-brasileiros e sincrticos eram rotuladoscomo populares e brasileiros. Constituam um bom negcio, como comprovam

    os interesses dessas firmas comerciais.Msicos negros e mestios, como Xisto Baia, Eduardo das Neves, Sinh,Pixinguinha, Baiano e Catulo da Paixo Cearense, dentre outros, mesmo so-

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    frendo muitas crticas e preconceitos, no tiveram que esperar intelectuais tidoscomo mais identificados com as coisas do Brasil, como as avaliaes sobre os

    anos 1920/30 divulgam, para encontrarem reconhecimento de um vasto pblico(no de todo o pblico, claro). H muito tempo, gneros identificados comtradies africanas e portuguesas encontravam-se e disputavam espao naspraas, festas populares, teatros, palcos de rua e clubes danantes; eram livree irreverentemente combinados pelos setores populares. No final do sculoXIX, alguns desses gneros, marcados por trnsitos culturais e musicais, foramselecionados e associados s marcas da nao por muitos intelectuais, artistasde teatro de revista, msicos eruditos e populares.

    E essa experincia parece no se restringir ao Brasil; no foi apenasnacional. Nos Estados Unidos, na Argentina ou no multicultural Caribe,o perodo da nossa Primeira Republica foi tambm um marco em termos deconsolidao de gneros afro-americanos e populares associados construode identidades nacionais, em meio a muitos trnsitos e trocas culturais no cir-cuito internacionalizado das gravadoras de disco. O jazz nos Estados Unidos, otango na Argentina, a rumba em Cuba e o calipso no Caribe so bons exemplosde uma experincia internacional que associava expresses de msica/danapopular e identidade nacional.

    Um importante depoimento pode ser proveitoso para expressar, de umaforma emblemtica, como foi pouco valorizada ou esquecida nas memriase histrias construdas sobre a Primeira Repblica, a associao entre msicapopular e identidade nacional no Brasil. O depoimento escolhido o de Catuloda Paixo Cearense, poeta e cantor muito conhecido, no Prefcio de seu livroCancioneiro Popular de Modinhas Brasileiras.Publicado pela Livraria do Povo

    da Editora Quaresma, o texto consultado foi o de 1908, em sua 25 edio:Ns, convencidos de que nessas composies do povo, cintilam fulgurantespensamentos que, rarssimas vezes, so lobrigados (sic) pela alta literatura;ns que preferimos uma modinha, cano rstica, um lundu requebrado a umqualquer trecho de Wagner, que no compreendemos, e que no nos produz amnima sensao (...) no nos importemos com o pedantismo estulto dos quemenoscabam do violo, por ser ele, dizem, o instrumento dos desocupadose perdidos (...) Concluo lamentando no ver neste volume, o que seria umtrabalho colossal, todas as nossas tenras, meigas doces, e saudosas modinhas

    brasileiras, preciosssimas jias... Mas, ainda assim, os Srs. Quaresma voprestando, conscientemente, inestimvel servio a literatura mais nacional a do povo.

  • 8/14/2019 Angela de Castro Gomes_A nova Velha Repblica - um pouco de histria e historiografia

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    Catulo testemunha, de uma forma contundente, at mesmo pelo nme-ro expressivo das edies de seu livro, o quanto os estilos populares podiam

    representar a nao e disputar e ganhar espao e mercado na vida cultural epoltica da Primeira Repblica.

    Evidentemente, todos os argumentos que levantamos no apagam ounegam diversas outras operaes intelectuais, sempre seletivas, que escolheramalguns gneros musicais, em detrimento de outros; tambm no pretendemosdiminuir as aes repressoras e racistas sobre diversas expresses culturaisafrodescendentes. A Primeira Repblica est cheia de exemplos de polticasque visavam branquear a populao e a cultura brasileiras. Mas no podemosreduzir a experincia histrica deste perodo a essas possibilidades. Os exem-plos de intelectuais e polticos racistas e europeizantes no podem servir pararesumir a histria cultural e poltica da Primeira Repblica. Definitivamente,ela no era s isso.

    Em sentido complementar, intelectuais como Afonso Arinos, MelloMoraes Filho, Alexina de Magalhes, Guilherme de Mello, Lindolfo Gomes,Alberto Nepomuceno, dentre muitos outros, interessados na valorizao doscostumes populares, no podem mais ser tidos como exceo. Na PrimeiraRepblica, diversos agentes sociais, como intelectuais, professores, maestros,msicos populares e o variado pblico dos teatros e festas populares, formadopor setores mdios e trabalhadores, experimentaram, em meio a muitos con-flitos, a construo da nao e tambm da nao republicana em termosculturais. Era inteiramente possvel que msicos e grupos carnavalescospopulares identificassem suas msicas e blocos s glrias nacionais, ou quelideranas negras usassem os smbolos republicanos como forma de luta e

    valorizao de suas expresses culturais e identidades, negras e brasileiras.Os investimentos de intelectuais na educao elementar, na valorizao dofolclore, na construo de uma arte e msica republicanas, na produo deheris e na prpria divulgao de uma histria republicana precisam ser vistossem as poderosas lentes de uma cultura histria produzida durante o EstadoNovo.

    Os artigos que formam esse dossi representam de uma forma signifi-cativa alguns desses diferentes olhares e pesquisas sobre a Primeira Repblica

    nos campos poltico e cultural. Abrem novas abordagens e problemticas atento pouco valorizadas ou mesmo desconhecidas dos estudantes e pesqui-sadores do perodo. Atravs desses artigos o leitor tambm poder ter acesso

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    a uma bibliografia que permite reavaliar as dimenses e possibilidades dosestudos sobre a nova velha Repblica. Por fim, este dossi um convite a

    novas pesquisas e abordagens sobre perodo.