Angélica Bersch Boff_Debussy
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7/18/2019 Angélica Bersch Boff_Debussy
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DEBUSSY, N IJ INSKY E UM FAUNO:
A RUPTURA DE UMA ESTÉTICA E DE UM CONCEITO
Angélica Bersch Boff*
Resumo:
Este artigo trata do momento de criação e estréia do ballet L'Aprés-midi d'un
Faune. É analisado o impacto causado primeiramente pelo prelúdio composto por
Debussy em 1894, e em seguida o ballet criado em 1912 com coreografia de
Nijinsky e cenários e figurinos de Leon Bakst. A obra musical de Debussy irrompe
com as estruturas teóricas da música de até então, perfilando-se às sensibilidadesde um novo tempo. O Ballet de Nijinsky - criado junto à companhia Ballets Russes
de Diaghilev - além de irromper com a tradição e estruturas do ballet clássico,
violenta com as idéias apresentadas, com a nova visão estética proposta, e mesmo,
com a relação entre o coreógrafo e seus bailarinos.
Abstract:
This article is about the moment of creation and preimière of the balletL'Après-midi d'un Faune. It is analyzed the impact caused by Debussy's prelude,
written in 1894, and then the ballet itself, created in 1912 with choreography by
Nijinsky and setting and fashion by Léon Bakst. Debussy's piece was then a musical
breakthrough, bringing the sensibility of a new age. Nijinsky's ballet - created in
Diaghilev's company, Ballets Russes - challenges the tradition and structures of
classics ballet. The ideas on it shock the audience, as well as the new aesthetic
vision and the choreographer-dancers relationship.
* Mestre em História pela UFRGS e Professora de História da Dança
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Este artigo corresponde ao início de uma pesquisa sobre o ballet clássico, em
especial a companhia Ballets Russes de Diaghilev, que existiu entre os anos de 1909
e 1929, fundada em São Petersburgo, e em seguida sediada em Paris. Esta
companhia foi montada e administrada durante seus 20 anos de existência pela
iniciativa de Sergei Diaghilev, profundo conhecedor da arte e da cultura européia e
russa, e um dos primeiros empresários das artes no século XX. Com o objetivo de
levar a cultura e arte russas à vitrine do mundo - Paris -, em 1909 chega a vez de
Diaghilev levar algo sobre a dança na Rússia. A partir desta oportunidade, o
casamento entre o ballet e este empresário é permanente e revolucionário para o
mundo da dança.
O ballet clássico estava prestes a ser considerado como arte morta. Osballets de repertório (Lago dos Cisnes, Giselle, Bela Adormecida, entre outros)
eram constantemente remontados e apresentados pela forte escola de ballet russa
(através das companhias dos teatros Bolshoi e Marinsky sobretudo), mas nada
realmente novo era criado. A técnica e o conhecimento teórico da dança clássica
não eram mais renovados e desenvolvidos. Em Paris, o Ballet da Ópera estava
esmorecendo, e na América do Norte começava a surgir outra dança acadêmica,
totalmente distinta do que se conhecia na Rússia e na Europa. Era uma dançacontemporânea encabeçada principalmente por Ruth St. Denis, Doris Humphrey e
Martha Graham, além dos musicais e a dança conciliada com o cinema emergente,
e do sapateado americano que desenvolvia-se francamente junto ao jazz negro-
americano.
Pois bem, o senso de vanguarda de Diaghilev, e seu faro fino para perceber
grandes artistas e gênios (e grandes artistas sempre são de vanguarda), aproveitou
uma última centelha de chama do ballet clássico, renovou-a e reacendeu-a. OsBallets Russes foram algo totalmente novo que, a partir da técnica da dança
clássica, fez renascer esta arte de acordo com a estética, os conceitos e valores da
sociedade do século XX que então se iniciava. Fez parte imanente deste
renascimento, o desenvolvimento e renovação técnica feito pelos grandes mestres
Fokine e Cecchetti, e também uma concepção de cena e de dança novas,
desenvolvida sobretudo por Fokine, Nijinsky, e mais tarde por Balanchine e Serge
Lifar. Diaghilev provou que havia o que ser criado em ballet, e que este poderia - edeveria! - ser feito com música moderna, num ambiente também contemporâneo.
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Ou seja, mostrou que os cenários e figurinos e o enredo dos ballets deveriam fazer
parte de sua criação artística. O resultado foi o casamento fantástico de obras que
levavam à cena quase todas as artes ao mesmo tempo. Todas elaboradas
cuidadosamente pelos maiores gênios das artes de sua época. Junto aos Ballets
Russes trabalharam Jean Cocteau, Fernand Léger, Leon Bakst, Alexander Benois,
Igor Stravinsky, Claude Debussy, Serge Prokofiev, Eric Satie, Pablo Picasso,
Salvador Dali, Boris Kochno. E entre as estrelas de ballet tivemos Vaslav Nijinsky,
Tamara Karsavina, Léonid Massine, Michel Fokine, Bronislawa Nijinska, Vera Fokina,
Ida Rubinstein, Anna Pavlova, Serge Lifar, George Balanchine, entre outros. Após a
morte de Diaghilev em 1929, seus artistas se espalharam pelo mundo, disseminando
este legado, e fazendo nascer e/ou se desenvolver escolas de ballet clássico edança contemporânea nas Américas, no próprio Ópera de Paris, na Inglaterra,
enfim, por todo o mundo.
Neste artigo abordo uma das obras produzidas por esta companhia, o ballet
L'Après-midi d'un Faune, cuja estréia se deu no Teatro Châtelet em Paris, em 29 de
maio de 1912. Analiso aspectos da relação de seu coreógrafo, Vaslav Nijinsky (1889
- 1950) e de seu compositor, Claude Debussy (1862 - 1918), com a obra, bem como
suas inserções como artistas no meio da dança e da música de sua época e local.O foco e objeto deste estudo é o significado inovador da música de Debussy
e do ballet de Nijinsky para a arte da música e da dança, bem como o difícil
processo de inserção desta "arte nova" na sociedade européia de então. Ocupo-me
do impacto causado pelo surgimento deste ballet, uma obra de arte que compõe,
entre outras, o quadro da vanguarda artística do início do século XX. Ressalto que
"vanguardas" são em grande parte ou muitas vezes mal compreendidas,
principalmente quando do impacto de seu surgimento. Os grupos sociais queestiveram em contato com o L'Aprés-midi d'un Faune neste momento foram: o
público (em sua maioria formado pela burguesia freqüentadora dos teatros, salões
e saraus, ou artistas e intelectuais), os músicos contemporâneos a Debussy, os
bailarinos e coreógrafos da companhia de Nijinsky, e os críticos.
Em L'Après-midi d'un Faune, a revolução já se principia com Debussy, em
1892-94, ao compor este prelúdio para flauta e orquestra. As obras orquestrais de
Debussy constituem-se em jogos harmônicos sutis em que a melodia parece sedissolver. Não há melodia encerrada, ou repetição de acordes fechados, como na
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música clássica tradicional de até então. Ele inova dando importância excepcional
aos acordes isolados, aos timbres de cada instrumento, às pausas, ao contraste
entre os registros. E aproveita esta valorização dos timbres instrumentais fazendo
com que cada instrumento e cada toque sugira um personagem ou situação.
É assim que sua música constitui-se em sugestão, é impressionista e não
narrativa. As melodias são sugeridas. Parecem não ter contornos definidos. Debussy
expressa magistralmente a sensibilidade de uma época através da subjetividade na
música. Basta um pequeno toque, uma impressão, para todos entendermos e
sentirmos do que se está tratando. Em Prélude a L’Après-midi d’un Faune, a
intensa exploração dos sons dos sopros numa rica combinação, forma uma sugestão
melódica que nos leva aos mundos fantásticos de faunos, ninfas, fadas... Etransporta-nos, através do misterioso inconsciente - que então estava tão em voga
pelas recentes descobertas de Freud. Assim como o inconsciente que, descobriu-se,
é um mundo imprevisível e infinito, sem cercas, este poema sinfônico parece
levitar, fugir, esquivar-se e retornar atrevidamente como seu fauno.
Otto Maria Carpeaux, ao analisar a música de Debussy diz:
"Não é uma arte dinâmica, como a de Haydn e Beethoven, mas estática: os
acordes são como pontos de parada sonoros. Têm a mesma função dos símbolosverbais da poesia simbolista, da qual Debussy também é contemporâneo."
(CARPEAUX,2003, pg. 389)
Falando especificamente sobre o L'après-midi, Carpeaux afirma:
"Escreveu para orquestra o Prélude a L'après-midi d'un Faune
(1894), ilustrando (sem «programa», naturalmente) o poema de
Mallarmé: sua primeira obra inteiramente impressionista e, até hoje, a
mais famosa e mais executada; a que causou maior estranheza na época
(pela «falta de melodia») e que ainda hoje é capaz de assustar os não-
iniciados." (CARPEAUX, 2003, pg. 389)
Inicialmente a música de Debussy foi até mesmo considerada por músicos
contemporâneos seus como sendo "bonita, mas não é música" (Cf. CARPEAUX,
2003:387). Esta afirmação veio dos seguidores da escola de Cesar Franck, seus
colegas mais próximos. Segundo Carpeaux, há nesta afirmação algo de plausível,
posto que a música de Debussy é realmente diferente de qualquer outra, anterior
(Cf. CARPEAUX, 2003:387). Com ele e, sobretudo a partir dele, o conceito de
música se ampliou e se modificou. Debussy é uma das portas que se abriu para queas mudanças paradigmáticas em música se multiplicassem e para que a criação de
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novas escolas e novas formas musicais ocorressem com a chegada do novo século. A
música de Debussy trouxe germes de politonalidade, e elementos que seriam
desenvolvidos por seus sucessores até se chegar à música atonal. O que impressiona
os sentidos é fundamental para Debussy. Ele mesmo declarou:
"Não se escutam os mil ruídos da natureza que nos cerca; não há
disponibilidade interior para esta música tão diferente... ; vivemos até hoje no meio
delas, sem tomar conhecimento disto. Abre-se aqui, a meu ver, o novo caminho."
(KIEFER, 1986, pg. 33, apud Renner, Hans. "Geschichte der Musik". Deutsch
Verlags-Anstalt, Stuttgart, 1965, p.531.)
Ao longo dos anos, sua revolução estrutural da música foi sendo
compreendida, assimilada e desenvolvida. Assim mesmo, na maioria das vezes,
composições de vanguarda como as de Debussy e de tantos outros, eram (e são)
ouvidas com desgosto pelo público leigo, acostumado com "música para diversão".
Debussy e Nijinsky distanciam-se no tempo, porém os feitios de suas obras se
aproximam não apenas pelo acaso deste ballet, mas por um aspecto peculiar e de
extrema importância para o desenvolvimento artístico da música e da dança no
mundo. Um francês e outro russo, ambos não fizeram escola. Porém foram pontos
paradigmáticos de mudança num mundo que começava a deixar de ser tão grande e
tão pequeno, para se tornar cosmopolita.Os dois gênios, cada um a seu tempo, foram arautos de uma nova era,
apontando a possibilidade e necessidade de outras estruturas na música e na
dança. A partir de seus questionamentos, de sua nova proposta estética, foram
desenvolvidas novas escolas e novas estéticas nessas duas artes.
Entre 1894 e 1912 (entre o Prélude à L'Après-midi d'un Faune e o ballet
homônimo), muita coisa aconteceu. Porém, tal como num mito, em que o tempo
não existe, 18 anos após a cesta do fano de Debussy, surgiu o ballet para esta obraorquestral, criado pela figura também lendária de Nijinsky. A coreografia e a
dança deste ballet é explicitamente sensual, revelando sutilmente o impulso
bárbaro e selvagem de fauno1. Nela Nijinsky priorizou o trabalho de expressão
artística em detrimento do virtuosismo. Ele chama atenção a que a dança pode ser
feita também por um olhar, uma posição. Os saltos e giros, pernas altas e
acrobacias não são tudo em dança.
1 Note-se que, falando distintamente da coreografia, e da dança, atento para a peculiaridade da interpretação de
Nijinsky, marca principal pela qual se torna uma figura mítica no ballet clássico.
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A dança de Nijinsky mostrou uma nova estética, e a possibilidade de
desenvolvimento de outros caminhos para o movimento do corpo a partir da
anatomia humana. Tamara Karsavina2 de certo modo também atentou para a nova
estética presente nos ballets de Nijinsky:
"Fokin3había desarrollado al máximo las posibilidades plástias haciendo
ceder el cuadro rígido em el cual se había encerrado el ballet; su obra era audaz
aunque su ideal de belleza era el mismo qeu sus predecesores. Al lado de la
armonía tradicional y de la dulzura de las líneas, la visión de la Grecia arcaica, tal
cual Nijinsky la evocaba en La siesta de un fauno y en La consagración de la
Primavera , parecía un desafío; chocaron sus movimientos bruscos y quebrados,
que traducían la barbarie de las tribus primitivas. El arcaismo y la pre-história
inspiraron el modernismo del ballet ruso. En La consagración y en La siesta de
un fauno, Ni ji nsky declaró la guerra al romanti cismo y dij o adiós a todo lo
«bonito»." (KARSAVINA, 1931, pg. 191, grifo meu.)
É importante ressaltar que a breve carreira de Nijinsky como coreógrafo tem
dois motivos: o primeiro - e menos importante - foi sua marca maior como
bailarino, virtuose e mago da transmissão de sensibilidade através da dança. O
segundo motivo, mais trágico e mais forte, foi sua imensa dificuldade em se
comunicar, vivendo num mundo à parte e tratado pela sociedade da época como
louco. Vítima de esquizofrenia - ao que consta - Nijinsky freqüentemente tinha
impasses terríveis, em primeiro lugar, com os bailarinos aos quais deveria
comunicar o que pretendia em suas coreografias. Segundo relatos de sua
companheira profissional e melhor amiga, Tamara Karsavina, os ensaios eram
penosos e dolorosos. Em centenas de ensaios para levar à cena seus ballets, os
bailarinos eram obrigados a realizar posições exatamente contrárias e totalmente
estranhas às quais estavam acostumados e haviam aprendido.
Em L'Après-midi as posições dos pés, mãos e cabeça, e todas as
movimentações são laterais, ao passo que o corpo permanece de frente para o
público, com o fim de imitar as imagens desenhadas nos vasos da Grécia Arcaica.
2 Estas são memórias escritas pela bailarina, figura proeminente para a renovação do ballet clássico de então.
Suas memórias constituem-se em fonte importantíssima para qualquer trabalho que envolva os Ballets Russes, e
requer estudo cuidadoso e aprofundado. No momento serão utilizados alguns pareceres seus a respeito do
L'Après-midi, apenas.3 Primeiro coreógrafo oficial dos Ballets Russes de Diaghilev. Autor de ballets belíssimos e revolucionários
como Petroushka, Le Coq d'Or, Scheherazade, Polovtsian Dances du Prince Igor, entre tantos outros. Após aadmissão de Vaslav Nijinsky em 1912 como coreógrafo, Fokine pediu demissão, retornando novamente à
Companhia anos mais tarde.
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Pois é da mitologia grega que surgiu a inspiração do coreógrafo para retratar o
sonho do fauno4. Quando um bailarino precisa mudar a direção de seu caminhar, a
virada é feita de forma brusca, com movimentos cortados repentinamente,
passando ao público uma imagem bidimensional e chapada. Esta situação integrava
na época todo um experimentalismo técnico do coreógrafo, que dificultava a
compreensão e execução dos bailarinos. Nas palavras da bailarina Tamara,
"Nijinsky carecía del don de las ideas netas y todavia menos podía
expresarse em términos claros. (...) durante los ensayos de "Juegos", no conseguia
explicar lo que queria de mi, y era difícil aprender un papel según el procedimiento
mecánico que consiste em imitar las poses que nos muestran. Como devia tener la
cabeza vuelta a un lado y permanecer com lãs manos juntas como si fuese lisiada
de nacimiento, me hubiera facilitado el trabajo saber a qué correspondían esos
movimientos. Ignorando su razón de ser, retomaba de tanto em tanto mi forma
normal y poco a poco Nijinsky pareció creer que ponía mala fé em
obedecerlo."(KARSAVINA, 1931, pg. 192)
Apesar de referir-se, aqui a outro ballet de Nijinsky - Jeux , de 1912-13 -
criado imediatamente após L'aprés-midi, este relato de Tamara Karsavina serve
como referência ao clima de dificuldades dos ensaios do fauno também. Pois os
relatos bibliográficos, assim como a tradição oral sobre a história dos ballets russes
e sobre o ballet do fauno falam dos mesmos impasses sofridos em L'aprés-midi e em
Sacre du Printemps. Assim sendo, o depoimento da vivência da bailarina vem
reafirmar o que se conhece pela tradição oral e escrita sobre a repercussão da
coreografia de Nijinsky, bem como sobre seus ensaios na época.
Para além de sua esquizofrenia, Nijinsky era "estranhado" também por sua
personalidade e criação artística que irrompia com as tradições e protocolos sociais
de então. Entre "libertinagens" (aliás, próprias do meio artístico de Paris das
décadas de 1910 e 20), e a relação amorosa com Diaghilev, Nijinsky também foi
contemporâneo e amigo da rebelde bailarina Isadora Duncan. Como ela, foi um
caráter questionador das artes e da sociedade de sua época. Com suas danças,
nenhum dos dois desenvolveu um corpus teórico que fizesse escola. Porém
levantaram questões relevantes e controvertidas para o mundo da dança. Através
de suas danças e seus comportamentos, provocaram impacto e proporcionaram
4 Bem como a inspiração para o poema de Mallarmé e a música de Debussy. As três obras estão ligadas entre si,
e ao mito grego.
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reflexões e respostas diversas, as quais puderam dar continuidade não só à
produção artística, como ao papel social da dança.
Naturalmente Isadora e Vaslav não foram únicos em suas manifestações.
Muito pelo contrário, participam de um momento histórico efervescente na
produção artística e intelectual, que se refletiu sobremaneira na renovação da
dança e da música. O início do século XX foi até mesmo denominado como o
renascimento da dança por críticos e artistas da época, afirmação esta que não
deixa de ter validade.
Uma vez concebido o tema para o ballet L'aprés-midi5, o coreógrafo
trabalhou os movimentos de forma inovadora. A coreografia de Nijinsky deixou
praticamente de lado a técnica do ballet clássico. Este se tornou um ballettotalmente experimental. Nijinsky foi enfático em priorizar a expressão dos
bailarinos. Sua obra estava, neste ponto, em plena sintonia com o impressionismo
de Debussy. Assim como a música, o ballet não era em nada narrativo, apenas
sugerindo as sensações dos sonhos de um fauno.
Além disso, estamos diante da reivindicação da expressão de sentimentos,
vivências e mitos que há muito havia desaparecido na dança acadêmica. Fala-se
aqui da grande sensualidade e erotismo que Nijinsky devolveu à dança. Se a dançaé arte e expressão da alma, este é o ballet do início do século XX que mostra isto
por excelência. Deixando de lado o virtuosismo que muitas vezes sobrepunha-se à
expressão, ele explora ao máximo o espírito. Em sua interpretação, diz-se que
Nijinsky era pura expressão, como se quisesse trazer a alma para fora do corpo.
Uma das premissas de Fokine, sobre a importância de dançar até com os olhos, as
pontas dos dedos, e todo o corpo, foi levada ao extremo com Nijinsky, como
bailarino e coreógrafo.Em seus bailados, enquanto coreógrafo, Nijinsky extinguiu radicalmente as
convenções de tratamento feminino e masculino existentes na tradição do ballet
5 Cf. BEAUMONT, Cyril, "O Livro do Ballet: Um Guia dos Principais Bailados dos Séculos XIX e XX." Ed.
Globo, POA/SP, 1953 [1938], pg.724, existe um relato de Stravinsky indicando a colaboração de Bakst e
Diaghilev do inicio ao fim da criação deste ballet. Segundo seu depoimento, a idéia de imitar os desenhos gregos
e colocá-los em movimento teria vindo de Bakst, por exemplo. Há controvérsias sobre estes depoimentos, pelo o
que atestam também documentos de Romola Nijinsky. Para o momento esta discussão não é prioritária, embora
caiba colocar a questão. Penso também ser muito natural que numa criação artística surja a colaboração de
diversos lados, sobretudo em um ambiente como o dos Ballets Russes em que vários artistas, das diferentes áreastrabalhavam juntos.
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clássico: o pas-de-deux , a presença do homem como suporte da mulher, a leveza
permanente e quase mágica da mulher em seus sapatos de ponta. Uma linguagem
experimental foi trabalhada no próprio corpo de Nijinsky, fora dos bailarinos que
posteriormente ensaiou. Isto marca grande diferença com relação ao rico e
tradicional esquema técnico e teórico do ballet, composto de passos precisamente
conceituados, nomeados, difundidos e estudados. Toda esta teoria e técnica
complexa do ballet clássico faz com que o trabalho coreográfico se torne mais
objetivo, pois para o coreógrafo compete elaborar uma seqüência de passos que
correspondam a sua idéia e sensibilidade e após, dizer a seus bailarinos quais
passos devem executar.6 Esta é uma forma seca e sucinta de falar sobre a criação
de um ballet, entretanto ilustra um pouco a ruptura realizada pelas formas dedança contemporânea surgidas com Nijinsky e outros coreógrafos pesquisadores de
dança, de sua época.
Em L'Aprés-midi d'un Faune, Nijinsky tornou a figura masculina central, e a
feminina muito mais figurativa. Mas para além de desfazer definitivamente a idéia
de que ballet é uma arte para mulheres, ele devolveu a interatividade entre os
sexos sobre o palco. Ou seja, devolveu à dança um de seus elementos talvez mais
imanente, que é a sensualidade e o erotismo. Apesar disto, é curioso como ocontato físico entre homens e mulheres neste ballet é quase inexistente (ao
contrário da tradição, na qual a bailarina é sempre sustentada e amparada por seu
partner ). Penso que esta ausência de contato direto pode vir a reforçar novamente
o caráter impressionista deste ballet, à moda da música sugestiva, e mesmo da
pintura homônima do século anterior.
Apesar de todo o erotismo devolvido à dança através do fauno (e sobretudo
do fauno interpretado por Nijinsky!), o clímax do escândalo e mal-estar do públicodeu-se ao final dos 8.47 minutos de espetáculo de estréia, com a simulação de
masturbação feita pelo bailarino no palco, como num " grand final" do ballet. Para
as seguintes representações da obra, este gesto foi obviamente substituído ou
mesmo, eliminado.
Tamara Karsavina que na noite de estréia não dançava e estava na platéia,
relata assim o fato:
6 Esta comparação também é usada por GARAFOLA, Lynn em "Reconfiguring the Sexes" , pg. 255, artigo do
livro de sua organização, intitulado "The Ballets Russes and it's World", Yale, NY, 1999
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"La primera representación de La siesta de un fauno com Nijinsky se
ofreció en París y provocó un gran tumulto. El público aplaudió, aulló, silbó, se
produjo una querella entre dos palcos; pero dominando el estruendo, se oyó una
voz que gritaba: «Dejad acabar el espetáculo!». Diaghileff se irguió en el fondo de
la platea y su intervención calmó la excitación del auditorio y permitió que la
función terminara. " (KARSAVINA, 1931, pg. 191).
Esboçando uma conclusão sobre essa exposição e reflexões iniciais, coloco a
seguir algumas questões pertinentes ao L'Aprés-midi d'un Faune e sua época.
Pensando a respeito das sensibilidades de um tempo e suas contradições, detenho-
me primeiramente na idéia de representar o suposto movimento do baixo-relevo
grego. De um lado temos a representação pictórica de um movimento real e de
outro, a imagem do movimento concretizada neste ballet: os personagenscaminhando e dançando como se estivessem num espaço bidimensional, apenas. Os
desenhos, dotados de uma estética estranha à estética plástica ocidental moderna,
apresentam figuras chapadas e bidimensionais, com uma perspectiva também
chapada. O movimento, impossível de ser ali representado, é fragmentado,
quebrado e estático. Na realidade não há movimento.
Da mesma forma foi criado o ballet, com seus movimentos laterais, viradas
abruptas, cabeças em direções disformes ao corpo, aos pés e às mãos. Eis aqui maisuma similaridade entre o ballet e a obra de Debussy, já dita por Carpeaux uma
obra musical estática, com acordes isolados, o que a difere fundamentalmente das
obras anteriores.
Mas a questão histórica aí presente trata, antes de tudo, da sensibilidade de
Nijinsky e seus colegas sobre as figuras de "movimento estático". Uma sensibilidade
tão enraizada e objetiva, que chega a ser trazida a cena quase como se fosse
óbvia. A interpretação dos desenhos feita por Nijinsky foi diferente do caminhomais comum de uma leitura adulta, que seria perceber a impossibilidade de se
representar o espaço tridimensional numa superfície chata. A interpretação
adotada para este ballet colocou um questionamento extremamente pertinente
envolvendo análise histórica de imagens e sensibilidades. Ironicamente, ou
propositadamente, quem pensou o movimento bidimensional para o ballet, fez um
caminho inverso: da abstração chegou a uma conclusão literal e infantil sobre os
desenhos. Aliás, a imagem expressada em movimento de forma infantilizada me fazrecordar também outros artistas desta época, como René Magritte, cujas obras são
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sulrrealistas. Críticos de arte consideram o processo de pensamento de Magritte
como uma expressão espontânea e infantil da realidade. Sendo que algumas de
suas pinturas7 questionam diretamente nossa abstração ocidental que se quer tão
onipotente. Creio que no caso do ballet L'Aprés-midi d'un Faune também nos vemos
diante da possibilidade de outras interpretações sobre as representações arcaicas
que chegaram até nós. Será que não passou pelos diálogos de Bakst, Nijinsky e
Diaghilev, a pergunta: "E quem disse que os gregos antigos não dançavam
realmente assim como estão representados nos vasos?". Ainda que esta possa ter
sido uma expressão em meio a brincadeiras, e que aqui sugiro de forma lúdica
também, a questão principal que se coloca é a respeito de nossa visão única sobre
as coisas, e sobre as sociedades que não conhecemos.Juntando-nos ao questionamento de Nijinsky e companhia, recordo aqui mais
uma vez a visão que nós, pesquisadores e artistas do pós-televisão, temos sobre a
Grécia antiga. Pelo cinema temos uma reconstituição inegavelmente bem feita das
vidas daquelas centenas e milhares de anos anteriores a nós, porém uma
construção nossa e atual. Essas são imagens e movimentos ainda mais atuais do que
as reconstituições possíveis na fantasia dos artistas do final do século XIX e início
do XX. Qual terá sido, então o caminho fantasioso percorrido por aqueles homens,até chegarem aos movimentos bidimensionais de L'Aprés-midi? Se as imagens que
chegaram a eles sobre os dançarinos gregos foram aquelas dos baixo-relevo dos
vasos, qual teria sido seu primeiro impulso a respeito do movimento ali
representado? Enfim, todas estas são conclusões e questões pertinentes ao
contexto vivido por Nijinsky. Não só a seu contexto individual como pode ter sido
algo comum à sensibilidade imagética na Europa de toda uma época!
E Finalmente, deparamo-nos com mais outro impacto, de uma aparentecontradição: a da representação arcaica, transformada pela interpretação de
artistas do século XX. Dela surge uma nova estética, diferente de qualquer coisa
que posa ter sido vista ou imaginada tanto na Grécia antiga como na modernidade
ocidental. Surge uma dança moderna, um ballet ora contemporâneo, ora
extemporâneo, que aponta para as mais inesperadas possibilidades a serem
experimentadas e desenvolvidas.
7 Tomemos por exemplo, os quadros "Ceci n'est pas une pipe" e "Ceci n'est pas une pomme".
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Bibliografia
BEAUMONT, Cyril. "O Livro do Ballet: Um Guia dos Principais Bailados dos Séculos
XIX e XX." Ed. Globo, POA/SP, 1953 [1938].
CARPEAUX, Otto Maria. "Livro de Ouro da História da Música". Ediouro, SP, 2003
FIGES, Orlando. "Natasha's Dance: A Cultural History of Russia". Penguin Books,
London, 2002.
GARAFOLA, Lynn. "The Ballets Russes and its World". Ed. Yale, NY, 1999.
KIEFER, Bruno. "Villa-Lobos e o modernismo na Música Brasileira". Ed. Movimento,
1986.
WISER, William. "Os Anos Loucos: Paris na década de 20". José Olympio Editora,RJ, 1995.
Fontes:
KARSAVINA, Tamara. "Los Ballets Rusos". Ed. Schapire, Buenos Aires, 1953 [1931].
DEBUSSY, Claude. "Prélude à l'aprés-midi d'un faune". Gravação da Finnish Radio
Symphony Orchestra , Holanda,1993.NIJINSKY, Vaslav. " L'après-midi d'un faune". Ballet em um ato e uma cena.
Remontagem para o filme de Herbert Ross, "Nijinsky", com o bailarino e ator
George de la Peña, Inglaterra, 1980.