APRESENTAÇÃO EDUCAÇÃO E fiLOSOfiA NA ERA DA BARBÁRIE...

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APRESENTAÇÃO EDUCAÇÃO E fiLOSOfiA NA ERA DA BARBÁRIE SOCIAL Oiovanni Alves * "Nosso tempo está desnorteado" Ifamlet, Ato L cena 4, Wiliam Shakespeare No decorrer dos últimos trinta anos de crise estrutural do capital, marcada pela intensa reestruturação capitalista, que atinge as mais diversas instâncias do ser social (com a mundialização do capital e a constituiçâo do novo bloco his- tórico neoliberal, alterando a forma de ser do Estado políti- co do capital, transfigurando a objetividade e subjetividade do mundo do trabalho), emerge nova estrutura da sociabili- dade capitalista isto é, o que denominamos de sociome- tabolismo da barbárie, elemento qualitativamente novo da dinâmica social global que expressa desafios candentes para o pensamento e a atividade do homem. O metabolismo social da barbárie é produto histórico das derrotas políticas da classe do trabalho no século XX. É um novo espaço-tempo histórico do processo civilizatório afetado de negação. Ele é marcado pelos múltiplos proces- sos de negação do ser genérico do homem, processo de dessocialização que trava as possibilidades concretas de transcendência da ordem burguesa. _ Estamos tratando de uma época histórica com uma den- sidade social qualitativamente nova, que expõe um novo campo de sociabilidade estranhada, marcada pelo agudo fetichismo social. Alguns falam em fechamento do horizon- te utópico no Ocidente (Perry Anderson) ou ainda, esgota- • Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP;Professor livre-docente em sociolo- gia da UNESP-Campusde Marilia; pesquisador do CNPq; coordenador da RET (Rede de Estudos do Trabalho) e do Projeto de Extensão Tela Critica. ~EKGj-\rv IJ BCCEJUFC

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APRESENTAÇÃO

EDUCAÇÃO E fiLOSOfiA NA ERA DA BARBÁRIE SOCIAL

Oiovanni Alves *

"Nosso tempo está desnorteado"Ifamlet, Ato L cena 4,Wiliam Shakespeare

No decorrer dos últimos trinta anos de crise estruturaldo capital, marcada pela intensa reestruturação capitalista,que atinge as mais diversas instâncias do ser social (com amundialização do capital e a constituiçâo do novo bloco his-tórico neoliberal, alterando a forma de ser do Estado políti-co do capital, transfigurando a objetividade e subjetividadedo mundo do trabalho), emerge nova estrutura da sociabili-dade capitalista isto é, o que denominamos de sociome-tabolismo da barbárie, elemento qualitativamente novo dadinâmica social global que expressa desafios candentes parao pensamento e a atividade do homem.

O metabolismo social da barbárie é produto históricodas derrotas políticas da classe do trabalho no século XX. Éum novo espaço-tempo histórico do processo civilizatórioafetado de negação. Ele é marcado pelos múltiplos proces-sos de negação do ser genérico do homem, processo dedessocialização que trava as possibilidades concretas detranscendência da ordem burguesa. _

Estamos tratando de uma época histórica com uma den-sidade social qualitativamente nova, que expõe um novocampo de sociabilidade estranhada, marcada pelo agudofetichismo social. Alguns falam em fechamento do horizon-te utópico no Ocidente (Perry Anderson) ou ainda, esgota-

• Doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP;Professor livre-docente em sociolo-gia da UNESP-Campusde Marilia; pesquisador do CNPq; coordenador da RET(Rede de Estudos do Trabalho) e do Projeto de Extensão Tela Critica.

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mento das energias utópicas (Jurgen Habermas). Na ver-dade, constitui terceira modernidade do capital imbuídada lógica cultural do pós-modernismo (FrederickJameson) que altera os referentes éticos (e estéticos) dapráxis social.

A crise estrutural do capital não significa estagnação daeconomia capitalista mundial. Pelo contrário, nas últimasdécadas, com a emergência da China no mercado mundial,o "sujeito" capital expande-se de forma exuberante, consti-tuindo o admirável mundo novo da "sociedade global". Cri-se estrutura/significa aguda explicitação dos limites produ-tivos (e sócio-reprodutivos) da ordem global do capital, ex-postos pela desmedida do valor e pela pletora de contradi-ções sociais que dilaceram o ser genérico do homem naetapa avançada do processo civilizatório.

A natureza da crise estrutural do capital é a impossibili-dade do sistema social realizar as promessas contidas noprocesso civilizatório, contradições que assumem hic et nunc"Umadimensão qualitativamente nova. Deste modo, coloca-se com urgência a necessidade de investigações sociológi-cas capazes de apreender a teia complexa das novas contra-dições do capital e as possibilidades da práxis critico-radi-cal emancipatória.

Nos primórdios do século XX, Rosa Luxemburg, tradu-ziu, no lema "socialismo ou barbárie", a encruzilhada da ci-vilização burguesa na fase do imperialismo clássico. O soci-alismo do século XX, porém, foi derrotado pelo cerco capi-talista do mercado mundial e pelo fracasso das experiênci-as pós-capitalistas, incapazes de instaurar uma nova ordemsocial para além do capital.

Maisdo que nunca, põem-se no plano do pensamento anecessidade da imaginação dialética e o compromissoepistemológico com o método histórico-materialista. Na erada barbárie social, somos instigados a constituir novos refe-rentes teórico-categoriais, capazes de transpor o universoclássico da esquerda marxista, ainda vinculados ao paradigmapraxiológico da época de ascensão histórica do capital. A

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barbárie social do capital é um desafio ao pensamento e aatividade do homem que trabalha. Enfim, como constituir osocialismo necessário nas condições históricas da barbáriesocial? Quais os alcances (e limites) do pensamento críticoe da práxis radical de esquerda diante da ordem social dabarbárie do capital? Como pensar a Filosofia e a Educaçãona era da barbárie social?

William Shakespeare abre sua peça clássica ffamletcoma aparição de um espectro que assola o Reino da Dinamar-ca. Na verdade, o fantasma do Rei Hamlet é sintoma de umtempo de barbárie que assola o Reino da Dinamarca. É inte-ressante que Marx e Engels abrem o Manifesto Comunistaproclamando a aparição de outro espectro: "Um espectroronda a Europa - o espectro do comunismo". Eram temposde revolução social no Continente Europeu. Em nossos dias,nos primórdios do século XXI, um espectro ronda o mundoglobal do capital, o espectro da barbárie social, marcado pelodesemprego em massa, precarização do trabalho e a novaprecariedade salarial.

Traçando paralelos com a peça clássica de Shakespeare,podemos dizer que o capitalismo global é hoje uma imensacorte dinamarquesa. Somos todos ríamlet, príncipe da Dina-marca. Na cena IV do Ato I, Marcelo exclama: "Há algo depodre no reino da Dinamarca". Na peça de Shakespeare. oreino da Dinamarca está assolado pelo estado de guerra epor uma aguda crise moral. Como o mundo social de ríamlet.o mundo burguês da modernidade tardia é uma época deagudos estranhamentos sociais. Coisas estranhas acontecemno mundo do capital. Na cena seguinte da peça. deShakespeare, diante de Horácio que se assusta com o que é"espantosamente estranho" - a aparição do espectro -, Hamletexclama: "Portanto, como estranho, deve ser bem recebido.Há mais coisas no Céu e na terra, Horácio, do que sonha tuavã filosofia."

Ora, em seu discurso, Hamlet exige de nós nova atitudecognitiva capaz de recepcionar (e criticar) o estranho, que éhoje o novo metabolismo social da barbárie que constitui omundo burguês. O imperativo crítico-cognitivo de Hamlet é

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também um imperativo ético-moral ou prático-sensível ca-paz de reaver o núcleo humano dilacerado pelo fetichismosocial. A barbárie social põe como necessidade histórica,uma nova práxis emancipatória. Altera-se o sentido da Edu-cação e da Filosofia: a primeira se põe como formação hu-mano-crítica e a segunda como práxís crítico-reflexiva.

Como o tempo social de ffamlet, o tempo histórico damodernidade tardia é também um tempo de urgência moral.O solilóquio de liamlet na cena I do Ato 3, que principia como mote clássico "Ser ou não ser - Eis a questão", situa nasentrelinhas o duplo imperativo moral da ação radical e dareflexão critica. Isto é, liamletjá acusava que o velho pensa-mento (e ação) contemplativa não nos serve mais. Enfim, adimensão histórica da modernidade do capital exige umanova episterne prático-sensível. Por isso, Marx diria na 11ª.Tese sobre Feuerbach: "Os filósofos interpretaram o mun-do de forma diferente, porém o que importa é mudá-lo". Éexpressa, deste modo, a necessidade da práxís cujo nexoíntimo é constituído pela ação reflexiva e pela reflexão práti-co-sensível. O que importa é mudar o mundo, por isso areflexão, sem o telos crítico do compromisso com a emanci-pação social, é mera covardia. Foi nesse sentido que ríamlet,em seu solilóquio clássico, exclamou:

E assim a reflexão faz todos nós covardes/E assim omatiz natural da decisão/Se transforma no doentio páli-do do pensamento/E empreitadas de vigor e coragem/Refletidas demais, saem do seu caminho/perdem o nomede ação.

O que ffamlet (e Marx) critica não é a reflexão tout court,mas a reflexão posítívísta. academicista, meramente contem-platíva, não comprometida com a emancipação social e acrítica efetiva do mundo burguês. Pelo contrário, hoje maisdo que nunca, reflexão e ação, pensamento e atividade com-põem um imperativo ético-moral capaz de recobrar a inter-venção crítica estratégica comprometida com a construçãodo novo metabolismo social para além do capital.

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Este longo excurso serviu apenas para salientar que olivro Trabalho, Filosofia e Educação no Espectro da Noder-nidade Tardia é uma relevante contribuição para uma refle-xão radical no campo da Filosofia e da Educação na perspec-tiva do trabalho. É uma contribuição original ao pensamentocrítico que resiste à episteme fetichizada de cariz pós-mo-dernista. Os ensaios que compõem o livro reafirmam os prin-cípios epistemológicos de um pensamento radical que bus-ca recuperar, na óptica do trabalho, a dimensão transcen-dente da ordem social do capital. O pensamento pós-moder-no que viceja na Academia é meramente contemplativo. É areflexão covarde, como diria Hamlet. Na ordem do socíome-tabolismo da barbárie, o pensamento crítico comprometidocom o movimento socíal que nega o estado de coisas tor-na-se uma necessidade radical. apta a reaver o núcleo hu-mano de homens e mulheres desefetivados. Enfim, estelivro é um exemplo de um novo estilo de pensamento cri-tico, que busca resgatar, com vigor, novas abordagensinterdisciplinares (ou transdisciplinares) na área da Edu-cação e Trabalho.

mPERGAM IVI

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