Arroyo, Monica. A economia dos invisíveis

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Novos paradigmas I

A economia invisível dos pequenos

À margem dos circuitos oficiais, uma multipl icidade de atores econômicos de porte modesto preenche os interstícios dos

grandes negócios, preservando o espaço urbano como um território de cultura, vida e liberdade – uma resposta à

segregação social da metrópole capitalista

por Mônica Arroyo

É importante enxergar a cidade sempre como uma totalidade, independentemente de seu tamanho ou localização. É

preciso entendê-la como o lugar da produção e reprodução da vida social e como o lugar da própria vida,compreendendo o homem em todas as dimensões da sua existência, para além do trabalho e do consumo. Ela permite, mais do que qualquer outro lugar, a coexistência dos diferentes, abrigando uma multiplicidade de redes,fluxos, conexões, projetos, representações e interpretações. É importante, outrossim, entendê-la como umatotalidade dentro de outras duas totalidades – o mundo e a formação socioespacial (nacional) –, que, por sua vez, seexpressam e se concretizam nela. Esse movimento imbricado que determina seu dinamismo e sua espessura émaior à medida que aumenta o número de eventos e de agentes envolvidos. No período atual, as cidades estãocada vez mais sintonizadas com o ritmo do mundo e do país, como resultado da presença da ciência, da tecnologiae da informação no meio geográfico, o que facilita essa interdependência. Todavia, a forma e a intensidade que essasintonia adota mudam de cidade para cidade, em função principalmente do lugar que cabe a cada uma delas na rede

urbana nacional e mundial, em constante transformação. Como se articula essa totalidade? Quem dá unidade a esse movimento? Uma das formas de nos aproximarmosdessa questão poderia ser por meio da análise dos circuitos espaciais de produção1, que abarcam as diferentesfases do processo geral produtivo (produção propriamente dita, distribuição, comercialização e consumo), formadospor empresas de diversos tamanhos voltadas para um determinado bem ou serviço, e que atingem de formaarticulada diferentes frações do território. Essa articulação se expressa pelo movimento de inúmeros fluxos deprodutos, idéias, ordens, informação, dinheiro, excedente. Enfim, pela circulação. Assim, cada fração do territóriopode ser alcançada por uma ou várias fases de um ou vários circuitos de produção, o que permite explicar suainserção na divisão interna e internacional do trabalho. Existem circuitos espaciais da produção extremadamente dispersos, e outros altamente concentrados no território.

Há circuitos totalmente extrovertidos, vinculados ao mercado externo e, portanto, muito influenciados por uma lógicamundial, enquanto outros começam e terminam num único sub-espaço, que vai desde a produção até o consumo nomesmo distrito de uma cidade. A escala geográfica de ação dos diferentes circuitos constitui um princípio deorganização espacial, criando um tecido cuja forma, extensão e complexidade estão mudando permanentemente.Mesmo que as fases ou momentos produtivos se desenvolvam de forma geograficamente dispersa, inclusive paraalém das fronteiras nacionais, haverá sempre uma unidade do movimento que permite indicar como cada fração doterritório é interdependente das demais. Os circuitos espaciais de produção são, portanto, úteis para revelar o quantoo trabalho é comum, solidário e circular.

É na encruzilhada da circulação, das redes e dos fluxos que as cidades crescem, na medida em que conseguem ser ponto de confluência de diversos circuitos produtivos. E todo esse movimento, por sua vez, lhes outorga uma vidade relações mais ou menos intensa. Esses atributos não são exclusivos das metrópoles ou das grandes cidades,

mas podem ser encontrados também nas cidades médias e pequenas, onde se tornam um elemento dediferenciação entre elas. Outra forma de nos aproximarmos da totalidade que a cidade representa é por meio da análise dos dois circuitos daeconomia urbana2 que envolvem atividades e agentes com diferentes níveis de capital, trabalho, organização e

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tecnologia. O circuito superior e o inferior têm a mesma origem: são resultado da modernização seletiva eincompleta que caracteriza a urbanização dos países subdesenvolvidos e coloca grande parte da populaçãopraticamente à margem do usufruto do processo de acumulação. Uns preocupados em acumular capital para arenovação da atividade e sua expansão, em função das exigências tecnológicas, e outros preocupados com asobrevivência da família. Da mesma forma, essa modernização atinge seletivamente alguns pontos da cidade,privilegiando cada fração do espaço urbano com diferentes intensidades e velocidades e criando condições distintaspara as atividades econômicas.

Ao mesmo tempo, os dois circuitos da economia urbana servem para entender a cidade como totalidade, já que eles

se relacionam entre si por meio da cooperação, da concorrência e/ou da subordinação. Os circuitos superior einferior interagem e participam do movimento que se desenvolve dentro da mesma cidade: trata-se de um único meioconstruído, embora desigual e fragmentado, e de um único mercado, embora fortemente segmentado.

Podemos pensar as cidades a partir da justaposição desses dois tipos de análise. Seria uma forma, talvez, deentender a complexidade que as circunda de forma crescente. No caso dos circuitos da economia urbana, enfocar-se-ia mais o agente econômico (circuito de firmas), independentemente do ramo; no caso dos circuitos espaciais deprodução, enfocar-se-ia mais o ramo (circuito de ramo), envolvendo todas as firmas que nele participam. Importanteobservar, por exemplo, que o circuito inferior sempre faz parte de um circuito espacial de produção, quer por estar interligado pela comercialização direta, fornecendo ou comprando algum tipo de insumo, quer porque ele mesmoforma um circuito produtivo completo que afeta a fabricação, a distribuição, a comercialização e o consumo de bense serviços.

Lugar privilegiado na hierarquia nacional

Nesta perspectiva, qual é a especificidade das grandes cidades da América Latina e, particularmente, doBrasil? Desde sua gênese e ao passo que se moderniza, a formação socioespacial brasileira se estrutura a partir deum sistema urbano hierarquizado, em que algumas cidades exercem forte atração para uma ampla gama de fluxos:de capital (atividades produtivas modernas), de dinheiro (investimentos não-produtivos que se valorizam no sistemafinanceiro), de pessoas (dinamismo das migrações rural-urbanas), de ordens (instituições públicas e privadas deregulação administrativa), de comando (sede de grandes empresas e sede dos governos), entre muitos outros. Sãofluxos e fixos de toda ordem que, ao facilitarem a convergência e o cruzamento de inúmeros circuitos produtivos dealcance espacial variado, robustecem a economia urbana de algumas cidades e as colocam num lugar privilegiado

na hierarquia nacional. Isso tem acontecido, por exemplo, com Rio de Janeiro e São Paulo, mas também comSalvador, Recife e Porto Alegre, para citar somente algumas das 25 regiões metropolitanas classificadas atualmentepelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Ao longo de muitas décadas, forças de concentraçãoeconômica e geográfica atuaram de forma concomitante, e quase ininterrupta, criando mercados urbanos maciçosnum meio construído que oferecia condições infra-estruturais para essa expansão. Configurou-se uma tecnosferacarregada de objetos cada vez mais informatizados, garantindo boas condições de fluidez territorial – claro queinstalada seletivamente no espaço intra-urbano, em forma de pontos ou manchas, mais ou menos extensasdependendo da cidade. Assim, novos conteúdos foram incorporados à segregação espacial nas metrópoles. O processo de crescimento econômico e modernização tecnológica, seletivo e concentrador, não consegue atender de igual forma todos os habitantes da cidade grande, que fazem parte do mesmo mercado, porém com os maisdiferentes níveis de capital, trabalho, organização e tecnologia. Diferentes formas de produzir que, por sua vez,

correspondem a diferentes formas de consumir. Essa segmentação do mercado autoriza a convivência de umaampla variedade de formas de realização econômica, que trabalham segundo diversas taxas de lucro, produtividade,rendimentos e salários. O circuito inferior da economia urbana é resultado dessa dinâmica e, por isso, é tão expressivo nas metrópolesbrasileiras3. Ele ocupa bairros, ruas, becos, terminais rodoviários e metroviários, praças e porões, fundos de quintal,vans, motocicletas, permeando o tecido urbano e se interligando com diferentes circuitos produtivos. Poderíamosperguntar a que fase ou momento do processo geral da produção o circuito inferior está associado e de que formaparticipa. Por exemplo4, o entorno da Rua Santa Ifigênia, em São Paulo, mostra a existência de pequenas oficinasde conserto de equipamentos de informática e telecomunicações, bem como a comercialização de uma série deacessórios para aparelhos celulares (capas de plástico, baterias, carcaças, carregadores), vendidos tanto empequenas lojas como por vendedores ambulantes. Qual é a relação desses agentes com o circuito espacial deprodução de eletroeletrônicos? Que lugar eles ocupam no processo geral da produção, que pode começar, talvez,numa grande empresa multinacional onde são fabricados ou montados celulares, para, em algum momento, depoisde muitos percursos, chegar a uma oficina ou loja daquela rua?

Mais um exemplo se encontra nos arredores da Rua Barão de Limeira e na porção norte do bairro de Santa Cecília,

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onde, junto a uma forte concentração de comércio de automóveis e de acessórios para veículos, existe uma série deatividades do circuito inferior em torno dessa especialização (pequenos comércios de peças e acessórios paraveículos e motos, oficinas de reparo, borracharias, auto-elétricas). Qual é a relação desses agentes com o circuito espacial de produção de automóveis e de autopeças? Que lugar eles ocupam num processo produtivo que pode ter se iniciado em São Bernardo do Campo, em Curitiba ou emBetim?

Outro caso ilustrativo são os bairros do Bom Retiro e Brás, com a produção de vestuário, onde convivem grandes

lojas atacadistas e varejistas pertencentes ao circuito superior junto com pequenas oficinas de costura e confecçãoe pequenos armarinhos. Aqui o circuito espacial de produção de roupas se apresenta de forma completa (da costura,montagem e design até a comercialização no atacado e varejo). São unidades cujo tamanho, grau de capitalização,organização e tecnologia são diversos.Poderíamos, então, falar de um “circuito local de produção de confecções”?Oque significaria isso em termos de fluxos e de fixos para os distintos agentes que operam na mesma fração doterritório da cidade?

A variedade de formas de realização econômica que exis te numa metrópole não se reduz a um ou outro exemplo. Ocircuito inferior adota múltiplas formas e estabelece relações com o circuito superior que vão da complementaridadeà subordinação, como indicam os casos acima citados, mas também pode existir de forma quase autônoma eindependente. Por exemplo, a pequena produção de lanches e bolos que regularmente abastece o comérciorealizado na porta de uma escola, universidade ou qualquer órgão público, ou o artesanato feito para ser vendido aolongo do ano em feiras organizadas ou em barracas improvisadas em alguma praça; esses e tantos outros casos deatividades de pequena dimensão se multiplicam aqui e acolá nas grandes cidades. De todo modo, nunca sãoatividades totalmente autônomas porque, por um lado, dependem da aquisição de algum insumo ou ferramentafornecida pelas empresas do circuito superior e, por outro, porque a existência e a reprodução do circuito inferior seexplicam por uma demanda de empregos e serviços não atendida pela parte mais moderna da economia urbana.Uma numerosa população pobre sobrevive criando formas de trabalho e de consumo diversas, que coexistem nummesmo lugar e num mesmo mercado, indicando a profundidade que atinge a divisão social e territorial do trabalhonas regiões metropolitanas.

A esse processo de diversificação da produção e do consumo, estendido também à distribuição e comercialização,correspondem diferentes tipos de pagamento, financiamento e crédito. Trata-se de um dinheiro que, ao circular,

realiza a unificação das múltiplas manifestações de uma economia urbana segmentada, desigual. Dinheiro quecumpre suas funções básicas como medida de valor, meio de circulação e meio de pagamento, mas que para ocircuito inferior raramente serve como meio de entesouramento ou reserva de valor. Como produtores econsumidores, os pobres recorrem ao crédito, muito mais na segunda condição do que na primeira. A possibilidadede se endividar transforma-se em estratégia para realizar ou ampliar o consumo. Em grande parte, isso estárelacionado ao fato de as atividades do circuito inferior serem intensivas em trabalho, sendo os custos fixos baixosou inexistentes.

Valorização da multiplicidade social

A presença do circuito inferior é mais intensa nas grandes aglomerações em função da magnitude da pobrezaurbana. Isso revela o drama das metrópoles, mas também sua força. A diversidade e o volume de fluxos que essamultiplicidade de trabalhos representa agregam riqueza e dinamismo à economia urbana. Todavia isso nem sempre écontabilizado assim. Por outro lado, essa multiplicidade também é introduzida na vida social e cultural das grandescidades, onde as práticas ligadas ao dia-a-dia do bairro, da rua, da praça e, portanto, do território criam umapluralidade de expressões e de códigos, uma cultura que se faz e refaz com a existência. A tensão e o conflitotornam-se visíveis a partir dessa diversidade e pluralidade e, desse modo, define-se a força das metrópoles.

A cidade, como meio construído, é uma condição necessária da ativ idade econômica, mas usada diferentementesegundo o tamanho das firmas e seu poder de mercado. Artérias, dutos e avenidas, que em tese estão disponíveispara o conjunto dos agentes da economia urbana, não servem igualmente a todos, pois estes são detentores develocidades diferentes conforme o circuito (superior ou inferior) do qual participam. Nesse contexto, existem firmascom tempo de circulação mais lento que atendem áreas de mercado menores, muitas vezes limitadas a um distritoou a um bairro. Assim, subáreas internamente homogêneas abrigam uma variedade de comércios e de serviços que

pouco exigem fluidez e cobrem um raio territorial reduzido. Tal situação se reforça, de certa maneira, com asegregação espacial que caracteriza as grandes aglomerações, criando áreas com formas bastante desiguais derealizar o processo de produção, distribuição, comercialização e consumo. Tudo isso chama a um processo permanente de negociação social, no qual o Estado não está ausente porquehistoricamente tem desempenhado um papel ativo no crescimento das metrópoles. O poder público tem modelado o

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meio construído como principal responsável pela criação e manutenção das infra-estruturas de transporte, energia etelecomunicações, bem como da normatização do uso do solo.

Nas relações entre os dois circuitos da economia urbana, o Estado intervém, direta ou indiretamente, por meio daregulação dos salários e das condições de trabalho, das tarifas de transporte e do estímulo ao crédito, entre outrasmedidas.

Num capitalismo que pretende homogeneizar tudo conforme sua lógica, o território das metrópoles se configuracomo um mosaico de múltiplas combinações, diversidades, oposições, enfim, muitas formas de fazer, de sentir, de

viver. Os homens e mulheres que compõem o circuito inferior da economia urbana não detêm o poder, mas possuemuma enorme força, pelo seu número, pela sua criatividade e pela sua simplicidade.

Mônica Arroyo é doutora em Geografia Humana e professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da USP.

1 Milton Santos, Espaço e método, São Paulo, Nobel, 1985, e do mesmo autor, Metamorfoses do espaço habitado, São Paulo, Hucitec, 1988.

Ambos os livros foram repub licados recente mente pela Edu sp.

2 Milton Santos e Francisco Alves, O espaço dividido: Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos , São Paulo, Edusp, e

Milton Santos, Por uma economia política da cidade: o caso de São Paulo , São Paulo, Hucitec, 1994. Ambos os livros foram republicados

recentemente pela Edusp.

3 María Laura Silveira está desenvolvendo e coordena ndo uma pesquisa sobre o circuito inferior em cidades brasileiras e latino-americanas,

com resultados já publicados em vários veículos, entre eles: Silveira, María Laura. “Metrópolis brasileñas: un análisis de los circuitos de la

economía urbana”, in Revista Eure, Santiago, dezembro de 2007, volume 33, número 100. Disponível em: www.scielo.cl/scielo. María Laura E.

Silveira,. “Metrópoles do Terceiro Mundo: da história ao método, do método à história”, in Catia Antonia Silva e Andrelino Campos. Metrópoles e m

mutação. Dinâmicas territoriais, relações de poder e vida coletiva, Rio de Janeiro, Revan-Faperj, 2008.

4 Exemplos inspirados na leitura da dissertação de mestrado de Marina Montenegro, intitulada O circuito inferior da economia urbana na cidade

de São Paulo no período da globalização, defendida na Universidade de São Paulo em 2006.

Palavras chave: Economia, Empresas, Sociedade