As histórias de José Mourinho como jogador

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NO AMORA, com 17 anos, Mourinho tomava conta dos apanha-bolas e passava aos jogadores os recados do pai, o treinador do clube NO BELENENSES, com 19 anos, foi titular num jogo da Taça de Portugal, contra os açorianos de Vila Franca do Campo. Marcou três golos na vitória por 17-0 NO RIO AVE, com 18 anos, ia ser titular contra o Sporting, mas a oposição do presidente do clube levou o pai, o treinador da equipa, a não o convocar. Nunca jogou na I Divisão Desporto

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As histórias de José Mourinho quando era jogador de futebol

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NO AMORA,com 17 anos,

Mourinhotomava conta

dos apanha-bolase passava aos

jogadores osrecados do pai,

o treinadordo clube

NO BELENENSES,com 19 anos, foititular num jogoda Taça dePortugal, contraos açorianosde Vila Francado Campo.Marcou trêsgolos na vitóriapor 17-0

NO RIO AVE, com18 anos, ia ser titular

contra o Sporting,mas a oposição do

presidente do clubelevou o pai, o treinador

da equipa, a nãoo convocar. Nuncajogou na I Divisão

Desporto

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Dérodouachavenaigniçãodove-lho Fiat, jácom10 anos, e o mo-torexplodiu. O carro incendiou--se e o jogador angolano do Co-mércio e Indústria, um clube da

I Divisão Distrital de Setúbal, começou aosencontrões àportado condutor, queempe-nou com o calor e não abria. Aporta do ou-tro lado estava encostada a uma das pare-des daPraçadeTouros deSetúbaleporissoDé,ao verqueestavaencurralado,gritouporajuda. Zé Mário – também jogador do clu-be, que dessa vez, em meados dos anos 80,sedespachoumais cedoatomarbanhoapóso treino – ouviu os gritos e correu para ocarro: partiu o vidro, abriu a porta e conse-

guiu tirar o jogador do meio das chamas.Quando os bombeiros chegaram e apa-

garamoquerestavadacarcaçafumegantedocarro, Zé Mário, que 20 anos mais tarde setornaria famoso como José Mourinho, era

cumprimentado portodos como um herói.O jogador, que costumava ir reclamar numprograma da Rádio Azul quando o Comér-cio eIndústrianão pagavaos salários ounão

forneciaequipamentos,só nuncaconseguiuser um herói dentro de campo.

Zé Mário nunca jogou na I Divisão e foimuitas vezes suplente nos clubes por ondepassou durante os sete anos em que foi sé-

nior,entre1980e1987. Tambémnuncateveumaposiçãodefinida:jogou a médio, a avançado e atéa defesa. Começou a carreira nofimdos anos 70,nas camadas ju-venis do Belenenses,clubeaquevoltariaem1982,depois deuma

épocano Rio Ave, paraonde foiporinfluên-cia do pai, FélixMourinho, que era o treina-dor e nunca o pôs a jogar. Esteve ainda noSesimbra, na III Divisão Nacional, e no Co-

ASHISTÓRIASDE MOURINHOCOMO JOGADOR

MEMÓRIA. O MELHOR TREINADOR DO MUNDO NUNCAJOGOU NAI DIVISÃO

No Belenenses e no Rio Ave era quase sempre suplente ou nem ia para o banco. NoSesimbra era gozado porchegaraos treinos com os livros debaixo do braço. E no Comércioe Indústria foi expulso porterdado uma cabeçada a um avançado. Por Mariana Pinheiro

Zé Mário ouviu os gritos de Dé,preso no carro a arder, partiu ovidro e conseguiu abrir a porta

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DESPORTO

98 27 JANEIRO 2011

mércioeIndústria,daIDivisãoDistritaldeSe-túbal. Foiaquiquetevemaiorsucesso: entre1985 e 1987, em27jogos marcouoito golose foi capitão da equipa principal, ao mesmotempo que treinava os juvenis.

TURÍBIO MACEDO, que jogou com Mouri-nho no Sesimbra, entre 1983 e 1985, lem-bra-se de ele aparecer nos treinos com os li-vros debaixo do braço. “Abrincar, costumá-vamos chamar-lhe caga-leite, que é o nomeque os de Sesimbra dão aos setubalenses.Dizíamos-lhe: ‘Olha lá ó Zé, isto aqui é paraandar, é paracorrer. Tu não jogas com os li-vros, mas sim com os pés.’ Ele não eramui-to espevitado, perdia muitas vezes a bola etinha dificuldades de voltar ao jogo. Achoque percebeu cedo que acarreirade futebo-lista não era para ele”, conta à SÁBADO.

José Mourinho, actualmenteno RealMa-dride que no passado dia10foieleito o Me-lhorTreinadordo Mundo, era“habilidoso”.Mas não era veloz nem apologista de corri-das incansáveis. “Faltava-lhe algumaagres-sividade, apesar de ser tecnicamente bom.Tínhamos de estar sempre a chamá-lo àatenção, aacordá-lo paraavida”, riTuríbio,relembrando um episódio em que Mouri-nho teve umdesacato comumárbitro. “Pe-gou-se porcausade umafaltanumadispu-ta de bola mais ríspida; houve bocas, masconseguimos separá-los. No fim do jogoquiseram andar à pancada, mas acabámospor os impedir.”

Joaquim Chora, que também jogou comMourinho, mas no Comércio e Indústria,lembraoutro episódio: “Umavez fomos jo-garcomo Moitense e eudisse-lhe: ‘Ó Zé, tuvê lá. Eles têm um avançado muito mau, o

gajo é mesmo agressivo.’ Mas o aviso nãoserviude nada. Aos 10 minutos jáestavanarua. Levou cartão vermelho por ter dadoumacabeçadanoManata[avançadodoMoi-

tense]”, diz. Lembra-se ainda que Mouri-nho andavasempretodo arranhado no raboenas pernas, porentrarmuitas vezes decar-rinho à bola nos campos pelados.

Ànoite,aequipajuntava-senorestauran-te Lancelot, em Setúbal. “O Zé Mário adora-va javali. Naquela altura, tínhamos um pre-sidente árabe, que chegava lá e atirava com

um monte de notas para cima damesa. Elepagavatudo enós apro-veitávamos. Ficávamos lá até demadrugadaacontarpiadas”,lem-bra Joaquim Chora.

Mourinho era um jogador ir-requieto, perito em pregar parti-

das. “O Zé Mário pendurava baldes de águanas portas dos gabinetes dos dirigentes,davanós nas calças dos colegas e entrava no bal-neário asoltar gritos de guerrae abater nos

“Dizíamos-lhe: ‘Ó Zé, isto aquié para correr. Tu não jogas comos livros, mas com os pés’”

ZÉ MÁRIO, como era conheci-do, esteve um ano no Rio Ave,

mas era quase sempre suplentee não fez nenhum jogo oficial

MOURINHO ia com o paipara os treinos do Belenenses,onde Félix Mourinho foiguarda-redes entre 1968 e 1974

NO SESIMBRA,onde esteveduas épocas,era gozadopor aparecercom livrosnos treinos

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tachos e nas panelas”, contaLuís Filipe, ou-tro ex-jogador do Comércio e Indústria.

Mas tambémerasério: porexemplo,con-tabilizava com um cronómetro as flexõesque cada um dos colegas fazia por minuto.“Ele era obcecado pela perfeição, dava-meconselhos sobrecomo équepoderiamelho-raro meujogo e andavasempre de bloco namão a tirar notas. Era uma máquina”, dizFernando Chaves, outro colega.

AOS SÁBADOS, MOURINHO ia assistir aostreinos das equipas que nessa semana de-frontavam o clube onde o pai era treinador.Tirava apontamentos, mostrava-lhos e re-cebia dinheiro em troca disso. “Quando oFélix Mourinho [pai] aparecia nos treinoscomalgumanovidade, nós jásabíamos queali havia dedo do Zé Mário”, conta DuarteSá, que jogou com ele no Rio Ave.

E lembra-se de uma situação caricata daqual ainda hoje Mourinho não gosta de fa-lar. No último jogo da época de 1981/82,umdos defesas do Rio Avelesionou-seeFé-lixMourinho preparava-se parapôro filho,na altura com 18 anos, a titular contra oSporting, em Alvalade. Mas Mourinho aca-bou por nem vestir a camisola. José MariaPinho,presidentedo clube,opôs-seaquejo-gasse, talvez pela sua inexperiência. O RioAvefoigoleado (7-0), apesardetertermina-do a época em 5.º lugar na I Divisão, a me-lhor classificação de sempre do clube.

No ano seguinte, Mourinho regressouao

Belenenses, que estava na II Divisão. Ali,numa das raras vezes em que o pai, nova-mente seu treinador, o pôs a jogar, partici-

pou naquela que foi até hoje a maior golea-da de sempre do clube: 17-0 contra os aço-rianos de VilaFrancado Campo, empartida

da Taça de Portugal. E Mourinho, ou me-lhor, Zé Mário, até marcou três golos.

Por essa altura entrou no Instituto Supe-rior de Educação Física, agora Faculdade deMotricidade Humana. Vinha de Setúbal deboleiacom o paie em Belém apanhavao au-tocarro até à faculdade. “Era um aluno tími-do, escondia-meno fundo dasala”, lembrouo treinador, em2009, quando voltouàfacul-dadeparareceberadistinçãoHonoris Causa.

A mãe, Maria Júlia Mourinho, que na al-tura era professora primária, contou à SÁ-BADO quequando o filho entrounauniver-sidade até respirou de alívio. “Eu contra-riei-o muito. Disse-lhesemprequeo futebolnão eravidaparaninguéme que os estudosé que eram o caminho certo. Mas ele só sesentiarealizadonofutebol.” Eadmite: “Àsve-zes chantageava-o. Dizia-lhe que se ele nãotirasse boas notas não o deixava ir ajudar o

pai a lado nenhum.”Quando Félix Mourinho trei-

nou o Amora, em 1980, começouapôro filho, então com17anos, atomar conta dos apanha-bolas emandava-opassarrecados aos fu-tebolistasduranteosjogos. No12.º

ano,MourinhodeixouaMatemáticaparase-gunda época e, enquanto esperava por umavagano ISEF, amãe inscreveu-o numaesco-la de gestão. Mourinho era obediente e foi àprimeiraaula,mas quandochegouacasape-diudesculpaedissequenão voltavalá. Maistarde deu aulas de Educação FísicanaEscolaBásica 2/3 José Afonso, em Alhos Vedros.

Nuno Martins, antigo treinadorde Mou-rinho no Comércio e Indústria, conta que

o clube de Setúbal o foi buscar ao Sesim-bra em 1985, quando ele estava a aca-bar o curso. “Via-se que era uma pes-

soa com uma capacidade maravilhosapara organizar o jogo. Era um grande ca-

pitão, dava indicações aos jogadores e gri-tava imenso com eles para os incentivara jogar melhor. Ele vinha muitas vezester comigo e dizia-me: ‘Ó mister, nãoachaque ficavamelhor destamaneira?’Já era um visionário.” �

“Com o Moitense, aos 10minutos já estava na rua. Deuuma cabeçada ao Manata”

NO COMÉRCIO e Indústria(na foto um amigável com oBenfica), em 27 jogos marcouoito golos e foi capitão de equipa

As melhores partidasde Zé MárioNO BALNEÁRIO, MOURINHO ERA IRREQUIETOE ESTAVA SEMPRE A INVENTAR BRINCADEIRAS

ENTRAVA no balneário do Co-mércio e Indústria a bater tachos epanelas e soltava gritos de guerra

FAZIA complicados nós nas calçasdos colegas, que quando se iamvestir tinham sempre uma surpresa

PENDURAVA baldes de água nasportas dos gabinetes dos dirigen-tes, que apanhavam um banhoforçado quando entravam

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