As Mulheres Do Meu Pa%EDs
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"As mulheres do meu país - uma obra ímpar", in História,Janeiro de 2003
"As mulheres do meu país" - uma obra ímpar
Eis que se quebra uma ausência editorial de mais de 50 anos.
As mulheres do meu país , de Maria Lamas, obra ímpar do jornalismo
português do século XX, surge, agora, numa segunda edição, por via da
Editorial Caminho1.
Há muito que esta edição se reclamava.
Num seminário sobre o Movimento Feminista em Portugal2, em 1998,Maria Antónia Fiadeiro, pioneira na investigação sobre a figura de Maria
Lamas como jornalista3, lamentava o silêncio sobre esta monumental
reportagem acerca das condições de vida e de trabalho das mulheres
portuguesas.
Maria Lamas percorreu o país de Norte a Sul, não esquecendo os
Açores e a Madeira. Deslocou-se às mais remotas aldeias, fotografou e falou
com as mulheres do seu país. País dilacerado por um regime ditatorial, queassente no mais atroz obscurantismo exaltava o papel de uma mulher
submissa e curvada perante a família e o trabalho.
No prefácio a esta segunda edição, uma das netas de Maria Lamas 4
refere que As mulheres do meu país foi a resposta da sua avó ao Governador
Civil de Lisboa, quando este lhe comunicou o encerramento do Conselho
Nacional das Mulheres Portuguesas5, em 1947, considerado desnecessário,
1 LAMAS, Maria, As mulheres do meu país, Lisboa, Caminho, Setembro de 2002. A primeira
publicação foi concluída a 15 de Abril de 1950.2 Seminário realizado pela UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta, em Lisboa, a 5 e 6 de
Dezembro de 1998, no auditório do Montepio Geral.3 Maria Antónia Fiadeiro é Mestre em Estudos sobre as Mulheres e defendeu na Universidade Aberta a
tese de Mestrado: Maria Lamas (1893-1983), uma jornalista. Tentativa e tentação biográfica.4 Maria José Cunha Lamas Caeiro Metello de Seixas5 Organização de mulheres fundada em 1914. Segundo Anne Cova, o Conselho Nacional das Mulheres
Portuguesas constitui-se como secção portuguesa do International Council of Women, fundado em
1888, em Washington (COVA, Anne, PINTO, António Costa, "O Salazarismo e as mulheres, umaabordagem comparativa, in Penélope, nº 17, 1997, pp. 71-94). Maria Lamas tinha assumido a
presidência desta organização em 1945.
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dado que o Estado confiava à Obra das Mães6 o encargo de educar e
orientar as mulheres. "A esta afronta, feita à cidadã, respondeu a jornalista:
iria verificar e depois informaria" 7.
Neste contexto, Maria Lamas inicia, em 1947, a aventura de que
resultaram belas páginas de escrita e de fotografias. Das mulheres
camponesas de Castro Laboreiro, das serras do Barroso, da Gralheira, do
Caramulo, com os seus trajes, os seus rostos marcados pelas agruras de um
trabalho pesado e pela falta de condições de vida. "Um cubículo de madeira
tosca, onde cabe à justa o leito que pais e filhos utilizam em comum, é luxo
de que poucos dispõem. Como luxo são os lençóis e a mais rudimentar
higiene.... Não se pode chamar lar a semelhantes casebres" (LAMAS, p.15).
É com este pormenor e realismo que a autora fala da vida das raparigas
condenadas às serranias, dos maridos que estão fora, dos muitos filhos, das
doenças e da falta de remédios, das mães que, resignadas, falam "dos
anjinhos que vão para o céu" como a melhor sorte que lhes estaria
reservada.
O livro fala-nos da vida das mulheres de Lamas de Mouro, Cubalhão,
Cardielos, Parede do Monte, Cortegaça, Gavieira, Merufe, Várzea, Soajo,
Lindoso. Não só da sua resistência, mas da sua combatividade. "As mulheres
estão sempre à frente de todos os protestos, desde que pressintam a
ameaça de um agravamento nas condições já tão precárias do seu viver.
Elas sabem quanto lhes custa o granjeio do seu pão. E exprimem-se nesses
casos com uma firmeza, um desassombro que as transfigura" (LAMAS, p.
26).
Nesta grande reportagem sobre a vida das mulheres, Maria Lamas
não esquece os ambientes, as paisagens, os dizeres, as quadras soltas, as
canções e fala do encanto dessas mulheres quando são jovens, risonhas,
comunicativas. Mas, como afirma, depois do casamento: "caem geralmente
no desmazelo e perdem toda a frescura, tão depressa que mesmo antes de
se lhes ter esgotado a seiva da mocidade, já elas próprias se consideram
velhas. Mesmo que o marido as não maltrate, a vida encarrega-se de as
6 Obra das Mães pela Educação Nacional - OMEN, criada pelo Estado Novo em 1936. Ver obra deIrene Pimentel, Organizações Femininas no Estado Novo, Circulo de Leitores, 2000.7 Prefácio de Maria José Cunha Lamas Caeiro, op.cit. p. XIX.
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maltratar" (LAMAS, p. 126). Os percursos percorridos pela autora não se
confinam às terras do interior do país. Ela observa a vida das salineiras de
Aveiro com os seus chapéus de abas largas para facilitar o transporte das
canastras de sal à cabeça. Trabalho pesado, como é o das carreteiras de
leite, o das mulheres que trabalham na seca do bacalhau ou ainda as que
trabalham na construção de estradas.
No Alentejo, Maria Lamas fotografou as ceifeiras nos arrozais da
Marateca e de Águas de Moura, e fala das doenças contraídas pelas
mulheres que neles trabalhavam, das suas expressões fatigadas. Do nascer
ao pôr do sol, assim é o seu tempo de trabalho. E fala-nos também de outras
ceifeiras, as do trigo, em searas imensas, curvadas sob um sol escaldante.
"Trabalham à jorna ou à empreitada, com um ganho sempre muito inferior ao
do homem - em geral 2/3 do que ele recebe" (LAMAS, p. 235). Mas de outros
trabalhos se ocupam também as alentejanas: "da apanha da azeitona, do
limpar das terras ou sargaçar; andar à pedra nos terrenos que ainda não
foram alqueivados,...; apanhar bolota; colher o grão e o tremoço;... enformar
e desenformar os tijolos e a telha na indústria de barros" (LAMAS, p. 243).
Mantêm sempre as casas muito caiadas e limpas. As mulheres do Alentejo
são também mais comunicativas do que os homens. "Têm um forte sentido
de independência em relação ao trabalho, preferindo uma existência incerta,
com grandes privações, à vida de servir, seja nos montes, seja nas vilas e
nas cidades" (LAMAS, p. 247).
Quanto às algarvias, Maria Lamas fala da sua vivacidade, do seu
conversar desembaraçado. São aguerridas. Juntam-se todas, falam e
protestam. "São por vezes maliciosas nas suas observações. No fundo,
porém, quando se referem à sua luta e sofrimento, revelam-se iguais a todas
as outras mulheres cuja vida se passa em canseiras e dores" (LAMAS, p.
265). E são assim as mulheres de Quarteira, de Alcoutim, da serra do
Caldeirão e de muitos outros lugares algarvios onde a autora também ouviu
falar de "mouras encantadas", de lendas e romances que as mulheres
sabiam de cor e alimentavam o imaginário da gente algarvia.
Não são esquecidas as mulheres do Ribatejo nas suas fainas, nas
vinhas e nas zonas ribeirinhas; as mulheres madeirenses, horas e horascurvadas sobre os bordados para ganhar cinco escudos diários e as que
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trabalhavam na plantação das bananeiras, da semilha, do milho e do feijão
em desfiladeiros de fazer cortar a respiração. Dos Açores, Maria Lamas
regista a sua beleza natural, diferente de ilha para ilha. "A par de tanta
beleza, por vezes de expressão trágica, a mulher do campo vive
obscuramente alheia à agitação do mundo" (LAMAS, p. 309). Dedicam-se à
colheita do chá e do tabaco e às várias indústrias caseiras: tecem linho,
fazem chapéus de palha de milho, flores de penas e escamas, cestos de
vime,..."Em contraste com esta tendência para o aproveitamento de tudo
quanto possa transformar-se em objecto belo ou útil - coisas que
habitualmente se deitam fora, como penas e escamas - nota-se uma grande
ignorância, sendo muito elevada a percentagem de mulheres analfabetas e
com uma mentalidade atrazada, apesar de serem, quase todas muito vivas e
espertas. Em superstições absurdas, igualam as mais supersticiosas
camponesas do continente. Da mesma maneira aceitam, sem reacção, a
supremacia do marido, em todas as coisas, mesmo da vida familiar, não
tomando qualquer resolução, ainda a mais simples, sem autorização dele"
(LAMAS, p.311).
Das operárias também nos fala Maria Lamas. Das que trabalham nos
têxteis em Guimarães, Vila Nova de Famalicão e em Gouveia, das que
produzem chocolates em Viana do Castelo ou artigos de perfumaria em
Braga. E ainda das trabalhadoras das minas de S. Pedro da Cova - britam o
carvão, transportam-no à cabeça e empurram enormes e pesadas vagonetas,
como se vê numa magnífica foto da autora (p. 375). As mulheres também
trabalham na indústria de filigranas no Porto e em Gondomar, nas fábricas de
faianças, como em Aveiro, na prensagem dos azulejos, na retocagem de
sanitários ou na pintura decorativa das loiças. No Algarve, assim como
noutros locais do país, são operárias conserveiras e corticeiras.
E que outras profissões assumem as mulheres nesta primeira metade
do século XX? "Uma classe numerosíssima é a das costureiras que
trabalham desde as fábricas de cintas aos depósitos de fardamentos... Ficam
nas oficinas curvadas sobre a costura, durante as oito horas que a lei
determina" (LAMAS, p. 382). Também há as empregadas domésticas e são
muitas as que vêm das aldeias para as cidades dedicar-se a uma profissãomal paga e nada valorizada. E ainda as mulheres que são "guardas de linha"
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nas passagens dos comboios. E as que carregam bagagens nas estações
ferroviárias, quase sempre pobremente vestidas e descalças. Há também as
vendedeiras de peixe, as lavadeiras de rio, as que descarregam areia nos
cais. Fruto de um maior grau de escolarização, surgem as professoras, as
empregadas de escritório, as enfermeiras, as telefonistas, as analistas. De
todas elas nos fala Maria Lamas.
Das mulheres que trabalham em casa a cuidar da família, das
chamadas "domésticas", Maria Lamas faz lembrar as contradições inerentes
a essa função. Muito antes de Betty Friedan, em 1963, no seu livro A Mística
da Mulher, ter desmontado a pretensa realização das mulheres "donas de
casa"8, Maria Lamas referia-se, em 1948, às mulheres que trabalhavam em
casa, da seguinte forma. "De duas uma: ou a mulher aceita resignadamente
as circunstâncias da sua vida e cai numa espécie de marasmo espiritual e
mental, movendo-se apenas entre as graves preocupações do orçamento
caseiro, as compras, as limpezas, o arranjo das roupas, as refeições que é
preciso ter prontas a horas certas, as doenças dos filhos e as mil pequenas
coisas, sempre iguais e sempre enervantes, que lhe enchem o dia, ou não
consegue anular as suas aspirações, e vai sentindo crescer em si uma
revolta que só dificilmente chega a dominar e que a entristece,
transformando-lhe a vida num autêntico suplício" (LAMAS, p. 447).
Percorrer as 471 páginas desta obra faz-nos esquecer o tempo.
Envolve-nos uma onda de deslumbramento e uma interrogação: Como foi
possível?
Como foi possível, naquela época, uma tão vasta investigação,
precursora, sem dúvida, dos Estudos sobre as Mulheres, como afirma Maria
Antónia Fiadeiro?9
Como foi possível que, durante mais de 50 anos, esta obra só muito
raramente fizesse parte dos manuais de estudo dos jornalistas, das
feministas e estivesse ausente das nossas bibliotecas?
Maria Lamas revela-se, nesta obra, uma notável jornalista, uma mulher
com uma enorme capacidade de trabalho e com uma particular sensibilidade
8 FRIEDAN, Betty, La Mística de la feminidad, Ed. Júcar, Madrid, 1974.9 FIADEIRO, Maria Antónia, Maria Lamas (1893-1983), comprovadamente jornalista. Tacitamente
feminista, in Actas do Seminário sobre o Movimento Feminista em Portugal, UMAR, 1998.
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feminista, capaz de captar, nos seus ínfimos pormenores, os quotidianos das
mulheres do seu país.
Num dos prefácios a esta edição, uma outra sua neta, Maria Leonor
Machado de Sousa, insurge-se contra a adjectivação de feminista dada à sua
avó. Com o devido respeito pela posição assumida, não posso deixar de
considerar como feminista uma mulher que tinha plena consciência da
situação de submissão das mulheres portuguesas, da sua falta de direitos, da
ignorância em que viviam e da solidariedade que as suas vidas lhe
mereciam. É a própria Maria Lamas que, na introdução ao seu livro, afirma:
"No olhar iluminado das jovens vi o mesmo sonho dos meus dezasseis anos;
na expressão sem viço daquelas em que o ardor de viver se vai apagando,
melancólico, adivinhava eu o drama de uma vida fracassada, estéril. E em
quase todas, mesmo nas vulgarmente felizes, pressentia, sem o saber definir,
um desencantamento latente, uma razão de queixa contra qualquer coisa de
que não teriam ainda consciência, mas que marcava, inexoràvelmente o seu
destino". Para declarar mais adiante: "Já não duvidava: os meus problemas
eram os problemas de todas as mulheres, embora alguns revestissem, para
cada uma, aspectos diferentes" (LAMAS, p.5).
Terminaria com uma frase de Maria Antónia Fiadeiro, extraída do seu
texto já citado, "Maria Lamas foi comprovadamente uma jornalista
profissional, uma das primeiras do século XX, e tacitamente feminista no
sentido em que a luta pelos direitos das mulheres era encarada como uma
inevitabilidade social do olhar feminino, a prioridade programática da história
feita por mulheres e não como um acrescento (apêndice) da história humana
ou uma consequência directa e automática das evoluções e das revoluções
políticas".
Manuela Tavares
Mestre em Estudos sobre as Mulheres