Blimunda # 30 - novembro 2014

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Quando José Saramago nasceu, a 16 de Novembro de 1922, restavam a Fernando Pessoa apenas 13 anos de vida. Durante esse tempo coexistiram, pode até ter acontecido coincidirem em algum momento em Lisboa, mas dessa possibilidade não há registo. Em 1935, no dia 30 de Novembro, Fernando Pessoa deixou de existir fisicamente e a partir daquele momento teve início a construção da sua imortalidade literária. Para celebrar a existência e genialidade destes dois grandes nomes da Literatura a Blimunda dedica-lhes várias páginas da sua edição de Novembro. As homenagens começam já no editorial, um texto de José Saramago sobre Fernando Pessoa. A revista visitou o espólio do poeta na Biblioteca Nacional de Portugal e conversou com Jerónimo Pizarro e Patrício Ferrari, dois investigadores pessoanos que vieram a Lisboa atraídos pelo homem da múltiplas personalidade e que depois partiram para disseminar a obra do português pelo mundo. Uma galeria de fotos do(s) Dia(s) do Desassossego apresenta ao leitor a iniciativa levada a cabo pela Fundação José Saramago e pela Casa Fernando Pessoa para homenagear os dois escritores. A Blimunda publica ainda um texto de João Monteiro sobre a adaptação cinematográfica de A Jangada de Pedra, um ensaio de António Sampaio da Nóvoa lido na apresentação do romance Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas, e o texto da obra teatral “Como assim Levantados do Chão”, de autoria de Miguel Castro Caldas, um diálogo com a última frase do romance Levantado do Chão, de José Saramago.E há mais: Sara Figueiredo Costa apresenta três novos títulos em Banda Desenhada que servem como termómetro para medir a temperatura dessa produção editorial em Portugal.Para fechar o número 30 da publicação, Andreia Brites aborda os 15 anos do sucesso Harry Potter. Boa e desassossegada leitura!

Transcript of Blimunda # 30 - novembro 2014

  • M E N S A L N . 3 0 N O V E M B RO 2 0 1 4 F U N DA O J O S S A R A M A G OM E N S A L N . 3 0 N O V E M B RO 2 0 1 4 F U N DA O J O S S A R A M A G O

    DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA-HARRY POTTERHARRY POTTERHARRY POTTERHARRY POTTERSARAMAGOSARAMAGOAT THE MOVIESAT THE MOVIESSARAMAGOAT THE MOVIESSARAMAGOSARAMAGOAT THE MOVIESSARAMAGO

    A ARCAARCA DE PESSOAARCA DE PESSOAARCA

    B L IMUNDA N . 3 0

    B L IMUNDA N . 3 0 N O V E M B RO

    B L IMUNDAN O V E M B RO U N DA O

    B L IMUNDAU N DA O J

    B L IMUNDA J

    SSOSSEGO SSOSSEGODIA(S) DO DESA- SSOSSEGO

    DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA- SSOSSEGO

    DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA- SSOSSEGO

    DIA(S) DO DESA-DIA(S) DO DESA- SSOSSEGO

    DIA(S) DO DESA-

  • Eu gostaria de ter escrito um livro em que pudesse ter posto o ttulo de Livro do Desassossego. Mas j est, o Fernando Pessoa antecipou-se.

    O meu desassossego no seria exatamente o desassossego dele, mas o ttulo convinha-me porque,

    como eu no vivo sossegado, quero desassossegar os outros, os leitores.

    Palavras ditas por Jos Saramago em 2009, durante a apresentao do romance Caim

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    Sobre Fernando Pessoa

    Jos Saramago

    BD: novo flego em trs novos

    livrosSara Figueiredo Costa

    Notas de rodapAndreia Brites

    Leiturasdo ms

    Sara Figueiredo CostaRicardo Viel

    Saramago at the movies

    Joo Monteiro

    Dia(s) do Desassossegoem imagens

    Exortao da Paz

    Antnio Sampaio da Nvoa

    A Viagem do ElefanteJoo Amaral

    Como assimlevantados

    do choMiguel Castro Caldas

    EstanteSara Figueiredo Costa

    e Andreia Brites

    Harry PotterO futuro j

    passou por aquiAndreia Brites

    Agenda

    Como Portugal guarda a arca

    de PessoaRicardo Viel

    Dicionrio infantil e juvenil

    Catarina SobralFrancisco Vaz da Silva

    Dois pessoanos pelo mundo

    Ricardo Viel

    Espelho MeuAndreia Brites

  • Era um homem que sabia idiomas e fazia versos. Ganhou o po e o vinho pondo palavras no lugar de palavras, fez versos como os versos se fazem, como se fosse a primeira vez. Comeou por se chamar Fernando, pessoa como toda a gente. Um dia lembrou-se de anunciar o aparecimento iminente de um super-Cames, um cames muito maior que o antigo, mas, sendo uma pessoa conhecidamente discreta, que soa andar pelos Douradores de gabardina clara, gravata de lacinho e chapu sem plumas, no disse que o super-Cames era ele prprio. Afinal, um super-Cames no vai alm de ser um cames

    maior, e ele estava de reserva para ser Fernando Pessoas, fenmeno nunca visto antes em Portugal. Naturalmente, a sua vida era feita de dias, e dos dias sabemos ns que so iguais mas no se repetem, por isso no surpreende que em um desses, ao passar Fernando diante de um espelho, nele tivesse percebido, de relance, outra pessoa. Pensou que havia sido mais uma iluso de ptica, das que sempre esto a acontecer sem que lhes prestemos ateno, ou que o ltimo copo de

    aguardente lhe assentara mal no fgado e na cabea, mas, cautela, deu um passo atrs para confirmar se, como voz corrente, os espelhos no se enganam quando mostram. Pelo menos este tinha-se enganado: havia um homem a olhar de dentro do espelho, e esse homem no era Fernando Pessoa. Era at um pouco mais baixo, tinha a cara a puxar para o moreno, toda ela rapada. Com um movimento inconsciente, Fernando levou a mo ao lbio superior, depois respirou fundo com infantil alvio, o bigode estava l. Muita coisa se pode esperar de figuras que apaream nos espelhos, menos que falem. E porque estes, Fernando e a imagem que no era a sua, no iriam

    Sobre Fernando Pessoa Jos Saramago

    ficar ali eternamente a olhar-se, Fernando Pessoa disse: Chamo-me Ricardo Reis. O outro sorriu, assentiu com a cabea e desapareceu. Durante um momento, o espelho ficou vazio, nu, mas logo a seguir outra imagem surgiu, a de um homem magro, plido, com aspecto de quem no vai ter muita vida para viver. A Fernando pareceu-lhe que este deveria ter sido o primeiro, porm no fez qualquer comentrio, s disse: Chamo-me Alberto Caeiro. O outro no sorriu, acenou apenas, frouxamente, concordando, e foi-se embora. Fernando Pessoa deixou-se ficar espera, sempre tinha ouvido dizer que no h duas sem trs. A terceira figura tardou uns segundos, era um homem daqueles que exibem sade para dar e vender, com o ar inconfundvel de engenheiro diplomado em Inglaterra. Fernando disse: Chamo-me lvaro de Campos, mas desta vez no esperou que a imagem desaparecesse do espelho, afastou-se ele, provavelmente tinha-se cansado de ter sido tantos em to pouco tempo. Nessa noite, madrugada alta, Fernando Pessoa acordou a pensar se o tal lvaro de Campos teria ficado no espelho. Levantou-se, e o que estava l era a sua prpria cara. Disse ento: Chamo-me Bernardo Soares, e voltou para a cama. Foi depois destes nomes e alguns mais que Fernando achou que era hora de ser tambm ele ridculo e escreveu as cartas de amor mais ridculas do mundo. Quando j ia muito adiantado nos trabalhos de traduo e poesia, morreu. Os amigos diziam-lhe que tinha um grande futuro na sua frente, mas ele no deve ter acreditado, tanto assim que decidiu morrer injustamente na flor da idade, aos 47 anos, imagine-se. Um momento antes de acabar pediu que lhe dessem os culos: D-me os culos foram as suas ltimas e formais palavras. At hoje nunca ningum se interessou por saber para que os queria ele, assim se vm ignorando ou desprezando as ltimas vontades dos moribundos, mas parece bastante plausvel que a sua inteno fosse olhar-se num espelho para saber quem finalmente l estava. No lhe deu tempo a parca. Alis, nem espelho havia no quarto. Este Fernando Pessoa nunca chegou a ter verdadeiramente a certeza de quem era, mas por causa dessa dvida que ns vamos conseguindo saber um pouco mais quem somos.

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  • FUNDAO JOS SAR

    AMAGO

    THE JOS SARAMAGO

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    CASA DOS BICOS

    ONDE ESTAMOS WHERE TO FIND USRua dos Bacalhoeiros, LisboaTel: ( 351) 218 802 [email protected]

    COMO CHEGAR

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    Segunda a SbadoMonday to Saturday10 s 18 horas10 am to 6 pm

    AKA COR

    LEONE

    Blimunda 29

    outubro 2014

    DIRETOR

    Srgio Machado Letria

    EDIO E REDAO

    Andreia Brites

    Ricardo Viel

    Sara Figueiredo Costa

    REVISO

    Rita Pais

    DESIGN

    Jorge Silva/silvadesigners

    ILUSTRAO DA CAPA

    Rita Matos/silvadesigners

    Casa dos Bicos

    Rua dos Bacalhoeiros, 10

    1100-135 Lisboa Portugal

    [email protected]

    www.josesaramago.org

    N. registo na ERC 126 238

    Os textos assinados

    so da responsabilidade

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    Os contedos desta publicao

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    ao abrigo da Licena

    Creative Commons

  • 6Jordi Savall e a recusa do prmioO msico e investigador catalo Jordi Savall foi recentemente distinguido com o Prmio Nacional de Msica, um galardo (acompanhado por um cheque de 30 000 euros) atribudo pelo Ministrio da Cultura espanhol pelo reconhecimento de quatro dcadas de trabalho. O msico decidiu recusar o prmio e explicou os seus motivos num texto que o El Pas publicou na edio de 7 de Novembro. Aunque concedido por un jurado compuesto en parte por msicos y personalidades independientes, cmo poda aceptarlo viniendo de la mano de una institucin que desde tiempos inmemoriales ha dado la espalda a los msicos y especialmente al Patrimonio musical histrico del pas? cmo poda callarme y benefi ciarme de los 30 000 euros que lo acompaan, sin pensar en las voces cada da ms numerosas y ms desesperadas de tantos msicos que piden ayuda y oportunidades, y que se han quedado sin trabajo ante la rpida desaparicin de festivales y reduccin de programaciones de conciertos en auditorios de resultas de la drstica supresin de las modestas ayudas? Mais adiante: La ignorancia y la

    sociedade mexicana, dos homicdios nunca resolvidos aos casos de represso policial e militar, quase sempre com ligaes pouco claras ao narcotrfi co. Villalobos foi convidado por Daniel Galera para escrever um conto que integrasse uma antologia literria latino-americana dedicada ao crime, a ser publicada nos Estados Unidos da Amrica. Foi o conto que escreveu para essa antologia que originou a refl exo que pode ler-se nesta crnica. Um excerto: Faz um tempo, vrios anos, que a histria do Mxico parou de ser essa coisa extica de que o estrangeiro tanto gostava. Essa histria terminou, esse Mxico morreu. A histria do Mxico virou um relato triste, srdido, escuro e os mexicanos ainda no sabem o que tm que fazer para mud-lo. Parece que a sociedade comea a acordar, a sair para a rua e a se organizar, porque, eu quero acreditar, a sociedade no consegue aguentar mais. Ningum acredita mais na histria ofi cial, mas ningum quer aceitar a crueldade da histria real. Mas justamente desse paradoxo deveria nascer a esperana: a de um pas que quer aprender a contar bem sua prpria histria.

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    O regresso da CensuraNas ltimas semanas, dois casos abalaram os pilares da liberdade de expresso que devem suster a instituio universitria, um em Lisboa, outro em Coimbra. Um nmero da revista Anlise Social, publicada pelo Instituto de Cincias Sociais, foi proibido de circular pelo director do instituto, Jos Lus Cardoso, porque um dos artigos que o compunha, um ensaio fotogrfi co sobre o graf ti, foi considerado de mau gosto e uma ofensa a instituies e pessoas que eu no podia tolerar (diretor do ICS, citado pela TVI). Na Universidade de Coimbra, o director da Faculdade de Direito, Antnio Santos Justo, proibiu um debate entre Rui Tavares e Pedro Mexia, organizado pela Associao dos Estudantes, com o argumento de que a universidade no deveria ser o palco para debates ideolgicos. Sobre estas duas situaes escreve Rui Zink, escritor e professor universitrio, lembrando os trinta anos da Pornex, da qual foi parte integrante. A Pornex foi uma semana mtica que, em 1984, levou FCSH debates, performances, debates e outras actividades dedicadas ao tema da pornografi a. Diz Rui Zink no texto que pode ler-se no Pblico online: A Pornex era um teste liberdade, capacidade de encaixe, ao sentido de humor,

    alegria, democracia e, enfi m, tambm universidade. Pode-se ou no discutir tudo? Podemos ou no, sobretudo na universidade, discutir a coisa humana? Ou s so tolerados os temas decentes, que no ofendam a gente de bem? E a FCSH, graas a Deus e s pessoas, passou o teste. De raspo, titubeante, com umas hesitaes aqui ou ali ( portuguesa), mas passou. E, mais adiante, sobre os casos do presente: So sinais chatos, porque nem sequer tm origem no governo por uma vez, Pedro, ests perdoado mas no mercado ou, mais sinistro, no medo do mercado. Em dez dias que abalaram meio mundo, temos uma Revista de Cincias Sociais que censurada (e no sei o que pior, se a censura, se as desculpas a posteriori e a solidariedadezinha institucional) e um debate na Faculdade de Coimbra entre dois rapazes limpos e barbeados interdito por ser ideolgico.

    "lViolncia no MxicoNo blog da editora Companhia das Letras, a coluna mais recente assinada pelo escritor mexicano Juan Pablo Villalobos refl ete sobre os casos de violncia que tm marcado a

    L E I T U R A S D O M S / S A R A F I G U E I R E D O C O S T AL E I T U R A S D O M S / S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

    O regresso da CensuraNas ltimas semanas, dois casos abalaram os pilares da liberdade de expresso que devem suster a instituio universitria, um em Lisboa, outro em Coimbra. Um nmero da revista Anlise

    , publicada pelo Instituto de Cincias Sociais, foi proibido de circular pelo director do instituto, Jos Lus Cardoso, porque um dos artigos que o compunha, um ensaio fotogrfi co sobre

    alegria, democracia e, enfi m, tambm universidade. Pode-se ou no discutir tudo? Podemos ou no, sobretudo na universidade, discutir a coisa humana? Ou s so tolerados os temas decentes, que no ofendam a gente de bem? E a FCSH, graas a Deus e s pessoas, passou o teste. De raspo, titubeante, com umas hesitaes aqui ou ali ( portuguesa), mas passou. E, mais adiante, sobre os casos do presente: So sinais chatos,

  • 7amnesia son el fi n de toda civilizacin, ya que sin educacin no hay arte y sin memoria no hay justicia. No podemos permitir que la ignorancia y la falta de consciencia del valor de la cultura de los responsables de las ms altas instancias del gobierno de Espaa, erosionen impunemente el arduo trabajo de tantos msicos, actores, bailarines, cineastas, escritores y artistas plsticos que detentan el verdadero estandarte de la cultura y que no merecen sin duda alguna el trato que padecen, pues son los verdaderos protagonistas de la identidad cultural de este pas.

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    Na morte de Manoel de BarrosO poeta brasileiro Manoel de Barros morreu no passado dia 13 de Novembro, aos 97 anos. A sua morte foi assinalada um pouco por toda a imprensa brasileira e internacional, referindo a importncia do seu trabalho potico e a constante reinveno da linguagem e das estruturas poticas a que se dedicou. Num texto publicado no site Campo Grande news, ngela Kempfer recordou-o assim: Apesar de toda a tristeza diante da notcia (sem a graa

    das invencionices), bom lembrar que Manoel sabia que o tempo s anda de ida e que, esperto, amarrou o dito cujo no poste para jamais ser esquecido. Outra sorte que, antes de partir, nos mostrou o que est sob a pedra. Despertou emoes sobre o bruto. Levantou o que todo mundo chuta para chamar ateno ao sentimento e sugerir pacincia de lesma ao olhar apressado. Vegetalizou as pessoas, com simplicidade profunda, como os amigos costumam defi nir. Nmero 1 da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Manoel nasceu em Cuiab (MT), no Beco da Marinha, na beira do rio, mas veio criana para estas bandas e nosso sul-mato-grossense de fato, morador ilustre da Rua Piratininga, no Jardim dos Estados. Vivi nos brejos, lugares midos que custam muito a secar. Eu convivi muito com essas palavras que aparecem em mim, escreveu sobre o Pantanal. Ali, tirou o homem do centro das atenes para falar de sapos, formigas, cobras e gotas dgua. Poderoso no quem descobre ouro, mas quem descobre as insignifi cncias. Falando assim, seguiu uma vida toda, dando lies de humildade. Admirava Charlie Chaplin, por exemplo, por ele ter monumentado o vagabundo.

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    L E I T U R A S D O M S / S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

  • 8Em 1908, Miguel de Unamuno escreveu um ensaio sobre Portugal intitulado: Um povo suicida. Entre os anos de 1907 e 1915 o fi lsofo espanhol manteve uma emotiva relao com o pas vizinho. Atrado pela dimenso trgica do povo portugus, Unamuno estreitou laos com autores lusos e produziu vrios ensaios sobre o tema. o que explica o tambm espanhol Pablo Javier Prez Lpez, poeta e investigador responsvel pela antologia Suicidas, obra que dialoga com o ensaio do autor de Niebla. Unamuno interessa-se por Portugal porque toda a sua obra foi uma refl exo sobre a imortalidade, sobre a morte [...] toda a sua obra literria e fi losfi ca no foi seno uma refl exo, um pensar ou um sentir trgico ou sobre o trgico. Para Prez Lpez, o interesse do ensasta pelo assunto passa tambm por uma busca por respostas sobre a alma espanhola (e sobre si mesmo). Portugal es un pueblo de suicidas, tal vez un pueblo suicida. La vida no tiene para l sentido de transcender. Quieren vivir tal vez, s, pero, para qu? Vale ms no vivir.Defende o autor da antologia que o suicdio e a pulso de morte so uma presena constante na experincia literria, mtica, histrica e identitria do povo portugus. E para demonstrar a sua tese recolhe excertos de seis escritores que se mataram: Camilo Castelo

    Branco, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Mrio de S-Carneiro, Florbela Espanca e Baro de Teive (semi-heternimo de Fernando Pessoa que, cansado da dor da lucidez, ter-se- se suicidado a 12 de julho de 1920). So textos (poemas, cartas, excertos de romances, etc.) de autores suicidas e trazem como ponto em comum refl exes sobre a existncia, o amor e a fragilidade da vida. Provavelmente tenho medo desta antologia porque gosto dos autores suicidas. Gosto do modo como tiveram a coragem para tudo. Porque acredito muito que escrever um gesto de coragem, escreve Valter Hugo Me no prlogo da obra. O escritor portugus confessa que conheceu o dramatismo logo cedo: O meu pai era fatalista, o meu av materno vi-o quase sempre acamado, doente do corao, a generalidade das pessoas, no lugar onde eu vivia, era pobre, afl ita com a sobrevivncia e o decoro religioso e moral. Sei que entendi imediatamente que viver difcil e que a morte muito fcil. Ainda assim no considera que a disforia nas terras de Cames seja maior do que a de outros povos. Pensa, isso sim, que ela justifi cvel. Sabemos que o sentimento de perda portugus poder radicar na histria de um imprio que existiu h quinhentos anos e que se foi diminuindo at restarmos num

    pequeno retngulo pendurado s costas da Espanha [...] Perder um imprio cria num povo uma espcie de espera. Como se fosse natural esperar que o imprio um dia volte. Como se fosse possvel tornar a dividir o mundo como no incio dos Descobrimentos. uma iluso, uma utopia, e de utopias esto tambm todos os povos, e todas as tristezas, cheios. Acompanha a seleo de textos um posfcio de Pablo Prez Lpez em que o autor procura estabelecer uma relao entre Unamuno e a sua leitura sobre a alma portuguesa e os autores escolhidos. Nos suicidas portugueses encontramos a Nostalgia, a Saudade [...] a profunda experincia da loucura, a profunda experincia do amor, a profunda experincia da ausncia, a profunda experincia da morte e, por tudo isso, a profunda, incarnada e enferma experincia da vida e portanto da literatura em que a paixo e o padecimento e o mistrio da verdade se tornam indistinguveis e por vezes insuportveis. Como aponta Hugo Me, a obra corria o risco de ser um trabalho sensacionalista, mas supera essa barreira e, alm de ter qualidade literria, ajuda a entender, se no a um povo, uma parte da sua histria literria.

    L E I T U R A S D O M S / R I C A R D O V I E L

    SuicidasAntologia de escritores suicidas portugueses

    Pablo Javier Prez Lpez

  • A S B S

  • ESTANTE

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    Frederico Loureno

    A Ilada de Homero adaptada para jovensCotoviaFrederico Loureno volta a adaptar uma obra fundadora da literatura ocidental. A Ilada original perde a estrutura dos vinte e quatro cantos, transformados em captulos. tambm emagrecida no nmero de pginas, em grande parte devido escrupulosa sncope de adjetivaes, em que o texto de Homero profcuo. Se se procedeu a alguma simplifi cao lexical e sinttica, tais segmentos convivem em harmonia com passagens idnticas ao do poema original. Tudo na leitura remete para a voz original, fazendo do mediador um cultor excecional do apagamento.

    Herberto Helder

    Poemas CompletosPorto EditoraDepois de vrios livros esgotados recentemente e de muitas corridas aos alfarrabistas, a poesia completa de Herberto Helder agora editada num mesmo volume, com a chancela da Porto Editora. Aqui se coligem os livros integrais do autor, desde A Colher na Boca, de 1961, at A Morte Sem Mestre, de 2014.

    Pedro Almeida Vieira

    Nove Mil PassosPlanetaCom as edies da D. Quixote e da Sextante fora do mercado, Pedro Almeida Vieira reedita na Planeta o romance onde a construo do Aqueduto das guas Livres o pano de fundo para uma refl exo sobre as conspiraes e os no ditos da corte de D. Joo V. Num cenrio histrico, destaca-se a espantosa atualidade das reaes e vontades humanas.

    Alexandra Lucas Coelho

    O Meu Amante de DomingoTinta da ChinaSegundo romance da autora, depois de E a Noite Roda, distinguido com o Grande Prmio de Romance e Novela da APE. Alexandra Lucas Coelho volta a questionar as fronteiras entre fi co e realidade, desmontando regras, limites e verosimilhanas ao ritmo de uma vingana onde todas as pulses humanas parecem desembocar.

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    Isabel Minhs Martins, Yara Kono

    ABZZZZ...Planeta TangerinaNeste Abecedrio dedicado ao sono h lugar para camas, tapetes, meias perdidas, nuvens, leopardos e outros convidados. Entre provrbios adaptados, informaes enciclopdicas, coordenadas geogrfi cas, provocaes e desafi os, vamos percorrendo situaes quotidianas de forma mais ou menos literal. O humor do texto assenta no risvel, muito ao estilo da escritora, e a ilustrao pontilha-o de uma ambincia nav, transformando contexto em personagem: o sono.

    Carlos Drummond de Andrade

    Boca de LuarCompanhia das LetrasOriginalmente publicado em 1984, Boca de Luar rene crnicas escritas para o Jornal do Brasil e uma amostra eloquente do gnio de um autor que teve na crnica um espao privilegiado para elevar a linguagem e o olhar sobre o quotidiano a um expoente difcil de igualar.

    Lawrence Stern

    A Vida e Opinies de Tristram ShandyAntgonaNova edio, desta vez num nico volume, de uma das obras--primas da literatura universal. Escrito e publicado entre 1759 e 1767, o livro que fez da stira a precursora da grande literatura que haveria de produzir-se nos sculos seguintes volta a estar disponvel nas livrarias portuguesas, com traduo de Manuel Portela.

    Lcia Barros (coordenao)

    A Leitura como Projeto Percursos de Leitura Literria do Jardim de Infncia ao 3. CEBTropelias & companhiaNeste volume apresentam-se diversos projetos de leitura literria em sala de aula que foram pensados numa estratgia de continuidade, recorrendo a eixos temticos como elementos agregadores. Para alm da fundamentao terica, da indicao do pblico e das sinopses das obras escolhidas, descrevem-se as abordagens didticas em sala e as sugestes para a leitura em famlia. Trata-se de um guia que potencia vrios caminhos contra a leitura atomstica.

    ESTANTE

  • A S B S

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  • P E S S O AA R C A D EGUARDA APORtUGAl

    C O M OR I C A R D O V I E L

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    Ftima Lopes abre uma caixa, destapa-a, e com a luva branca calada na mo direita retira de dentro da caixa uma pasta, e de dentro da pas-ta um envelope transparente; e finalmente, de dentro do envelope, um par de folhas simples, de um papel de pouca qualidade. Coloca-as sobre a mesa. No canto superior esquerdo da primeira folha, escrito mquina, l-se: Mar-cha da Derrota. Ao lado, a lpis, numa caligrafia no muito fcil de ser decifrada, o autor escreveu: Tabacaria.

    O crebro demora alguns segundos para situar, organizar, o que os olhos veem: um dos versos mais emblemticos da lngua portuguesa, tantas vezes lido e escutado e comentado, mas nunca, at ento, fisicamente to real como nessa manh de novembro de 2014. Ali esto, em papis ordinrios, os 171 versos escritos no dia 15 de janeiro de 1928 por Fernando Pessoa e atribudos a lvaro de Campos que compe Tabacaria, talvez o poema mais co-nhecido de um dos maiores poetas de todos os tempos.

    Esse tesouro est depositado na Caixa Forte da Biblioteca Na-cional de Portugal, em Lisboa, em uma das 58 caixas (um pouco maiores do que as de sapatos) que guardam as cerca de 30 mil fo-lhas de Fernando Pessoa que esto na posse da BNP e que com-pem grande parte do que o esplio do poeta. Os papis deixados por ele so muitos e os mais diversos possveis. Escrevia com o que tinha na mo, resume Ftima Lopes, responsvel pelo Ar-quivo da Cultura Portuguesa. So folhas de todos os tamanhos, tipos (quadriculadas, com e sem linhas, com o timbre dos lugares

    onde o poeta trabalhou) e caractersticas possveis. Olha a quali-dade desse papel, diz a funcionria do BNP mostrando uma das odes de Ricardo Reis. A folha quase transparente, muito delica-da e fina. um papel muito frgil, completa.

    Nesse tesouro de Pessoa esto manuscritos e datiloscritos, cartas (recebidas e enviadas) e outros documentos. Conformam aquilo que vulgarmente chamado de a arca de Pessoa por causa do ba onde o poeta guardava os seus escritos. Hoje, esse material est acondicionado da melhor maneira possvel: em cai-xas anti-cido e pastas especiais (apropriadas para conservar os documentos), em condies climticas excelentes e sob forte se-gurana. Para que um documento seja retirado da Caixa Forte da BNP onde alm dos papis de Pessoa esto outros tesouros como os escritos de Ea de Queiroz e Camilo Castelo Branco preci-so que pelo menos trs funcionrios estejam presentes. Tambm imprescindvel uma autorizao prvia para que o documento seja retirado da Caixa Forte como aconteceu com os papis que Ftima mostra Blimunda. Apenas em situaes muito especiais os documentos saem do edifcio, e quando isso acontece so sem-pre acompanhados por um funcionrio da biblioteca.

    Nem sempre foi assim. Durante dcadas os documentos estive-ram guardados pela irm de Fernando Pessoa sob condies que seguramente no eram as ideais. Tambm foram manuseados por tantas pessoas editores, pesquisadores, interessados, curiosos e familiares que absolutamente impossvel saber a ordem em que foram deixados pelo poeta quando morreu (1935).

    Em 1979 o Estado portugus comprou a quase totalidade dos

    C O M O P O R T U G A L G U A R D A A A R C A D E P E S S O A

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    C O M O P O R T U G A L G U A R D A A A R C A D E P E S S O A

    FOtOGRAFiAS TO PITELLA

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    documentos que representam o esplio do poeta. Ao longo dos anos foram adquiridos outros documentos que foram integrados no material guardado na BNP a ltima aquisio aconteceu em 2012. Dez anos antes, em 1969, havia sido criado um grupo que ti-nha a tarefa de inventariar pela primeira vez o esplio de Fernan-do Pessoa (naquela altura na posse dos familiares do escritor).

    O trabalho de armazenamento dos papis de Pessoa na BNP tiveram incio em 1980. Eu era muito jovem naquela poca, tive que comear a trabalhar cedo, conta Ftima Lopes. Nessa data os manuscritos do autor de Mensagem foram ento transladados da casa dos seus herdeiros para a Biblioteca.

    Atualmente, cada vez mais raro que eles sejam consultados fi-sicamente. Desde 2010 todos os escritos de Pessoa guardados pela BNP esto digitalizados, o que permite que as consultas j no precisem ser feitas nos originais. Parte do arquivo est disponvel online e outra parte pode ser consultada em alguns computadores da Biblioteca Nacional mediante prvia autorizao.

    Em 2009 as caixas que guardavam os papis de Pessoa e as ca-pas que os protegiam foram trocadas por materiais mais moder-nos e que conservam melhor os documentos. Em 2011 o edifcio da BNP foi requalificado e a Casa Forte construda. Antes esses do-cumentos eram guardados no depsito de Reservados, onde ainda esto a maior parte dos manuscritos e impressos raros os Re-servados so o conjunto de colees de maior valor e importncia patrimonial sob o cuidado da BNP. Que nunca acontea, mas se houver um novo terramoto em Lisboa os documentos de Fernan-do Pessoa estaro protegidos, garante Ftima.

    Embora estejam hoje preservados da melhor maneira possvel, trata-se de documentos antigos, boa parte deles com cem ou mais anos de vida. Em algum momento comea-ro a tornar-se menos legveis, a desapare-cer. At quando podem durar esses escritos? Eu tenho a certeza de que dentro de muitos anos, na poca dos nossos tetranetos, esses documentos estaro em condies de serem consultados, diz enftica a guardi do Arquivo de Cultura Portuguesa. E quando isso j no for possvel, restar o consolo de que virtualmente eles continuaro acessveis. um alento, mas perder-se- a admirao causada pelo encontro com a realidade fsica, a vertigem que se sente, por exemplo, ao ler-se pela primeira vez o original do poe-ma cujo incio os leitores de Pessoa tm gravado na memria:

    No sou nada. Nunca serei nada.No posso querer ser nada. parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Admirao que, ao que parece, continua a acontecer mesmo depois de anos e anos de convivncia com essa preciosidade. Que o diga Ftima Lopes: As minhas mos j no tremem como tre-meram na primeira vez, mas ainda me emociono, diz ao manu-sear o poema que um dia se chamou Marcha da Derrota, mas que entrou para a histria da literatura mundial com o nome de Tabacaria.

    C O M O P O R T U G A L G U A R D A A A R C A D E P E S S O A

  • F e r r a r iP a t r c i o

    Doi s pessoanospe lo mundo

    P i z a r r o eJ e r n i m o

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    Jernimo Pizarro veio da Colmbia. O argentino Patrcio Ferrari, de Frana onde fazia os estu-dos de mestrado. Conheceram-se em Portugal h quase uma dcada graas a Fernando Pes-soa. Ambos acadmicos, ambos apaixonados pela riqueza e imensido da obra do escritor portugus. Mergulharam no esplio, passaram horas e horas entre manuscritos e livros da Bi-blioteca Nacional e da Casa Fernando Pessoa. Editaram livros em conjunto, e mais ou menos na mesma poca partiram. Pizarro re-gressou Colmbia onde titular da Ctedra de Estudos Portu-gueses do Instituto Cames na Universidad de los Andes. Ferrari vive agora nos Estados Unidos, onde, na Brown University, d se-quncia s pesquisas e publicaes sobre o poeta. Mesmo longe de Portugal, continuam a respirar Pessoa e agora partilham o que sabem em outras terras e idiomas que no os do poeta criador de personalidades.

    A Blimunda entrevistou-os sobre os mais recentes ttulos que editaram e sobre o assunto que os une: o amor por Pessoa.

    Jernimo Pizarro: O meu mar portugus foi o esplio de Fernando Pessoa

    Acaba de ser publicada em Espanha uma nova edio do Livro do Desassossego com organizao sua. O que traz de diferente em relao s outras edies?Em espanhol existem edies que foram reaes primeira

    publicao do Livro do Desassossego, em 1982; edies muito ima-ginativas, que sugerem novas ordenaes e propostas de leitura; e edies que seguem a edio da Assrio & Alvim de 1998, uma edio deficiente que, em 2008, Jaume Vallcorba admitiu retirar do mercado e substituir por uma nova. Essa substituio no che-gou a ter efeito, a edio crtica do Livro do Desassossego saiu em 2010, e a ltima edio baseada na edio crtica, tirando as notas genticas, foi publicada pela Tinta da China, em 2013. Essa edio da Pre-Textos a primeira em espanhol baseada na edio crtica. A recente edio da Acantilado, de 2012, uma verso corrigida e ampliada da edio publicada em 2002, porque s corrigida e ampliada podia voltar a circular a de 2002. A edio da Pre-Textos est organizada cronologicamente, o que permite diferenciar as duas fases de produo do livro.

    Pessoa j conhecido em espanhol?No mundo hispnico Pessoa ficou conhecidssimo depois da

    antologia de Octavio Paz. Pessoa faz parte da herana literria dos

    D O I S P E S S O A N O S P E L O M U N D O

    R I C A R D O V I E L

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    pases hispnicos h mais de meio sculo. Em Medelln existe um poeta que construiu uma pessoateca. Nas livrarias da Colmbia os livros de Pessoa muitas vezes no se encontram porque chegam e duram poucos dias, desaparecem logo. Pessoa uma palavra m-gica que convida pessoas. E se no pensarmos apenas no mundo hispnico, mas na Iberoamrica, e incluirmos o Brasil, ento per-cebemos que Pessoa um gigante. Daniel Balderston sugere que Jorge Luis Borges o maior escritor do sculo XX. Eu no sei qual o maior. Mas suspeito que Fernando Pessoa faz parte do dream team literrio do sculo XX. Talvez por este motivo, quando eu leio certos autores portugueses, e no s, tendo a pensar que eu no poderia estar a ler certas pginas se Fernando Pessoa no tivesse existido: muitos de ns somos, em parte, uma inveno pessoana.

    Hoje considera-se uma espcie de Embaixador de Pessoa?No propriamente. Nunca poderia ser Embaixador porque te-

    ria que optar por uma s ptria. E nunca imaginei que a minha vida, em momento algum do meu percurso, fosse a preparao para uma nova fase. A Colmbia apenas intensificou o meu labor de tradutor. Mas, no fundo, eu sou editor, isto , um fillogo neu-rtico que ama as palavras e gostaria de morar na Rua da Emen-da em Lisboa. E o meu amor s palavras faz-me editar, traduzir, escrever e ensinar Literatura. E tanto preciso de Pessoa como de Mroek, de Vallejo, de Sterne, de Guimares, de Dickinson, de

    Cervantes e de tantos mais. Ora, na Colmbia sou o titular de uma Ctedra do Cames, I.C., e sempre que estou a agir como titular dessa ctedra sinto uma responsabilidade que me apaixona: di-vulgar Cames, Mendes Pinto, Ea, Almada, ONeill, Sophia, Sa-ramago, et al. You name it. E ainda msicos, editores, arquitetos, ilustradores e diversos representantes das mltiplas manifesta-es que conformam a idiossincrasia portuguesa no mundo.

    Como e quando foi o seu encontro com os manuscritos de Pessoa?O meu primeiro contacto foi em 2003 e foi um naufrgio. De facto,

    como explica Arlette Farge (Le Got de larchive, Paris, Seuil, 1997), sempre que falamos num arquivo parece que pensamos numa imensido aqutica. H fundos, h imerses, h afogamentos. O meu mar portugus foi o esplio de Fernando Pessoa; e nenhu-ma vida suficiente para circum-navegar um mar to vasto e to complexo.

    Hoje em dia j no h mais a necessidade de aceder fisica-mente aos documentos. Tem saudade de v-los, de toc-los? Esto digitalizados, sim, mas no plenamente disponveis.

    Quem quer consultar o material digitalizado tem que ter um carto de utente de uma biblioteca que fica perto da Alameda da Univer-sidade. E quem quer consultar o que est com a famlia do escritor

    D O I S P E S S O A N O S P E L O M U N D O

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    tem que ter um certo dom. Mas o pior no isto: que muitos tcnicos e acadmicos no percebem que para editar Pessoa im-prescindvel consultar os documentos fsicos. H ignorantes ins-trudos mesmo entre aqueles que estudam as materialidades da literatura... Mas prefiro fechar com uma nota sentimental. Sinto, sim, mais do que falta, saudades dos autgrafos pessoanos, e da que uma visita a Lisboa quase sempre inclua uma visita ao esplio de Fernando Pessoa. Para mim, a topografia de Lisboa estaria in-completa sem a topografia desses papis. Como quem ama perder--se nas ruas de uma cidade, eu amo perder-me nos traos escritos desses documentos. Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.

    Patrcio Ferrari: Levar a poesia de Pessoa a outros stios

    Em setembro foi publicado um livro de poemas de Pessoa em francs editado por si. a primeira vez que se publi-cam os poemas franceses? Qual foi o critrio de seleo?Essa edio rene, pela primeira vez, todos os poemas france-

    ses de Fernando Pessoa, acabados e inacabados. A edio conta com 183 textos dos quais 77 so inditos. Pessoa estudou francs na Durban High School mas nunca viveu em Frana, lia em francs (os numerosos livros em francs na sua biblioteca particular so testemunho disto) e escrevia em francs. O livro agora publicado tem poemas de Pessoa escritos em francs e algumas tradues feitas por ele de poesias de Antnio Botto. H alguns poemas em francs de Alexander Search e um poema de Ardrce Augradi. H ainda um poema em francs escrito mediunicamente por Pessoa.

    Se h pases onde Pessoa j um velho conhecido, em outros comea a ser descoberto. o caso da Frana? Que relao tm os franceses com Pessoa?Concordo. Para alm da Espanha, Itlia e Alemanha, a Frana

    o pas na Europa (fora Portugal, naturalmente) onde Pessoa mais lido. Uma das razes, para alm do fascnio da pluralidade Pesso-ana, a divulgao de Patrick Quillier enquanto editor-tradutor.

    D O I S P E S S O A N O S P E L O M U N D O

    Jernimo Pizarro e Patrcio Ferrari

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    O Patrcio agora est nos Estados Unidos. Continua a in-vestigar sobre Pessoa? Em que projetos est envolvido?Continuo a trabalhar nos manuscritos de Fernando Pessoa.

    Estou na Brown University h um ano e continuo a trabalhar sobre Pessoa. De facto, nos dias 17-18 de abril do prximo ano organizo um colquio sobre a poesia inglesa de Pessoa: Inside the Mask: The English Poetry of Fernando Pessoa. A maioria dos convidados sero no-pessoanos especialistas em literatu-ra anglo-americana (Thomas Wyatt, William Shakespeare, Walt Whitman, entre outros). O meu projeto de ps-doutoramento para alm da poesia francesa uma edio crtica da poesia in-glesa indita de Pessoa. No s h quantidade mas qualidade. The readers will judge.

    Recorda a primeira vez que viu os manuscritos de Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal? Como foi esse primei-ro encontro? Nessa altura ainda se manuseavam os pa-pis ou j havia uma plataforma digital?Foi em 2006, nos Reservados da Biblioteca Nacional. Nessa al-

    tura ainda podamos consultar diretamente os originais. Recor-do-me de ver num mesmo manuscrito notas, fragmentos e versos em trs lnguas (portugus, francs e ingls). Mas eram textos que nunca tinha lido que ainda no tinham sido publicados. Passei anos nos Reservados e na biblioteca particular de Pessoa (na Casa

    Fernando Pessoa), a qual deve ser considerada outro esplio j que muitos dos seus livros se encontram com anotaes, tradu-es e versos.

    Continua a disseminar a obra de Pessoa, mas agora em outros idiomas que no o portugus e em outras terras que no Portugal. Sente-se uma espcie de embaixador pessoano? um objetivo seu levar Pessoa a lugares aonde ainda ele no foi descoberto? No ano passado estive no Brasil, na Estnia e na Sucia, parti-

    cipando em congressos e seminrios. Tambm graas a um convi-te do embaixador de Portugal dei uma Conferncia sobre Pessoa na Feira do Livro de Gotemburgo.

    Em 2015, para alm do colquio na Brown dedicado poesia de Pessoa em lngua inglesa, teremos a publicao de um livro editado por mim e pelo Pizarro sobre o leitor e escritor Fernando Pessoa. Pessoa leva-me e eu levo a Pessoa. Na Sucia tenciono di-vulgar a poesia (portuguesa, francesa e inglesa) de Pessoa junto a poetas/tradutores locais. Espero fazer a mesma coisa nos EUA. Em ambos os pases, quando falamos de Fernando Pessoa, as pes-soas s conhecem o Livro do Desassossego. Pouco a pouco gostaria de introduzir a poesia, mas a poesia nas trs lnguas (lnguas, de facto, que Pessoa utilizou at ao fim da sua vida).

    D O I S P E S S O A N O S P E L O M U N D O

  • BANDADESENHADA:

    NOVOFL EGOEM TR SNOVOSL IVROS

    S A R A F I G U E I R E D O C O S T A

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

    A edio de banda desenhada em Portugal tem passado por euforias e recesses dignas de uma montanha-russa. Se os

    textos de balano que a Bedeteca de Lisboa publicava (quando a Bedeteca de

    Lisboa ainda tinha programao prpria e alguma autonomia, antes de a tutela

    camarria ter colocado um ponto final nesse trabalho) no final da primeira

    dcada deste sculo revelam um decrscimo anualmente acentuado, depois de

    alguns anos de crescimento eufrico, os ltimos anos voltaram a ser de pouca

    colheita. Em 2013 notou-se de novo o aumento de livros editados em portugus,

    e sobretudo o aumento da sua visibilidade nas livrarias, na imprensa e junto do

    pblico, no apenas do pequeno nicho dos fs, mas essencialmente do pblico

    generalista. Este ano, a tendncia intensificou-se e as edies mais recentes,

    aproveitando o Amadora BD como espao comercial relevante, revelam uma

    diversidade temtica e de linhas editoriais que s pode enriquecer o panorama.

    Entre os vrios ttulos publicados nos ltimos meses, escolhemos trs que, valendo

    cada um pelo trabalho que prope, acabam por ser algo representativos de

    uma diversidade editorial que s pode beneficiar o mercado e os leitores.

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

    CopacabanaLobo e OdyrPolvo

    Copacabana o primeiro lbum desenhado por Odyr, resultado de sete anos de avanos e re-cuos de Lobo, o argumentista, at ter encon-trado o desenhador que haveria de dar trao, corpo e volume narrativa que o bairro ca-rioca tinha plantado na sua cabea. Vrias histrias compem este livro, tantas quan-tas as personagens que se cruzam nas ruas e

    na noite, cenrio privilegiado destas pranchas onde o trao sujo e carregado, por vezes de tal modo que as fisionomias se misturam sem que seja possvel distingui-las, serve sem enganos o ambiente que procura representar.

    No centro da narrativa est Diana, uma prostituta entre as muitas que trabalham no bairro, orientando a vida entre um quo-tidiano profissional to agreste como se imagina e uma rotina que se constri com as preocupaes de quase toda a humanidade: ga-rantir o sustento dirio, atravessar a vida sem grandes complica-es, fugir de problemas. E problemas so o que no falta na zona mais agitada de Copacabana, porque na vida noturna difcil es-

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

    capar ao consumo de drogas e com as ilcitas substncias vem a necessidade de mais dinheiro, as relaes atribuladas com quem controla o trfego, os esquemas com a autoridade, repressiva e cmplice a um s tempo.

    Diana o fio condutor que leva esta narrativa pelas ruas de um bairro e um tempo, entre botes de m fama e uma praia frequen-tada, ontem como hoje, por todo o tipo de pessoas (parece que a praia continua a ser um dos poucos espaos democrticos no Bra-sil das desigualdades, e ainda assim haver momentos em que uma ou outra zona do areal no para todos). Para l de Diana, das companheiras e companheiros de profisso e das pequenas histrias que a partir das suas rotinas se vo desenrolando, Copa-cabana acaba por confirmar-se enquanto reflexo, conhecedora e ainda assim curiosa perante o que a rodeia, sobre um determinado submundo carioca. Os clichs das mulatas de formas generosas, dos malandros com passo gingado e dos mauricinhos armados em corajosos esto todos l, mas sobre as pulses que nos movem a todos e sobre o modo como uma cidade e a sua respirao parecem definir a vida de cada um que Copacabana tem algo a dizer. E di-lo com tanta elegncia como brutalidade.

    Sepulturas dos PaisDavid Soares e Andr CoelhoKingpin Books

    Num registo psicologicamente denso e atento s vertentes mais escuras e es-corregadias da natureza humana, como tem sido habitual nos seus livros, David Soares assina, com Andr Coelho no desenho, um lbum onde a memria se revela armadilha, mais do que mecanis-mo para lembrar e avanar.

    Sepulturas dos Pais insere-se sem grandes desvios no trabalho ficcional que David Soares tem vindo a construir, na banda dese-nhada e na literatura, explorando uma ideia de passado que no se conforma no registo da fico histrica, antes divagando com mtodo numa reflexo sobre o tempo, o que no muda apesar das mudanas, o que no aprendemos entre tanta descoberta. Num registo que cruza o presente de um homem com o passado que o conduziu ao ponto onde a narrativa no-lo apresenta, o livro de So-ares e Coelho faz desfilar uma narrativa marcada pela pobreza,

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

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    pela falta de expectativas e, sobretudo, por uma misoginia descon-fortvel e brutal. nesse cenrio que o passado se desenrola, em pranchas de um preto e branco realista e quase cinematogrfico, impondo um confronto entre o valor do que se conta e aquilo a que chamamos realidade. O desfecho esclarece em que ponto da vida se encontra o homem que fala sobre o seu passado, algo que a estrutura do livro alcana sem surpresa mas, ainda assim, com uma fora narrativa assinalvel, para a qual contribuem os planos de cada vinheta e o modo como do corpo ao argumento.

    Entre o confronto com o passado e o embate com a dvida, Se-pulturas dos Pais um livro que merece o epteto de cruel, no por-que a violncia surja em vrias vinhetas (e surge), mas sobretu-do porque o que fica da sua leitura o reverso das boas intenes sobre histrias bonitas ou finais felizes: chegado o futuro, no h esperana que sobreviva. Possa a memria servir para manter al-guma luz por entre as trevas e j teremos alcanado toda a quota de esperana contida nestas Sepulturas dos Pais.

    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

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    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

    QCDA #2000Slvia Rodrigues Amanda Baeza Sofia Neto, HetamoChili Com Carne

    O segundo volume do QCDA, publica-o da Chili Com Carne que oferece espao para autores pouco editados numa escala maior, entregando-lhes a responsabilidade de pensarem e edi-tarem cada volume, tem a particula-ridade de contar apenas com autoras no seu alinhamento. Olhando para o

    ndice, a referncia tem tanta relevncia quanto teria dizer que no primeiro volume apenas se publicam trabalhos de autores, ho-mens, portanto, ou seja, nenhuma. apenas um dado, uma cons-tatao, mas nestas coisas sabemos que a discriminao positiva costuma funcionar como ponto de referncia par a leitura, pelo que no vale a pena fingir que se ignora o facto.

    Dito isto, avancemos para a leitura. Slvia Rodrigues, Amanda

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    o cirrgica ao trabalho de composio da prancha, explorando a representao de espaos e tempos simultneos e fugindo da rigi-dez das vinhetas sucessivas com estratgias (as diferenas tonais, a mancha de tinta, a composio) que quebram a regularidade, complexificando a narrativa.

    Sofia Neto revisita o mito de Cassandra, desconstruindo as categorias ficcionais e questionando a importncia da verosimi-lhana na construo de uma narrativa. No confronto entre a per-sonagem que procura histrias verosmeis para contar e a sibila que sabe que as histrias que conta so, na verdade, prenncios desenrola-se uma narrativa cujo eixo no o que se conta, mas antes a tomada de conscincia sobre um processo que arrasta con-sigo mais perdas do que oferendas generosas.

    Quem souber ver na capa deste volume mais do que o seu colo-rido finge oferecer encontrar uma amostra significativa da qua-lidade e dos caminhos de experimentao e desafio que alguns novos autores portugueses de banda desenhada parecem querer trilhar.

    Baeza, Sofia Neto e Hetamo partilham um volume com poucas pginas (20) mas de grande formato (A3). Quem est familiari-zado com as publicaes da Chili Com Carne poder estranhar a capa, uma miscelnea colorida de personagens femininas que podiam ter sado de um episdio mais violento da Candy, Candy que serve de porta de entrada para a ltima histria, assinada pela mesma autora da capa, Hetamo. Num registo grfico que aam-barca referncias da banda desenhada japonesa mais pop, onde se incluem meninas com lacinhos, tnis decorados e emoticons fo-finhos, Hetamo cria uma narrativa a partir de fragmentos, ima-gticos e verbais, escondendo uma rudeza romanceada no cenrio lollypop nipnico onde parece mover-se com tanto vontade como capacidade de ironizar.

    Slvia Rodrigues trabalha com formas fluidas e generosas, compondo personagens que parecem danar, mesmo que no se movam. Uma personagem feminina mostra-se em dois cenrios que so a alternncia de uma vida pacata com os momentos de fuga que pode permitir-se. O potencial narrativo condensa-se numa espcie de instantneo quotidiano, um contraste entre es-paos, vivncias e estados de esprito. The Story of a Karaoke Diva ser uma fico, mas o registo que faz de um dia a dia banal podia ser documentrio de vrias existncias contemporneas sem voz nem espao para tomar a palavra.

    Nas quatro pginas de Amanda Baeza reconhece-se uma aten-

    B A N D A D E S E N H A D A : N O V O F L E G O E M T R S N O V O S L I V R O S

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    ANUNCIO A4_autores.pdf 1 14/10/20 22:14

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    SARATHEMAGO AT

    MOVIESJ O O M O N T E I R O

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    S A R A M A G O A T T H E M O V I E S

    A obra literria de Jos Saramago aquela que em Portugal mais tem sido alvo do olhar de cineastas estrangeiros (e de um portugus). , sem dvida, o romancista portugus mais

    conhecido fora de portas, estatuto que j ostentava mesmo antes de se ter tornado o primeiro e nico Nobel de lngua portuguesa.

    No espanta por isso o interesse da 7.a Arte em adapt-lo para o grande ecr, tornando-o deste modo no nico escritor portugus a ser filmado por outras cinematografias. Proponho

    ento perceber quais so as caractersticas que o seu estilo possui que facilitam a adaptao, e de seguida tentar perceber qual a melhor maneira de adaptar Saramago ao cinema atravs da anlise dos quatro filmes sados dos seus romances (La Balsa de

    Piedra, Blindness, Embargo e Enemy).

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    Quando Joana Carda riscou o cho com a vara de negrilho, todos os ces de Cerbre comearam a ladrar, lanando em pnico e terror os habitantes, pois

    desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal prximo de extinguir-se.

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    ces tenebrosos e melanclicos. Podemos talvez tentar perceber o apelo da sua obra junto a cineastas estrangeiros, olhando para Saramago no como uma instituio literria do sculo XX mas como um escritor de fico cientfica, terror, comdia ou aventura.

    No entanto, o escritor conseguiu sempre superar este rtulo, da mesma forma pela qual os grandes escritores sul-americanos con-seguiram que as suas imaginaes poticas no fossem reduzidas a gneros especficos, permitindo que os seus livros assumam esse estatuto universal da alta cultura. Refiro-me corrente li-terria conhecida como Realismo Mgico cultivada por nomes como Jorge Luis Borges, Gabriel Garca Mrquez ou Adolfo Bioy Casares. Trata-se de autores de livros fantsticos e especulati-vos, de grande apelo comercial mas, ao mesmo tempo, difceis de transpor para o cinema, ao contrrio da verdadeira literatura de gnero. Como se sabe, o escritor portugus era grande aprecia-dor deste estilo, e as dificuldades para adaptar a sua obra para o grande ecr so semelhantes s encontradas com as obras destes seus camaradas sul-americanos.

    H tambm uma acessibilidade imediata em termos de narrati-va, apesar daquele toque caracterstico que o seu uso pessoal da gramtica, ao tema do romance. Muitos dos seus livros podem ser facilmente resumidos numa breve e apelativa sinopse, num sim-ples E se?. Uma autntica frmula milagrosa para vender um filme antes de estar feito. Por exemplo: E se a Pennsula Ibrica se soltasse do continente europeu e andasse deriva? (A Jangada

    1. VIAGEM A SARAMAGOOs escritores que se dedicam fico cientfica no conseguiram,

    at agora, criar um mundo que se assemelhe ao nosso em teor de ex-centricidade. Ao ponto de me deixarem, a mim, frio e indiferente, mes-mo quando carregam no pedal dos monstros verdes e monoculares ou das algas falantes. J sou sensvel s imaginaes poticas, mas isso, mais que certo, preconceito de classe.

    Jos Saramago, in Deste Mundo e do Outro

    A Academia Sueca justificou a es-colha de Jos Saramago para Nobel da Literatura 1998 pela sua capacidade de tornar com-preensvel uma realidade fugidia com parbolas sustentadas pela imaginao, pela compaixo e pela ironia. A obra do escritor da Azinhaga ascendia ao estatuto de alta cultura, aquela que o crtico Harold Bloom considera constituir o cnone ocidental, e no qual inclui, para alm de Saramago, os outros dois grandes vultos da literatura portuguesa: Cames e Pessoa. E, se as razes para a aceitao de Pessoa no estrangeiro se podem prender com a sua costela anglo-saxnica, o mesmo se pode aplicar a Sarama-go enquanto um escritor de gnero. Bloom destaca inclusive a sua capacidade de tanto escrever comdias deliciosas como roman-

    S A R A M A G O A T T H E M O V I E S

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    Entre as mil notcias, opinies, comentrios e mesas-redondas que ocuparam, no dia seguinte, jornais, televiso e rdio, passou quase despercebido o bre-ve comentrio de um sismlogo ortodoxo, Gostaria bem de saber por que

    que tudo isto se passa sem que a terra trema []

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    O pr-Nobel portugus sempre se mos-trou avesso a adaptaes da sua obra ao cinema. Talvez eu no saiba dizer porqu, mas a verdade que aceito mais facilmente que se teatralize um romance meu. O que aconteceria em 1998 o ano Saramago quando foi le-vada cena em Milo a pera Blimun-da, a partir de Memorial do Convento. Isto apesar das longas con-versaes com o italiano Bernardo Bertollucci que queria filmar o mesmo romance. Aceito muito melhor isso do que aceitaria (e at agora no aceitei e no creio que venha a aceitar) a adaptao de romances meus ao cinema., disse em entrevista. A teatra-lizao do Memorial do Convento no concorre, no entra em competio com o romance. Mas o cinema sim, entra; a que est a diferena.

    O francs, radicado na Holanda, Georges Sluizer foi o pri-meiro a conseguir quebrar a sua resistncia. Sluizer havia lido A Jangada de Pedra em 1995. Em entrevista disse: Devorei-o em dias. Fui sensvel ao tom mgico e senti-me prximo das posi-es polticas de Saramago. Apesar de a sua vontade ser ante-rior atribuio do Prmio Nobel, s conseguiu avanar com o projeto em 1997, um ano antes do anncio. Como seria bvio, procurou primeiro financiamento em Portugal, mas viu este ser

    de Pedra); E se a populao mundial ficasse subitamente cega? (Ensaio sobre a Cegueira); E se toda a populao votasse em bran-co numa eleio? (Ensaio sobre a Lucidez). A revista Vrtice publi-cou h uns anos um artigo da autoria de Teresa Sousa de Almeida intitulado Estranha Viagem ao Mundo da Fico Cientfica em Portugus, onde se analisava o boom de literatura deste gne-ro na dcada de 80 em Portugal. Fora dos nomes que se inserem intencionalmente nesta categoria, a autora destaca dois, que por mais que tentem no conseguem escapar contaminao do g-nero: Mrio de Carvalho e, obviamente, Jos Saramago. Se formos a ver, o prprio aponta nesse sentido quando impe nos seus t-tulos uma marca de gnero, seja ele evangelho, memorial, ensaio, histria, etc. Se juntarmos tudo isto sua capacidade inata para contar histrias (e o apelo comercial do Prmio Nobel por cima), tornar-se-ia difcil indstria do cinema continuar indiferente ao seu nome. Teresa Sousa de Almeida, que usa a citao que figura no incio deste artigo, distancia-se de uma leitura polmica da sua obra, convidando os leitores discusso deixando uma pista cha-mada A Jangada de Pedra.

    2. NOBEL-EXPLOITATIONOs olhos olham, e por verem to pouco, procuram o que deve estar

    faltando e no encontram.Jos Saramago, in A Jangada de Pedra

    S A R A M A G O A T T H E M O V I E S

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    O Crime do Padre AmaroJoana Carda no sabe e no pode dizer mais, Estava o pau ali no cho, fiz um risco com ele, se por t-lo feito que estas coisas acontecem, quem sou

    eu para o jurar []

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    Antes de prosseguir, convm sa-ber quem era este Georges Slui-zer e como que conseguiu algo de que Bertollucci, um nome de maior peso, no foi capaz. Para os leigos, o nome de Sluizer nada diz, para os cinfilos significa apenas um dos melhores filmes de terror europeus da histria do gnero: Spoorloos, de 1988. Co-nhecido em Portugal como O Homem que Queria Saber, este exer-ccio supremo de terror psicolgico relata o fatdico destino de um jovem casal s mos de um luntico. Um dos seus maiores admiradores era Stanley Kubrik, que o achava superior ao seu Shining. O norte-americano tinha por hbito, sempre que apre-ciava muito um filme, pedir o contacto do realizador e ligar-lhe do nada para conversar sobre aspetos tcnicos do filme. Sluizer recebe uma noite uma chamada destas. A conversa correu to bem que Kubrik queria at usar a atriz do filme, Johanna ter Ste-ege, num dos seus projetos falhados, The Arian Diaries, sobre a Segunda Guerra Mundial. Tambm a indstria americana re-parou no filme de Sluizer, e props-lhe a realizao de um re-make em Hollywood. The Vanishing, de 1993, tem no elenco Kiefer Sutherland e Sandra Bullock no papel do casal, e Jeff Bridges a

    negado e inclusivamente ser acusado de neocolonialismo pela comunidade cinematogrfica portuguesa. Foram tantos os rea-lizadores e produtores portugueses que disseram publicamente Como que ele se pode atrever? Imaginem, a roubar o nosso Nobel!, desabafou Sluizer. Negado financiamento pelo Estado portugus, virou-se para as multinacionais e o filme seria co-produzido pela Lusomundo (Portugal), a MGS Films (Holanda) e a Sogecine (Espanha). Este ltimo era o principal financiador, razo pela qual o filme acabou falado em espanhol. Faltava con-tudo o obstculo mais resistente: o prprio Jos Saramago. O es-critor recebeu o guio no ms em que soube do Nobel e s aceitou receber a visita do realizador na ilha de Lanzarote aps alguma insistncia. Comemos a conversar, mas no muito. Aos pou-cos, comeou-se a estabelecer um clima de confiana. Seguiu-se um cuidadoso casting apostado no mercado ibrico e sul-ameri-cano, encabeado pelo veterano ator argentino Frederico Luppi, cuja carreira tinha sido revitalizada por Guillermo del Toro em Cronos, pelos portugueses Diogo Infante e Ana Padro e pelos espanhis Gabino Diego e Icar Bollan. As filmagens seriam di-vididas entre Portugal e Espanha.

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    O Crime do Padre Amaro[] que diremos dos milhares de estorninhos que acompanharam durante

    tanto tempo a Jos Anaio, s o deixando na hora de principiar-se outro voo.

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    Adaptar um romance que tem como ideia a separao fsica da Penn-sula Ibrica da Europa enquanto parbola poltica, fenmeno que atrai cinco indivduos com pode-res especiais (e um co) uns aos outros sem explicao aparente no tarefa para filmes de baixo oramento. Mas Sluizer persistiu e foi fiel sua crena de fazer o meu filme, e no limitar-me a filmar o livro. Mas, neste caso, parece evidente que as falhas do filme os pobres efeitos digitais, a pouca convico dos atores, o tom demasiado teatral so prova das dificuldades de Sluizer em criar uma unidade numa produ-o fragmentada em trs pases. O resultado algo desconexo e d a entender as dificuldades em transformar o texto em guio. Saramago disse das suas personagens: Fora disso no os descre-vo fisicamente, no digo se so formosos ou se so feios. So pes-soas nada mais! Trata-se de um convite ao leitor para participar na criao desses personagens; ultrapassado este desafio quem l sente-se mais motivado a suspender a sua descrena e aceitar to-das as ideias que o autor lhe lance no caminho. No cinema , ob-viamente, diferente. preciso muito mais para que os espectado-res acreditem naqueles corpos e caras que se apresentam defronte de si. Ao cinema exigido muito mais.

    desempenhar o luntico. Porventura devido a presses da 20th Century Fox, esta verso tem um happy end o ensaio acerca da banalidade do mal do original transformado num thriller ba-nal com grandes estrelas de cinema. O projeto seguinte de Slui-zer, desta vez um filme independente onde teria maior liberda-de criativa, viria a ser o ltimo projeto do ator principal, River Phoenix. A produo de Dark Blood foi cancelada a meio quan-do Phoenix morreu subitamente de falha cardaca por abuso de substncias. Como no mercado americano no se pode ter azar, Sluizer tornou-se num nome txico, associado a tragdias. Foi o fim prematuro do sonho americano. Os anos que se seguiram vi-ram a sua sade deteriorar-se merc das suas batalhas hercleas para conseguir financiamento na Europa que lhe recuperasse a carreira que havido deixado no incio dos anos 90. Estas bata-lhas lev-lo-iam a procurar outras fontes, e assim d-se incio sua aventura portuguesa que comea em 1996 quando realiza, em parceria com Carlos da Silva, a comdia Mortinho por Chegar a Casa. no seguimento deste filme que Sluizer resolve adaptar o ainda pr-Nobel Saramago em Portugal.

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    O Crime do Padre AmaroQuis Jos Anaio lanar gua na fervura dos risos que a sugesto de Maria Guavaira levantara, e props que fosse dado ao co o nome de Constante,

    tinha lembrana de haver lido esse nome num livro qualquer []

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    Noutra entrevista confessou: Mas provavelmente eu no aguen-taria ver a Madonna, para dar um exemplo bastante disparatado, a representar a Blimunda ou a Maria Madalena, num filme.

    Voltando a Sluizer para terminar. A morte sbita de River Phoenix foi uma tragdia que o abalou profundamente: Fiquei deprimido, vazio, sem vontade de continuar. Tantos anos a ver crescer algo que no podia ser terminado... Durante anos no vivi. Sobrevivi. Segundo o prprio, o livro de Saramago teria um profundo efeito na sua recuperao, o que pode explicar a sua persistncia quase obstinada em terminar o filme apesar de todas as contrariedades. Mas, durante a sua vida, o fantasma de Phoenix continuaria a atorment-lo. Sluizer, octogenrio e j com muitas dificuldades de locomoo, resolve terminar Dark Blood. Tinha guardado os negativos originais do filme revelia dos produtores e para as cenas que faltavam de River convidou o irmo, Joaquin, a substitu-lo. Este recusou, assim como toda a famlia Phoenix, qualquer envolvimento. Mesmo assim, contra tudo e todos, Sluizer consegue terminar o filme 19 anos depois. Dark Blood teve antestreia mundial no Festival de Berlim de 2013, tendo prosseguido num priplo pelo circuito mundial de festi-vais. O ltimo foi em Bruxelas, este ano, que contou com a sua presena. Seis meses depois, em setembro de 2014, Georges Slui-zer parte deste mundo de esprito apaziguado.

    A crtica portuguesa no de se deixar impressionar por estes esforos e ignorou o filme como se se tratasse de um produto nem sequer digno de srie B. A associao ao cinema tambm classificado de exploitation no descabida e o filme at poderia ser descrito como um road-movie ibrico, com super-heris m-gicos e algum contedo ertico, se o seu oramento no tivesse sido considervel cerca de 5 milhes de euros. Talvez se o filme tivesse assumido mais o contedo irnico do material de origem, ento, as cenas mais bem conseguidas como a passagem de Gi-braltar por Portugal depois de se ter soltado de Espanha, repleta de ingleses alcoolizados em completo xtase por deixarem Espa-nha, estariam mais bem acompanhadas. Mas, pelo menos, esta Jangada de Pedra no envergonhou Saramago que foi Holanda para a estreia mundial, onde afirmou Escrevi um livro, George no me traiu, porque encontrou a alma e o sentido. O realiza-dor acrescentaria: Mostrou-se particularmente satisfeito por eu ter conseguido captar a alma do livro, e agradeceu-me por no ter tornado tudo numa daquelas aventuras de catstrofe que Hollywood gosta de produzir. Aqui jaz a principal razo pela qual o Nobel portugus nunca quis ver os seus livros em filmes.

    S A R A M A G O A T T H E M O V I E S

  • O FUTUROj passOUpOR aQUIhaRRy pOTTeR

    A N D R E I A B R I T E S

  • REINO UNIDO

  • A rtur Andrade tinha 17 anos quan-do foi editado em Portugal o pri-meiro ttulo da saga Harry Potter. Estvamos em 1999. Mas no foi nessa altura que teve contacto com o ltimo grande heri da li-teratura juvenil universal. Dois anos mais tarde, por altura da adaptao cinematogrfica de Harry Potter e a Pedra Filosofal, o irmo da namorada, que teria cerca de 15 anos, sugere-lha. A co-mea a descoberta e o interesse deste leitor intermitente. Depois de ver o filme, Artur decide comprar o segundo volume da saga, Harry Potter e a Cmara dos Segredos, que comea a ler. Aconte-ce ento a estreia do segundo filme e o jovem abandona a leitura, trocando-a pela adaptao. E desilude-se: O que tinha lido do li-vro era melhor, recorda. O mais interessante era a forma como imaginava a histria na minha cabea. A partir desse momento, compra todos os ttulos, seguindo escrupulosamente a regra de primeiro ler o livro e s depois ver o filme. A recordao que tem dessa leitura a da voracidade do entusiasmo: Comprei os livros que j tinham sado e li-os em meia dzia de dias.

    At se deparar com a coleo de J. K. Rowling, Artur no era um leitor regular. No tem grandes memrias de ler na adolescn-cia. Talvez um ou outro livro de Banda Desenhada. E a coleo

    Arrepios. O que mudou, ento, com Harry Potter? Fiquei entu-siasmado com a continuidade. Os livros conseguiam manter o in-teresse pela histria. Satisfazia-me ler cada livro, que me deixava muitas expectativas para o seguinte. No ISCTE, partilhava com os colegas do curso de Informtica e Gesto de Empresas o entu-siasmo com a personagem e a intriga misteriosa. Conversava-se animadamente sobre o feiticeiro mais famoso de Hogwarts nos corredores da faculdade. O seu ttulo preferido tem uma justifica-o pertinente: Harry Potter e o Clice de Fogo evidencia uma in-flexo para um pblico de uma faixa etria maior. Os livros dei-xam de ser to infantis a partir daqui.

    Com Harry Potter chegou um hbito: O Cdigo Da Vinci, de Dan Brown, foi lido ao mesmo tempo. Seguiram-se outros. Artur recorda Anjos e Demnios, Eragon, Os Capites da Areia, e Mille-nium, de Stieg Larson. Lembra-se de comprar um livro de via-gens de Gonalo Cadilhe, porque estava em trabalho em Angola, e o livro traava uma rota que passava precisamente pelo litoral deste pas.

    Hoje Artur no l. Passaram mais de dez anos sobre um h-bito que o assolou com avidez e que agora quase se apagou. No voltaria a ler Harry Potter, nem mesmo se, por alguma inusitada razo, a saga continuasse. J no acredita que se identificasse. No entanto, quando tivemos esta conversa no escondeu a ausncia de leitura na falta de tempo. Se no estivesse sempre agarrado

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    ao tablet, noite, podia ler, comentou naquele tom que os leitores adormecidos ainda alimentam.

    Ao contrrio, Henrique Ramos um adolescente de 13 anos vido por boas narrativas de ao, fantasia e mistrio. Sendo um leitor qua-se compulsivo, no cede no seu juzo crtico. Ulysses Moore, Cherub, Percy Jackson, The Hunger Games e agora Divergente so os principais ttulos que marcam o seu percurso nos ltimos dois, trs anos.

    Contudo, nunca leu Harry Potter. Porqu? Avaliando o estilo de livros de que gosta, poderia fazer sentido no passar ao lado deste quase clssico. A explicao simples: Comecei a ler um dos livros da coleo quando tinha 10 ou 11 anos, mas no era o primeiro e como no percebi bem a histria no continuei a ler. Vi os filmes todos e foi atravs dos filmes que descobri o Harry Pot-ter. Acho que talvez ainda v ler os livros qualquer dia.

    A revoluo dos pblicos

    S e Artur foi resgatado para a leitura por Harry Potter, constituindo-se como para-digma do fenmeno Crossover que Sandra L. Beckett fixou em Crossover Fiction: Glo-bal and Historical Perspetives (Routledge, 2009), Henrique ter sido contagiado pelo contexto de marketing que fragmentou o seu efeito de leitura, tornando-o rarefeito. Entre os dois leitores h praticamente duas dcadas de permeio.

    De certa forma representam o prprio percurso dos livros junto dos leitores. Claro que ao longo desta dcada e meia Harry Pot-ter causou diversas experincias individuais mas, como todos os best-sellers, marcou uma tendncia. Ins Mouro, responsvel pela comunicao da Presena, a editora portuguesa da obra, explica porqu, no seu entender, Harry Potter foi importante e to bem recebido: Contrariamente literatura realista, com forte ligao ao quotidiano, presente nos escaparates portugueses at ao final do sculo XX, Harry Potter afirmou-se como uma nova tendn-cia introduzindo o elemento fantstico e levando as crianas a sonharem. Harry Potter no foi, contudo, a pedra de toque da Literatura Fantstica. No nos podemos esquecer dos clssicos Drcula, de Bram Stoker ou de Frankenstein, de Mary Shelley e de Tolkien, que chegou a Portugal nos anos 80. No entanto, podemos claramente falar numa era pr Harry Potter e ps Harry Potter, em Portugal e no mundo, que impulsionou toda a Literatura Fan-tstica.

    Mas hoje sabemos, graas a diversos tipos de investigao, quer do ponto de vista dos estudos literrios como da receo lei-tora, que a saga de J. K. Rowling abriu a porta a um novo estilo de escrita, mais do que um gnero que, como explana Ins Mouro, j existia com autonomia, diversidade e representatividade univer-sal, de Edgar Alan Poe a Jorge Luis Borges, passando pelo incon-tornvel Tolkien e, no o esqueamos, por outro autor best-seller avant la lettre: Jules Verne.

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  • ESTADOS UNIDOS

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    Com Harry Potter chegou em fora uma literatura cinemato-grfica, em que tudo e todos favorecem a ao, dos dilemas e mis-trios das personagens que as obrigam a fazer, a progredir, a estar em constante movimento aos espaos que contribuem com sur-presas e armadilhas, funcionando como personagens adjuvantes ou oponentes ao heri. este novo estilo narrativo que faz a di-ferena, especialmente junto do pblico juvenil, e jovem adulto. Gemma Luch, professora e investigadora catal, que se dedica, entre outros tpicos, leitura na sua relao com as plataformas digitais, chama a ateno para esse fenmeno. A receo massiva de determinados ttulos no deriva de uma aceitao extraordin-ria do gnero fantstico. Se assim fosse, os leitores da saga Twilight leriam afincadamente o Drcula, o que no se verifica. No so os temas ou o gnero os principais ingredientes para o sucesso de vendas e sim a abordagem. A velocidade narrativa, a simplicidade das descries, comedidas em extenso e fortemente amparadas por progresses diegticas pejadas de indcios, alimentam perso-nagens em conflito, heris que se superam no risco mas no se co-locam acima das tentaes, hesitaes e defeitos de carcter como a teimosia ou a vaidade que assolam os comuns mortais.

    Esta nova abordagem ter contribudo significativamente para o crossover entre crianas e adultos. J. K. Rowling no cede ten-tao das frmulas de aventuras ou composio de personagens planas e previsveis. Apesar da abordagem mais simplificadora

    que a de Tolkien, por exemplo, a autora conseguiu desenvolver uma progresso psicolgica das personagens e um adensar do mistrio original garantindo surpresa e exigncia leitura e, igualmente, criando um efeito de verosimilhana. Por isso consegue uma flu-tuao massiva de pblico leitor que vai da criana de 9 anos ao adulto. Qualquer idade boa para ler Harry Potter, o que tornou os livros alvos de uma partilha transversal, dentro da famlia, do grupo de amigos, na escola, entre professores e alunos. Houve um efeito de democratizao da leitura a partir de um segmento ten-dencialmente marginal: o juvenil.

    Quando Sandra L. Beckett reflete sobre o processo crossover, no ignora um histrico de obras originalmente es-critas para um pblico juvenil que se transformaram em obras de leitura para adultos. Aconteceu, por exemplo, com As Viagens de Gulliver e com Alice no Pas das Maravilhas. Todavia, esta transmutao de pblico foi acompanhada por um reposiciona-mento destes ttulos no cnone da literatura juvenil, sendo hoje considerados clssicos na histria da literatura. De tal forma que no caso de Alice no Pas das Maravilhas abundam ensaios sobre o seu valor simblico, psicanaltico e imagtico, com dilogos even-tuais com correntes literrias posteriores, como a surrealista. Isto

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    mas certo que foi Harry Potter que levantou uma dvida essen-cial para toda esta revoluo: podemos ou no considerar estes li-vros como obras literrias?

    A verdade que Harry Potter vai tecendo desde o incio uma intertextualidade subterrnea com a histria da literatura dita para crianas. No seu livro A Infncia Um Territrio Desconhecido (Quetzal, 2009), Helena Vasconcelos integra a saga na sua conclu-so. Depois de dedicar cada captulo a obras de autores incontor-nveis como Charles Dickens, J. M. Barrie, Lewis Carroll ou Mark Twain, as palavras que dedica ao heri e trama revelam que tam-bm existe um lugar para Potter neste Olimpo. Mesmo que seja como convidado, experincia. Harry Potter , provavelmente, a primeira figura de fico na pele de uma criana/cientista que, para alm disso, se desenvolve e acompanha as novidades do uni-verso tecnolgico. Mas recorde-se que este rapaz mgico e os seus companheiros, que tm crescido com os seus leitores, esto lite-ralmente entalados entre o sculo XIX e o sculo XXI. A Escola de Magia e Bruxaria um lugar com uma estrutura vitoriana o prprio Harry Potter uma figura do sculo XIX com as suas rou-pas e os seus culos, Hermione uma menina com a seriedade e a ansiedade de uma jovem vitoriana, a estrutura da sua populao (espertos, marres, viles, aventureiros) a de qualquer colgio e a magia alimenta-se muitas vezes de truques tradicionais como vassouras voadoras, fantasmas, poes, feitios, animais

    significa que algumas das obras que nasceram num contexto so-ciocultural e literrio especfico de uma poca ganharam uma di-menso universal dentro do edifcio dos estudos literrios, e em consequncia um lugar legitimado no cnone. De alguma forma, este tipo de crossover criana-adulto que provoca tal legitimao. Haver outras causas associadas, como a dificuldade discursiva de textos que no se posicionam num universo contemporneo de comunicao; por outras palavras, que perderam, pela ausncia de imediatas associaes referenciais, os seus leitores mais jovens por dificuldade de interpretao e identificao.

    O que acontece com Harry Potter algo de diametralmente oposto. O discur-so que subjaz s narrativas alcana em simultneo leitores em formao e lei-tores adultos com poucas ferramentas de interpretao literria. O crossover criana-adulto no acontece no tempo e sim em simultneo: o livro chega aos dois pblicos com o mesmo sucesso ao mesmo tempo. No entan-to, e isso talvez seja matria de reflexo, poucos ou nenhuns fen-menos de sucesso subsequente conseguiram chamar a ateno e agradar a leitores adultos competentes e exigentes como aconte-ceu com os livros de J. K. Rowling. As razes no sero lineares

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  • INDONSIA

  • que falam, etc. [] Mas o mais interessante nos sete livros da saga que Rowling usa toda a artilharia, mas d-lhe uma volta ou antes, vrias voltas para complicar as coisas. Os bons no so to bons como aparentam, os maus to-pouco so lineares, a ao sujeita a reviravoltas surpreendentes e, apesar das bruxarias e mgicas que qualquer criana que est a crescer tem de apren-der, fazem parte do processo do conhecimento do mundo e da vida as personagens so extremamente complexas e maravilho-samente humanas. [] Para alm disto Potter no tem pais no sentido tradicional e simblico do termo , rfo, e encontra a sua verdadeira famlia na escola de Hogwarts.

    O grande poder de transfigurar

    S e Harry Potter garantiu a ateno da acade-mia e, em consequncia, um olhar mereci-do para a sua estrutura literria, o seu efei-to sobre os leitores que avassaladoramente se transformaram em fs no derivou uni-camente dessa receita mgica de apelar silenciosamente enciclopdia leitora dos leitores em formao, tanto quanto dos lei-tores adultos. O fenmeno deve-se igualmente a uma estrutura de marketing totalmente inovadora nos timings e na abordagem.

    Catalogado, logo no primeiro volume, como um livro infantoju-venil do gnero fantstico, os editores britnico e alemo de Harry

    Potter e a Pedra Filosofal rapidamente decidiram criar duas capas diferentes, uma para as seces infantojuvenis das livrarias e bi-bliotecas, outra para as seces de adultos. Esta prtica j existia, mas ganha aqui um efeito muito mais visvel. Quando enumera as razes para a compra dos direitos do livro, pela Presena, h quinze anos atrs, Ins Mouro relembra o seu sucesso: Quando, em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal foi publicado em ingls, verificou-se que um em cada trs leitores no resistia a comprar o primeiro livro da srie. O eco que nos chegou por parte da impren-sa internacional e a lacuna em Portugal de livros fantsticos foi uma combinao indicativa de que deveramos apostar na contra-tao da saga. Desde logo as editoras apostaram na visibilidade e no acesso, o que rapidamente garantiu comentrios e suscitou mais curiosidade que se traduziram em mais procura.

    Agora que se comemoram, em Portugal, os quinze anos da 1. edio de Harry Potter e a Pedra Filosofal, a Presena segue a es-tratgia internacional: Atualmente temos vrias aes a decor-rer tanto no ponto de venda como no canal online. No ponto de venda/livrarias apostmos em novos expositores e cartazes, que divulgam o relanamento de toda a coleo. No canal online foram feitos diversos passatempos atravs do facebook da Editorial Pre-sena e parceiros (livreiros, bloggers). Foi ainda criado um selo comemorativo do 15. aniversrio da publicao do primeiro vo-lume para divulgao massiva, utilizando vrias ferramentas: as-sinatura digital, encomendas, mailing e autocolante (inserido em

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  • e na publicidade. Isso no significa que Harry Potter tenha sido j totalmente esquecido. Na Biblioteca Municipal de lhavo, onde os leitores adolescentes acorrem em menor nmero e que abriu portas muito mais tarde, verifica-se um maior nmero de requisi-es entre 2007 e 2009, com cerca de duas dezenas de registos. No entanto, a mdia atual ronda uma dezena por ano o que, naquele contexto, denota uma menor discrepncia do que na do Sobral. Dependendo da mediao e do acesso, a coleo continua a ser lida. Na EB 2,3 Comandante Conceio e Silva em Almada, por exemplo, os dados mostram algo intrigante: no ltimo ano letivo houve 37 requisies dos ttulos da saga, contra apenas 7 do ano anterior e 9 do ano letivo 2011-2012. Ser por isso interessante vol-tar a comparar dados depois do lanamento das novas capas, e da consequente visibilidade a que tero direito nas livrarias, assim como nas redes sociais, em Portugal.

    Desde 1997 a 2011, Harry Potter foi um fenmeno de marketing escala mun-dial. Para alm das adaptaes cine-matogrficas, que granjeavam ateno atravs de trailers na televiso, outdo-ors na rua, making offs, houve uma ex-plorao dos seus atores, e uma quase promiscuidade entre a personagem e a pessoa real, em entrevistas, programas televisivos e notcias de

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    todos os volumes da coleo). Futuramente continuaremos a pro-mover a coleo em sintonia com as diretrizes internacionais. De facto, nos ltimos dois anos tem havido um progressivo silncio em torno do universo Harry Potter. No h mais livros a sair, no h mais filmes. A gerao que tem hoje 12, 13 anos no teve tempo para acompanhar a evoluo da narrativa e quando se podia co-mear a interessar, ter sido para muitos tarde de mais, porque assistiram ao ltimo filme, e ao mesmo tempo cedo de mais, por-que a complexidade narrativa do stimo livro no se compara com a linearidade do primeiro. Poder ser o caso de Henrique Ramos.

    Quem no aparece, esquece, si dizer-se. Se no for recorda-do, Harry Potter corre o risco de se transformar numa memria nostlgica, num clssico. Na Biblioteca Municipal do Sobral de Monte Agrao, as estatsticas evidenciam-no. Entre 2002 e 2005 as estatsticas evidenciam um aumento claro das requisies, par-tindo de 17 no primeiro ano e atingindo o seu auge com 69. A par-tir deste ano, mantiveram-se altas at 2008, com um nmero de 33, descendo para pouco mais de uma dezena em 2009, nmeros que se verificam at 2014. Podemos considerar que o pblico ju-venil (utilizador da Biblioteca em larga escala desde sempre) que fez estas requisies acompanhou a saga enquanto esta estava a ser editada e que, atualmente, os adolescentes que se lhes segui-ram e manifestam interesse por este tipo de leitura j no estive-ram expostos aos efeitos mediticos dos filmes, entrevistas e not-cias que, por essa altura, abundavam nos meios de comunicao

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  • CHINA

  • Com a estreia do ltimo filme e o anncio pblico de que no escreveria mais nenhum livro, no havia, aparentemente, como alimentar esta mquina paralela. Foi ento que nasceu Pottermo-re.com. Ali J. K. Rowling prometia alargar o universo da escola de magia com feitios e histrias paralelas nunca antes reveladas. Mas isso era apenas a ponta do icebergue. Se pesquisarmos no site do The Guardian dedicado aos livros para crianas e jovens (http://www.theguardian.com/childrens-books-site) pelo nome de Har-ry Potter encontramos diversas entradas a partir do vero de 2011 sobre o novo site, as suas valncias e, novamente, declaraes para aguar a curiosidade por parte da autora. O facto que a interati-vidade do portal, com quizzes e acesso a outros textos de J. K. Ro-wling, suscitou o interesse de milhes de potenciais ou efetivos leitores. A grande manobra de marketing aconteceu no lanamen-to do prprio site. Apesar de ser gratuita a navegao, o acesso re-quer um registo que atualmente aceite rapidamente. Ora foi ento lanado um desafio: o primeiro milho de visitantes estaria sujeito a um quizz para poder aceder ao site e fazer parte desse grupo pri-vilegiado. Falamos de um milho de internautas, no dos primeiros cem leitores de um livro de poesia que est assinado e numerado pelo autor. Mas no vasto mundo da world wide web um milho pare-cer, a muitos, um nmero limitadssimo. Pelos testemunhos que o The Guardian recolheu de algumas experincias, assim foi. Num dos relatos, a jovem adulta assume vrias noites sem dormir a fazer

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    mexericos. J. K. Rowling soube igualmente vender a sua imagem com mestria, tornando pblicos dados biogrficos que faziam de si, tambm, uma espcie de herona de contos de fadas. Para alm disso administrava informaes que alimentavam a curiosidade e o suspense em torno de cada novo livro.

    O lanamento transformou-se em gran-de evento, com filas de espera porta de livrarias fechadas, ou aberturas fora de horas com fs desesperados pelos primei-ros exemplares. Qualquer estratgia de comunicao assente em press releases ou sesses de autgrafos foi longamente ultrapassada. Os posters dos idos de 80 e 90 eram uma gota de gua neste imenso oceano. A fora icnica das personagens levou a que o Royal Mail e o United States Postal Servi-ces criassem selos especiais a partir de imagens dos filmes e os pro-dutos de merchandising transformaram-se em objetos de coleo. Nas lojas oficiais e noutras menos, h de tudo um pouco, desde as fardas s varinhas mgicas, pins, canecas e peluches, rplicas do comboio, bilhetes, medalhas, cadernos, jogos para consolas e computadores, puzzles, roupa e acessrios. Os filmes uniformizaram um imaginrio e potenciaram essa imagem numa marca valiosa pelo seu efeito expo-nencial na relao do f com o livro e o filme.

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  • best-seller, desescolarizou a leitura, trazendo-a para tema de conversa e transformando-a num culto sem qualquer objetivo pe-daggico, e assumiu-se como o ltimo grande heri do universo infantojuvenil. Mesmo quem nunca leu a saga reconhece o nome do seu protagonista. Depois dele, outros houve. Mas nasceram, foram avidamente consumidos, e desapareceram. A velocidade grfica e visual de Harry Potter no superou a dos livros que lhe seguiram as pisadas mas anunciou um padro. A grande dife-rena, em relao ao que at hoje lhe sucedeu, foi esse casamen-to perfeito em discrio e harmonia entre a herana tradicional do tema, do contexto e das personagens, com esse novo estilo de escrita. Porque inevitvel que, para chegar a tantos milhes de leitores ao longo dos ltimos dezassete anos (quinze em Portu-gal), seja necessrio estabelecer uma identificao gentica, mui-tas vezes rarefeita, subconsciente, mas rapidamente acesa numa memria, numa emoo. Crescer e ver crescer: crescer com o seu heri ajuda a criar esse efeito de identificao e proximidade. Em ltima anlise, Harry Potter tambm uma novela de cresci-mento no sentido da perda de inocncia, da experincia de risco, do conflito e da mudana. Tal condio, suportada por todas as outras que vimos destacando, catapulta estes sete livros para o lugar revolucionrio da exceo. Parabns Harry Potter.

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    refresh no computador para conseguir ser mais rpida no registo. Isto tudo antes de sequer aceder ao quizz. Fascinante o entusiasmo com que relata como conseguiu obter as respostas e aquelas que lhe eram mais familiares pela leitura repetida de um dos livros da saga.

    esta ligao emocional que a mquina promocional de Harry Potter tem de manter viva para continuar a vender os livros: promo-vendo esse universo paralelo imaginrio. No entanto, os novos recur-sos chamam muito pblico para os produtos fragmentados, mais do que para os livros. Ser um mal menor, se conseguirem que uma par-te os continue a ler. Quando perguntmos a Ins Mouro quem eram os leitores de Harry Potter, respondeu que o seu perfil bastante diversificado e foge a qualquer tipificao. Encontramos jovens afi-cionados a partir dos 9 anos at adultos, ou mesmo casos de famlias inteiras que apreciam a saga desde o incio. Quem se mantm fiel ao universo por regra o leitor que acompanha toda a coleo.

    O ltimo Heri: e depois?

    Como ser a prxima figura literria infan-til? Quem a inventar e como a colocar no nosso mundo? Harry Potter e os seus amigos cresceram, por isso, outros tero de aparecer.1Harry Potter promoveu uma revolu-o no panorama da literatura e da lei-tura: juntou a legitimao ao epteto de

    1 5 A N O S D E H A R R y P O T T E R E M P O R T U G A L

    1. Vasconcelos, Helena, A Infncia um Territrio Desconhecido, 2009, Quetzal.

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    KKKKKKKKKKKalandrakaNo h como escapar dos contos maravilhosos da Kalandraka. No s uma editora, uma casa editorial. Onde vivem os monstros, Os trs bandidos, A toupeira que queria saber quem lhe zera aquilo na cabea e ainda Um pequeno crocodilo ternurento que s visto. Onde se tecem livros com Pezinhos de l, com o mesmo cuidado no texto-imagem e na imagem-texto. Livros feitos medida para dar Um passeio pelo parque, ou Pela oresta, Para fazer o retrato de um pssaro ou para oferecer Um presente diferente. Livros bons, daqueles que fazem os ilustradores perder os cordes bolsa e desejar baixinho Um dia vou fazer um livro para a Kalandraka. (E vou! disse a ilustradora enquanto exclamava com satisfao Ah! Oh!) Catarina Sobralilustradora

    Katsumi Komagata Kveta Pacovska Tm um ponto de partida em comum, o design grfi co. Komagata o rigor absoluto na forma e no contedo, a limpeza total do espao em que se espraia... Tudo reduzido expresso mais simples mas, ao mesmo tempo, extremamente cuidada. Little tree/Petit Arbre disso o exemplo acabado, papel, textura, cor, ilustrao, tridimensionalidade, tudo feito com uma conteno absoluta.Kveta Pacovska o oposto. Manchas de cor muito fortes, folhas cheias de elementos grfi cos, vermelhos fortssimos, prata, fundos negros, brancos e vermelhos e, no entanto, nada est em excesso. Os seus livros so uma verdadeira exploso de cor. Hasta el in nito, Couleurs du jour so alguns dos muitos exemplos possveis de nomear. Em suma, um (komagata) a expresso mxima do rigor e da simplicidade, em que nada falta, a outra (Kveta) a exuberncia total em que tudo est na medida certa.A visitar sempre que possvel...

    Francisco Vaz da Silvalivreiro da Giges e Ananteseditor da Bags of Books

    D I C I O N R I O D E L I T E R A T U R A I N F A N T I L E J U V E N I L

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    Cumpre a funo, que lhe inerente, de esconder e revelar, mas aqui a revelao no leva o leitor para outro objeto, outro paradigma imagtico, informativo, divergente ou convergente. A necessidade assenta precisamente no facto de que estes pop-ups se antecipam na forma do recorte: so todos, exceto um, flores. E essa condio no faz outra coisa seno abrir a narrativa para uma dualidade. Desvendar o que escondem corresponde a uma outra leitura, a da cor e da felicidade, da beleza e da poesia que existe, de forma imanente, no mundo. No h disperso nem profuso de elementos, nem de padres. No h um resqucio de extravagncia e histrionismo neste livro. Os pop-ups funcionam como recurso narrativo e potico para uma histria dupla, uma exper