Bruxaria e História, algumas aproximações

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    Bruxaria e Histria: algumas aproximaes

    Rafael Domingos*

    Bruxaria: um conceito polissmico

    Atualmente a Bruxaria tem sido um assunto recorrente nas mais diversas reas

    de discusso acadmica, como a histria e a literatura, mas tambm no cotidiano de

    milhares de pessoas em todo o mundo que consideram a si prprias bruxas e

    bruxos. Assim, devemos ter em mente que, hoje em dia, quando se fala em bruxaria

    h uma grande quantidade de sentidos possveis de serem atribudos a essa palavra e

    que, diferente do que se imagina este no um conceito to fcil de ser definido,

    devendo-se considerar seus principais interlocutores e contextos histricos/sociais.

    O sculo XIX, com a profissionalizao da histria e a consolidao do

    pensamento antropolgico, foi palco de debates em diversas reas do conhecimento que

    possuam como foco a definio mais correta para a palavra bruxaria. Esses debates

    eram travados entre variados estudiosos, desde telogos, passando por estudiosos da

    mente (a psicologia tambm ganhava forma nessa poca), antroplogos e historiadores,

    poetas e romancistas, e os defensores da cincia e da razo. O resultado foi um grande

    legado escrito no qual os contornos da bruxaria como um conhecimento comearam a

    ganhar forma. No h dvida de que esses debates, livros e artigos do perodo se

    relacionem diretamente com a publicao, em 1951, do primeiro livro do que se

    convencionou chamar bruxaria moderna.1

    Haveria assim, uma ligao muito grande entre o conhecimento acumulado

    sobre a ideia de bruxaria desde o final da idade mdia, efervescido pelo debate

    acalorado do sculo XIX e sua apropriao posterior no sculo XX, vindo-se tornar uma

    das religies que mais crescem atualmente. Dessa forma, entendemos que dois

    significados possveis para a palavra bruxaria provem: 1) dos debates acadmicos, quetendem a v-la a partir de seu contexto social; e 2) dos prprios bruxos, os praticantes

    atuais da bruxaria nas suas diversas ramificaes e tradies.

    A aproximao entre essas duas tendncias pode ser uma experincia muito rica

    tanto para os acadmicos, que tm a chance de ver uma religio cada vez mais crescente

    consolidar suas bases, como para os prprios bruxos que podem contar com os estudos

    sobre sua religio a fim de desenvolverem uma prtica mais reflexiva e convicta. Essa

    aproximao, entretanto, certamente no se dar sem tenses. Isso porque parece haverum fosso entre o conhecimento sobre bruxaria produzido no mundo acadmico e aquele

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    gestado no seio dos praticantes2. No encaramos isso como algo desanimador. Para

    nenhuma das partes.

    Antes de qualquer coisa, devemos partir da ideia j bastante arraigada nos

    debates historiogrficos de que no existe a verdade histrica. Esta , sim, uma

    construo discursiva e narrativa, partindo-se dos fatos interpretados nos documentos

    histricos e que possui muito da subjetividade de seu produtor, o historiador3. Fica

    evidente, portanto, que ao aproximar as duas tendncias anteriormente apontadas no

    estamos preparando um campo de batalha no qual uma delas dever ruir. Pelo contrrio,

    o dilogo pode ser enriquecedor, mostrando que as construes e as vises sobre o

    passado so oriundas de necessidades e interesses diversos, no existindo entre eles um

    desnvel qualitativo.

    Estudos atuais

    Ainda est para realizar-se um levantamento sistemtico do atual estado da arte

    dos estudos sobre bruxaria, sobretudo no Brasil. Sabemos que existem pesquisas

    pontuais, principalmente no nvel da ps-graduao, que tratam de temas que podem se

    relacionar diretamente ou no com a bruxaria. Na rea da Histria, o que podemos

    afirmar com bastante certeza que h toda uma historiografia da inquisio, j bastante

    consolidada, que vez ou outra trata especificamente da bruxaria. O estudo desses

    estudos algo que se faz cada vez mais necessrio, e um caminho ainda a ser

    trilhado.

    Neste artigo, escrito especialmente para o portal Neopaganismo, trago as

    primeiras reflexes sobre a aproximao entre a histria e a bruxaria (feitas acima),

    assunto que pretendo aprofundar em artigos futuros, mais pontuais. De qualquer forma,

    quero deixar registrada a existncia do Grupo Multidisciplinar de Bruxaria Histrica da

    Universidade Federal de So Paulo. Organizado totalmente por alunos de diversoscursos da rea de humanidades, o grupo possui frentes de pesquisas variadas e congrega

    os estudos mais atuais sobre o tema. A curiosidade e o interesse sobre o fenmeno da

    bruxaria nos diferentes espaos e temporalidades da histria tm sido os principais

    motores de nossos encontros.

    Depois do primeiro semestre de discusses, chegamos a algumas ideias que,

    antes de serem arremates sobre o assunto, so sim os primeiros direcionamentos que nos

    assinalam os caminhos a serem abraados futuramente. Assim, para ns, a bruxaria" um conceito que abrange os mais diversos significados. Como experincia religiosa,

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    uma prtica atual que, desde a dcada de 50 do sc. XX, vem crescendo

    substancialmente. Como fenmeno social, atravessou os sculos, sendo consolidada no

    imaginrio popular atravs das teorias crists. Foi motivo de perseguio, mote para

    literatura, tema de sucessos hollywoodianos, e faz parte do dia a dia de milhares de

    pessoas que se consideram "bruxas". A bruxaria, em nosso grupo, entendida como um

    vis interpretativo, assim como um fato em si, e essas duas perspectivas se cruzam em

    nossas discusses.

    Como um vis interpretativo, a bruxaria pode ser tema de estudos sobre os

    nacionalismos, racionalismo, folclore e cultura popular, lutas sociais (feminismo,

    movimento LGBT) e histria das religies. Entre os sculos XIX e XX a temtica em

    torno da figura da bruxa povoou o imaginrio popular, a literatura, o cinema e a msica

    e fez parte de processos mais abrangentes, sendo assim, uma chave para a explicao

    sobre determinadas estruturas sociais, culturais e polticas mais amplas.

    Como umfato em si, a bruxaria nos remete perseguio crist iniciada no final

    da idade mdia e durante grande parte da era moderna europias. Mas, mais do que isso,

    a bruxaria entendida por ns como o centro gravitacional no qual orbitam outros

    conceitos, como feitiaria e magia, muito mais amplos e que no se limitam ao estudo

    da idade mdia e moderna, atravessando a "pr-histria", a idade antiga e a trajetria

    histrica de diferentes sociedades, como as africanas, aborgenes australianas e

    asiticas. Assim, julgamos tratar-se de BruxariaS, no plural.

    Portanto, nossos estudos so nitidamente marcados pela multidisciplinaridade.

    Para compreender a(s) Bruxaria(s), necessrio olh-la(s) atravs de diferentes

    perspectivas que considerem a sua complexidade. Nesse sentido, nossas vises se

    cruzam entre a bruxaria moderna, vista como apropriao religiosa dos discursos em

    torno da bruxaria, e os fenmenos histricos que lhe so prprios.

    Nossos encontros so sempre baseados em leituras selecionadas pelo prpriogrupo e que procuram abranger todas essas discusses, lanando mo de diversas

    abordagens e perspectivas (histrica, filosfica, sociolgica etc).

    No primeiro semestre, dividimos os encontros em dois mdulos: o primeiro

    chamado de religio em perspectiva(s); e o segundo, em busca dos conceitos. Dessa

    forma, selecionamos textos que discutem a religio como um conceito polissmico, e

    a partir de trs perspectivas: 1) religio e poder; 2) religio e o sagrado feminino; e 3)

    religio e bruxaria. A opo por esse vis fruto da necessidade que sentimos emdiscutir diferentes teorias sobre as prticas religiosas, a fim de aproximar a ideia de

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    religio do nosso conceito-chave: bruxaria. Alm disso, selecionamos, tambm,

    captulos da importante obra do historiador e professor de histria da Universidade de

    So Paulo, Carlos Roberto Nogueira, Bruxaria e Histria: as prticas mgicas no

    Ocidente cristo4. Deste, trabalhamos com mais afinco os dois primeiros captulos

    referentes aos conceitos de magia, feitiaria e bruxaria.

    As leituras dessa primeira etapa de encontros do grupo possibilitaram a

    apreenso de conceitos, ideias e processos histricos importantes para aprofundar as

    discusses nos semestres seguintes. Sendo assim, futuramente pretendemos nos

    debruar em temas como: prticas mgicas na antiguidade; a inquisio moderna;

    romantismo, nacionalismo e bruxaria; o racionalismo e a crena nas supersties; o

    (re)nascimento da bruxaria na contemporaneidade; leituras mitolgicas; bruxaria e

    feminismo; o (neo)paganismo e o paganismo queer; bruxaria e arte; entre outras

    temticas. Estes temas sero abordados a partir de leituras multidisciplinares, dando

    conta de aproximar as diversas reas das humanidades em torno da questo aglutinadora

    bruxaria.

    No h smbolo que melhor expresse os anseios e expectativas de nosso grupo

    do que o "caldeiro da bruxa", instrumento mgico de poder no qual so misturados

    diferentes ingredientes em funo do "feitio" ou "encantamento", com o claro objetivo

    de intervir no mundo exterior, transformando-lhe. Transformar, criar, moldar so

    palavras que, segundo alguns autores, retomam os significados encerrados na palavra

    inglesa "witch", a bruxa. Esse o sentido do nosso grupo.

    Perspectivas futuras

    guisa de concluso, posso dizer que possvel vislumbrar um futuro no qual

    os conhecimentos de estudiosos da academia e bruxos estejam mais prximos.

    necessrio esclarecer, porm, que no encaro isso como fundamentalmente necessrio,apesar de muito valioso, caso ocorra. Durante sculos praticantes das mais diversas

    religies seguiram suas vidas e prticas religiosas sem necessitar da chancela

    acadmica. E esta ltima, igualmente, nunca precisou ou dependeu da aceitao dos

    fiis para continuar seus estudos. Assim, no vejo essa aproximao como algo

    necessrio, strictu sensu, mas sim como uma oportunidade de enriquecer o

    conhecimento produzido por ambos os lados de maneira harmoniosa.

    Tenho certeza que, seja nas pesquisas de mestrado ou doutorado, nos encontrosdo Grupo de Bruxaria Histrica que apresentamos ou mesmo nas leituras individuais, a

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    aproximao entre o conhecimento histrico e a prtica da bruxaria na atualidade pode

    ser uma experincia bastante interessante e animadora, servindo mesmo como um

    avano para os estudos historiogrficos e como um ingrediente a mais na prtica

    religiosa de milhares de pessoas.

    Sugestes de leitura:

    NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. Bruxaria e histria: as prticas mgicas noocidente cristo. Bauru, SP: EDUSC, 2004

    RUSSEL, G.; ALEXANDER, Brooks. Histria da Bruxaria. Traduo de WillianLagos e Alvaro Cabral. 1. ed. So Paulo: Aleph, 2008.

    SOUZA, Laura de Mello e. As Teorias. In:_________. A Feitiaria na Europa

    Moderna. So Paulo: Editora tica, 1987. pp.38-52.

    NOTAS:*Estudante e pesquisador em Histria na EFLCH da Universidade Federal de So Paulo.1 Trata-se de Witchcraft today, de Gerald Gardner. H uma edio em portugus pela Madras:GARDNER, Gerald.A Bruxaria hoje. So Paulo: Madras, 2005.2 Um exemplo disso so as incongruncias entre as afirmaes histricas feitas em obras escritaspor bruxos praticantes e aquelas encontradas em estudos historiogrficos de cunho acadmico.3 Ver JENKINS, Keith. A histria repensada. So Paulo: Contexto, 2007, especialmente o

    captulo O que a Histria?, pp. 23-52.4 Ver as sugestes de leitura.