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Cidades, indústrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva e Lívia Duarte Organização: Caderno de debates 3

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  • Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento

    brasileiro

    Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva e Lvia Duarte

    Organizao:

    Caderno de debates 3

  • Rio de Janeiro, setembro de 2014

    Caderno de debates 3

    Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento

    brasileiro

    Organizao:

    Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva

    e Lvia Duarte

    Realizao Apoio

  • Caderno de Debates 3Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimentos brasileiro

    FASE - Solidariedade e EduaoRio de Janeiro/RJ - 20151 edio

    ISBN 978-85-86471-81-0

    Organizao: Joana Barros, Evanildo Barbosa da Silva e Lvia DuarteReviso: Ana Redig Ilustrao de capa: Bel FalleirosProjeto grfico e diagramao: Flvia MattosImpresso: Stamppa GrficaTiragem: 1.000 exemplares

  • Apresentao

    Marilene de Paula

    Desenvolvimentismo" brasileiro: um obstculo ao pluralismo

    Aercio de Oliveira

    Impactos do Complexo Industrial Porturio de Suape na Regio

    Metropolitana de Recife

    Heitor Scalambrini Costa

    Conflitos e impactos na vida de mulheres pescadoras em Pernambuco-

    Luiza de Marillac Melo de Souza e Rosimere Peixoto

    Cadeia do petrleo e impacto na Regio Metropolitana de Vitria

    Cludio Luiz Zanotelli

    05.

    09.

    29.

    49.

    59.

    Sumrio

    Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento

    brasileiro

  • Direitos territoriais e a expanso da fronteira de explorao

    mineral sobre a Amaznia

    Guilherme Carvalho e Julianna Malerba

    Copa, gnero feminino

    Maira Kubik Mano

    Brasil em obras: aliciamentos, terceirizao e degradao humana

    Daniel Santini

    75.

    97.

    109.

  • 5Apresentao

    Marilene de Paula1

    A proposta de refletir sobre o que significa desenvolvimento e quais as suas contradies est presente no Cadernos de Debate 3: indstria e os impactos do desenvolvimento brasileiro, lanada pela FASE numa coletnea de textos que nos convida a ver mais de perto as consequncias na ltima dcada do modelo de desenvolvimento brasileiro. possvel perceber que a ideia de desenvolvimento hoje pouco se relaciona com justia social, bem estar e autonomia individual e coletiva. O paradigma dos direitos humanos, motor de vrias conquistas dos anos 1980/1990 vem se confrontando com o do crescimento econmico a qualquer custo, alicerado pelo discurso governamental e de atores relevantes do mundo poltico brasileiro.

    O Brasil que se firma no cenrio internacional como um dos pases emergentes, uma potncia dos BRICS, com um mercado interno forte, com polticas sociais que melhoraram as condies de vida de sua populao mais pobre e instituies democrticas, no o mesmo se olharmos a foto com mais detalhe. A intensa explorao dos recursos naturais, seja na minerao, na agricultura ou na indstria do petrleo tem contribudo decisivamente para o aumento da violncia no campo, devido ao acirramento das disputas pelos territrios. Os impactos perversos na vida das comunidades e povos tradicionais, como indgenas e quilombolas, alm de ribeirinhos e extrativistas, transformaram os territrios em campos de batalha, onde a correlao de foras bastante desfavorvel para esses grupos. Nas cidades a situao no diferente. As remoes foradas de comunidades inteiras para as obras da Copa do Mundo, a devastao ambiental, aliada a remoo da populao local para dar espao criao ou ampliao de complexos industriais ligados cadeia

    1 Marilene de Paula coordenadora de programa da Fundao Heinrich Bll Brasil e mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV.

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    do petrleo ou portos, esto inviabilizando a pesca nessas reas e fomentando o recrudescimento da violncia para as comunidades do entorno.

    esse o desenvolvimento que queremos? Os afetados diretamente por esse modelo so descartveis, uma perda necessria para o estabelecimento de um pas prspero? No possvel que seja assim. No possvel deixarmos como legado para as prximas geraes um pas que continua ignorando e deixando a margem populaes inteiras, acusadas de serem contra o progresso e o desenvolvimento e que ao final de forma mais aguda arcam com os custos desse modelo. Mas para entendermos de forma mais profunda esse debate proponho a leitura e reflexo desses sete artigos que trazem as questes, agendas e argumentos a serem levados em conta.

    O artigo de Aercio de Oliveira contextualiza a noo de desenvolvimento a partir de sua imbricao com a ideia de progresso, que teve seu pice no sculo XIX e se mantem de certa forma at hoje. A marcha do progresso e do desenvolvimento no Brasil, traada pelo autor nos coloca a questo se h espao para a valorizao de alternativas ou outras respostas para os problemas enfrentados, sejam eles econmicos ou sociais. Nos marcos do governo do PT enfrentar a pobreza foi uma aposta acertada, mas j se v seus limites. O respeito e a consulta s populaes locais, parte diretamente envolvida nos megaprojetos de desenvolvimento podem mudar positivamente o sentido das iniciativas e colocar em discusso a quem elas servem.

    A retomada de projetos cujo objetivo impulsionar o desenvolvimento econmico em algumas regies um exemplo importante para entendermos as implicaes do modelo de desenvolvimento brasileiro. Heitor Scalambrini nos relata a construo do porto de Suape, em Pernambuco, um megaempreendimento que congrega mais de 100 empresas e outras 30 esto em fase de definio. So refinarias, indstria de produtos qumicos, metal-mecnica, alimentao, termoeltricas, naval, logstica, entre outras, em torno de um porto de escoamento da produo. Como afirma o autor o Complexo de Suape um bom exemplo de uma frmula imbatvel: o financiamento pblico, os lucros so privados e os custos advindos das externalidades negativas vo para o poder pblico. As externalidade nesse contexto so a inviabilidade da pesca na regio antes tradicional -, o aumento da violncia contra as mulheres, a remoo de parte da populao local de reas que agora abrigam as indstrias sem a indenizao adequada etc.

    Luiza de Marillac Melo de Souza e Rosimere Peixoto analisam tambm as transformaes territoriais recentes ligadas ao Complexo Industrial Porturio de Suape, mas a partir da perspectiva das violaes de direitos das mulheres. Apesar dos problemas, as mulheres tm participado ativamente da Campanha Nacional pela Regularizao do Territrio das Comunidades Tradicionais, uma iniciativa que procura abrir um canal de dilogo com o governo, pois, segundo o diagnstico das pescadoras, sua atividade econmica, sustento

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    dessas famlias, est ameaada pelo avano dos megaempreendimento na regio. Tambm so abordadas as dificuldades em serem reconhecidas como profissionais da pesca, devido ao preconceito ligado ao machismo.

    A cadeia do petrleo e os impactos socioeconmicos na cidade de Vitria, no Esprito Santo, so investigados no artigo de Claudio Luiz Zanotelli, e nos permite analisar os problemas e riscos das atividades das grandes empresas nacionais e multinacionais na regio. Os investimentos em infraestrutura, energia, petrleo e gs tm expandido a mancha urbana e aquecido o mercado especulativo de terras. Para Zanotelli a concentrao de terras nas mos das empresas Aracruz, Fibria e Vale S.A. os coloca como atores importantes no controle do acesso a terra na regio, inclusive para o mercado imobilirio em pleno processo especulativo.

    Os conflitos pela terra tambm sero o tema do artigo de Guilherme Carvalho e Julianna Malerba, que nos brindam com uma anlise crtica sobre a poltica de desenvolvimento brasileira. Cada vez mais essas polticas esto ligadas ao mercado de commodities, com impactos ambientais e intervenes intensivas nos territrios dos povos tradicionais. A disputa emblemtica est se dando no Congresso Nacional, em torno do Projeto de Lei 5.807/2013 que dispe sobre a atividade de minerao. O Projeto apontado pela sociedade civil crtica como tendo apenas o objetivo de ampliar o acesso das empresas de minerao e do agronegcio a terras que estavam fora do mercado por serem protegidas pela Constituio como terras dos povos e comunidades tradicionais. Carvalho e Malerba ressaltam o processo de resistncia desses atores, atingidos diretamente por um reordenamento poltico e tambm normativo que tenta remover os entraves para expanso da fronteira econmica.

    O processo de preparao para a Copa do Mundo tambm estar cercado de violaes de direitos. Para Maira Kubik Mano, um primeiro aspecto a explorao da imagem hipersexualizada da mulher brasileira, vendida como produto, que apesar de no ser uma novidade, foi utilizada como propaganda durante os megaeventos. Para a autora os megaeventos agudizaram situaes de desrespeito e violaes de direito para as mulheres, em especial em duas esferas: para as trabalhadoras informais ou sem regulamentao, com destaque para as profissionais do sexo e tambm para as mulheres que integram as famlias removidas para as obras da Copa. Os relatos das mulheres so evidenciados, ressaltando que: onde h impacto, tambm h resistncia.

    Outro fenmeno apontado por Daniel Santini diz respeito ao nmero crescente de pessoas resgatadas da escravido nas cidades brasileiras, superando pela primeira vez os do campo. Nas cidades o trabalho anlogo escravido tem se concentrado na construo civil e na indstria txtil. 40% do total de trabalhadores resgatados em 2013 estavam em canteiros de obra. A migrao de pessoas de regies mais pobres do pas em busca de melhores condies de

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    vida e o aliciamento de trabalhadores por parte dos chamados gatos, esto se multiplicando, aliado a precarizao das condies de trabalho nesses locais. O caso emblemtico da construtora MRV, inserida duas vezes na lista suja do trabalho escravo, com vrias multas e flagrantes de ao ilegal, e principal empresa do programa de habitao do governo federal Minha Casa, Minha Vida, pe em questo a responsabilidade do poder pblico nesses casos.

    Os artigos nos fazem refletir que ainda estamos longe de uma sociedade mais justa e inclusiva, em que todas as pessoas podem usar com liberdade suas capacidades intelectuais, culturais e criativas. Eles tambm evidenciam que numa sociedade como a brasileira, com desigualdades abissais, os benefcios produzidos pelo conjunto de indivduos esto sendo usufrudos por uma parcela muito pequena de pessoas. Mas se os desafios so imensos, vemos tambm a possibilidade de se construir convergncias a partir das experincias e diagnsticos.

    Por fim, um cumprimento aos autores por terem compartilhado conosco seus conhecimentos e anlises e um agradecimento especial a Joana Barros e Aercio de Oliveira, assessora nacional da FASE e coordenador regional da FASE RJ, respectivamente, pela competncia e abertura para dilogos sempre profcuos e generosos. Boa leitura a todos e parabns a FASE por mais essa iniciativa!

  • Desenvolvimentismo brasileiro:

    um obstculo ao pluralismo

    Aercio de Oliveira2

    1

    Trabalhadoras em linha de produo

    Pedro Revillion/Palcio Piratini/Fotos Pblicas

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    Oricuri madurou sinalQue arapu j fez mel

    Catigueria fulro l no sertoVai cair chuva granel1

    Aercio de Oliveira2O sculo XXI no completou duas dcadas e j est marcado por

    impactantes eventos. Recentemente tivemos duas grandes crises econmicas com efeitos globais3. Em meio s tenses do mundo financeiro, houve a intensificao do consumo acompanhado da obsolescncia das mercadorias; a precificao da vida assumiu dimenses hiperblicas. Na poltica, no importa em qual latitude ou longitude do mapa, encontraremos pessoas, especialmente os mais jovens, indignados e cticos com o poder dos financistas e a rendio da poltica s injunes econmicas. O fundamentalismo religioso, o conservadorismo e a xenofobia ganharam terreno; as questes socioambientais parecem ter adquirido relevncia para a sociedade civil e governos. Estes, entretanto, seguem inertes com muita retrica e pouca ao no se v medidas consistentes capazes de reverter as condies atuais que nos levam aceleradamente a um mundo desolador.

    J o Brasil, de 2003 at junho de 2013, no fosse o consumo acompanhado da obsolescncia, parecia estar desconectado desse inspito ambiente global. Os governos Lula e Dilma, ao assumirem um conjunto de aes com vis

    1 Versos da msica de Joo do Vale, Oricuri (O segredo do Sertanejo). Para ouvi-la e perceber o quanto ela contribui para o sentido deste texto acesse https://www.youtube.com/watch?v=4m6wBjcOEYI

    2 Aercio de Oliveira coordenador da equipe da Fase-Rio e membro do grupo de pesquisa de Estudos Sociais e Conceituais de Cincia, Tecnologia e Sociedade (http://estudosdects.org/).

    3 Refere-se crise da divida imobiliria, em 2008, nos EUA, e a crise das dvidas soberanas dos pases da Unio Europeia entre 2009 e 2010.

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    desenvolvimentista, irradiavam a percepo de que passaramos intatos s crises econmicas e polticas. O Brasil seguia como um transatlntico navegando com vento de popa: ampliao do consumo de bens durveis, reduo do desemprego, descoberta das reservas do pr-sal, pas-sede de grandes eventos esportivos, ampliao das exportaes de commodities, obras de infraestrutura em todas as regies e outras tantas iniciativas socialmente impactantes mas que no alteram a estrutura patrimonial do pas; bem como a reduo da pobreza, com a transferncia de renda por meio de programas sociais, mas sem as reformas agrria, tributria e poltica. No entanto, aps as manifestaes de junho de 2013, o que parecia um sussurro daqueles acusados pelos governos Lula e Dilma de esquerdistas e de inconsequentes, obstculos ao desenvolvimento, virou um sonoro grito de descontentamento. Aquelas crticas tmidas ou invisveis, vindas dos setores democrticos que querem um mundo diferente, passaram a adquirir ressonncia. Milhares de pessoas, mesmo com uma agenda difusa e imprecisa, estiveram nas ruas indicando que as coisas precisam mudar.

    Mesmo ao reconhecer o quanto importante reduzir a pobreza, possibilitar o acesso a determinados bens que transformam a vida que muitas vezes se resumia luta cotidiana pela subsistncia, diversos setores do campo democrtico e progressista identificaram que a agenda desenvolvimentista, ao contrrio do que a propaganda oficial anuncia, se efetivava perniciosamente, violando direitos elementares. Com isso, os governos Lula & Dilma parecem desprezar a oportunidade de divisar os meios para a formao de uma sociedade justa, democrtica e ambientalmente sustentvel, em dilogo com setores da sociedade capazes de apresentar uma agenda alternativa a qual o governo se compromete em que predomina os interesses do agronegcio, das grandes corporaes da construo civil, da indstria automobilstica e do petrleo. As ideias e prticas que no se ajustam lgica produtivista e predadoras do novo desenvolvimentismo so ignoradas ou, quando muito, transformam-se em experimentaes por meio de programas governamentais com limitada escala e impacto social. Em nome de um suposto desenvolvimento, parece que o Brasil perde a oportunidade de estruturar uma sociedade sem se orientar obtusamente pelo modelo de prosperidade dos Estados Unidos e da Europa, sociedades que manifestam esgotamento social, poltico e econmico.

    Frente a esta conjuntura, o presente texto tenciona refletir criticamente sobre aspectos do atual modelo de desenvolvimento e colocar questes referenciadas na valorizao da diversidade de ideias e formas de se produzir conhecimento, nos diferentes modos de vida e nas iniciativas que visam uma sociedade inclusiva, apta a se organizar com o aproveitamento de toda a nossa riqueza material e cognitiva. O texto, atravessado por questes problematizadoras, dividi-se em trs partes: na primeira, h uma resumida descrio das ideias de progresso e desenvolvimento; na segunda, um resumo

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    e contextualizao da marcha do progresso e do desenvolvimento em nosso pas; na terceira, a concluso, com fatos empricos que ressaltam os equvocos do atual modelo de desenvolvimento. Por fim, espero que, mesmo com imprecises e lacunas, o texto seja uma modesta contribuio til ao debate, oportunamente em um ano eleitoral cujo ceticismo e a desconfiana na poltica saltam aos olhos.

    *

    Progresso e desenvolvimento so substantivos correlatos usados para descrever e dar sentido a determinada condio material, moral e cognitiva de grupos sociais ou do conjunto de sociedades. A ideia de progresso tem suas origens na cultura greco-latina, bem antes da Revoluo Puritana ou do Iluminismo, marcos histricos habitualmente mencionados por estudiosos do tema como beros dessa poderosa ideia (Nisbet, 1985). Mesmo que em muitas situaes a ideia de desenvolvimento seja usada como sinnimo de progresso, ela s adquiriu relevncia e densidade conceitual ao final da primeira metade do sculo XX, quando uma crise financeira mundial, em 1929, duas grandes guerras e a detonao da bomba atmica, no final da II Guerra Mundial, contriburam para o eclipse da ideologia do progresso.

    Mesmo longe do propsito de apresentar a genealogia desses termos, pois existe uma rica e competente bibliografia que cumpre satisfatoriamente essa tarefa dentro de diferentes perspectivas do conhecimento, podemos identificar, para atender aos objetivos deste texto, trs princpios que no so os nicos, mas essenciais para conformar o substrato da ideia de progresso e que se mantm na de desenvolvimento: (1) busca superar as condies materiais e simblicas atuais para alcanar estgios supostamente superiores; (2) visa ampliar o poder de controle e predio dos fenmenos naturais e at mesmo sociais dentro de padres cognitivos racionais4; como corolrio dessas premissas, (3) para garantir os resultados materiais e simblicos a partir de tal racionalidade e a sua difuso de maneira global e estvel, a assuno de prticas cognitivas, de cosmovises e hbitos sociais que no esto em consonncia com o padro de racionalidade ou que signifiquem ameaas so ignorados ou eliminados.

    4 Neste caso, esta expresso se refere ao conjunto de iniciativas prticas e tericas aplicadas para interpretar os fenmenos naturais de maneira distinta da fsica aristotlica contida na tradio Escolstica. A partir do sculo XVI, a matemtica, o uso de mtodos experimentais e a simulao controlada de fenmenos naturais tornaram-se determinantes para uma descrio crvel dos fenmenos e das leis da natureza. Casos paradigmticos sobre o processo de racionalizao, que extrapolaram o mbito cientfico ou da filosofia natural, encontram-se nos trabalhos e textos de Francis Bacon (1561-1626), Galileu Galilei (1564-1642), Ren Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1643-1727), Gottfried W. Leibniz (1646-1716), Jean dAlembert (1717-1783), entre outros.

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    Seguindo esses princpios, pouco importa o corte poltico e ideolgico, seja Karl Marx ou Hebert Spencer5, muitos outros proeminentes pensadores6 que viveram antes desses dois filsofos comprometidos com posies to antagnicas nutriam a crena em que a humanidade progressivamente atingiria um estgio superior em que a paz, a afluncia material e espiritual, com ou sem revoluo, grassaria na Terra. Os eventos sociais que ocorriam nos pases anglo-saxes seduziam facilmente suas elites polticas, intelectuais, artsticas e econmicas. Todos estavam cnscios de que a prosperidade era um caminho inexorvel e nada poderia det-la. Assim, depois de sculos de gestao que vai ao menos de Protgoras7 a Spencer, no sculo XIX que o progresso atinge o seu znite. A cincia se consolida institucionalmente e mostra sociedade seus resultados prticos energia eltrica; possibilidade de comunicao entre pessoas distantes; o poder de deslocar pessoas e mercadorias por mar ou por terra; difuso dos meios para dissipar enfermidades; aperfeioamento de tcnicas para a converso de energia; o industrialismo se prolifera como meio para se atingir a prosperidade material; a teoria evolucionista de Darwin ganha crdito e abala as justificativas teolgicas para a nossa existncia. Tambm, entre tantas mudanas, no se poderia ignorar que parte desse otimismo e crena no progresso teve relao direta com os resultados e vantagens econmicas obtidas com a empresa neocolonial nos continentes africano, asitico e ocenico. A transferncia de riquezas substantivas para os pases da Europa foram necessrias para alimentar a ideologia do progresso, mas no o suficiente a ponto de rebaixar a importncia da rica produo de ideias ao longo de sculos que lhe deram forma.

    Portanto, o sculo XIX, sobretudo a partir da sua segunda metade at o incio da dcada de 1870, foi o perodo da histria do Ocidente em que a ideia de progresso, ao menos em uma parte do planeta, parecia se realizar plenamente atravs dos seus feitos cientficos, tcnicos, econmicos. Perodo em que tamanha afluncia intelectual e material possibilitou a expanso do industrialismo no velho continente (Hobsbawm, 1996). O aperfeioamento das mquinas movidas a vapor, as estradas de ferro e o telgrafo facilitaram a expanso do comrcio internacional as distncias foram reduzidas e a comunicao ficou mais rpida. A pujana econmica

    5 Hebert Spencer (1820-1903), socilogo e filsofo britnico, foi um evolucionista antes de Darwin e criou a expresso sobrevivncia dos mais aptos. Em sua vasta obra, Spencer tinha uma crena otimista no progresso humano atravs da evoluo, defendia o laissez-faire e atacava todas as formas de interferncia do Estado que violassem a liberdade individual.

    6 Entre 1750 e 1900 pensadores como Adam Smith (1723-1790), Emanuel Kant (1724-1804), Jacques Turgot (1727-1781), Nicolas de Condorcet (1743-1794), Conde de Saint-Simon (1760-1825), Thomas Maltus (1766-1834), Friedrich Hegel (1770-1831), Augusto Comte (1798-1857), J. Stuart Mill (1806-1873), Karl Marx (1818-1883) e H. Spencer olhavam a histria como uma ascenso lenta e gradual, mas contnua e necessria em direo a determinado fim.

    7 Filsofo sofista de Abdara (Grcia Antiga) que viveu de 480 a.C. a 417 a.C.

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    do perodo foi registrada: o comrcio mundial entre 1800 e 1840 no tinha chegado a duplicar, enquanto que entre 1850 e 1870, cresceu 250%. Um dos eventos que simbolizava a fora da ideologia do progresso eram as Grandes Exposies Internacionais produzidas pelas elites econmicas. Seu objetivo, alm dos negcios intrafirmas, era apresentar ao pblico comum as realizaes tcnico-cientficas ligadas ao industrialismo8. As mquinas eram, para a nova burguesia, cones majestosos da infinita capacidade humana de transcender os constrangimentos impostos pela natureza.

    A partir do final do sculo XIX o progresso comeou a agonizar. Ao longo da primeira metade do sculo XX, em meios ao terror das guerras, de crises econmicas responsveis por tanto sofrimento material e psicolgico, as ideias cticas, germinadas por pensadores que viveram o sculo XIX e a passagem para o XX9, ganharam importncia e sentido. Todas essas ideias, umas enfatizando aspectos morais e outras os econmicos, tinham em comum a descrena no vigor da ideologia do progresso. Desdenhavam a possibilidade de o Ocidente seguir um curso linear e ascendente, cujo bem-estar material e moral seriam universais. Fora da Europa j havia relatos contestadores dos feitos perversos do neocolonialismo, que subjugava milhares de pessoas e governos. Como sustentar a ideologia do progresso no meio de tanto desacordo entre ideias e fatos? Depois dessas trgicas ocorrncias, poucos idelogos com notoriedade tiveram a coragem de defender o progresso. Assim, uma ideia que tanto empolgou, catalisou projetos de sociedade, estruturas de pensamentos e utopias para conservadores, liberais, comunistas, socialdemocratas, socialistas utpicos ou cientficos saiu de cena e seguiu para o acervo das ideias anacrnicas.

    A busca por um mundo mais justo passou a ser travado, cada vez mais, com ideias antitticas em um ambiente cultural e poltico que impossibilitava o florescimento de um plano ou conceito capaz de gerar algum grau de

    8 ...cada uma delas encaixada num principesco monumento riqueza e ao progresso tcnico o Palcio de Cristal em Londres (1851), a Rotanda (maior que So Pedro de Roma) em Viena, cada qual exibindo o nmero variado de manufaturas, cada uma delas atraindo turistas nacionais e estrangeiros. Catorze mil firmas exibiram em Londres em 1851 (a moda tinha sido condignamente inaugurada no lar do capitalismo); 24 mil em Paris, em 1867. (...) a maior delas todas foi a Feira do Centenrio de Filadlfia, em 1867, aberta pelo presidente e com a presena do imperador e da imperatriz do Brasil. (...) eles eram os primeiros dos dez milhes que naquela ocasio pagaram tributo ao progresso da poca. (Hobsbawn, 1996: 58).

    9 Entre os principais autores que produziram mordazes criticas a ideologia do progresso estavam Artur Schopenhauer (1788-1860), Alexis Tocqueville (1805-1859), Sren Kierkegaard (1813-1855), Friedrich Nietsche (1844-1900), George Sorel (1847-1922), Max Weber (1864-1922) e Oswald Spengler (1880-1936).

  • 15Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    consenso. O vaticnio weberiano10 passava a assumir contornos radicais na primeira metade do sculo XX e, aps a Segunda Guerra Mundial, o mundo passou a temer os efeitos de um conflito nuclear, cuja guerra fria poderia dar lugar a uma guerra sem vencedores. As armas nucleares transformavam a possibilidade do fim da espcie humana em um fato iminente. Com a explcita associao entre a guerra e a cincia11, aps ver sua sombria face em ao, a sociedade passou a desconfiar de suas finalidades. Ao mesmo tempo, o descontentamento de populaes dos pases do Hemisfrio Sul com a desigualdade socioeconmica ampliava e os conflitos eram estimulados por ideologias emancipatrias socialismo e comunismo. Com isso, no ps-guerra houve o processo de descolonizao e a polarizao ideolgica do mundo. Enquanto que os pases do Oeste Europeu receberam a injeo de vultosos recursos para a reconstruo de suas cidades e para dinamizar suas economias combalidas pela guerra12, os pases do Hemisfrio Sul, designados como subdesenvolvidos, contaram com um modesto apoio para se desenvolverem eliminando a pobreza.

    Desta forma, no final da primeira metade do sculo XX, os Estados Unidos da Amrica, que passaram a deter a hegemonia blica, cultural e econmica no mundo, adotaram iniciativas com o objetivo de reduzir a pobreza e eliminar o subdesenvolvimento. O iderio desenvolvimentista apareceu de forma mais acabada na mensagem do presidente americano, Harry S. Truman, enviada ao Capitlio em 24 de janeiro 1949. Em seu Point Four Programme, Truman proclamou a necessidade de ajudar as populaes das reas economicamente subdesenvolvidas a elevarem seus padres de vida (Latouch, 2000: 173). Esta mensagem significava um marco, em que ideologia do desenvolvimentismo

    10 No texto A cincia como vocao M. Weber escreveu: ... O destino de nosso tempo, que se caracteriza pela racionalizao, pela intelectualizao e, sobretudo, pelo desencantamento do mundo levou os homens a banirem da vida pblica os valores supremos e mais sublimes. Tais valores encontram refgio na transcendncia da vida mstica ou na fraternidade das relaes diretas e recprocas entre indivduos isolados. (Weber, 2011: 56).

    11 O conhecido projeto Manhatann, experincia de pesquisa bem-sucedida que serviria de base para o que atualmente denomina-se Big Sciense, desenvolvido no laboratrio de Los Alamos, nos EUA e coordenado pelo fsico Julius Robert Oppenheimer, mobilizou considerveis recursos financeiros e humanos. A bomba atmica, artefato blico que significou a materializao da cincia desenvolvida por dezenas de notveis cientistas naturais, afora ter dado fim guerra mostrou outras dimenses da cincia, teis aos propsitos da poltica e da guerra, ainda entorpecidas. O depoimento de Robert Oppenheimer logo aps o primeiro teste atmico, em julho de 1945, no deserto do Novo Mxico, no foi nada retrico. Ele disse, ... sabamos que o mundo no mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram, algumas pessoas choraram, a maioria ficou em silncio.

    12 O Plano de Recuperao da Europa, conhecido como Plano Marshall elaborado pelo secretrio de Estado dos EUA Jorge Marshall destinou Europa Ocidental US$ 13 bilhes ao longo de quatro anos (equivalente a aproximadamente US$ 135 bilhes em 2014). O Plano, alm de contribuir para a reorganizao da economia dos pases envolvidos na guerra, foi fundamental para conter o avano do socialismo real na regio.

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    substituiria a ideia de progresso. A partir de ento, o desenvolvimento seria o principal meio para eliminar a pobreza, conter o avano do socialismo no Hemisfrio Sul e garantir a hegemonia poltica e econmica dos Estados Unidos. As iniciativas de combate a pobreza poderiam ser realizadas diretamente, como o programa de ajuda financeira Aliana para o Progresso, ou atravs das agncias multilaterais Organizao das Naes Unidas, Fundo Monetrio Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial, por exemplo. No obstante tamanha relevncia dentro da geopoltica mundial, o desenvolvimento significou uma panaceia que s serviu poltica e ao lxico econmico dos pases do Hemisfrio Sul. Aos chamados pases desenvolvidos, essa ideia s fazia sentido fora dos seus territrios, como estratgia discursiva para efetuarem mudanas objetivas e materiais e renovarem o domnio sob as ex-colnias.

    *

    Paralelamente s transformaes supracitadas nos hemisfrios Norte e Sul, o Brasil sofreu considervel influncia da ideologia do progresso e tornou-se rea estratgica para as polticas econmicas que seguiam na trilha do desenvolvimento e da nova geopoltica em um mundo bipolar. Mas, antes de seguir com a abordagem sobre os rumos do desenvolvimento em nosso pas, fao uma breve digresso: antes do final da dcada de 1940, os agentes que ocuparam o Estado brasileiro seja no perodo monrquico, em quase todo o sculo XIX, ou em boa parte do republicano, ao realizarem mudanas no domnio econmico, cultural e institucional da sociedade eram movidos pela ideia de progresso. Impulsionado por essa ideia, antes mesmo que o termo fosse grafado no braso da bandeira nacional da Repblica e um pouco antes da fundao da Igreja Positivista do Brasil13, o imperador Dom Pedro II determinou a construo de uma malha ferroviria que comeava na atual Central do Brasil e seguia para alm das fronteiras do estado fluminense. Esses trilhos, durante dcadas, foram o principal meio para escoar a produo de So Paulo e Minas Gerais at o porto do Rio de Janeiro, e assegurar sustncia economia agrrio-exportadora nacional. Tambm, impulsionado pelo progresso, foram fundadas a Escola de Minas de Ouro Preto, em 1876, e a

    13 A Igreja Positivista do Brasil foi fundada por Miguel de Lemos adepto da doutrina positivista criada pelo filsofo francs Augusto Comte. Comte foi mais um eminente pensador que defendia a ideologia do progresso da humanidade, que, segundo ele, passaria por trs estgios: teolgico, metafsico e positivo. Nesse ltimo estgio no haveria nada na natureza e na sociedade que no pudesse ser explicado pelo pensamento racional. Sua doutrina influenciou o pensamento dos idelogos republicanos, inclusive os polticos e os militares do estado do Rio Grande do Sul, local de nascimento de Getlio Vargas, onde este adquiriu estofo poltico para assumir a Presidncia da Repblica em 1930, atravs do golpe de Estado que enterraria a Repblica Velha e interromperia a poltica do Caf com Leite.

  • 17Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    Escola Politcnica do Rio de Janeiro, em 1874 (Carlotto, 2013). Justificando-se pela inexorvel marcha do progresso, o presidente Rodrigues Alves nomeou Pereira Passos para transformar a cidade do Rio de Janeiro, poca a capital da Repblica, em uma Paris tropical, e destinou todos os recursos necessrios econmicos e violentos para que o sanitarista Oswaldo Cruz debelasse as doenas infectocontagiosas que ceifavam a vida daqueles que residiam ou passavam pela capital do Brasil. Getlio Vargas, oriundo do estado onde o positivismo criou razes, foi outro que, inspirado pelo progresso, edificou as indstrias de base, modernizou as instituies do Estado brasileiro, instituiu a legislao trabalhista e a Previdncia Social.

    Esses exemplos so de agentes polticos que se animavam com a ideologia do progresso. Uma ideia que no se restringia, ao contrrio da ideia de desenvolvimento, a determinaes meramente econmicas. Assumir o progresso era projetar um futuro em que o bem-estar material estaria harmonicamente integrado ao bem-estar moral. Um pressuposto bem diferente da ideia de desenvolvimento, pois a dimenso tica ou moral, neste, no passava de epifenmeno, j que a economia seria o principal mbil das mudanas que se espraiariam em todos os domnios da vida. Com efeito, os governantes que melhor assumiram essa ideia de desenvolvimento, consoante Truman expressara, foram Juscelino Kubitscheck e os generais que presidiram o pas durante o perodo da ditadura militar, aps o golpe de 1964. Esses governos no conseguiram suprimir as mazelas sociais das plagas do pas. Ao contrrio, acabaram por aumentar a distncia entre pobres e ricos. Mas inegvel que parte do plano desenvolvimentista anunciado por Truman efetivou-se pelo Brasil e produziu resultados auspiciosos para os interesses econmicos e polticos estadunidenses e de muitas outras corporaes industriais sediadas no outro lado do Atlntico.

    Com acelerada industrializao e urbanizao, o Brasil tornou-se uma das sociedades mais desiguais do mundo e um espao profcuo para a reproduo capitalista. A riqueza concentrou-se na regio Sudeste, de onde emergiu o crescimento desordenado das cidades e a formao de metrpoles como So Paulo e Rio de Janeiro. O rodoviarismo adquiriu proeminncia e passou a ser o principal vetor de integrao e mobilidade urbana, satisfazendo, notadamente os interesses da cadeia produtiva do petrleo e da indstria automotiva. Com o advento da televiso como possante veculo da propaganda de bens durveis, a nova classe mdia desses centros urbanos era o alvo preferencial para ser estimulada ao consumo de automveis, geladeiras, televisores e outros bens inacessveis maioria da populao. O Brasil passava a ocupar importncia no s na diviso internacional do trabalho, mas tambm na estratgia de vendas das firmas multinacionais.

    Tanto desenvolvimento, custa de endividamento do Estado brasileiro e de muita represso poltica, decaiu antes do fim da ditadura militar. O perodo

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    desenvolvimentista, conhecido como o milagre econmico brasileiro, quando o crescimento mdio do PIB nacional era de 7% ao ano, chegou ao fim na metade da dcada de 1970, em meio crise financeira internacional e energtica14. Na metade da dcada de 1980, a presso poltica da sociedade brasileira e a falta de liquidez para alimentar o padro de crescimento de outrora foram determinantes para que os militares retornassem caserna e o pas restabelecesse o regime democrtico. Conquanto tivssemos expressivos ganhos polticos, a dcada 1980 ficou conhecida como a dcada perdida15 - perodo em que a inflao e desemprego atingiram patamares elevados e o crescimento do PIB foi inexpressivo.

    A dcada de 1990 foi marcada pela reestruturao profunda do Estado brasileiro, em que o receiturio neoliberal foi seguido com entusiasmo. Perodo que se popularizou, na voz de autoridades governamentais e de especialistas da rea econmica, a expresso preciso fazer o dever de casa. Por trs desse enunciado estava a determinao governamental em seguir as ideias econmicas neoclssicas que passaram a ser propagandeadas como o Consenso de Washington16, um conjunto de medidas que, produzidas por influentes economistas e financistas, tornou-se o declogo para os governos de muitos pases do mundo. No Brasil, nos oito anos do governo do Fernando Henrique Cardoso esforos no foram poupados para cumprir a agenda neoliberalizante. Um perodo da nossa histria republicana em que estabilizao e valorizao da moeda, queda da inflao, privatizaes de empresas pblicas e o aumento

    14 Em outubro de 1973 as naes participantes da Opep (Organizao dos Pases Produtores de Petrleo) elevaram os preos de referncia do petrleo bruto nos mercados internacionais de US$ 2,5 para US$ 11,0 por barril. Essa iniciativa acarretou ampla redistribuio da renda mundial a favor dos pases exportadores de petrleo e imensas dificuldades aos importadores. Em apenas cinco meses, entre outubro de 1973 e maro de 1974, o preo do petrleo aumentou 400%, causando reflexos poderosos nos Estados Unidos e na Europa e desestabilizando a economia por todo o mundo.

    15 No perodo, registrou-se inflao de 235%, em virtude da vulnerabilidade cambial da moeda brasileira no cenrio internacional, e o Brasil anunciou moratria devido incapacidade de cumprir os compromissos firmados com o FMI. A dvida brasileira com esse organismo multilateral j passava dos do US$ 10 bilhes.

    16 O Consenso de Washington, atravs das agncias multilaterais, orientavam os governos a reduzirem os gastos pblicos, reduzir tributos, manter os juros e o cmbio de acordo com os interesses dos mercados, promover a abertura comercial e eliminar os constrangimentos para estimular investimentos estrangeiros, privatizar empresas estatais, desregulamentar a legislao trabalhista e garantir o direito propriedade intelectual. Tais ideias encontram seus fundamentos tericos na Escola de Chicago, em que economistas e outros pensadores desta instituio se comprometeram com a teoria neoclssica da formao de preos e ao liberalismo econmico, que abominava o keynesianismo ou ao Estado de Bem-Estar Social em favor do monetarismo. Todo o edifcio terico desta escola de pensamento visava a total desregulamentao dos negcios, em favor de um laissez-faire quase absoluto. Pensadores como o economista Friedrich Hayek (1899-1992), autor da obra O caminho da Servido, e o filosofo libertarista Robert Nozick, com o seu livro Anarchy, State, and Utopia, tambm foram obras de referncia para esse pensamento que impactou a vida de bilhares de pessoas no mundo.

  • 19Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    da dvida pblica17 ocuparam a agenda da poltica e da economia nacional. oportuno mencionar que em mdia, desde os governos de Fernando Henrique, passando por Lula e com a Dilma Rousseff, quase que metade do Oramento Geral da Unio vem sendo destinada ao pagamento da dvida pblica em detrimento da qualidade e da abrangncia de servios pblicos.

    A partir dos governos Lula e Dilma, ambos do Partido dos Trabalhadores, a ideia que parece ocupar centralidade no vocabulrio poltico, social e econmico dos agentes governamentais e econmicos pblicos e privados a de desenvolvimento. Uma ideia que esmaece, para o conjunto da sociedade, as iniciativas que mantm estvel os ganhos dos agentes financeiros18. Com face de Janus, o governo Lula, de um lado manteve os acordos com a banca financista, assegurando o mesmo patamar de ganhos desse setor e, do outro lado, buscou enfrentar dcadas de misria e pobreza (Singer, 2012).

    Antes de ganhar a eleio, o PT e o seu candidato Lula assumiram publicamente em documento conhecido como Carta aos Brasileiros, que, se eleito, seu governo cumpriria os contratos com os agentes econmicos. A referida carta, instrumento utilizado para tranquilizar os agentes do mercado financeiro brasileiro e do mundo, no foi suficiente para que Lula e o PT abandonassem integralmente as teses econmicas, debatidas internamente em seminrios, plenrias e congressos do partido e no Instituto da Cidadania que resultaram em um programa de governo19 que sinalizava para a importncia de dinamizar o ambiente socioeconmico domstico de forma endgena, autnoma e socialmente inclusiva.

    Em linhas gerais, o propsito era organizar a economia aproveitando o potencial do mercado interno com seus milhares de consumidores, intensificando o uso dos bens naturais (commodities), ampliando a fronteira agrcola do agronegcio para a exportao de bens primrios e ampliando a produo energtica, principalmente a de base hidrulica e petrolfera20. Mesmo preservando o trip macroeconmico professado pelos apstolos do Deus Mercado - controle da inflao, supervit primrio e cmbio

    17 A dvida lquida do governo central, estados e municpios e empresas estatais em dezembro de 1991 correspondia 37,1% do PIB (Produto Interno Bruto) e em dezembro de 2002 ela correspondia a 60,4% do PIB. Em dezembro de 2013 a relao da dvida com o PIB de 33,8%. Fonte: http://ppe.ipea.gov.br/index.php/ppe/article/viewFile/765/705; http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2014-01/divida-liquida-do-setor-publico-fica-estavel-em-dezembro-0

    18 Especialmente no perodo do governo Lula, os bancos tiveram uma lucratividade substantiva e, ao mesmo tempo, ocorreu significativa reduo da misria e a ampliao do emprego e ampliao do poder de compra do salrio mnimo.

    19 Programa de Governo 2002 Coligao Lula Presidente: um Brasil para todos. Disponvel em: http://www.fpabramo.org.br/uploads/programagoverno.pdf. Acesso em: 10 jan. 2014.

    20 Atualmente a referncia do governo Lula-Dilma o Plano Decenal de Expanso de Energia at 2021. O plano encontra-se no site da Empresa de Pesquisa Energtica vinculada ao Ministrio de Minas e Energia. Disponvel em: http://www.epe.gov.br/pdee/forms/epeestudo.aspx. Acesso em: 10 jan. 2014.

  • 20 Caderno de Debates 3

    flutuante - o governo Lula procurou executar parte do programa econmico que apontaria para um novo padro de desenvolvimento, com face diferente do nacional-desenvolvimentismo do perodo de 1946 a 1964, e do desenvolvimentismo dos governos autoritrios.

    Atualmente, o modelo de desenvolvimento adotado pelos governos Lula e Dilma, que muitos designam como neodesenvolvimentismo, se diferencia substancialmente dos modelos anteriores. No perodo Lula-Dilma houve a radicalizao da ideia de aproveitar o mercado consumidor nacional. Com isso, a efetivao de mecanismos que facilitassem o acesso ao crdito para a populao pobre, isenes fiscais e outros benefcios para reduzir o preo final de bens durveis, e o aumento real do salrio mnimo serviram para estimular e ampliar a escala de consumo de bens e servios. Muitas outras iniciativas contriburam para dinamizar a economia - programa habitacional Minha Casa, Minha Vida; programa de proviso de energia eltrica Luz para Todos, ampliao do crdito para a produo agrcola, ampliao dos beneficirios do programa Bolsa Famlia, grandes obras de infraestrutura e logstica etc. Esse conjunto de iniciativas, mais a exportao de commodities (minrio de ferro, soja, milho, etc) e muitas outras na rea financeira, na produo cientfica e na indstria do petrleo, colocou o pas em uma situao bem diferente de perodos anteriores. Alis, essa diferena no ocorre apenas no Brasil, pois a Comisso Econmica para a Amrica Latina (Cepal) identificou que a dinmica socioeconmica da maioria dos pases da Amrica Latina, principalmente daqueles com governos populares do campo democrtico, tem reduzido a desigualdade econmica em suas sociedades (Cepal, 2013). O que no ocorria em dcadas anteriores, quando se seguia a orientao das agencias multilaterais hegemonizadas pelos EUA. A poltica de substituio de importao engendrada antes do golpe militar e o desenvolvimentismo dos governos militares, no foram capazes de gerar impactos sociais semelhantes aos atuais.

    De acordo com parte do programa do governo do seu partido, o presidente Lula assumiu a execuo de alguns programas sociais e de polticas econmicas de corte neokeynesianas (Modenesi, 2012). A ampliao de programas sociais de transferncia de renda e a adoo de uma poltica salarial que elevasse o poder de compra do salrio mnimo nacional foram medidas que se integraram ao conjunto de outras como a Poltica Industrial, Tecnolgica e de Comrcio Exterior (PITCE), lanada no final de 2004, e o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), lanado em 2007, que compuseram a tessitura deste novo desenvolvimentismo que se expressa em vrias reas da sociedade e da economia.

    Nos ltimos dez anos, a fronteira agrcola se expandiu junto com a produo do agronegcio, que um dos setores, ao lado das indstrias automobilstica e do petrleo, que contribui significativamente para a elevao do PIB nacional.

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    Ao mesmo tempo, o Brasil , atualmente, o maior consumidor de agrotxicos do mundo, e um pas com muitas ocorrncias de homicdios decorrentes de conflitos agrrios a estrutura fundiria pouco mudou desde a Lei das Terras de 1850; no mesmo perodo, a frota de veculos mais que dobrou so 80 milhes, de motocicletas a nibus mas, trabalhadores e trabalhadoras dos centros urbanos gastam em mdia trs horas dirias, para realizar o trajeto casa-trabalho-casa.

    Conforme o Censo de 2010, quase toda a populao brasileira possui bens durveis em suas residncias, como TV, fogo, geladeira, aparelho celular, entre outros. So 50 milhes de brasileiros fora da misria absoluta. No entanto, so poucos os domiclios que tem o seu esgoto tratado. O Brasil est entre as 10 principais economias do mundo, mas tem a quarta maior populao carcerria do planeta21. Milhares de famlias acessam o crdito imobilirio, outras adquirem a sua moradia dentro do programa habitacional Minha Casa, Minha Vida22, que at o final de 2010 havia produzido e contratado um milho de unidades habitacionais. No entanto, o dficit habitacional nesse mesmo ano no reduziu e se mantm em aproximadamente sete milhes de unidades (Fundao Joo Pinheiro, 2010). Mais jovens, na faixa etria de 18 a 24 anos, tm ingressado em universidades pblicas e privadas, por meio de mecanismos utilizados pelo governo federal - crdito educativo, iseno fiscal concedido s universidades, ampliao das instalaes das universidades pblicas, entre outras iniciativas. No entanto, o desemprego entre os jovens elevado e o nmero de homicdios de jovens negros alarmante.

    Foram realizaes que alteram a estrutura da sociedade brasileira, alm de retirar imediatamente pessoas e famlias de um absoluto desalento. No entanto, deve-se ressaltar que enfrentar a pobreza uma ao necessria, mas insuficiente para garantir uma sociedade de direitos plenos. A apresentao sumarizada desses feitos e efeitos evidencia o tamanho das contradies do governo e da nossa sociedade dentro desse quadro desenvolvimentista.

    O governo se curva ao realismo poltico, abandona uma viso estratgica que altere estruturalmente as questes sociais, e segue o pragmatismo e o vagar do tempo sem radicalidade. Enquanto isso, parte da sociedade, de forma mais patente, manifesta o seu descontentamento com os governos e seu grande ceticismo quanto s regras e as instituies democrticas contemporneas.

    21 Com 550 mil pessoas presas, o Brasil s fica atrs apenas dos EUA, da China e da Rssia.22 O Minha Casa Minha Vida um programa habitacional institudo em 2009. De fato, nunca se produziu

    tantas unidades habitacionais, no entanto, o programa segue a lgica do mercado imobilirio, o que faz com que os conjuntos habitacionais sejam construdos em reas com precria ou nenhuma infraestrutura urbana, alm de no enfrentar consistentemente o dficit habitacional. (ver elucidativo artigo sobre o assunto Disponvel em: http://www.cartacapital.com.br/politica/como-nao-fazer-politica-urbana-3066.html. Acesso em: 06 abr. 2014.

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    Inicio a parte conclusiva deste texto com a seguinte questo: o que podemos esperar de tanto desenvolvimento? No difcil inferir que, mesmo que a percepo da maioria da populao seja de satisfao com o farto consumo, com a possibilidade de estar perto de realizar o sonho da casa prpria, de poder comprar um automvel e bens high tech para se comunicar e ingressar nas redes sociais, o atual padro de desenvolvimento segue exatamente as trs premissas supracitadas no incio deste texto. Em nome de mais oferta de crdito, de assegurar a produo de matria-prima, de extrair minrio e petrleo, de ampliar a matriz energtica, populaes do norte ao sul do pas so expulsas dos seus ambientes, locais em que construram suas vidas.

    Em conformidade com a racionalidade produtivista, em que quantidade vale mais que qualidade (Castoriadis, 1981), acompanhada de uma total indiferena a outras formas de conhecimento e sintonizada com a premissa (3), a marcha do desenvolvimento segue impudente e ignora a importncia que a diversidade cognitiva sempre teve para o florescimento das ideias e para o desenvolvimento da cultura. No seria o caso, levando em considerao a impossibilidade de conter o desenvolvimentismo em curso, pensarmos o que ser da nossa sociedade daqui a cinco geraes? No podemos restringir nossas perspectivas e possibilidades ao limite temporal de poucos anos ou dcadas. Certamente difcil para aqueles que no sabem como ser a vida no ms seguinte fazer projees para perodos to longos. Mas creio que, sem defender algum tipo de intelectualismo, no o caso para os que tm dispositivos materiais e cognitivos para ocupar postos da administrao pblica, disputar eleies, se engajar nas lutas sociais, atuar em organizaes e movimentos sociais. Esses so atores sociais importantes para pensar uma sociedade diferente.

    Infelizmente no podemos esperar apenas que os governos reflitam e alterem o rumo dessa marcha. No caso do governo brasileiro, vemos pouco espao para alterar o percurso da flecha do desenvolvimento. Vivemos em um contexto cujo fenmeno da globalizao e da financeirizao colocam governos nacionais imobilizados, totalmente inertes. A poltica e suas instituies conformam um sistema que hoje est separado do cotidiano por um imenso fosso que no para de crescer. A dimenso utpica da vida encapsula-se nos domnios da esttica e da religio, o giro de sentidos e ressignificaes semnticas so correntes. Tratando-se do Brasil no que outros pases no estejam imersos no mesmo ambiente cultural ou ideolgico devemos ampliar as seguintes questes: (1) o que podemos esperar da atual forma de desenvolvimento brasileiro dentro de uma perspectiva que extrapole o atendimento imediato de demandas sociais e econmicas? (2) o desenvolvimento brasileiro serve de exemplo para o mundo? (3) ou essa forma

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    de desenvolvimento que emergiu do bero da modernizao ocidental mais do mesmo e deve ser definitivamente suprimida da nossa agenda antes que ela nos leve para o fim? (4) possvel, com a nossa rica e diversificada cultura material e simblica, assumirmos prticas alternativas ao desenvolvimento anglo-saxo que possam servir, inclusive, de referncia ao mundo23?

    Todas essas questes no tm resposta fcil ou unvoca, entretanto, deveriam, no mnimo, ocupar a esfera pblica nacional e no se restringir a grupos sociais afetados pela marcha do desenvolvimento, a grupos de pesquisadores e acadmicos e ficar insulada entre militantes e organizaes sociais. J somos inteligentes o suficiente para sabermos que qualquer sociedade no como uma mquina que ao apresentar avalia se desliga para consert-la e restabelecer a sua funcionalidade. Mesmo diante da complexidade da vida e de suas instituies, as experincias histricas que conhecemos informam que as sociedades, mesmo as que se mantiveram durante centenas de anos com convices profundas, expressas em suas instituies, deixaram de existir ou se transformaram. Alguns podem afirmar que colapsos ou ocasos de sociedades inteiras s ocorreram por que as foras produtivas, a cincia e a tcnica, no estavam suficientemente desenvolvidas para prolongar uma existncia estvel e exitosa. Esses lanam mo do argumento que colocam conservadores, liberais, democratas, socialistas e comunistas, no mesmo barco. Afirmam, quase dogmaticamente, que estamos numa era em que temos de fato ou potencialmente dispositivos materiais e capacidade cognitiva suficiente para transpor os limites naturais e sociais. Para muitos, os entraves que obstruem essa superao decorrem da ingerncia dos interesses polticos e econmicos. Parecem acreditar que suficiente trocar a cincia ou o conhecimento de mos, para que tudo funcione melhor e sem limites.

    Ainda que no todos, muitos cientistas, historiadores e filsofos da cincia mesmo sem se deixar levar por anlises catastrficas, j abandonaram essa crena, faz algum tempo. Reconhecem com modstia que na vida h fenmenos, entidades e emergncias em tamanha abundncia que no os deixam confiar de maneira cega na racionalidade ocidental. No basta contar com a matemtica, recursos financeiros, bons instrumentos e mtodos adequados para que a totalidade das interaes orgnicas e inorgnicas, a soluo dos nossos impasses seja encontrada e a vida plenamente compreendida.

    Essa constatao no significa ignorar as conquistas e o sucesso obtidos at o momento. inegvel que a racionalidade ocidental, que teve como um dos principais corolrios a cincia, responsvel pelo bem-estar de

    23 Ultimamente vrios pensadores tm manifestado interesse pelo Brasil, vendo-o, mesmo com os constrangimentos dos agentes econmicos, como um pas de imenso potencial para assumir outro padro societrio. Bruno Latour deu uma longa entrevista tratando do assunto (jornal O Globo, Caderno Prosa & Verso, 28 dez. 2013. p.2.). Domenico de Masi em seu livro O Futuro Chegou, refere-se s caractersticas do Brasil que poderiam contribuir para um novo mundo (jornal O Globo, 26 jan. 2014, p.49.).

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    muitos podemos buscar exemplos nas reas da sade, do transporte e da comunicao. Portanto, todo esse debate, sem se enganar tambm pela retrica da sustentabilidade ou da economia verde, deve combinar distintas dimenses temporais, locais e cognitivas. O desafio conectar o tempo presente com uma mirada temporal distante, possibilitar a interseo de prticas to heterogneas, de acmulos cognitivos pluralistas, ou seja, radicalizar no perspectivismo simtrico (Castro, 2004) ao assumir a existncia de cosmovises to incomuns, e cogitar que, como brilhantemente o filsofo da cincia Feyerabend afirmou: (...) De certa forma, podemos dizer que potencialmente cada cultura todas as culturas (Feyerabend, 2006:288). Mesmo que essas ideias sejam de difcil realizao, no mnimo deveramos reconhec-las como ideias orientadoras, pois nunca estaremos totalmente livres do etnocentrismo, do conflito e do uso da fora.

    Realizar esse debate dentro desses parmetros, como afirmei, no significa abrir mo daquilo que tem sido importante para garantir determinadas condies de bem-estar existencial. No se voltar para um neorromantismo e ignorar os feitos da cincia e o potencial que a cincia tem para resolver nossos problemas e assegurar o bem-estar, por mais que seja difcil definir os parmetros de uma vida digna nas sociedades contemporneas24. Com isso, ao reconhecer a funo social da cincia, no podemos ignorar, como o governo Lula & Dilma tem feito, o que os igualam a governos conservadores, outras formas de conhecimento capazes de enfrentar problemas e dar solues no campo econmico, cientifico, cultural etc, mas que no se ajustam s premissas desenvolvimentistas.

    A questo como definir, por meio do debate poltico, sem cair em um relativismo tosco ou autoritrio, quais os meios adequados que utilizaremos em determinadas circunstncias ou quais os bens e artefatos materiais que priorizaremos dentro de uma lgica de interesse pblico. Com essas questes em mente, por exemplo, deveramos avaliar melhor se o governo deve continuar dando isenes para ampliar a venda de automveis ou se deve investir mais na produo de habitao popular ou em um sistema de saneamento ambiental. Faz sentido explorar o gs de xisto (Cotta, 2014) e transformar esses locais em um vale de lgrimas para os grupos sociais que vivem prximos aos locais de explorao, alm de provocar graves problemas ambientais? O governo deve liberar o uso da tecnologia terminator (Ribeiro, 2011) as chamadas sementes suicidas e eliminar prticas agrcolas que garantem produtividade e o equilbrio do ecossistema? assustadora a emergncia imposta pelo governo combinado com os interesses dos agentes

    24 A obra Teoria da Justia de John Rawls (1921-2002) um dos ltimos empreendimentos intelectuais a provocar furor dentro da filosofia poltica ao apresentar dentro de em quadro neocontratualista os critrios definidores de uma vida justa em uma sociedade democrtica liberal.

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    privados. As iniciativas so tomadas sem analisar cautelosamente os seus efeitos o principio da precauo, por exemplo, posto no limbo ao se tratar do uso de culturas transgnicas (Pacheco, 2012).

    Quando uma usina como Belo Monte segue a sua construo e o governo ignora o dilogo com as partes envolvidas est justamente, em nome do desenvolvimento, violando a riqueza social e ambiental de uma regio do pas. H vastos argumentos de outros setores da sociedade, que esto ao lado da populao que vive na regio, que mostram minuciosamente que Belo Monte um descalabro (Rojas e Valle, 2011), um ataque no s aos afetados diretamente, mas ao conjunto da sociedade. Seria possvel, ao contrrio dos argumentos do governo, garantir o bem-estar e o fornecimento de energia eltrica sem a usina de Belo Monte. Nas grandes cidades os nossos recursos devem ser utilizados para uma requalificao urbana que privatiza os espaos pblicos, elimina a diversidade cultural e social das cidades, que elitiza o espao urbano ampliando a segregao socioterritorial e no melhora a infraestrutura urbana para a maioria da populao?

    Grandes centros urbanos esto sendo transformados com vultosos recursos e, antes mesmo das obras serem concludas, j mostram suas incongruncias com a realidade. No Rio de Janeiro, o que se faz lembra a reedio das obras do incio do sculo XIX na capital do Rio de Janeiro, quando Passos desejava transform-la na Paris dos trpicos. Novamente o Estado ignora a tradio e o conhecimento de uma populao e arbitrariamente obstrui o dilogo e a aplicao de formas alternativas que poderiam garantir o bem-estar sem precisar arrancar famlias do seu lugar de moradia, onde construram sua histria e memria. Todas as mudanas poderiam ter sido discutidas atravs dos espaos e canais institucionais criados para essa finalidade. No Rio de Janeiro chega-se estultice de anunciarem que as gndolas do telefrico do Morro da Providncia cpia das gndolas dos Alpes Suos. No preciso comungar de um nacionalismo nonsense para inferir que o melhor era produzir algo apropriado ao nosso clima e para uma regio bem prxima Baa da Guanabara.

    O desenvolvimento tambm tem transformado o Estado, que deveria ser o garantidor da efetividade da lei, no seu principal violador. Vejamos um exemplo: 80% da rea da Regio Porturia, local em que obras ocorrem, so pblicas. A legislao urbana determina que reas desse tipo devam prioritariamente ser usadas para a produo de habitao popular, mas a construo de unidades habitacionais populares escassa. Poderamos prosseguir com centenas de exemplos espalhados pelo pas, com caractersticas semelhantes e que suscitam as mesmas questes: qual o sentido dessas iniciativas e a quem elas servem?

    Concluo afirmando que a nova onda desenvolvimentista brasileira em uma era de capitalismo globalizado que preserva integralmente as supracitadas trs premissas que conformam o substrato da ideia de progresso desvanece

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    inteligncias e a diversidade em seu sentido mais amplo (Mill, 2010) e profundo. um desenvolvimentismo, como qualquer outro, que ignora a histria das ideias e a histria natural reas do conhecimento que nos mostraram o quanto o pluralismo cognitivo e a biodiversidade so essenciais para ainda estarmos vivos e em p. Deste modo, o desenvolvimentismo por aqui, com a sua arrogncia tecnocrtica acrescido do nosso legado autoritrio, insiste em abrumar ideias e prticas que possibilitem ao Brasil, despido de arrogncia, contribuir para outro projeto civilizatrio.

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    Referncias bibliogrficas

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    Texto recebido em maro de 2014.

  • Impactos do Complexo Industrial Porturio

    de Suape na Regio Metropolitana de Recife

    Heitor Scalambrini Costa

    Foto area do Porto externo de Suape

    CIPS/divulgao institucional

  • 30 Caderno de Debates 3

    Heitor Scalambrini Costa1

    Introduo

    A ideia de construir um porto que impulsionasse o crescimento econmico de Pernambuco j tem mais de 50 anos. Foi durante a dcada de 1960, no governo de Nilo Coelho (1967-1971), que se iniciaram as primeiras sondagens para a viabilizao desse projeto.

    No governo de Eraldo Gueiros, em 1974, foi lanada a Pedra Fundamental do Porto de Suape. No entanto, apenas em 1978, j durante o governo de Moura Cavalcanti (1975-1979), atravs da lei 7.763/78, foi criada a empresa Suape Complexo Industrial e Porturio (CIPS), para administrar o distrito industrial, o desenvolvimento das obras e a implantao e explorao das atividades porturias. Portanto, em novembro de 2014 o CIPS completou 36 anos de histria.

    O projeto inicial previa a implantao de uma unidade de refino e de estaleiro, baseado no modelo integrao porto-indstria, tendo o porto um perfil concentrador de cargas (hub port). Estudos de viabilidade datam da dcada de 1960, sendo o primeiro plano diretor elaborado a partir de 1973, e o porto passou a operar em 1983. Atualmente, o CIPS encontra-se em fase de expanso, contando com mais de 100 empresas em operao e outras 30 em fase de definies (refinaria, indstrias de produtos qumicos, metal-mecnica, alimentao, termoeltricas, naval, logstica, entre outras).

    Suape foi, desde seu incio, objeto de polmicas delimitadoras de fronteiras polticas. Como exemplo, em abril de 1975, economistas, socilogos, ecologistas, historiadores e gegrafos publicaram um manifesto contra o

    1 Heitor Scalambrini Costa professor da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Frum Suape Espao Socioambiental.

  • 31Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    projeto do Porto de Suape, chamado pela imprensa como o Manifesto dos Cientistas, idealizado pelo economista-eclogo Clovis Cavalcanti, tambm primeiro signatrio do referido documento2. Cabe destacar o carter revolucionrio e atual do manifesto, que tinha o objetivo de denunciar os impactos do empreendimento, no somente ambientais como sociais. Assim argumentava o texto em contraposio ao projeto.

    Pois bem, parece oportuno tornar pblico agora que a ideia de realizao do complexo industrial porturio de Suape no aceita pacificamente por todos os cidados que, alm de pagar impostos, se sentem responsveis pela elucidao de aspectos de interesse vital para a vida da populao pernambucana. (...) O que h de relevante a examinar no que toca o Complexo de Suape so variveis que envolvem, inclusive, uma apreciao baseada em critrios puramente econmicos, dentro do figurino do mais rigoroso raciocnio analtico, da significao em termos sociais do projeto.

    A partir de 1975, iniciam-se as obras para dotar o local de infraestrutura bsica que viria permitir o seu funcionamento porturio em 1984. Concebido para ser um polo atrativo de indstrias, o CIPS foi pensado como um projeto estrutural para promover o desenvolvimento regional. Inspirado nos exemplos de Marseille-Fos (Frana) e Kashima (Japo), o CIPS foi projetado para unir indstrias em torno de um porto3.

    , no entanto, na dcada de 2000, com o incio de alguns grandes empreendimentos, que o Complexo Industrial Porturio de Suape deslancha de fato. Entre os principais, temos: a Refinaria General Jos Igncio Abreu e Lima (conhecida como a Refinaria do Nordeste RNEST), produto de uma parceria entre o governo estadual, o governo federal e, inicialmente, o governo da Venezuela; a instalao da Transpetro, subsidiria da Petrobras; e do Estaleiro Atlntico Sul (considerado o maior do hemisfrio sul), entre outros empreendimentos.

    Em 1987, aps a desativao do Porto do Recife, o CIPS passou a atrair cada vez mais atenes para si, chegando a ser considerado um dos 11 portos mais importantes do pas em 1991, pela Secretaria Nacional dos Transportes, vinculada ao Ministrio da Infraestrutura.

    Localizado a 40 quilmetros da capital pernambucana, Recife, a gesto do Complexo realizada pela Empresa Suape, uma empresa pblica de interesse privado. O Complexo localiza-se em dois municpios pernambucanos, Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca. Todavia, seis outras cidades so consideradas

    2 Entre os intelectuais signatrios do manifesto encontram-se o ecologista Joo Vasconcelos Sobrinho (1908-1989), o socilogo Renato Carneiro Campo (1930-1977), o historiador Jos Antnio Gonsalves de Mello (1916-2002), o economista Renato Duarte e o socilogo Roberto Martins. Para a visualizao do manifesto ver o blog do economista Clvis Cavalcanti. Disponvel em: www.cloviscavalcanti.blogspot.co.uk/p/manifesto-suape.html; acessado em 26 de julho de 2012.

    3 Stio eletrnico do CIPS www.suape.pe.gov.br/home/index/php; acessado em 13 de maro de 2012.

  • 32 Caderno de Debates 3

    estratgicas e sofrem influncia indireta do Complexo: Jaboato dos Guararapes, Moreno, Escada, Rio Formoso, Ribeiro e Sirinham. A Tabela I mostra os 13 municpios da Regio Metropolitana (RMRecife) sob os quais Suape tem influncia, e os municpios estratgicos esto grifados.

    Em uma rea territorial correspondendo a 2,8% da superfcie total de Pernambuco, localizam-se os 13 municpios que compem a regio metropolitana de Pernambuco, com uma populao equivalente a 42% da populao estadual. Pela tabela I, verifica-se que os dois municpios onde esto localizados o Complexo, Ipojuca e Cabo de Santo Agostinho, apresentaram um crescimento no ndice de Desenvolvimento Humano Municipal no perodo 2000-2010, respectivamente de 26% e 20,3%. Todavia se mantm na faixa entre 0,499

  • 33Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    Caractersticas das populaes dos municpios integrantes da RMRecife 2010

    RMRMUNICPIOS

    TOTALPOPUL.* URBANA RURAL

    % POP.RELAO ESTADO

    REA TERRIT.KM2 **

    IDHM***2010

    (2000)

    NDICE DE GINI**** (%)

    2010 (2000)

    Abreu e Lima

    Araoiaba

    Cabo deSto Agostinho

    Camaragibe

    Igarassu

    Ilha deItamarac

    Ipojuca

    Itapissuma

    Jaboato dosGuararapes

    Moreno

    Olinda

    Paulista

    Recife

    So Lourenoda Mata

    RMR

    Escada

    Rio Formoso

    Ribeiro

    Sirinham

    94.429

    18.156

    185.025

    144.466

    102.021

    21.884

    80.637

    23.769

    644.620

    56.696

    377.779

    300.466

    1.537.704

    102.895

    3.690.547

    63.517

    22.151

    44.439

    40.296

    86.625

    15.268

    167.783

    144.466

    93.931

    16.993

    59.719

    18.320

    630.595

    50.197

    370.332

    300.466

    1.537.704

    96.777

    3.589.176

    53.964

    13.373

    34.003

    21.484

    7.804

    2.888

    17.242

    ----

    8.090

    4.891

    20.918

    5.449

    14.025

    6.499

    7.447

    ---

    ---

    6.118

    101.371

    9.553

    8.778

    10.436

    18.812

    1,07

    0,21

    2,10

    1,64

    1,16

    0,25

    0,92

    0,27

    7,33

    0,65

    4,29

    3,42

    17,48

    1,17

    41,96

    0,72

    0,25

    0,51

    0,46

    126,19

    96,38

    448,73

    51,26

    305,56

    66,68

    527,11

    74,23

    258,69

    196,07

    41,68

    97,31

    218,43

    262,116

    2.770,45

    347,26

    240,62

    289,5

    380,61

    0,679 (0,561)

    0,592 (0,429)

    0,686 (0,547)

    0,692 (0,582)

    0,665 (0,536)

    0,653 (0,569)

    0,619 (0,457)

    0,633 (0,507)

    0,717 (0,625)

    0,652 (0,511)

    0,735 (0,648)

    0,732 (0,648)

    0,772 (0,660)

    0,653 (0,530)

    ------

    0,632 (0,479)

    0,613 (0,420)

    0,602 (0,456)

    0,597 (0,436)

    0,45 (0,46)

    0,45 (0,53)

    0,53 (054)

    0,51 (0,58)

    0,48 (0,53)

    0,60 (0,59)

    0,50 (0,53)

    0,54 (0,55)

    0,58 (0,63)

    0,53 (0,50)

    0,55 (0,59)

    0,49 (0,52)

    0,68 (0,67)

    0,50 (0,54)

    ------

    0,46 (0,51)

    0,44 (054)

    0,50 (0,58)

    0,44 (054)

    Tabela compilada pelo prprio autor. Fonte: IBGE (2010), PNUD Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. * Populao total do Estado: 8.795.448 habitantes (2010).**rea territorial do Estado: 98.312 Km2 *** ndice de Desenvolvimento Humano Municipal. **** Usado para medir o grau de concentrao de renda.

    Tabela I

  • 34 Caderno de Debates 3

    de 2015) e, que, em pleno pico de construo, gerou cerca de 40.000 empregos. Esse empreendimento, que seria resultado de uma parceria entre a Petrobras e a estatal Petrleos de Venezuela S.A (PDVSA), hoje est integralmente a cargo da Petrobras; a Companhia Petroqumica de Pernambuco (Petroqumica Suape), cuja previso inicial para o funcionamento era o final de 2011, hoje previsto para funcionar em 2015, que conta com incentivos do Plano de Acelerao do Crescimento (PAC). Esse empreendimento liderado pela Petrobras Qumica S.A (Petroquisa) e, de acordo com nmeros da prpria empresa, a previso inicial era de mais de - 8.000 empregos durante a fase de construo e 1.800 quando estiver em funcionamento6; o Estaleiro Atlntico Sul, que empregou 4.000 trabalhadores durante as obras de construo, e est em operao desde 2009, resultado inicial de um consrcio entre os grupos empresariais Camargo Correia, Queiroz Galvo, Samsung Heavy Industries e PJMR. Tambm o estaleiro Promar faz parte dos grandes empreendimentos (figura 1) na regio. Esses empreendimentos se conjugam com outros, caracterizando a expanso econmica industrial de Pernambuco.

    6 Companhia Petroqumica de Pernambuco, Nossos Nmeros, disponvel em: http://www.pqspe.com.br/. Acessado em: 10 de junho de 2012.

    OCEANO ATLNTICO

    RECIFE

    SUAPE

    ALAGOAS

    PARABA

    CEAR

    PIAU

    BAHIAPERNAMBUCO

    Refinaria Abreu e LimaInvestimento de R$ 22.1 bilhes da Petrobrs com a venezuelana PDVSA, ter capacidade para processar 230 mil barris por dia. A obra deve terminar em 2013

    TransnordestinaCom 1.728km, a ferrovia vai ligar Suape ao Porto de Pecm (CE). O investimento de 1,3 bilho ser importante conexo do litoral com o serto nordestino

    TransposioA obra no rio So Francisco lever as guas do Velho CHico a 63 cidades do agreste. O projeto uma parceria do governo estadual com a Unio

    Siderrgica SuapeO complexo ganhar uma siderrgica para laminao de aos planos, o primeiro projeto do tipo na regio do Nordeste. A obra prev investimentos de R$ 1,5 bilho

    FiatA montadora iniciar a formao de um polo automotivo no Nordeste. Investir R$ 3 bilhes na nova fbrica em Suape, onde deve produzir 200 mil veculos ppor ano a partir de 2014

    Petroqumica SuapeInvestimento de R$ 3,7 bilhes, produzir polmeros com derivados gerados pela refinaria Abreu e Lima. A previso que viabilize a formao de uma nova cadeia txtil no Nordeste

    Estaleiro Atlntico SulMaior estaleiro do hemisfrio Sul, com capacidade de processar 160 mil toneladas de ao por ano, tem uma carteira de pedidos de R$ 8,1 bilhes

    AS NCORAS DO CRESCIMENTO Projetos em instalao que sustentam a expanso indita de Pernambuco

  • 35Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), o desemprego, em Pernambuco, caiu de 14,3% em dezembro de 2006 para 8,1% em dezembro do ano de 2010. No entanto, as empresas citadas, ainda na fase de construo, tm sido palco de tenses derivadas dos conflitos intrnsecos relao entre capital e trabalho, quer na rea trabalhista, na rea social e ambiental.

    Do total da rea do CIPS, ou seja, dos 13.500 hectares, cerca de 40% faz parte de Ipojuca, sendo os 60% restante parte da cidade do Cabo de Santo Agostinho. A rea realmente ocupada pelo CIPS denominada de Territrio Legal de Suape. J o Territrio Estratgico de Suape, mostrado na figura 3, compreende a rea de influncia direta e indireta e abrange as seguintes cidades: Cabo de Santo Agostinho, Ipojuca, Jaboato dos Guararapes, Moreno e Escada. Atualmente ampliado com trs outros municpios: Rio Formoso, Sirinham e Ribeiro.

    Plano Territrio Estratgico de Suape Diretrizes para uma Ocupao Sustentvel.

    A rea total que corresponde ao Territrio Estratgico de Suape 1.774,07 km2, que corresponde a 1,8% do total do territrio de Pernambuco. A populao total correspondia, at 2007, a 1.011.276 habitantes7, ou seja, 12% da populao do estado. As principais atividades econmicas desenvolvidas na regio so a agropecuria, o turismo e a indstria de transformao.

    A figura 2 mostra a participao dos municpios estratgicos de Suape no PIB do estado de Pernambuco para os anos de 2008, 2009 e 2010.

    7 Para um aprofundamento mais detalhado sobre o Territrio Estratgico de Suape, ver o Plano Territrio Estratgico de Suape Diretrizes para uma Ocupao Sustentvel, disponvel em http://200.238.107.83/web/condepe-fidem/caracterizacao-do-territorio; acessado em 26 de maio de 2012.

    10

    8

    6

    4

    2

    0

    200820092010

    Figura 2: Participao do PIB dos municpios estratgicos no PIB de Pernambuco para os anosde 2008, 2009 e 2010

    Fonte: Dados apresentados durante a Reunio da SBPC/2013 (http://pt.slideshare.net/CienciaHoje/apresentao-sbpc)

    SirinhamCabo deSanto Agostinho

    Escada Ipojuca Jaboato dosGuararapes

    Moreno Ribeiro Rio Formoso

  • 36 Caderno de Debates 3

    O Porto de Suape, parte integrante do Complexo Industrial Porturio Governador Eraldo Gueiros, em seu plano de desenvolvimento e zoneamento, destinou 450 hectares da Zona Industrial Porturia (ZIP) para a implantao de um cluster naval. So previstas realizaes de obras que incluem: dragagem de canal de navegao, aterro hidrulico, bota-fora ocenico de material imprestvel, construo de 7.000 metros de cais, que serviro aos futuros estaleiros a serem implantados na aludida rea. Parte das obras j foi realizada, o que sem dvida modificou substancialmente o cenrio daquele territrio, antes dominado pela atividade de pesca.

    O porto opera navios nos 365 dias do ano, sem restries de horrio de mars. Tem capacidade para atender a navios de at 170.000 tpb, e calado operacional de 14,50 m. Com 27 km de retroporto, seus portos externo e interno oferecem as condies necessrias para atendimento de navios de grande porte.

    A movimentao porturia cresce em ritmo acelerado. Em 2013, ultrapassou 12 milhes de toneladas de cargas, entre elas, os granis lquidos (derivados de petrleo, produtos qumicos, alcois, leos vegetais), com mais de 60% do total, granis slidos e a carga conteinerizada. A Tabela 2 ilustra o crescimento, nos ltimos anos, das atividades do porto.

    ANO GRANIS LQUIDOS

    Tabela 2: Evoluo da movimentao de cargas no Porto de Suape (milhes de toneladas)

    GRANIS SLIDOS CONTINERES TOTAL

    2010

    2011

    2012

    2013

    2014 (jan-jun)

    (1) lcool, leo de soja, leo combustvel, diesel, gasolina e querosene de avio. (2) Acar, trigo. (3) No est includa carga geral solta: veculos, chapas de ao e peas destinada a indstria. Fonte: Compilado pelo autor.

    4,126

    5,164

    5,648

    7,332

    4,711

    0,697

    0,756

    0,598

    0,662

    0,483

    3,838

    4,948

    4,193

    4,414

    2,389

    8,989

    11,004

    10,060

    12,701

    7,717

    (2)(1) (3)

  • 37Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    Impactos8 sociais e ambientais do CIPS

    O Complexo de Suape um bom exemplo da frmula imbatvel do capitalismo brasileiro, cujos protagonistas, em sua maioria, so ferrenhos defensores da livre iniciativa, traduzida dessa forma: o financiamento pblico, os lucros so privados e os custos advindos das externalidades negativas vo para o poder pblico.

    Expanso sem planejamento, crescimento econmico baseado em um modelo predador no inclusivo e devastao ambiental com indstrias sujas9 continuam sendo marcas do complexo de Suape. A atrao por indstrias altamente agressoras ao meio ambiente, aliada expulso de uma populao de mais de 15.000 famlias nativas, enseja uma ampla discusso sobre que tipo de desenvolvimento queremos, alm de respostas para questes como: para qu? E para quem?

    Como empresa pblica que gerencia o CIPS, o governo estadual e seus gestores adotam uma estratgia de que a destruio da natureza e dos modos de vida dos moradores da regio (pescadores, agricultores familiares) o preo que se paga pelo que chamam de desenvolvimento. Uma viso ultrapassada frente aos grandes desafios do sculo XXI. O que temos hoje o discurso em compensar e remediar as consequncias de medidas tomadas de acordo com um modelo que no leva em conta as pessoas, e sim prioriza os interesses econmicos.

    Esta situao fica clara no discurso de um ex-presidente da empresa Suape, atual Secretario Estadual de Planejamento e Gesto, Frederico Amncio. Em entrevista ao Jornal Folha de So Paulo (30/09/2012), declarou: Eles (moradores, posseiros?) so, sim, fatores de degradao ecolgica, porque retiram a vegetao natural. com esta lgica que se maneja a gesto do Estado.

    Para a implantao das empresas no Complexo foi necessrio remover, expulsar moradores, comunidades que se encontravam naqueles locais h dcadas sem que uma alternativa adequada de moradia tenha sido oferecida. Alm de uma devastao ambiental nunca vista no estado em to pouco tempo. Para as pessoas diretamente atingidas, ao invs do progresso to propalado pela propaganda oficial, a empresa Suape s tem deixado nus.

    Os procedimentos adotados para as remoes no correspondem ao marco internacional dos direitos humanos, que inclui o direito moradia adequada,

    8 Como bem chamou ateno o professor Clio Bermann em seu texto Para no falar mais de impactos, o termo impactos vem sendo utilizado de forma indistinta quando o correto seria apontar que determinada obra traz perdas, prejuzos, danos, desastres, expulses, expropriaes, desaparecimentos, privaes, runas, desgraas, destruies, de vidas e de bens, muitas vezes permanentes e irreversveis.

    9 So indstrias sujas aquelas da cadeia da indstria do petrleo e gs, termoeltrica a combustveis fsseis, estaleiros, entre outras.

  • 38 Caderno de Debates 3

    nem respeitam a forma como elas devem ocorrer. O direito informao, transparncia e participao direta dos atingidos na definio das alternativas e de interveno sobre as suas comunidades no foi obedecido. As pessoas muitas vezes foram expulsas, e quando receberam compensaes/indenizaes, essas foram insuficientes para garantir o direito moradia adequada em outro local. Em grande parte dos casos, no houve reassentamento onde as condies pudessem ser iguais ou melhores do que aquelas em que se encontravam. Apesar das promessas de reassentamentos, esses quando ocorreram se deram em reas distantes dos locais originais de moradia, prejudicando os moradores, que no tiveram assegurados os meios para garantir a sobrevivncia. No caso, reas de plantio para os agricultores familiares e o territrio necessrio para pescadores e marisqueiras darem continuidade a seus modos de vida.

    Difcil considerar que o CIPS apresentou avanos para Pernambuco, quando se analisam os impactos desse empreendimento para as populaes locais atingidas, e para os habitantes dos municpios do entorno do Complexo. Mas, para ser a redeno do estado , como muitos o esto tratando e divulgando, precisa avanar na criao de um novo modo de desenvolver, de distribuir renda, de garantir direitos e de preservar o meio ambiente. Um desafio que certamente no esta altura dos gestores que hoje comandam Pernambuco.

    Segundo Vainer,

    (...) A noo de atingido diz respeito, de fato, ao reconhecimento, leia-se, legitimao de direitos e de seus detentores (...) estabelecer que determinado grupo social, famlia ou indivduo , ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legtimo e em alguns casos como legal seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenizao, reabilitao ou reparao. (Vainer, 2008).

    O que se verifica que as chamadas polticas sociais, que tomam a forma de servios pblicos essenciais como: sade, segurana, transporte, energia, educao de crianas, jovens, adultos e idosos, habitao social, previdncia, cultura, etc., no so priorizadas. Embora os servios pblicos estejam disposio de toda a populao, somente os pobres dependem deles. As classes abastadas tm como contraparte servios anlogos prestados por empresas privadas.

  • 39Cidades, indstrias e os impactos do desenvolvimento brasileiro

    Principais demandas dos grupos impactados no CPIS

    Habitao

    De acordo com o IBGE, o Brasil tem 11,5 milhes de moradores em 3 milhes de domiclios localizados nessas reas. Considerando os critrios adotados, esse nmero provavelmente est subestimado. Os dados levantados10 nos ajudam a entender o fenmeno: a grande maioria dos assentamentos precrios est situada em regies metropolitanas, mais da metade no Sudeste, em cidades altamente dinmicas do ponto de vista econmico.

    Um dos maiores problemas da instalao de empresas no Complexo de Suape foi vinda de mo de obra de outras cidades, outros estados, sem que condies de moradia fossem oferecidas. Em particular, para atender o trabalho temporrio como a construo civil das edificaes.

    A Agencia de Planejamento de Pernambuco (Condepe/Fidem) estima um dficit habitacional de 38 mil residncias nos oito municpios estratgicos do Complexo. Este nmero poder atingir 85 mil at 2035, se o crescimento da economia e os investimentos em habitao continuarem no mesmo nvel do atual.

    Somente na rea onde est localizado o Complexo, nos municpios do Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, viviam 15.000 famlias nativas, hoje vivem em torno de 3.000. A maioria foi expulsa de suas casas, indo agravar mais a situao dos sem tetos na regio. Nesse processo de desalojamento, as indenizaes pagas so irrisrias para se adquirir outra residncia nas proximidades, o que leva a muitos a ocuparem terrenos pblicos.

    Enquanto isso, a Empresa Suape Complexo Industrial Porturio caminha lentamente nos projetos de construo de moradias para as populaes retiradas. Conforme declarao dos gestores, esta em avaliao projeto de construo de 2.600 casas como Programa Minha Casa, Minha Vida (Jornal do Commercio, 7/8/2011).

    O chamado Projeto Morador11, cuja previso era de investir R$ 200 milhes na construo de casas, mas que se arrasta h mais de oito anos, um bom exemplo da falta de interesse do Estado em relao questo da moradia.

    10 Os dados so provenientes da publicao Informaes do Censo de 2010, relativas aos aglomerados subnormais. A imprensa tem utilizado o apelido de censo das favelas para designar, de forma um tanto preconceituosa, o vasto universo dos bairros autoconstrudos por seus moradores, margem das regras que regulam construes e aberturas de loteamentos em nossas cidades.

    11 Compromisso assumido pelo governo do estado visando o ordenamento urbano com a consolidao de algumas das vilas residenciais existentes e a destinao de outras reas para abrigar os moradores que esto sendo expulsos das reas consideradas estratgicas para o complexo de Suape (Lei 13.175 de 27 de dezembro de 2006).

  • 40 Caderno de Debates 3

    Do lado da iniciativa privada, o Estaleiro Atlntico Sul props a construo de 1.328 casas para seus funcionrios, a chamada Vila Operria que no saiu do campo das promessas. As prefeituras dos municpios procuram ampliar seus programas habitacionais, todavia muito aqum da demanda, o que s faz aumentar o dficit habitacional na regio.

    As populaes rurais, moradoras no territrio onde hoje se localiza o Complexo, ao serem expulsas e desalojadas, acabam consolidando a existncia de assentamentos informais de baixa renda nas cidades circunvizinhas. Essas comunidades so as mais vulnerveis s violaes - do direito moradia.

    Verifica-se um aumento na quantidade de pessoas morando na rua e sem teto. No h um censo, mas j se observa nas cidades do entorno de Suape um nmero cada vez maior de pessoas que no tm condies de morar em local algum. A Tabela 3 apresenta uma estimativa do crescimento populacional no territrio do Complexo.

    Onde falta moradia, h especulao e inflao imobiliria. Os aluguis esto subindo e expulsando para longe os moradores dos bairros tradicionais. Este problema acarreta outro: o aumento de favelas em terrenos desocupados. Barracos e casebres surgem em reas de preservao, repetindo a ocupao desenfreada j conhecida das grandes metrpoles e que - elevou a quantidade de problemas de sade pblica e de degradao ambiental.

    Tabela 3: Estimativa do crescimento populacional no territrio de Suape

    LOCALIZAO2007 2010 2015 2020 2025 2030 2035

    ANO

    Cabo de SantoAgostinho

    Escada

    Ipojuca

    Joaboto dosGuararapes

    Moreno

    Territrio Estratgicode SUAPE

    RMR

    Pernambuco

    169.654

    61.459

    76.987

    719.136

    55.154

    1.082.390

    3.863.974

    8.848.948

    176.830

    63.230

    84.606

    778.330

    57.714

    1.160.710

    4.090.458

    9.249.342

    183.374

    64.846

    91.553

    838.312

    60.048

    1.232.133

    4.297.009

    9.614.484

    189.371

    66.327

    97.921

    881.790

    62.188

    1.297.597

    4.486.316

    9.949.160

    194.613

    67.621

    103.486

    925.033

    64.058

    1.354.811

    4.651.772

    10.241.661

    199.021

    68.709

    108.165

    961.390

    65.630

    1.402.915

    4.790.879

    10.487.585

    163.139

    59.850

    70.070

    66