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PAZ GUERREIRA O CAMINHO DAS DEZESSEIS PÉTALAS

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DEDICATÓRIA PÓSTUMA

ada palavra desta obra está imbuída do espírito, da marcante presença, mesmo na

ausência, e dos profundos ensinamentos de um grande homem, exemplo de cavalheiro, que soube praticar cada uma das virtudes que sempre se dedicou a ensinar a seus discípulos.

Verdadeiro guerreiro da paz, que dedicou sua vida às pessoas, pautando cada um de seus atos, do mais grandioso ao aparentemente mais insignificante, em profunda elegância e generosa altivez.

Não poderia dedicar esta obra a outra pessoa que não a meu professor, pai espiritual, exemplo de vida e Mestre no mais profundo sentido do termo, Michel Echenique Isasa.

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AGRADECIMENTOS

conclusão desta obra marcou o final de um importante trabalho e o início de um novo

ciclo, tendo contado com a colaboração de muitas pes-soas, que não posso deixar de mencionar.

Agradeço especialmente a minhas mestras, Beatriz Díez Canseco e Delia Steinberg Guzmán.

A Luzia Helena Echenique, por seu apoio incondi-cional.

A minha querida esposa, Giovanna Husseini, pela dedicação, compreensão e inspiração com que me brindou nas muitas horas de trabalho dedicadas a esta obra.

A Roberto Pompeo, discípulo, que esteve presente em todas as horas deste livro, tendo cada uma de suas linhas passado por seu crivo e lapidação.

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PREFÁCIO

ste livro foi escrito com um sentimento de profunda devoção, com o entusiasmo próprio de um guerreiro que, por amor ao seu

Mestre, se transformou em um artista e Mestre das artes marciais, prin-cipalmente das artes marciais filosóficas.

Um dos maiores sonhos desses especiais guerreiros é “vencer sem lu-tar”. Um sonho comum a homens e mulheres que na verdade guarda um conceito da marcialidade profundamente penetrado de conteúdo filosó-fico e humanista.

Você sabe o que é sonho? Pois Talal Husseini fala do sonho como “uma esfera onde homens e deuses se encontram. No sonho habita algo dos deuses e algo dos homens, os deuses através dos sonhos delegam seu poder, os homens são agraciados pela capacidade de seguir so-nhando, realizando e conquistando”. E este é o sonho de Talal e de seu Mestre Michel: a Paz Guerreira.

O que um guerreiro faz? Luta, conquista, avança, domina. Fundamen-talmente, protege os demais, que não têm em conta esta especial forma de encarar a vida e seus inúmeros desafios. Um guerreiro enfrenta todos eles, é um eterno inconformado com a injustiça, a falsidade, a corrup-ção, a irresponsabilidade e a ilusão.

Mas no mundo, tanto nas sociedades atuais, quanto no decurso da his-tória, eles não estão sozinhos. Encontram-se com homens e mulheres que também têm uma espécie de facilidade para os enfrentamentos e as lutas, embora nem sempre disponham de valor, inteligência e superiori-dade humana suficientes para lhes permitir abrir um acesso a uma porta interior, para justamente desenvolver todo o seu potencial guerreiro com vistas a essa superioridade humana que leva à paz e à concórdia.

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O autor deste livro é hoje um Mestre das Artes Marciais Filosóficas. Eu o conheci há muitos anos, ainda um adolescente, cheio de entusias-mo, vigor e amor pelas artes marciais. Foi o que o levou a conhecer o seu Mestre, Prof. Michel Echenique, que o formou desde então para uma trilha intensa de desenvolvimento marcial semeada através da filo-sofia à maneira clássica.

Assim, por meio dessa relação profunda entre Mestre e discípulo, Talal Husseini fala de Paz Guerreira e de Vencer sem lutar não apenas tratando de usar frases de impacto, mas sim trazendo conceitos filosófi-cos profundos que lhe foram ensinados e que ele levou como prática de vida. Agora, reuniu esses ensinamentos neste romance e nos presenteou, com total entrega, como forma de retribuição por tudo que recebeu e aprendeu com seu Mestre.

A Paz Guerreira é um livro sobre a necessária disposição e uso das virtudes guerreiras para todo aquele que se propõe a seguir por este ca-minho. Se queres a paz, então prepara-te para lutar por ela, ensinaram os mais sábios.

Muitas vezes, cremos ser necessário possuir armas para velar ou lutar, seja pela nossa segurança, pela Justiça, ou pela Verdade. Nesta obra, encontramos muitas e verdadeiras armas, como por exemplo: a virtude do Respeito. Devemos então nos armar, se realmente nos dispomos co-mo homens e mulheres idealistas e valentes protetores dos Valores da Humanidade, das sociedades e de cada ser vivo.

11ª Pétala – Respeito: “o Respeito é a virtude Cidadã. Não é possível construir uma civilização onde reine a ordem e a justiça sem dedicar muito respeito aos valores e à Convivência, sem o devido reconheci-mento e aceitação das tradições, dos valores do Estado, dos valores morais e dos conselhos dos sábios”.

Quando ocupamos muito tempo da nossa vida diária na luta pelos Ideais de Justiça e de Humanidade, às vezes, nos sentimos abater, can-

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sados, sem esperança. Mas recordamos que nas lutas e batalhas (tanto interiores quanto exteriores) devemos observar constantemente a nossa própria capacidade de autorrenovação durante a luta, e não deixar que o fogo que ilumina e arde dentro de nós se apague. Também não devemos permitir que a esperança de um mundo novo e melhor se dilua ou se esconda dos seres humanos, pois a esperança é outra das grandes forças que necessitamos proteger como guerreiros.

O autor nesta obra também nos enriquece com a alusão a mitos atem-porais – velhos contos de velhos Mestres guerreiros – como aquele so-bre a corda que comunica o céu com a terra. A tradição guerreira filosó-fica revela à nossa consciência algo fundamental que em geral tem sido esquecido, apagado da memória humana: que tudo ao nosso redor guar-da uma Ordem, que nada vem do acaso. Quando buscamos o melhor e o mais justo não podemos nos contentar apenas com uma busca horizon-tal, na medida em que ampliamos a busca teremos que recorrer a tudo que apontaram e ensinaram Mestres e Sábios de todos os tempos, e eles sempre apontaram para o alto, para o espírito que está detrás do Sol e que é a causa ultérrima de tudo.

“Não há poder sobre quem não teme” – este é outro conceito maravi-lhoso encontrado nesta obra. Aprender a lidar com o medo, conviver com ele, assimilá-lo, dominá-lo, é um dos grandes aprendizados que a trilha das artes marciais filosóficas nos lega insistentemente. Também um dos grandes filósofos de todos os tempos – Sócrates – dá-nos o seu ensinamento sobre a imortalidade da alma no diálogo Fédon. Devemos aprender a enfrentar a morte, dizia o filósofo. E, como guerreiros e filósofos, de quantas e diversas maneiras essa luta não se apresenta dia-riamente nas nossas vidas?

Toda a vida consiste em aprender a morrer, e aprender a fazê-lo com honra e dignidade, dizia Sócrates, que além de filósofo foi um grande guerreiro ateniense.

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A Paz Guerreira é um livro de profundos ensinamentos filosóficos, mas recheado com batalhas físicas, psíquicas e mentais, em que a exi-gência é manter-se atento e concentrado. Com uma trama estimulante, reativa nossa ação de potencial inteligente: física, psicológica, mental e espiritual, tanto individual quanto coletivamente. E isso é tremendamen-te estratégico, pois educar os seres humanos na mentalidade de sermos Um promove uma ação unificadora em que todos os movimentos serão de um só corpo. E isso é união, isso é eficiência.

Considero-me sua Irmã de Armas nesta vida, armas filosóficas, mo-

rais e pedagógicas. Nós lutamos por um Ideal de Sabedoria. E aquele velho orgulho guerreiro me preenche o coração, por conce-

der-me a honra de apresentar este livro, esta saga!

Luzia Helena de Oliveira Matos Echenique Diretora Nacional da Associação Cultural Nova Acrópole

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SUMÁRIO

Eixo do Poder 1ª Pétala: Humildade ............................................................................. 23 2ª Pétala: Admiração ............................................................................. 79 3ª Pétala: Força.................................................................................... 141 4ª Pétala: Liderança ............................................................................. 185 Eixo da Realeza 5ª Pétala: Obediência .......................................................................... 239 6ª Pétala: Nobreza ............................................................................... 277 7ª Pétala: Honra ................................................................................... 321 8ª Pétala: Cavalaria ............................................................................. 361 Eixo do Senado 9ª Pétala: Retidão .............................................................................. 403 10ª Pétala: Coragem ............................................................................ 437 11ª Pétala: Respeito ............................................................................. 477 12ª Pétala: Regulamento ..................................................................... 513 Eixo do Império 13ª Pétala: Paciência ........................................................................... 547 14ª Pétala: Valor .................................................................................. 583 15ª Pétala: Determinação .................................................................... 621 16ª Pétala: Destino .............................................................................. 669 

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TALAL HUSSEINI 25

1.

s dois exércitos distavam cerca de mil metros um do outro. À frente dos seus, perfilados, lanças em punho, imóveis, Sokárin

observava o rei adversário, que também permanecia imóvel. As tropas adversárias reluziam sob o Sol em suas armaduras completamente bran-cas. No exército de Sokárin, ao contrário, todos trajavam negro, da ca-beça aos pés.

Os exércitos se equivaliam em número e força. A batalha seria deci-dida nos detalhes, qualquer pequeno erro poderia ser fatal. Talvez por isso a demora na tomada de alguma iniciativa. Sokárin não enxergava em cores, somente em branco e preto.

Esse momento de expectativa gerava uma tensão crescente no campo de batalha. Todos os soldados, dos dois lados, só esperavam um gesto do seu líder para arremeter contra o oponente. O Rei branco levantou sua lança. Imediatamente Sokárin o imitou, como num espelho, já que usava a lança na mão esquerda. Praticamente juntos baixaram as lanças, em sinal de ataque. Sokárin, o Rei negro, reparou que nada ouvia do galope e dos gritos dos soldados. Tudo lhe parecia num ritmo lento, um completo silêncio.

Esse transe foi quebrado pelo estrondo produzido pelo encontro dos exércitos. O choque das armaduras se fez ouvir a quilômetros de distân-cia. Agora Sokárin sentia-se no fragor da batalha, gritos, de guerra e de dor, ecoavam por todo o espaço, membros decepados, sangue jorrando por todos os lados. Ajudava não enxergar cores, pois não é a todos que o vermelho do sangue faz bem.

O Rei negro manejava sua espada com destreza, buscando o Rei branco no campo de batalha. Podia distingui-lo dos demais de uniforme branco pelo estandarte que o acompanhava. O estandarte também o pro-

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curava, vinha em sua direção. Ambos pisavam os cadáveres: mais de metade de cada um dos exércitos já sucumbira.

Finalmente, os dois reis se encontraram frente a frente. A luta arrefe-ceu, como que numa trégua tácita. Abriu-se um círculo em torno dos monarcas. A cena era pitoresca, pois parecia uma dança diante de um espelho.

O duelo seguia ferrenho, nenhum lograva atingir o outro de forma de-finitiva, quando algo chamou a atenção de Sokárin. Ele olhou o céu na direção de um guincho que parecia ser de falcão. Foi bem menos do que um segundo de desatenção, mas o suficiente para que a espada do Rei branco lhe trespassasse o ventre, saindo nas costas junto à coluna verte-bral. Órgãos vitais foram atingidos. O golpe era fatal. Sokárin teve cer-teza quando viu seu sangue, vermelho, manchar o chão...

Pela primeira vez em sua vida, via uma cor. Ainda teve tempo de olhar ao redor e ver o exército negro recuar atônito e frágil, ante a morte de seu líder. Os soldados de branco guardavam silêncio, provavelmente esperando que se lhe esvaísse o último sopro de vida para soltar seu brado de vitória.

Prostrado na terra, com a espada cravada no ventre, fixava o seu al-goz, que retirava o elmo. Seu rosto... A última imagem que Sokárin viu foi seu próprio rosto no lugar daquele que o vencera...

Sokárin acordou ofegante, imediatamente levando as mãos ao ventre,

onde a espada entrara. Nada. Um pesadelo. Real, mas um sonho apenas. O velho Rei sentia o cansaço da batalha e as dores da sua idade avança-da. Seu coração palpitava dentro do peito. Ficou alguns minutos sentado em sua cama, até a respiração se normalizar. Estava confuso, procurava um sentido para aquele sonho, tão real, tão vívido...

Saiu do seu quarto para o terraço de onde dominava toda a capital. Estava envolto naquele tipo de solidão que só os monarcas conhecem. Vivia sozinho entre os homens. E agora, com mais de oitenta anos,

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aproximava-se sozinho da morte. Já havia algumas noites que não con-seguia dormir pensando na sua sucessão. A transferência do poder é sempre um momento delicado em qualquer organização. Num País, é um momento crítico. Pode ser a consagração e reafirmação das institui-ções ou sua degradação. O júbilo ou o padecimento do povo nos anos subsequentes.

Cogitava. Quase meio século de reinado. Os anos maravilhosos do início desse período não passavam de memórias distantes. O Rei já não se lembrava em que momento perdera o rumo, traíra sua própria nature-za e se deixara manipular por interesses que não levavam em conta os anseios do povo e, pior, dos deuses. Pode alguém governar afastado dessas diretrizes? Devia ter deixado o trono quando não teve mais ener-gia para fazer valer sua vontade... Mas não era tão simples assim...

Entretanto, esse sonho, esse pesadelo, o impressionara de tal forma que tudo lhe parecia parte de uma estranha realidade. Era como se acor-dasse de um sonho dentro de outro sonho, o sonho de outra pessoa... Os sentimentos que se lhe amalgamavam na alma eram intensos... Tudo mudava em seu coração. Sim, ele não podia mais comandar um exército negro. Se na sua vida levara o País em direção às trevas, não podia per-mitir que em sua morte elas tomassem definitivamente conta de tudo e subvertessem a ordem.

A noite estava escura como o breu. Lua nova. Estranhas energias es-tavam à solta no reino naqueles tempos, e aquela noite em especial era ainda mais lúgubre. Um calafrio percorreu a espinha do velho Monarca. O vento estava gelado. Silêncio demais. Uma paz ameaçadora. Da sua sucessão dependia o futuro do reino. Sim, aquele sonho o fizera enten-der: estava do lado errado e por isso vinha matando a si mesmo... Mas ainda havia tempo para mudar. A transição devia ser pacífica, e o pró-ximo rei um homem moral. A placa de pedra com o nome do sucessor gravado pessoalmente pelo Rei devia ser postada na estela em que figu-ravam os nomes de todos os soberanos que o antecederam e o seu. Essa placa ficava coberta com um lacre de metal, que só seria aberto quando

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da sua morte. A abertura se operava somente com duas chaves codifica-das. Uma era o sinete do Rei. A outra ficava com o chefe do Conselho dos Anciãos. Perto de todos, mas fora do alcance. Vigilância o dia todo, todos os dias. O Rei sentia que estava próximo o momento em que o nome ali depositado seria revelado.

O chefe do Conselho dos Anciãos era um nobre dos mais considera-dos de todo o reino, homem acima de qualquer suspeita. A placa era infalsificável, pois havia um teste alquímico, feito na peça antes de gra-vada e repetido depois de aberta a sucessão, o que tornava impossível que a substituição não fosse detectada. Poucas pessoas no reino sabiam desse procedimento. O sistema de indicação do sucessor fora mudado quando problemas ocorreram – uma única vez na história do País – mui-tos séculos antes, levando a uma guerra civil que durara quase dez anos. A experiência fora traumática para todos, e desde então as sucessões, apesar da tensão natural desses momentos, sempre correram normal-mente. O vento da noite esfriou ainda mais, trazendo Sokárin de volta de seus pensamentos à realidade de seu corpo alquebrado. Entrou nos seus aposentos para ali passar as horas restantes de sua insônia.

Urgia que a placa com o nome do sucessor fosse trocada... Só havia um nome possível para devolver o reino aos seus tempos de ouro... Sokárin já o observava havia algum tempo. O sonho lhe dava a coragem necessária para a mudança, mas precisava agir rápido, sua vida já não importava, o destino de todo o País estava em jogo...

2.

dia amanheceu sombrio. Como sombrio era Ofis, assistente do palácio, espécie de encarregado geral, a quem se atribuíam as

funções mais variadas, inclusive serviços duvidosos, que por sinal eram O

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os que mais lhe davam prazer. Seria difícil precisar sua idade, bem co-mo sua origem étnica. Homem de poucas palavras, ninguém no palácio se lembrava de alguma vez tê-lo visto sorrir. Mas cumpria suas tarefas com empenho e eficiência. Ofis parecia composto apenas de pele e os-sos, mas não que fosse absolutamente magro, havia um preenchimento sólido como madeira que lhe outorgava um aspecto de indestrutibilida-de. Não se sabia no palácio qual era exatamente a sua função ou cargo, mas isso jamais era questionado ou comentado. Melhor não se envolver com ele. Circulava o boato de que era violento, mas nunca foi visto en-volvido em qualquer altercação. Inspirava temor.

Não comungava desse temor Adaran, o Primeiro-Ministro, braço di-reito do Rei. Ao contrário, Ofis é que parecia temê-lo, talvez por reco-nhecer o seu poder dentro do reino. Adaran era um homem de educação refinada, sempre em absoluto controle de seus pensamentos e emoções. Transmitia a todos respeitabilidade e segurança. Conduzia os assuntos do Estado com mão de ferro, e todos sabiam que era praticamente ele quem governava desde que a saúde do Rei se deteriorara. Mas mesmo assim evitava o assunto da sucessão, demonstrando de forma clara que refutava completamente a ideia de substituir Sokárin, apenas não se furtando de dar sua contribuição às questões públicas se necessário.

Adaran estava sempre vestido de maneira impecável. Dominando vá-rios idiomas, transitava pelas mais altas cúpulas da política internacional com grande naturalidade. Exímio espadachim e lutador, fazia questão de deixar evidente seu repúdio pela violência, preferindo sempre que pos-sível as soluções diplomáticas para os impasses. Ao chegar ao Conselho dos Anciãos, foi abordado por um dos senadores:

– Sr. Adaran, comenta-se que o estado de saúde do Rei se deteriora rapidamente... Saiba que tem todo o meu apoio para a melhor condução dos assuntos do interesse do nosso reino, mesmo depois que Sokárin se for...

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– Senador, agradeço seu interesse pelos assuntos de Estado, mas cumprido meu papel neste governo pretendo dedicar-me às minhas em-presas, que estão negligenciadas desde que apoio o Rei. Ademais, Vossa Excelência pode estar tranquilo, pois Sokárin governa com muito pulso e ainda vai nos enterrar a todos. Agora, se me permite... – concluiu já se retirando em direção à mesa da chefia.

No Conselho dos Anciãos, reuniam-se os quarenta e nove senadores, que serviam como um órgão consultivo para o Rei, aportando com sua experiência e conhecimentos nas mais diversas áreas. O Chefe do Con-selho dos Anciãos era o Senador Rohel, que tinha a atribuição de Cus-tódio das Tradições. Era um homem de olhar sereno, mas firme, a quem o peso da idade avançada – era contemporâneo do Rei – não havia atin-gido ainda. Educado nas antigas tradições, o Senador Rohel não aceita-va com facilidade a decadência que o sistema educacional experimenta-va, assim como várias outras instituições de Estado. Talvez fosse um saudosismo injustificado, afinal não estavam os mais velhos sempre a pensar que as coisas e os jovens de agora eram piores do que os de an-tes? Iludindo-se dessa forma em seus pensamentos para ocultar de si mesmo as evidências, o ancião viu aproximar-se Adaran:

– Saudações, Senhor Primeiro-Ministro. – Saudações, Senador Rohel. Como vai a Sra. Inari? – Bem, obrigado, dentro do que se permite aos velhos... – Sua esposa conserva o vigor e a energia da juventude, assim como

Vossa Excelência. – Poupe sua diplomacia para quem acredita nela, Adaran, não com-

pensa gastar seus elogios com alguém que já está mais próximo do outro lado da existência do que deste... Mas vamos aos trabalhos?

– É claro, Senador. O Senador Rohel brandiu um antigo martelo de madeira maciça, lan-

çando-o por três vezes sobre um apoio de madeira com uma energia tal, de que se custaria a crer ele fosse capaz. Anunciou:

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TALAL HUSSEINI 31

– Senhores Senadores, está aberta a sessão! Como previamente anun-ciado, não há deliberações, destinando-se esta jornada à manifestação do Senhor Primeiro-Ministro, a quem passo desde logo a palavra.

Subindo ao púlpito, Adaran agradeceu meneando a cabeça: – Senhor Chefe do Conselho, senhores Senadores, como todos sa-

bem, a causa que me traz a esta plenária, a pedido do Rei, é, como todos sabemos, e não podemos nos utilizar de meias palavras neste foro, o estado de saúde debilitado de Sua Majestade, crendo ele mesmo que este ano será o último do seu reinado. É importante, pois, que todos en-videmos esforços para apoiar integralmente o escolhido, tendo em vista que a sua escolha foi amparada pela decisão sábia de nosso Monarca.

– Adaran, não há qualquer dúvida de que você será o sucessor – gri-tou um dos senadores, do fundo da assistência.

– Todos sabem que não tenho qualquer interesse nesse pesado encar-go, pois estou envolvido na política em razão do acaso e do senso de dever cívico que não me permitiu declinar do pedido de auxílio que me foi dirigido. Prefiro, portanto, nesta etapa de minha vida, ver-me livre das funções estatais, para dedicar-me aos meus assuntos pessoais. Entre-tanto, não poderei me furtar, se for esse o caso, de cumprir com o meu dever de cidadão, pois não me reservo o direito de abandonar minhas obrigações em função de minha felicidade pessoal.

Apupos avolumaram-se por todo o ambiente. Pelo menos dois terços dos presentes aplaudiam fervorosamente o cativante Primeiro-Ministro. Não havia dúvida de que ele era a pessoa indicada para conduzir o reino a uma nova era de prosperidade e pujança.

O Senador Rohel estava entre a minoria que não se manifestou diante das palavras de Adaran. O ancião não gostava do Primeiro-Ministro. Se lhe perguntassem que razões objetivas tinha para isso não saberia res-ponder, mas ao longo dos anos aprendera a ler as pessoas por algo além de seus atos e palavras. Algo em Adaran não lhe agradava.

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O Primeiro-Ministro entrou na carruagem que o aguardava, conduzi-do por Ofis, partindo rapidamente.

Adaran saiu do Senado e foi à Real Sociedade, que era um local onde

a elite da Capital se encontrava para a prática de esportes. O lugar ficava num antigo castelo, com muitos jardins e bosques. Oferecia também banhos a vapor e ambientes de reunião e conversa, em que questões importantes do poder e assuntos intelectuais eram tratados. Adaran tinha direito a uma revanche contra Haggi Eitan, que o vencera dois dias an-tes, depois de um duelo equilibrado com espadas. Por isso gostava de lutar com Haggi: os outros membros da Sociedade não eram páreo para ele. Kadriel ainda o fazia suar um pouco, mas não o vencia. Haggi era diferente. Tinha um estilo mais clássico, de movimentos suaves, rápidos e precisos. Boa defesa, era difícil de ser atingido. Seria uma boa luta. Hoje estava motivado.

No entanto, mais uma vez, Haggi Eitan venceu. Perder a luta não era tão ruim, pois isso incentivava Adaran a melhorar ainda mais sua técni-ca. Ruim era encarar o sorriso irônico e desdenhoso de Haggi, mas era impossível zangar-se com ele, tal o seu carisma. Não havia quem não gostasse dele. Daí o seu sucesso na carreira diplomática. Ainda assim, nunca se podia saber se falava a verdade. Ocultava muito bem seus pen-samentos e emoções. Era um jogador.

Depois do duelo, sentavam-se na adega para conversar sobre os ru-mos da política mundial e tomar um vinho. Uniu-se a eles Golan, filho mais velho do Rei Sokárin. Era frequentador da Real Sociedade e das rodas de conversa, mas nunca lutava contra Adaran ou Haggi por ser de nível muito inferior. Seria uma humilhação para ele e um aborrecimento para os outros. O mesmo nível mediano que tinha com as espadas se refletia em sua vida. Era médio em tudo. Competente, é verdade, em

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qualquer atribuição que lhe fosse designada, mas sem iniciativa para ir além. Muitos achavam que seria o sucessor natural do Rei. Ele tinha certeza.

– Então, senhores – disse, já sentando-se à mesa, com ar satisfeito – como foi o combate?

– Por que tanta alegria, Golan, já está dando seu pai como morto? Ou sabe alguma coisa que nós não sabemos? – ironizou Haggi

– Golan ficou sem graça: – Não, de forma alguma… Só estou contente em ver os amigos… – Não precisa ficar sem graça, foi apenas uma brincadeira. Ademais,

todos sabem que a saúde do Rei já não é das melhores, e é muito prová-vel que ele realmente não passe deste ano.

– Não diga isso, Haggi Eitan, meu pai ainda viverá muitos anos. – Se os deuses assim desejarem – intercedeu o Primeiro-Ministro –

você deverá suceder seu pai com sabedoria, Golan. Terá de mim todo o apoio que necessitar.

– Homens como você, Adaran, são sempre muito importantes para qualquer governante ter por perto.

– Haggi assumiu novamente seu ar provocativo: – Mas o que o faz ter tanta certeza de que será o sucessor de Sokárin,

Golan? – Não tenho certeza – disse, sem convicção – nunca se pode ter certe-

za, mas meu pai me preparou para isso, sempre me passou toda a sua experiência e ensinamentos necessários para reinar. Sei, sem falsa mo-déstia, que sou capaz de reinar.

– E é mesmo, Golan. Você será um grande soberano – aquiesceu Adaran.

– E você um grande Primeiro-Ministro, não é? – completou Haggi. – Eu já sou o Primeiro-Ministro, Haggi. – Sim e quer continuar a sê-lo… Ou quem sabe uma promoção...?

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– Os cargos e títulos não me interessam. – Mas o poder… – Inclusive tenho certeza de que Golan precisará de um Ministro do

Exterior competente como você, Haggi. O filho do Rei assentiu com a cabeça: – Vocês sabem que podem contar com a minha ajuda, mas nunca se

esqueçam de uma coisa: eu não sirvo a governos, sirvo ao Estado. Por isso preferi a carreira diplomática aos cargos de administração. Mas sempre é bom deixar as portas abertas.

– Bem – disse o Primeiro-Ministro – estou na minha hora. Creio que nosso próximo duelo ficou para a semana que vem, certo Haggi? Até logo, Golan.

– É claro. Até lá. – Até logo. Haggi e Golan conversaram mais um pouco sobre as questões que

envolviam a sucessão e depois se foram, cada um pensando como os outros lhe poderiam ser úteis.

3.

s têmporas de Mulil latejavam. O Sol redondo o fustigava na-quele dia em que o céu estava de um azul quase branco, tal era

a claridade. O suor que escorria da testa para dentro dos olhos atrapa-lhava sua visão, o calor atrapalhava seus pensamentos, as palmas de suas mãos estavam lanhadas pelas pedras pontiagudas. Ele era um pe-queno inseto sobre a superfície gigantesca da rocha. A parede fazia um ângulo exato de noventa graus com o solo. Em alguns pontos a inclina-ção chegava a ser ligeiramente negativa. A temperatura ambiente, que

A

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beirava os cinquenta graus, era ainda mais alta na pedra, o que não tornava sua missão nem um pouco confortável.

Aos catorze anos de idade, Mulil ainda não tinha a força de um ho-mem feito, porém não era mais um garoto frágil. Acompanhando as mudanças por que passava seu corpo, vinham as da mente. Seus pen-samentos não paravam, a energia que pulsava em seu peito era difícil de controlar. Ele queria conquistar o mundo...

Mas antes precisava conquistar a si mesmo, eram as palavras de seu Mestre, que o observava ao longe. Sua presença era o que mantinha Mulil naquele momento, pois já pensara mil vezes em desistir. Mas ao se imaginar fracassando perante seu Mestre Montuhotep, pensava mil e uma vezes em continuar. E prosseguia sua lenta escalada em direção ao ninho. Cada movimento tinha de ser muito bem estudado, sob pena de funesto destino, rumo às pontas escarpadas das rochas lá embaixo. Seu coração estava acelerado pelo esforço e pelo medo da altura. A cora-gem está dentro de você, dizia Montuhotep, e ela se exterioriza pelo valor. Seja corajoso e mostre-se valente. As palavras ecoavam em sua cabeça.

Seus braços já não aguentavam, não tinham mais força alguma, eram velas queimadas. Só a vontade o sustinha. Procurava concentrar-se em não perdê-la. Já havia duas horas que a única coisa que olhava era a rocha, cada pequena fresta ou vão onde se agarrar, cada saliência, cada reentrância, rocha, rocha e mais rocha, e um objetivo: não era dominar o cume, mas dominar o falcão... Assim lhe havia dito Montu-hotep, sem maiores explicações. Disse que no momento certo ele enten-deria... Mulil não tinha tanta certeza de sua capacidade de entendimen-to, mas muito cedo aprendera uma coisa: a confiar no seu Mestre, caso contrário não estaria ali, a mais de setenta metros do chão duro, sem qualquer proteção senão o aprendizado que tivera até então.

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O guincho às suas costas lhe fez gelar o sangue, seu coração bateu descompassado, o turbilhão de pensamentos que povoava sua mente cessou como num passe de mágica, para dar lugar a um único pensa-mento: procurar um apoio na parede que lhe permitisse olhar para o seu oponente. Conseguiu.

O primeiro guincho fora emitido num voo de reconhecimento. Agora a ave arremetia contra Mulil. Ver o que antes ouvira não lhe aumentou em nada a segurança. Desejou nunca se ter virado e apenas ter espera-do a morte sem ter que a encarar. Sua reação foi procurar pelo Mestre, que distava dele cerca de duzentos metros em linha reta pela hipotenu-sa que fecharia o triângulo com a parede e o chão. Foi como se numa fração de segundo tivesse ficado cara a cara com o Mestre. A figura esguia, de elevada estatura, vestindo uma túnica branca que parecia imune ao pó e à areia, a cabeça ornada com uma espécie de coroa com uma pedra amarela na frente, em torno do pescoço um colar de contas do qual pendia um escaravelho de lápis-lazúli, o encarou de tal forma que Mulil imediatamente preferiu o falcão.

Olhou mais uma vez na direção dos guinchos que se aproximavam rapidamente junto com seu emissor. Mas o olhar de Mulil já não era o mesmo, era um olhar de guerreiro, um olhar capaz de descortinar o Universo... Esse olhar encontrou as pupilas alongadas do falcão, que de imediato mudou sua postura. Aparentemente nada mudara, pois os guinchos continuavam a ser emitidos, e a ave ainda vinha em sua dire-ção, mas Mulil sabia, acreditava que algo havia mudado. Ergueu seu braço esquerdo, deixando o antebraço em posição horizontal.

O falcão parou com seu bico curvo a poucos centímetros do rosto de Mulil, os olhos cravados nos seus, as garras cravadas em seu braço, firmemente, como se daquilo dependesse sua vida. Coragem, pensou Mulil, superando o medo que sentia e suportando a dor aguda, que pa-

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recia irradiar-se em choques elétricos ao longo de seu corpo, tal sua intensidade. O cheiro férreo do sangue chegou às suas narinas...

Entretanto, a sensação que tomou conta do discípulo foi de paz, uma paz profunda, mas delicada. Uma paz que dependia da sua postura pa-ra se manter. Qualquer deslize, qualquer demonstração de debilidade, poderia ser o fim. A ave facilmente o despregaria da rocha, lançando-o no vazio...

Mas Mulil sabia que isso não aconteceria, olhou com ternura para o falcão e soube... ele seria seu aliado, para sempre... O falcão soltou seu braço e alçou voo, descrevendo um oito perfeito no céu branco, para desaparecer sobre o deserto...

4.

adriel acordou suado, pela agitação e pelo calor do deserto do seu sonho. Levantou-se, lavou o rosto com água gelada, foi até

a janela. A vista era privilegiada: dominava toda a cidade até as colinas do lado oposto. Os primeiros raios da aurora transpassavam a neblina que cobria as casas e parte dos edifícios, tingindo-a de amarelo-ouro. Kadriel divagou por longos minutos, aguardando que a coroa solar apontasse no horizonte e pensando que se aproximava o dia em que go-vernaria a cidade, depois o Estado e ainda o País. Ele retinha seus pen-samentos quando estes queriam por vontade própria ir além do País. A política era difícil, mas Kadriel confiava nas pessoas que o cercavam, e elas confiavam nele. Ele era um político promissor, bom caráter, às ve-zes até um pouco inocente. Mas era determinado e honesto, o que lhe conferia crédito para, bem assessorado, atingir seus objetivos.

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Um dos primeiros pássaros da manhã riscou o céu, trazendo à mente de Kadriel lembranças de sua infância. De modo involuntário, levou a mão direto ao antebraço esquerdo, como sempre fazia, afagando as cica-trizes que obtivera havia muito tempo. Três pequenos riscos de aproxi-madamente dois centímetros cada um, paralelos, sendo dois alinhados e o do centro mais avançado. Completando a marca um quarto risco quase idêntico aos outros do lado exatamente oposto do antebraço.

Kadriel lembrou-se de uma tarde na escola. Ele tinha dez anos de ida-de. Estava com seus amigos inseparáveis Bakar, Haggi e Dhara. Deso-bedecendo as determinações dos professores, afastaram-se da atividade indo em direção às montanhas. Em certa altura pararam, em dúvida so-bre a continuidade da expedição. Haggi não queria continuar, Kadriel e Bakar discutiam sobre os prós e contras de prosseguir ou retornar. En-quanto se perdiam em dúvidas, Dhara tomou a dianteira e prosseguiu dizendo sem se voltar:

– Espero vocês lá em cima, caso resolvam vir, é claro. Os garotos se entreolharam e sem dizer mais nada a seguiram. Chegaram até o topo num local que dava para um penhasco. Os qua-

tro se deitaram de barriga para baixo, apenas com a cabeça para além da beirada. Ali permaneceram olhando os detalhes da parede escarpada, que devia contar uns oitenta metros de altura. Cada um pensava em suas coisas, quando Dhara viu um ninho a aproximadamente dez metros abaixo de onde estavam. Propôs:

– Vejam, é um ninho de falcões, aqui há um caminho na rocha… Kadriel a reteve: – Não, deixe que eu sigo à frente, pode ser perigoso. E sem deixar muita margem à argumentação, ultrapassou-a em dire-

ção ao ninho. Ela o seguiu. Bakar a secundou. Haggi permaneceu no topo, aguardando qualquer contratempo. Prosseguiam pela encosta len-tamente, estudando cada movimento, pois qualquer deslize poderia ser

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fatal. A concentração era total. Foi quando um guincho agudo cortou o silêncio. O falcão que defendia seus filhotes arremeteu contra os impro-visados escaladores. A inquietação tomou conta de todos. Haggi gritou, Bakar bateu em retirada pelo mesmo caminho por onde tinha descido. Dhara o seguiu. Somente Kadriel permaneceu estático, mas não de me-do, ele estava tranquilo, não sabia bem por que mas estava tranquilo.

O falcão voou em direção a Kadriel. Todos gritaram, mas ele teve o impulso de enrolar sua blusa no braço para se proteger. O pássaro conti-nuou sua arremetida, mas quando estava próximo do rapaz seus olhares se cruzaram. Foi um momento único, que Kadriel jamais esquecerá. O tempo pareceu parar naquele instante, e antes que ele tivesse a chance de qualquer reação a ave pousou em seu braço. E cravou seus olhos nos dele, fixamente. Da mesma forma que suas garras afiadas trespassavam o tecido da blusa para se cravarem em sua pele. Kadriel sentiu o calor do sangue que encharcava o tecido que envolvia seu braço, entretanto não entrou em pânico, ao contrário, foi tomado de intensa serenidade. Sustentou o olhar do falcão. Ambos tiveram um instante de união. Todo o som do universo desapareceu. O infinito os envolveu naquele pequeno espaço de tempo…

O falcão soltou então suas garras e alçou voo, descrevendo no céu um oito deitado e desaparecendo no horizonte. Foi só então que Kadriel pôde ouvir de novo os sons do mundo e dentre eles os gritos de Bakar, que escorregara pela encosta em sua fuga, ficando preso em uma delica-da árvore, que se soltava na medida em que ele se debatia.

Dhara procurava ajudá-lo, mas não tinha força para alçar seu corpan-zil. Kadriel aproximou-se, então, para unir forças com Dhara; Haggi estava paralisado de medo, mas ao ver que o esforço dos dois amigos não era suficiente, somou-se a eles para, juntos, conseguirem resgatar o prisioneiro do abismo.

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Todos, já em segurança, seguiram em direção à escola. O silêncio que os envolvia era sepulcral. Ninguém pronunciou palavra em toda a des-cida, mas aqueles momentos permaneceriam indeléveis na memória de todos eles. O silêncio os unia mais do que quaisquer palavras que pu-dessem pronunciar. Entretanto, era indisfarçável que todos olhavam para Kadriel com estranheza. A mesma estranheza que pautava vários episódios de sua vida: certa vez, antes de começar a praticar artes mar-ciais, foi cercado por oito garotos na escola, que queriam roubar seu lanche. Kadriel atravessou essa barreira humana sem que nenhum dos garotos pudesse tocá-lo. De outra feita, foi surpreendido por um grande cachorro que escapou de uma casa, quando estava prestes a ser atacado fixou seu olhar no do cão, que desistiu do seu intento. Quem quebrou o silêncio foi Dhara:

– Deixe-me ver como está seu braço. Ele, como que em transe, estendeu seu braço para a menina. Ela de-

senrolou a blusa que recobria o ferimento, empapada de sangue já meio seco. Eram três cortes de um lado do antebraço e mais um do lado opos-to, não muito profundos, mas o suficiente para algum sangramento.

– Dói? Ele respondeu negativamente com um gesto de cabeça. – Mas ainda assim é melhor lavarmos o ferimento para evitar uma in-

fecção. Kadriel assentiu, deixando-se conduzir pela suavidade de Dhara. O Sol que aparecera em sua plenitude por sobre o horizonte retirou

Kadriel de suas memórias. Ele ainda afagava o braço onde o falcão pou-sara naquela tarde da sua adolescência e ainda sentia o perfume suave de Dhara, no lenço que guardara desde então e que lhe trazia doces lem-branças. Nunca chegou a lhe dizer o quanto ela era importante para ele. Naquele mesmo ano do episódio com o falcão, ela se mudara com sua família para o exterior. Lembrava-se da última vez que a viu, acenando

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um adeus. Seus olhares se cruzaram e tiveram a certeza de que voltari-am a se encontrar. Talvez por isto até hoje não tivesse encontrado uma companheira definitiva: nutria esperanças de um dia rever Dhara... Mas esse dia demorava a chegar.

Aos vinte e oito anos, Kadriel já era conhecedor de diversas técnicas de combate e uso de armas. Seu interesse pelo assunto se devia à vonta-de de dominar seus medos e entender aqueles fatos estranhos que o acompanhavam desde a infância. Conseguiu com isso controlar seus impulsos, muitas vezes açodados e até violentos, mas não lograra domi-nar seus medos e tampouco entender-se a si mesmo.

Quanto a seus outros companheiros de infância, Haggi Eitan ficara afastado por alguns anos em que estudava no exterior para a carreira diplomática, que agora seguia com bastante sucesso. Apesar da pouca idade, Haggi já fora adjunto de diversas embaixadas em países impor-tantes, bem como já participara de missões diplomáticas de suma rele-vância para a economia do País. Desde que voltara, mantinham contato constante até mesmo porque, como Kadriel, Haggi estava estreitamente ligado à administração atual, sobretudo ao Primeiro-Ministro.

Bateram na porta. Kadriel era chamado por seu amigo inseparável Bakar, com quem jamais perdeu o contato e que ainda era seu fiel com-panheiro de tantas batalhas. Eles eram aguardados no Ministério. Parti-riam em seguida para o interior.

5.

adriel estava ansioso, pois à tarde teria uma audiência com o Rei. Não fazia a menor ideia de por que fora convocado, o que

o deixava ainda mais nervoso. Teria cometido algum erro grave no exercício de suas funções no Ministério? O Ministro Doran, sob cujo

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comando se encontrava não gostava do trabalho. Em verdade, pouco aparecia no Ministério e quando o fazia era para dar entrevistas ou rece-ber os louros por algum projeto bem sucedido no qual ele naturalmente não tivera qualquer participação. Kadriel, apesar de ser apenas o segun-do homem no Ministério, era quem realmente conduzia as ações. Mas ele não buscava méritos nem reconhecimento, acreditava no que fazia e na importância dos trabalhos desenvolvidos sob a sua orientação.

Quando o encarregaram da tarefa provavelmente esperavam o seu fracasso. Seria uma pá de cal em suas pretensões de ascensão política. Um retumbante fracasso já no início de sua vida pública. O Rei insistira em sua indicação, mesmo contra a vontade do Primeiro-Ministro, que por nutrir grande simpatia por Kadriel, achava que era muito cedo para ele exercer um cargo de tal magnitude que poderia prejudicá-lo se não tivesse êxito em sua execução. Mas como o Rei fora irredutível nesse ponto, Adaran lhe prestou apoio decisivo para que Kadriel conseguisse superar os obstáculos, sem o qual, com certeza, teria realmente fracas-sado.

Mas agora o Ministério era um sucesso. O povo conhecia Kadriel e lhe dedicava muito apreço, mas não tanto quanto ao Ministro, que sem dúvida era a cabeça pensante que concebia e viabilizava todos aqueles trabalhos sensacionais, que tantos benefícios traziam à população mais pobre do Reino.

O edifício do Ministério era da antiga dinastia. Tinha mais de cinco séculos de idade. A entrada portentosa apoiada sobre grandes colunas de mármore. No exterior da parede frontal, estátuas de mármore dos go-vernantes da época do Império, em tamanho natural. O último deles, que antecedera o pai de Sokárin na direção do País, era o que mais chamava a atenção de Kadriel, que todos os dias não se furtava de parar à frente da estátua durante uns cinco minutos, permanecendo estático diante dela, como se esperasse que o Imperador Gur Medhavin lhe falasse. E

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de fato o artista que concebera aquela estátua o fizera em momento de grande inspiração, parecendo faltar apenas um sopro para que a obra deixasse seu pedestal e fosse retomar seu lugar no trono, trazendo de volta os anos de ouro do Império.

O rosto da estátua era impressionante: tinha feições serenas, boca reta de lábios finos, nariz adunco que não podia ser classificado como pe-queno, orelhas pequenas coladas ao crânio e os olhos... pareciam os de uma águia, com as sobrancelhas ligeiramente franzidas sobre o nariz, fitavam o infinito... Kadriel sentia ao mesmo tempo admiração e opres-são diante de tamanho poder. Naqueles minutos diários, sonhava com o dia em que os homens-águia retornariam para conduzir as gentes, mais uma vez, em direção ao Sol...

Bakar também permanecia estático dois passos atrás de Kadriel, todos os dias. Não pensava as mesmas coisas, nem via os mesmos homens, pois eram muito grandes para ele. Mas sabia que iria aonde seu amigo fosse e esmagaria qualquer um que tentasse feri-lo. Não era difícil crer nisso ao ver Bakar. Era ao menos vinte centímetros mais alto que Kadriel, que não era baixo. Sua cabeça quadrada ligava-se ao corpo através de um cilindro mais largo do que ela. Isso que poderia ser cha-mado de pescoço alargava-se ainda mais na base para soldar-se aos om-bros, largos o suficiente para que quem o visse de longe não pensasse que ele tinha mais de dois metros de altura. Como sua cabeça, a visão geral de Bakar era a de um quadrado. Uma cabeça quadrada sobre um tronco quadrado do qual pendiam braços roliços. Não era musculoso, seus braços, como suas pernas, eram cilindros de grande diâmetro. Ao vislumbrar tal estrutura física não seria possível imaginar que se moves-se com tamanha agilidade e rapidez, desafiando a física e a lógica.

A inteligência não era a principal arma de Bakar, mas gostava de de-monstrar sua força física, brandindo o punho cerrado, que era quase do tamanho de uma cabeça de uma criança.

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De fato, um único golpe daquele gigante certamente privaria um de-savisado da existência. E, apesar dessas dimensões colossais e do aspec-to rústico, Bakar era um grande coração. Provavelmente ele mesmo não sabia que era possuidor de uma virtude encontrada em poucos seres humanos: pureza. E lealdade. Não haveria cão mais fiel ao seu dono do que o gigante era aos seus amigos, sobretudo a Kadriel.

Depois que Kadriel saiu de sua contemplação, dirigiu-se ao interior do edifício. Bakar o acompanhou em silêncio, que Kadriel quebrou co-mo que pensando em voz alta:

– O que o Rei quererá comigo? – Por certo parabenizá-lo por seus feitos no Ministério, ou até lhe dar

uma promoção. Quem sabe um ministério só para você... – respondeu o amigo.

– Não, o Rei nem sabe o que faço por aqui. Pensa, como todos, que o Ministro é o autor de todos os sucessos. E isso de fato não me importa. Só interessa que o trabalho esteja sendo feito de maneira correta e tra-zendo bem-estar para o povo.

– Você está errado Kadriel, foi o Rei quem insistiu em colocá-lo nes-ta posição. Ele pode estar velho, e ter cometido erros na condução do País, mas não é tolo. Ele vê mais do que nós, e por isso é o Rei.

– É, você pode ter razão... Mas ainda assim não consigo imaginar que assunto terá comigo.

– Aguarde e saberá. Bakar tinha sempre essas respostas curtas e diretas, de uma lógica ir-

refutável, pela sua simplicidade. Kadriel afundou-se no trabalho para que o final da tarde chegasse

logo. Kadriel estava havia vinte minutos sentado no corredor do palácio re-

al, aguardando que o arauto o anunciasse ao Rei. Não que a audiência estivesse atrasada, ele é que havia chegado bem adiantado. Aquela con-

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vocação repentina o surpreendera e por mais que se esforçasse não con-seguia sequer vislumbrar qual seria o assunto tratado. Mas estava com sua melhor roupa de gala. Só estivera perto do Rei três vezes, sempre em cerimônias, junto com muitas outras pessoas. A sós, cara a cara, nunca. Por isso era normal que seu coração palpitasse meio descompas-sado, por mais que procurasse manter sua respiração tranquila.

O jovem desistiu de prestar atenção ao tempo e levantou-se para as-sistir ao pôr-do-Sol de uma das janelas. Alguém dera pinceladas hori-zontais de amarelo-dourado sobre o azul intenso. Eram faixas irregula-res, mas que continham harmonia perfeita, de uma perfeição que jamais poderia ser traduzida pela mão humana, por melhor que fosse o artista. O arremedo de natureza nunca chegaria aos pés da obra original, da obra de Deus...

O arauto anunciou seu nome. O tempo tem dessas coisas, passa mais rápido quando nos esquecemos dele. Kadriel empertigou-se, respirou fundo e dirigiu-se para a porta do salão real. O visitante aproximou-se do trono em que estava sentado o Monarca, ajoelhando-se a dez passos de distância. Dois soldados da Guarda Real ladeavam o trono e outros dois ficavam à porta. Mais uma pequena tropa de cinquenta homens estava estrategicamente distribuída pelo palácio. Eram todos homens de elevada estatura, escolhidos um a um pelo Capitão da Guarda, que era homem da mais absoluta confiança do Rei, que naquele momento e qua-se sempre estava à sua direita. Usavam couraças peitorais negras, como também eram negros os mantos que levavam sobre os ombros, as calças e as botas. Eram os soldados mais bem treinados do Reino, sempre esta-vam no mínimo em dois. Constituíam uma força de elite temível.

O Rei fez sinal para que Kadriel se aproximasse. Os guardas perma-neceram impassíveis. Ao chegar próximo do trono, que estava dois de-graus acima do chão, Kadriel prostrou-se novamente, beijando o sinete real. O Rei levantou-se com alguma dificuldade e dirigiu-se lentamente

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a uma das janelas do salão, fez sinal para que Kadriel o seguisse. O Ca-pitão da Guarda fez o mesmo, mas os outros três guardas restaram imó-veis. O Rei apontou para fora da janela, instando o rapaz a olhar. Assim permaneceram alguns minutos, até que o Monarca quebrou o silêncio:

– Você vê este pôr-do-Sol? – Sim, Majestade, é claro. – Não pergunto se você o enxerga. Pergunto se o vê. Kadriel sentiu-se aliviado quando o Rei prosseguiu antes que respon-

desse, mesmo porque não sabia o que dizer: – Enxergamos com os olhos. Qualquer pessoa que não é cega faz is-

so. Mas ver é para poucos... Isso é feito com a consciência. O quadro pintado nesta janela não é simplesmente composto por nuvens dispostas de determinado modo pelo vento, coloridas pelos reflexos do Sol que se esconde por detrás do horizonte, sobre um fundo azul, que é o céu que vemos todos os dias. Não. É a obra de Deus. Este pôr-do-Sol a que as-sistimos juntos neste momento jamais se repetirá em todo o Universo infinito, neste mundo ou em outros.

O Rei fez sinal para o Capitão sair com seus homens. Sabia que ele obedeceria essa ordem a contragosto pois não gostava de deixar Sokárin sozinho com quem quer que fosse. Kadriel não chegou a notar nada no semblante do soldado. Os dois ficaram sozinhos. Mas Sokárin não se moveu, continuou olhando o ocaso, até que no céu só restavam tons rosados do astro maior. Kadriel ficou estático todo esse tempo, que não foi mais do que alguns minutos, mas curiosamente sua tensão e sua an-siedade desapareceram.

O Soberano parou então diante de um dos muitos quadros que cobri-am todo o entorno das paredes do salão real, que retratava um homem de olhar aquilino.

– Você sabe quem é este, Kadriel? – Sim, Majestade, é o Imperador Gur Medhavin.

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– O último governante do Império. – Eu sempre admiro sua estátua na entrada do Ministério. Parece ter

sido um grande homem. – E foi. Um grande homem numa época de grandes homens. Hoje,

nem entre os homens pequenos conseguimos ver muitos grandes ho-mens. Seus antecessores foram ainda maiores, mas já escapam à dimen-são que podemos conceber. Por isso você sequer consegue olhar suas estátuas. Já pensou nisso?

– Na verdade não, mas de fato nunca olho para as estátuas dos outros imperadores, apenas para a dele.

– Você está cogitando o porquê desta convocação, Kadriel – cortou o Rei, mudando repentinamente de assunto – não imagina o que eu teria para discutir com você. Eu sei, eu sei... O assunto que o traz aqui é o mais importante que poderia haver: o futuro do País, a sucessão...

Kadriel estremeceu. O que poderia ele opinar numa questão capital como essa? Mas o tom do Rei não era de brincadeiras, ao contrário, era grave. Kadriel aguardou.

– Nós temos um momento muito difícil à frente, que é a transição de governo. Não importa o que você diga, meus dias estão no final. O no-me que gravarei na placa extraída da “Pedra dos Mil Reis” e depositarei na estela será o do novo soberano: Kadriel Vahan.

A mensagem demorou muito entre os ouvidos e o cérebro de Kadriel. A sensação era de que se tratava de outra pessoa. Quando o sentido foi percebido, Kadriel empalideceu, sentiu seu ser esvaindo-se pela planta dos pés. As pernas amoleceram, o coração enfraqueceu sua batida quase a ponto de parar, e apesar de não ter dúvidas quanto ao que havia escu-tado ainda assim não acreditava. Pensou em mil frases, em respostas, em negativas, em desculpas, pensou até em lançar-se porta afora em desabalada carreira. Mas ainda que suas pernas o obedecessem, não poderia fazê-lo, pois o Rei o segurou firme pelos dois ombros e cravou os olhos reais dentro dos seus:

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– Kadriel, já o tenho observado há muito tempo. Não se esqueça de que fui eu que o nomeei para o cargo em que está, apesar das oposições de muita gente. Portanto, sei muito bem o que estou fazendo. Você é o meu sucessor – decretou.

Depois de alguns segundos Kadriel pôde responder, com voz fraca e

hesitante, ainda sem estar completamente recuperado do impacto daque-las palavras:

– Majestade, obviamente jamais argumentaria contra as suas deci-sões, mas serei a pessoa mais indicada? Nunca tive, nem tenho preten-sões dessa natureza...

– E é precisamente isso que o faz adequado. Você está fora da luta pelo poder. Realiza um excelente trabalho no Ministério. O povo pode não saber, mas eu sei que o Ministro Doran só faz aparecer em público e colher as glórias pelo trabalho que você realiza. No entanto, isso nunca o impediu de continuar trabalhando.

– Mas, Majestade, e seu filho Golan? Muitos julgam que ele seria o seu sucessor natural.

– Sim, Kadriel, inclusive ele mesmo, suponho, mas a sucessão num reino não é questão hereditária e sim de um código interno. O dirigente deve reunir as virtudes necessárias para a condução do povo. Além dis-so, Golan já não é mais um jovem, e será preciso tempo e energia que só um jovem tem, para enfrentar o porvir de nosso País.

E continuou, adotando um semblante mais sério: – Mas não pense que governar é uma benesse! Ao contrário, é um sa-

crifício, um sacerdócio. Você não terá mais vida pessoal, não terá mais amigos, correrá riscos, terá de compor com os interesses dos mais diver-sos grupos, terá de identificar o mal quando ele se aproximar de você por todos os lados, e, mais importante, terá de fazer o que eu em muitos momentos não consegui: resistir-lhe.

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TALAL HUSSEINI 49

– A tarefa que Vossa Majestade me anuncia está além das minhas forças.

– As tarefas que se nos deparam nunca estão além das nossas forças. São do nosso exato tamanho. Kadriel, você deverá estar preparado. Es-tou articulando para que a transição se passe sem grandes transtornos, pois há forças que se irão insurgir contra a alteração que farei na estela, mas se isso ocorrer, lute. Disso depende o futuro da nação. Você deverá enfrentar quaisquer desafios que se interponham entre sua chegada ao trono e esse futuro. Não se trata de poder ou de querer fazer, trata-se de um dever. E não esqueça, você deve governar para o povo e para os deuses, deve ser a ponte entre o céu e a terra.

– Sim, Majestade. – Não preciso dizer que este assunto deve ser mantido no mais abso-

luto sigilo até o momento adequado. Aproveite o tempo que ainda me resta para se preparar para as duras provas que o aguardam. Agora, pode ir.

Kadriel ajoelhou-se, beijou o sinete real, deu três passos atrás, virou-se para a porta e caminhou com passos firmes, sem olhar para trás. Se o tivesse feito, veria um olhar de satisfação no rosto do Rei.

6.

okárin dirigiu-se ao Templo Maior, cujos sacerdotes eram os encarregados de guardar a Pedra dos Mil Reis, da qual eram ex-

traídas as placas em que cada governante gravava, com a escrita ensina-da nas tradições, o nome do seu sucessor, para ser agregada à estela que continha os nomes de todos, desde o início do Império. O nome ficava velado até sessenta dias depois da morte do Rei, quando terminava o

S

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período de luto com a cerimônia de abertura da placa e coroação do novo Monarca.

Todas as placas eram retiradas dessa mesma pedra, à qual somente os sacerdotes do Templo Maior tinham acesso. Depois, em uma cerimônia secreta, a placa de pedra passava por um tratamento alquímico, dentro do Templo, que lhe conferia características peculiares, impossíveis de ser copiadas. Era então entregue ao Rei, que gravava pessoalmente o nome do seu sucessor, fixando-a na estela e cobrindo-a, em uma ceri-mônia que era do conhecimento de todos, mas que o Rei realizava sozi-nho, de portas fechadas. A placa só seria aberta após a sua morte, ou por ele próprio caso resolvesse alterar o nome do sucessor, como faria ago-ra. Neste caso, a placa com o nome anterior seria destruída por completo alquimicamente. Depois de revelado o sucessor, os sacerdotes faziam um teste na placa de pedra, certificando que era a mesma gravada pelo Monarca. Apesar da grande segurança de que gozava a estela, este era um teste final que decretava com absoluta certeza a autenticidade deste objeto cerimonial, e por conseguinte da sucessão.

Todo o procedimento de troca do nome do sucessor se passava de forma reservada. O Conselho dos Anciãos, os Ministros e a população eram informados, mas não participavam de nada. Era um período de solidão do monarca. Quando Sokárin anunciou a solicitação da pedra ao Templo Maior, houve um pequeno sussurro na câmara, mas todos se resignaram. Somente um observador muito atento, como era o Senador Rohel, teria notado a sombra que perpassou o olhar do Primeiro-Ministro. Muito rapidamente suas feições voltaram ao normal, ninguém mais percebeu sua contrariedade. Golan, o filho do Rei, não sabia se ficava feliz ou preocupado com a notícia. Teria ele somente agora ad-quirido a confiança do pai, que resolvera gravar seu nome na placa? Ou estaria retirando seu nome para inserir outro?

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Sokárin retirou-se escoltado pela Guarda Real, que nunca o abando-nava. O assunto da sucessão novamente tomaria conta do reino. Apesar da idade avançada do Rei e do fato de que a qualquer momento uma sucessão seria necessária, o tema não era muito debatido, pois causava uma certa apreensão. As pessoas preferiam acreditar que o Rei viveria para sempre... Mas uma troca da placa, apenas cinco anos depois da última troca. Seria a quarta placa gravada por Sokárin em seu reinado. A primeira logo que assumiu o trono, como era de praxe. A segunda somente trinta anos depois, devido, segundo todos presumiam, ao pro-vável sucessor ter antecedido a Sokárin na morte. A terceira mais dez anos depois, pelo mesmo motivo. E agora a quarta, cinco anos depois, no quadragésimo quinto ano de reinado, por motivos que só o Rei co-nhecia.

Nenhum possível sucessor havia morrido. Os mais cotados eram Golan e Adaran. Outros nomes também eram cogitados nos corredores do poder e nas ruas do País, mas os nomes mais fortes eram de fato es-ses dois.

7.

notícia da troca de sucessor era inequívoca. Um homem de capa preta, com a cabeça coberta, de forma que seu rosto não

podia ser visto, cruzou rapidamente a cidade. A situação era emergen-cial.

O homem certificou-se de que ninguém o observava e entrou na velha casa em ruínas. Ninguém nas redondezas se aventurava por ali. Uns diziam que era mal-assombrada, outros que era antro de marginais e desocupados.

A

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52 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE

A grossa camada de poeira sobre o chão e alguns restos de antigos móveis indicavam que nenhuma alma viva passava por ali havia muito tempo. Tudo que era feito de tecidos, como as cortinas e estofados, ha-via sido roído pelos ratos. Os cupins tomavam conta do que foram sóli-dos móveis, bem como das vigas da casa e do assoalho. Era arriscado transitar naquele fantasma de casa. Mas o vulto avançava a passos segu-ros, como se soubesse de cada tábua confiável e de cada armadilha. Abriu um alçapão obscuro, que jamais seria encontrado por quem não o conhecesse, dava acesso a uma escada íngreme que desaparecia na pro-fundeza de sombra.

O ser da noite prosseguiu, chegando a uma sala ampla, de forma re-tangular. Diferentemente do resto da casa, não havia qualquer resquício de pó naquele recinto. O pé-direito teria uns cinco metros, seis colunas regularmente dispostas, três de cada lado sustentavam o teto, todo pin-tado com afrescos. Eram imagens terríveis, de pessoas em grande dor, sendo torturadas, feridas, outras já mortas e desmembradas, cabeças decepadas, seres monstruosos e toda sorte de figuras bizarras. A ilumi-nação era provida por várias tochas que não soltavam fumaça, uma vez que o cômodo não tinha janelas ou qualquer outra abertura para o exte-rior. A ventilação era um mistério, já que não se via nenhum duto de ar ou abertura que pudesse servir para esse fim. E de fato o ar era pesado ali dentro. O chão era de pedra polida, formando vários desenhos de estranhas mandalas, círculos e linhas, determinando algum tipo de ma-pa. Numa das extremidades da sala, havia uma espécie de altar, sobre o qual estava um recipiente côncavo.

Uma voz potente tomou conta do ambiente, fazendo até mesmo a pe-dra vibrar. Não era uma voz humana, era distorcida:

Surgiram do nada duas figuras encapuzadas, em mantos brancos, por-tando um terceiro manto, de cor púrpura. Estenderam-no para o homem, que o vestiu e com um gesto de braço determinou às figuras que saís-

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sem. Subiu ao altar e conferiu o conteúdo do recipiente, tocando o dedo indicador no líquido e levando-o aos lábios. Tudo certo. O vulto acen-deu uma chama sob o recipiente que continha o sangue, pronunciando algumas palavras numa língua ininteligível. Abriu uma caixa que estava colocada sobre o altar e começou a retirar alguns objetos e colocá-los um a um dentro do líquido quente, que começava a exalar um odor fér-reo. Eram ossos, alguns pareciam de animais, outros... Continuou a pro-ferir fórmulas mágicas naquele idioma obscuro, cada vez em voz mais alta. Ora mexia o líquido com um instrumento longo, espécie de colher, ora levantava os braços, em invocações negras. O ar se tornou ainda mais pesado. O odor insuportável parecia não incomodá-lo. Uma vibra-ção caótica pareceu tomar conta do lugar, o homem entrou numa espé-cie de transe. Uma figura começou a formar-se na superfície de san-gue... O rosto de um homem, de barba e cabelos compridos e desgrenhados. E os olhos... negros como o mais profundo dos abismos. Aqueles olhos eram... o nada... A imagem se desfez.

– Por que me chama?! Ainda não é hora... – Sim, Mestre – respondeu o homem, curvando-se, respeitosamente –

mas é que alguns fatos novos precipitaram os acontecimentos. Teremos de tomar algumas providências imediatas, e não quis fazer nada sem ouvir seus conselhos sábios...

– Você precisa vir até aqui e me ouvir para saber que Sokárin deve morrer?!

O vulto pareceu surpreso, mas antes que dissesse qualquer coisa a voz prosseguiu:

– A sucessão... O nome que estará na estela que o Rei pretende gravar não é do nosso interesse. Precisamos evitar que a troca aconteça, e a única maneira de fazê-lo você sabe muito bem qual é...

– Sempre poderíamos tentar dominar o sucessor e fazer dele um jo-guete em nossas mãos. E caso não concorde, ele pode morrer.

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– Não subestime a capacidade de Sokárin. Ele não é tolo. Nós o do-minamos por muito tempo, mas a proximidade da morte parece ter cau-sado alguns efeitos inesperados. Ele vai nomear um jovem, e um rei jovem que morre repentinamente gera muitas suspeitas e investigações. Já um rei idoso... não levanta tantos questionamentos. Se o nome inscri-to naquela placa chegar ao trono, poderá tornar-se muito perigoso.

– O Senhor já sabe qual é o nome...? – O nome não importa, se a placa nunca chegar à estela. Nós sabemos

o nome que lá está, e é este que deve permanecer. Se houver a troca, o novo indicado terá apoios sólidos, e outro ainda mais importante está chegando.

– O senhor se refere a... O lugar todo tremeu, dando a impressão de que iria ruir. A voz assu-

miu um tom aterrorizador: – Sim! Nunca ouse pronunciar seu nome na minha presença, assim

como ele não pronuncia o meu... Ele virá certificar-se de que a sucessão correrá como ele quer. Você tem pouco tempo.

– Sim, Mestre, todas as providências serão tomadas. O Rei nunca en-tregará a placa. E se matarmos os possíveis candidatos a estar na pla-ca...?

– Não seja tolo! Isso despertaria muitas suspeitas e investigações. Concentre-se nas minhas ordens e procure não pensar por você mesmo. Agora vá!

A vibração caótica se acentuou até parar repentinamente. O vulto caiu sobre os joelhos, prostrado, arfando. Aquele ritual sugara suas energias. Os contatos com seu Mestre eram sempre assim. Sentia-se um fantoche nas mãos daquele ser malévolo. Os auxiliares de branco entraram, o ajudaram a se levantar, retiraram sua túnica púrpura e desapareceram. O homem deixou a casa rapidamente.

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8.

Templo Maior era um dos edifícios mais antigos do País. Fora ampliado e reformado várias vezes. A construção original da-

tava de antes do período do Império. Já ninguém podia precisar a época. Trazia a magnitude das antigas civilizações. A nave central, que era parte da construção original, com dimensões colossais. A sua abóbada era sustentada por quatro estátuas gigantes, de formas já desgastadas pelo tempo, o que tornava impossível ver em detalhe suas feições, mas tão sólidas quanto nas priscas eras em que foram concebidas. Os quatro colossos erguiam a abóbada nos braços estendidos acima da cabeça. Com mais de quarenta metros de altura, cada uma delas era esculpida em um único bloco de pedra. Arquitetos, arqueólogos, historiadores e outros estudiosos de todo o reino gastavam anos a estudá-las e milhares de páginas a tentar explicá-las, o que não era possível sem as chaves adequadas.

Desembocava na abóbada o salão principal, que tinha aproximada-mente cento e cinquenta metros de comprimento por oitenta de largura. O pé-direito contava por volta de dez metros. Em frente a cada uma das paredes mais longas havia uma fileira de colunas com um metro e meio de diâmetro cada uma e faces de leão nos capitéis. O teto era pintado com belos afrescos do tempo do Império. A entrada do salão era por uma das extremidades, enquanto na outra, sob a nave numa parte mais alta, estava a estela que continha as placas com os nomes de todos os monarcas, desde o primeiro Imperador, e a placa velada com o nome do sucessor. Quatro soldados montavam guarda em torno da estela, em turnos de quatro horas, durante as quais permaneciam absolutamente imóveis, sendo dois deles rendidos a cada duas horas.

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Nos espaços entre as colunas havia estátuas, a começar pelos deuses patronos do País no fundo do recinto, na abóbada, prosseguindo com seus dirigentes em direção à porta, dos mais antigos para os mais recen-tes. O espaço reservado a Sokárin estava de frente para a estátua de seu pai, que o antecedera no trono.

Ao fundo, grandes estandartes com os símbolos do Reino pendiam do teto. Um tapete vermelho ia da porta ao altar. Em dias de cerimônia, vinte arautos postavam-se ao longo do tapete logo na entrada, dez de cada lado, formando um corredor com as trombetas das quais pendiam os estandartes reais em versão menor. As trombetas soavam um toque marcial, as portas se abriam em duas folhas, quatro soldados de negro entravam em formação de dois por dois, marchavam até o altar e ladea-vam a estela, rendendo os que ali estavam.

As trombetas soavam novamente, e o arauto anunciava o Chefe do Conselho dos Anciãos, e todos os demais senadores, seguidos dos mi-nistros de estado, e depois pelos funcionários mais importantes de cada ministério. Conforme iam entrando, as pessoas permaneciam cada vez mais distantes do altar. Kadriel entrava junto com os funcionários dos ministérios, postando-se já na segunda metade do salão. Por fim, entra-vam os convidados, na sua maioria de famílias ilustres do Reino. Todos vestiam longas túnicas claras, ou brancas ou beges, que era o traje apro-priado para essas cerimônias.

Um toque curto das trombetas fazia cessar os alaridos do salão. Al-guns bedéis entravam no salão e, com uma agilidade que só podia ser fruto de muita prática, enrolavam e recolhiam o tapete vermelho que todos os quinhentos presentes tinham pisado e ato contínuo estendiam outro igual, porém novo e limpo. Novo toque, sobre o silêncio. As luzes do recinto se apagavam, restando apenas a iluminação proveniente de tochas presas às colunas, o que dava um ar de antiguidade e tradição ao

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local. Todos sentiam forte comoção. Uma música suave de coral soava entoando um refrão que se repetia em idioma antigo.

O toque das trombetas anunciava então a entrada do Rei. Todos se postavam com o joelho direito em terra durante toda a lenta passagem do Rei pelo tapete vermelho, até sua chegada ao altar. O Chefe do Con-selho dos Anciãos o aguardava, beijava o sinete real e recebia um sinal para se levantar, seguido por todos os presentes. Então, o Monarca vol-tava-se para o público e abria a cerimônia, que, para muitos, era apenas forma, ou um evento social, mas para Kadriel era o que havia de mais real na vida, fora dali é que estava a ilusão. Kadriel estranhamente sen-tia-se mais vivo durante aqueles momentos cerimoniais do que na sua vida quotidiana. Era transportado a um estado de espírito que não con-seguia reproduzir fora dali. Ficava revigorado, a ponto de esquecer por completo que seria o seu nome o encoberto na estela...

Kadriel perdia-se em suas lembranças e pensamentos. Sempre que podia ia até o Templo Maior e lá permanecia meditando, orando, obser-vando as estátuas, sozinho, salvo pelos imóveis guardas da estela. Pen-sava que já era hora de muitas coisas mudarem no País. Os tempos de grandeza e glória dos antepassados deviam ser restaurados. Kadriel es-tava imbuído de um forte espírito de humanidade, disposto a dar sua vida pela civilização que estava e pela civilização que ainda estava para ser.

De repente, Kadriel sentiu-se desfalecer pela epifania daquele mo-mento e certamente cairia se não tivesse sido sustentado com firmeza por alguém que surgiu ao seu lado. Ao olhar para o lado, Kadriel depa-rou-se com a imagem do Imperador Gur Medhavin. Ao olhar com mais atenção, viu que não se tratava exatamente do Imperador:

– Eu conheço o senhor…? – Todos conhecem a todos, só não se lembram... – respondeu o ho-

mem, com um sorriso sincero.

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Kadriel assentiu, sem entender muito o que ele quis dizer. Mudou de assunto:

– Foi o senhor quem me escorou. Obrigado. Não fosse isso teria des-maiado. Há momentos em que a vida parece maior do que podemos suportar. O senhor me entende?

– Sim, entendo. É sempre bom poder ajudar, e meu trabalho é de cer-ta forma ajudar as pessoas a não caírem. E se caíram, ajudá-las a se le-vantar.

Kadriel sentiu com aquele homem de olhar austero, mas ao mesmo tempo suave, uma conexão que excedia os limites do tempo. Não sabia explicar, mas queria continuar aquela conversa:

– Bem, muito prazer, meu nome é Kadriel Vahan. – Sim, eu sei. Ravi – fez uma pausa – Medhavin. – Medhavin...? O senhor quer dizer... como o Imperador? – Sim, meu avô, Gur Medhavin. – Foi um grande guerreiro. – E, como todo grande guerreiro, conquistou a paz... Essa frase gerou um estranho efeito em Kadriel: ao mesmo tempo em

que sentia seu peito vibrar pela força do heroísmo guerreiro, sentia uma paz aquietadora em seu coração.

9.

m vulto se esgueirava pelas vielas escuras da cidade. Aquela noite era de um silêncio absurdo. Nem os gatos davam suas

voltas habituais. Até mesmo os grilos e os sapos haviam aderido ao pacto tácito de não produzir ruído. Porque os animais sabem quando a noite pertence a outras criaturas e permanecem então em suas alcovas. O vulto prosseguia apressado. Parecia antever alguma coisa.

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Surgiu sabe-se lá de que entranhas da terra um bêbado a trançar as pernas em direção ao vulto resmungando no seu linguajar truncado pelo álcool o que devia ser um pedido de dinheiro ou ajuda. Ousava quebrar o pacto de silêncio daquela noite de lua nova. Mostrava nas ruas a sua presença ultrajante, seu hálito fétido, seus andrajos imundos, mas apro-ximava-se de um ser ainda mais baixo do que ele, um homem, sim, que não pedia licença aos demônios da noite para transitar no submundo.

O bêbado aproximou-se demais... o suficiente para ver o rosto sob o capuz, mas somente por alguns segundos. O vulto debruçou-se sobre o corpo inerte cuja existência já havia abandonado por conta de uma esto-cada muito precisa de lâmina finíssima que mal deixava um ponto de sangue nos trapos sujos. Mais um ser que não faria falta alguma ao mundo e que teria, de qualquer modo, morrido de frio, de fome, ou por alguma doença ocasionada pela própria sujeira, sendo sepultado como indigente. O ato bárbaro não aplacou o ódio que corroía aquele corpo, mas descarregou ainda que momentaneamente a sua tensão.

O vulto chegou a uma porta discreta batendo de maneira ritmada co-mo fosse um código pré-avençado. A porta se abriu deixando-o passar a uma sala de pé-direito baixo e iluminação fraca:

– Minha encomenda – disse o visitante inusitado, em tom seco. O outro deu-lhe as costas passando por uma porta induzindo o vulto a

segui-lo. Estendeu-lhe um frasco contendo um líquido transparente. – Vai funcionar? – Alguma vez já falhei? – e acrescentou – E meu pagamento? Tive

alguns gastos extras... O vulto buscou algo no bolso de seu casaco. Tirou um pequeno paco-

te de pano e colocou sobre a mesa. O outro o apanhou, ávido. Seus olhos brilharam arregalados sobre as moedas de ouro.

O olhar metálico do visitante não transparecia qualquer traço de hu-mor. Foi a última imagem gravada na retina do pobre homem. A fina

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lâmina o privou da sua triste existência. O vulto guardou o frasco com o líquido e apanhou o embrulho com as moedas, desaparecendo porta afora.

10.

adriel ainda não se recuperara daquelas palavras, que o atingi-am de maneira inesperada. Faziam-no pensar, cogitar. Nunca

lhe havia ocorrido de entender os imperadores ou governantes em geral como guerreiros, pois sempre associara guerreiros à idéia de soldados, batalhas, armas, jamais paz... Perguntou:

– Mas um guerreiro suportaria todas as tensões que o poder impõe? – Um guerreiro flutuaria nas caldas do poder. Seria o canal puro do

poder universal. – Mas não seria facilmente corrompido por ele? – Não é o poder que corrompe, o poder liberta e ilumina. Quando o

homem se corrompe é porque perde o canal do poder e da sabedoria. Um guerreiro sabe disso e luta todos os dias para sacar o véu da igno-rância que corrompe o homem. Portanto, onde homens comuns se cor-rompem, o guerreiro resiste – girou o olhar em torno do salão: – você pensava neste salão cheio, num dia de cerimônia, ao observar todas es-sas pessoas, diga-me o que vê.

– Vejo pessoas comuns querendo algo não comum. – As pessoas comuns veem tudo de forma comum e não sabem como

conquistar algo diferente porque estão sempre com a mente no passado ou no futuro. O guerreiro vê tudo de forma especial porque vive o pre-sente. Para um guerreiro, sentar-se, caminhar, tomar banho, ver o Sol e as estrelas são sempre atos especiais, porque vive cada momento como

K

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se fosse o último. A consciência posicionada no momento presente abre as portas da realidade. Só quem conhece essa realidade tem o verdadeiro poder para governar.

– Digamos que eu pudesse ver o presente, e a realidade se apresentas-se, qual seria o primeiro ensinamento que o poder universal me apresen-taria?

– A humildade. Surpreso com a resposta, Kadriel perguntou: – Mas a humildade não é expressão de caráter servil, baixa elevação,

fraqueza? – Ocorre que esse sentido foi retirado de contexto com o passar do

tempo. O homem de poder é aquele que serve aos deuses, aos Mestres de sabedoria, e ante eles se prostra com baixa elevação, serve com hon-ra, ciente de sua fraqueza ante a força que está naqueles. Um guerreiro é humilde ante os Mestres, a cujos pés faz seu juramento de servir para além de suas forças com senso de dever e com alegria no coração. Pe-rante seus iguais, é forte, determinado e destemido. Isto é o guerreiro: humildade e entrega aos Mestres, e poder ante seus iguais. Por que o mar é tão grandioso, tão profundo e tão poderoso? Porque decidiu ficar pelo menos um pouco abaixo de todos os rios do mundo.

– Então posso tornar-me rapidamente poderoso e invencível por meio da humildade?

– Querer as coisas com rapidez denota vaidade, pois tudo tem seu tempo e seu ritmo. Ademais, é importante saber em primeiro lugar que o poder não é do homem, e em segundo lugar que vencer não significa exatamente o que você está pensando. Não se vence no aspecto pessoal. Toda obra deve ter em vista os valores da alma: nobreza, bondade, ver-dade e justiça. Para isso, a personalidade deve sacrificar-se por inteiro, o que deve primar é o dever, não o querer. A força do desejo e do perso-nalismo nos impulsiona à vaidade. O sacrifício consiste em morrer co-

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mo pessoa, para humildemente renascer no Eu superior. A morte da personalidade faz brilhar a alma. É preciso aceitar o plano dos Mestres e dos deuses e esquecer de nós mesmos. Lutar contra tudo que seja falso e ilusório, pois a personalidade quer seu trono. Aceitar o destino e não fugir dos combates que a vida impõe, não fugir nem da vida nem da morte, nem da dor nem do medo. Um guerreiro é humilde e aceita a morte, uma pessoa comum não.

Kadriel sentia-se estranho, conversava com Ravi como se conheces-sem um ao outro há muito tempo. Sentia uma forte pressão no peito, em parte pelo que Ravi dizia, em parte por se lembrar do compromisso que havia tido com o Rei. Sendo ele o sucessor, já não poderia ter vida pes-soal. Compreendia que para governar teria que primeiramente se tornar um guerreiro, para que a luz triunfasse com sabedoria. Compreendia que milhões de pessoas dependeriam de suas decisões, e a humildade era o seu primeiro código como um governante guerreiro. Se falhasse, muitos sofreriam. Sentiu uma espécie de tristeza. Baixou os olhos e teve vonta-de de chorar.

Ravi toca no ombro de Kadriel: – Sei em que você está pensando e compreendo seus sentimentos,

mas um guerreiro, mesmo com esse sentimento de abismo, assume seu lugar. Não pense que é um sentimento negativo. Ele traz consigo huma-nidade, sobriedade, amabilidade, discernimento e poder profundo de reflexão, aliados importantes nesta dura jornada. Seja humilde e sirva aos Mestres e aos deuses, Kadriel, pois neste mundo não existe garantia de vitória, a vitória está em sua alma.

Kadriel já não procurava disfarçar que tudo que era dito perpassava-lhe o corpo e a alma. Sentia-se despido diante daquelas realidades novas para ele, mas na verdade tão antigas quanto o homem, que Ravi lhe des-velava. Sentiu-se fraco:

– Como poderei superar os desafios que me esperam?

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– Vou lhe contar uma estória: o Sol, querendo conhecer a escuridão, pergunta aos sábios da montanha onde poderia encontrá-la. Estes res-pondem: "vai até o íntimo da caverna mais profunda e lá seguramente encontrarás a escuridão". O Sol partiu em sua busca e, encontrando a caverna mais profunda, procurou a escuridão com entusiasmo. Depois de algum tempo, já decepcionado, voltou ao encontro dos sábios e disse: "procurei intensamente, mas, para minha infelicidade, não pude encon-trar o que desejava". Os sábios, já preocupados, responderam: "vai, en-tão, até o oceano das esperanças e lá, na mais abissal das profundezas marinhas, sem dúvida encontrarás a mais poderosa escuridão". Depois da sua busca em vão, o Sol voltou aos sábios e disse: "procurei com toda a força da minha alma, procurei no mais profundo dos oceanos e fui aonde ninguém jamais fora, no entanto, não pude conhecer a escuri-dão, pois nos mares ela não se encontrava". Os sábios, depois de algum tempo, trouxeram uma resposta para o Sol: "caro Sol, nunca conhecerás a escuridão, nem nas cavernas, nem nos oceanos, nem em lugar algum no mundo, pois como és o Sol, carregas a luz contigo para onde quer que seja e iluminas tudo ao teu passo. Portanto, jamais conhecerás a escuridão". Kadriel, assim também deve ser o guerreiro. Seu coração é um Sol que ilumina as trevas, leva solução para os problemas, leva vir-tudes para combater os defeitos. Um guerreiro é luminoso e não dá es-paço à escuridão. Por isso, não se preocupe com os que gostam da escu-ridão, pois, quando se aproximarem de você, seu coração de guerreiro os iluminará com uma luz tão intensa que eles não resistirão. A luz de cada um é do seu exato tamanho, mas é a mesma luz que banha todo o universo. Sendo guerreiro e estando ligado à hierarquia branca, você é um elo da corrente de guerreiros e Mestres, iniciados, e toda a hierar-quia de deuses, até encontrar o Sol maior do Deus único e infinito, ao qual todos se unirão um dia. Para isso, basta você descobrir e assumir o guerreiro que existe dentro de você. A humildade fará brilhar o mais

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puro coração, um coração que você ainda desconhece, mas que está lá, luminoso e radiante.

11.

hena seria uma mulher bonita se não tivesse os traços tão endu-recidos pela vida. Tinha a fisionomia rígida, os atos rígidos, o

coração rígido. Julgava-se invulnerável, sob o argumento de que já su-portara tudo que seria possível uma pessoa suportar. Assim sendo, nada poderia atingi-la. Não tinha família mais. Sabia bem que os filhos eram o ponto mais fraco de qualquer pessoa. Quem sobrevive a ver seus fi-lhos sendo destroçados, torturados e, já mortos, vilipendiados, ultrapas-sa as barreiras da mortalidade. Atinge a liberdade, pois nada nem nin-guém poderá mais coagi-lo. Khena passara por essa barreira e deixara que suas tendências maléficas a dominassem por completo. Fazia o mal pelo mal, sem qualquer razão aparente. Mas no fundo vingava-se dos deuses, que lhe tinham sido tão cruéis. O caos lhe agradava.

Foi com esse espírito que adentrou à casa no subúrbio da Capital, on-de vivia o Capitão da Guarda Real com sua esposa e filha. Na sala não havia ninguém. Khena e seu companheiro vestiam máscaras e roupas inteiramente negras. Estavam pesadamente armados, pois não se ia des-prevenido à casa de um guarda real. Foram entrando com cautela. A criança brincava no quintal, a esposa do Capitão tratava de seus afazeres na cozinha.

Os dois invasores entraram furtivamente na cozinha, balestras em pu-nho, apontando para a dona da casa. Ao perceber a presença hostil, sua reação reflexa foi procurar com os olhos a filha. O homem se aproxi-mou colocando o dedo indicador sobre os lábios. Após um segundo de

K

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hesitação, a dona da casa atacou o invasor com uma faca que tinha à mão para a preparação do almoço, logrando fazer-lhe um corte no bra-ço, ao mesmo tempo em que gritava para sua filha:

– Fuja!!! Não disse mais, pois foi atingida por um golpe que lhe extraiu a luz

dos olhos. Quando olhou do quintal para o interior da casa, através da porta entreaberta, sua filha já não viu a mãe, que jazia desmaiada. Olhar foi o único gesto que teve tempo de realizar, pois em um segundo Khena já estava sobre ela. Borrifou sobre seu rosto um líquido que a fez perder os sentidos. Em seguida a levou para dentro da casa, largando-a no chão. O homem vociferou:

– Veja o que ela fez no meu braço – mostrando o corte fundo no an-tebraço, o qual sangrava muito.

– Deixe-me ver isso – disse Khena, rasgando uma tira do vestido da mulher. Enrolou no membro ferido a apertou com força.

– Cuidado! Isso dói. – Que homem fraco, não aguenta um arranhão. Só não vá chorar, por

favor – disse em tom irônico. E completou, já com ar sério: – Trate de limpar essa bagunça, teremos que levá-las conosco.

O homem obedeceu contrariado. Jogaram mãe e filha na carruagem, desmaiadas. Limparam a sujeira e se foram.

O Capitão passava em revista seus homens. Era um tipo exigente.

Não admitia qualquer falha nos uniformes e principalmente no equipa-mento. Todos tremiam nessas ocasiões. Depois de verificar um a um, partiam para o treinamento diário, carregados. Não era fácil suportar o ritmo que o Capitão imprimia, mas ele era um homem moral. Executava todo o treinamento junto com seus homens, e sempre terminava os exer-cícios antes de todos. Não havia, portanto, o que dizer ou reclamar. Ali-

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ás, reclamação era uma palavra que não existia naquele lugar. Era a maior honra possível para um soldado servir diretamente ao Rei. Quem não tivesse capacidade física ou psíquica para suportar esse peso que pedisse baixa ou transferência para outras unidades que aceitavam pes-soas mais delicadas. Todos dependiam de um, ninguém podia falhar ou fraquejar, pois a falha seria de todos. A força de uma corrente se mede por seu elo mais fraco. A Guarda Real era uma corrente forte, composta apenas por homens duros.

Depois de um dia de trabalho intenso, o Capitão retornou à sua casa, ansioso por rever sua esposa e sua filha. Estranhou encontrar a porta aberta. Chamou, ninguém respondeu. Seu instinto de soldado imediata-mente o colocou em alerta. Parou de chamar, foi vasculhando silenciosa e cautelosamente a casa toda. Ninguém. Em sua mesa de trabalho viu um envelope cor púrpura. Dentro uma carta anônima, com um cacho de cabelo de sua filha, dando conta de que ela fora sequestrada junto com sua mãe, e do que lhes aconteceria se não seguisse algumas instruções bastante específicas. O Capitão sentiu um misto de raiva e apreensão. Sua família era o que havia de mais valioso para ele. Tinha de fazer o que fosse necessário para preservá-la. Depois, puniria os responsáveis, custasse o que custasse.

12.

eckus fizera o mesmo caminho de todos os dias de sua casa até o palácio real, a pé, antes da alvorada. Cumprimentava as pessoas

que encontrava na rua, que àquela hora não eram muitas. Sempre as mesmas que, como ele, madrugavam para trabalhar. Era um homem

P

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feliz, apesar de morar sozinho – não era casado – e ter de cuidar de si mesmo sem uma boa mulher para ajudar. Gorducho por força da profis-são, não deixava de ter uma certa agilidade. Tinha de estar preparado antes de o Sol raiar, pois o Rei com o passar dos anos dormia cada vez menos, acordando sempre mais e mais cedo.

Bem cedo o rei tomava o seu desjejum, e lá estava Peckus para certi-ficar-se de que a comida não estava envenenada. Estava no emprego havia dois anos. Seu antecessor teve um mal súbito e não sobreviveu. Nunca se disse que tivesse sido à custa da comida do Rei e nunca veio a público qualquer atentado contra a pessoa real, mas o atual provador oficial tinha lá suas dúvidas. Entretanto, tivera sorte até o momento. Ganhava razoavelmente bem, comia do bom e do melhor e ainda não morrera pela boca. Não havia do que reclamar.

Aquela manhã não era diferente das outras. Provou o desjejum do Rei e continuou vivo. Ótimo. A bandeja podia ser levada. Era passada por uma portinhola para dentro dos aposentos do Monarca pois ele não gos-tava de ser incomodado durante as refeições.

Era uma noite de verão, mas nos aposentos do Rei não fazia tanto ca-lor quanto no restante da cidade. A construção dos primeiros tempos do império possuía um sistema de ventilação discreto e eficiente que per-mitia um frescor arejado em dias quentes e mantinha uma temperatura amena em dias frios. O Monarca teve um sono tranquilo como havia algum tempo não tinha. Acordou cedo, como sempre, com o canto dos primeiros pássaros, logo antes da Aurora com dedos de rosa surgir ma-tutina.

Sentia-se bem disposto naquela manhã. Dirigiu-se ao balcão para o qual dava a sua janela, para aguardar o nascer do Sol. O frescor dos úl-

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timos instantes de madrugada o fez experimentar grande vitalidade. Fi-nalmente o Sol se fez anunciar por um manto dourado que cobriu a Ca-pital, lançando uma névoa amarelada sobre os telhados. Surgiu em se-guida o astro-rei imponente como só um ser que é o centro de um sistema pode ser. O Rei absorveu seus raios e voltou para dentro do quarto. A bandeja com seu desjejum já havia sido deixada pela abertura na parte inferior da porta, como todos os dias.

Após seu desjejum, o Rei dirigiu-se ao escritório para os despachos de expediente e assuntos corriqueiros da administração. Três dos guar-das que ali estavam o acompanhavam, enquanto um ali permaneceu. Minutos depois, o Capitão apareceu rendendo o guarda que ficara em frente ao quarto real, sob o argumento de que sua presença era solicitada no pátio. Esperou que o guarda desaparecesse e fez um sinal para al-guém que se ocultava atrás de uma cortina. O indivíduo entrou no quar-to. O Capitão o advertiu:

– Seja rápido, temos pouco tempo. O homem assentiu com a cabeça e desapareceu no interior do aposen-

to. Lá, foi à escrivaninha do Rei, apanhando sua pena, cuja ponta embe-beu num líquido transparente contido num frasco que trazia consigo. Em seguida, começou a procurar freneticamente por algo: a placa com o nome do sucessor. Mas não podia deixar vestígios de que ali estivera, então procedia com muito cuidado.

Do lado de fora, o Capitão estava impaciente, pois o visitante já devia ter saído. Abriu a porta:

– Não há mais tempo, o Rei deve estar voltando com os guardas. Vo-cê precisa ir.

– Ainda não encontrei o que procuro. – Isso não é problema meu, fiz minha parte trazendo-o até aqui, mas

agora você precisa ir.

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O homem sabia que o Capitão estava certo, mas ainda assim saiu con-trariado. As explicações que teria de dar pelo seu fracasso não seriam das mais agradáveis.

Retornando aos seus aposentos, Sokárin sentou-se à escrivaninha para

algumas horas de escrita, como costumava fazer todos os dias. Apanhou sua pena e passou a escrever num pergaminho. Foram apenas algumas linhas. Guardou o escrito cuidadosamente numa caixa sobre a mesa. Continuou a escrever, até começar a sentir-se muito cansado, sensação inabitual naquele horário, mas que o Rei reputou à sua idade, que lhe pesava mais a cada dia. Deitou-se no terraço para aproveitar o ar puro. Sentia-se como se a espécie de divã que ali havia o abraçasse. Adorme-ceu.

Como a bandeja do almoço demorava a ser devolvida, após alguma

deliberação, os guardas da porta decidiram comunicar o fato ao Capitão da Guarda Real. Este bateu à porta, chamando:

– Majestade! Repetiu o gesto depois de alguns segundos. Nada. Os guardas se entreolharam. O Capitão fez um gesto de cabeça para

que um deles abrisse a porta. Trancada. Mais um momento de dúvida e tensão. Não havia alternativa, tinham que entrar. O arrombamento da porta levou alguns minutos, dada a sua solidez. Foi necessário um pe-queno aríete. Finalmente conseguiram. Primeiro entraram dois guardas, reconhecendo a área e verificando se não havia nenhum intruso. Tudo limpo.

Foram em direção ao leito do Rei. Afastaram as cortinas... Ninguém! Todos foram tomados de uma estranha sensação, de vazio, mas seu ri-goroso treinamento não permitiu que nenhum deles perdesse o controle.

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Vasculharam o aposento. Realmente não havia ninguém. A bandeja do almoço não fora tocada. O terraço...

Os guardas encontraram Sokárin deitado com aparência tranquila. O Capitão, que examinava cuidadosamente o local com os olhos, deu a ordem:

– Vocês dois – disse ele, apontando os voluntários – vão até a resi-dência do Primeiro-Ministro e do Chefe do Conselho dos Anciãos e peçam que venham até aqui. É um caso de urgência!

Chegando à suntuosa mansão do Primeiro-Ministro, os guardas pedi-

ram a uma serviçal que chamasse seu patrão. A moça foi até o jardim preferido de Adaran:

– Com licença, Senhor Adaran, dois homens da Guarda Real desejam vê-lo, dizem que é um assunto de vida ou morte.

Adaran não demonstrou nenhuma surpresa. Não era homem de arrou-bos nem de gestos muito amplos. Terminou lentamente o que estava fazendo e dirigiu-se ao saguão de entrada de sua casa, onde os soldados esperavam em pé, apesar de lhes ter sido oferecido assento. Um deles tomou a iniciativa:

– Boa tarde, Senhor Primeiro-Ministro. O Capitão pede sua presença no Palácio Real.

Adaran permaneceu impassível, em pleno controle de suas emoções: – Do que se trata, o Rei manda me chamar? – Senhor, o Capitão só nos mandou dizer que é um caso de urgên-

cia… Agora sim o observador mais atento poderia ter notado um ligeiro e

rápido brilho nos olhos de Adaran. Os guardas não perceberam. – Vamos até lá!

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– Nossas ordens são para chamar também o Chefe do Conselho dos Anciãos.

– Muito bem, sua casa fica no caminho para o palácio, eu os acompa-nho.

A casa do Senador Rohel não deixava muito a desejar à de Adaran. A

moça uniformizada que atendeu a porta não deixou de se assustar com a presença imponente do Primeiro-Ministro, ladeado pelos soldados da Guarda Real. O Primeiro-Ministro ordenou:

– Diga ao Senador Rohel que estou aqui! Rápido, a questão é urgente. A moça hesitou. Adaran reforçou a ordem, já visivelmente contraria-

do, pois não gostava de ter de repetir ordens: – Algum problema? Por que você ainda não foi? A moça, assustada, quis começar a balbuciar alguma explicação

quando uma voz vinda do fundo da sala, suave e ao mesmo tempo fir-me, interveio:

– O Senador não está em casa, Senhor Primeiro-Ministro, mas posso ajudá-lo?

O ânimo do Primeiro-Ministro arrefeceu instantaneamente: – Desculpe incomodá-la em sua residência, Sra. Inari, mas temos um

assunto de Estado urgente para tratar com o Senador. – Vocês aceitam um chá? – disse a esposa do Senador Rohel, fazendo

pouco caso da alegada urgência. Adaran esteve perto de perder a paciência, mas conseguiu controlar-

se. Aquela tranquilidade da Sra. Rohel o irritava, todos estavam com pressa para saber o porquê do chamado urgente do Capitão da Guarda e a mulher lhes oferecia chá. Mas ele não era homem de perder facilmente o controle e respondeu com polidez:

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– Nós agradecemos sua hospitalidade, Sra. Inari, mas os assuntos de Estado são prioritários. A Senhora saberia nos dizer onde podemos en-contrar o Senador Rohel?

– Não sei lhe dizer onde ele está, mas creio que estará de volta antes de vocês terminarem o chá.

Adaran desta vez ia mesmo perder sua paciência, quando o Chefe do Conselho dos Anciãos entrou na sala sorridente como se viesse de um passeio no bosque:

– Bom dia, senhores. A que devo a honra desta visita? Aceitam um chá?

– Já lhes ofereci, querido, mas parece que estavam com muita pressa de encontrá-lo. Quem sabe agora que já o encontraram possam aceitar… – disse a Sra. Inari Rohel, com um sorriso sincero nos lábios.

– É claro, minha querida, poderia servir-nos no jardim? Está um lindo dia e ali podemos conversar com mais reserva – respondeu antes que o Primeiro-Ministro pudesse ter qualquer reação. Não restou senão seguir o velho senador ao jardim.

Irritava um pouco a Adaran a cortesia com que aquele casal se tratava e com que tratavam os filhos e os empregados. Não deixava de ser um pouco de inveja, já que essa cortesia era verdadeira, e afinal onde se podia encontrar isso nos dias atuais.

Adaran começou a falar: – O Capitão pediu nossa presença no palácio. Não disse ser um cha-

mado de Sokárin. Temo que este tenha… – …falecido – completou o ancião. Desta vez o Primeiro-Ministro não conseguiu esconder sua surpresa

do olhar arguto do Senador Rohel, que prosseguiu: – Creio que o senhor já esperava por isso, não é Senhor Primeiro-

Ministro? – antes que Adaran pudesse esboçar qualquer resposta pros-seguiu: – Todos nós esperávamos e, de certa forma, até o próprio Sokárin, dado o seu estado de saúde. Terá havido tempo para que ele devolvesse a placa com o novo sucessor? Ou ao menos para gravá-la?

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Seria curioso que o Rei morresse logo antes de poder indicar seu novo sucessor... Qualquer indício suspeito na sua morte apontaria imediata-mente para o nome que está atualmente na estela, não é Primeiro-Ministro? – ao utilizar a mesma construção inquisitiva pela segunda vez, o Senador fixou os olhos em Adaran, buscando alguma reação es-tranha, mas desta feita o semblante de Adaran nada transpareceu.

– O Capitão não mencionou nada sobre isso. Ambos sabiam mais do que falavam e falavam mais do que diziam,

num jogo de gato e rato entre dois gatos criados. – Mas creio que é tempo de nos dirigirmos ao palácio real, Senador. – Sim, já é tempo..., Primeiro-Ministro. O Primeiro-Ministro não gostava do ancião. Imaginou-se estrangu-

lando-o naquele mesmo instante, mas nada podia fazer. Resignou-se. Saíram para o palácio.

Quando o Rei despertou, sentiu como se tivesse dormido muitas ho-

ras. Estava leve, bem disposto. Resolveu ir à biblioteca. Os dois guardas do lado de fora permaneceram imóveis ante sua passagem, como se não o vissem. Este era o dever deles. O Rei seguiu até a biblioteca do palá-cio. Não cruzou com ninguém. Tudo estava como sempre.

Quando ia retirar um livro da estante, ouviu um burburinho que pro-vinha da ala em que se situavam seus aposentos. Pessoas surgiram de todos os lados indo em direção ao tumulto. O Rei acorreu também ao local. As pessoas pareciam desorientadas, a ponto de não verem que o próprio Soberano estava ao seu lado, para lhe franquearem passagem ou mesmo auxiliá-lo no deslocamento. Ao chegar ao corredor em que fica-va seu quarto, o Rei se consternou ao verificar que os cortesãos se acu-mulavam à porta do seu quarto. Dirigiu-se para lá tão rapidamente quan-to permitia sua idade. O tumulto era tanto que suas ordens de dispersão não eram atendidas. Os guardas continham os curiosos, mas já havia algumas pessoas no interior do aposento real. O Rei conseguiu entrar.

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Sentiu um calafrio atravessar-lhe cada célula do corpo quando pôde vislumbrar a razão do tumulto. Adaran, o Primeiro-Ministro, estava em pé ao lado da cama, juntamente com o Senador Rohel. Sobre o leito, dois médicos do reino debruçavam-se sobre o corpo do Rei. Ao se ver, Sokárin entendeu. Os médicos acenaram negativamente com a cabeça para os dois políticos. O pensamento mais imediato do Rei foi voltar ao seu leito e deitar-se, para voltar a dormir desta vez sem sonhar, para em seguida acordar e retomar seu quotidiano. Mas foi apenas um pensa-mento rápido. Logo em seguida não queria mais se aproximar daquele corpo, daquela vida, queria o Sol e seus raios dourados. Foi em direção à janela-porta que dava para o balcão. O Sol nunca estivera tão forte. Uma luz intensa o cobriu e ofuscou sua visão. Sokárin saiu para o bal-cão, na direção dessa luz.

Lentamente sua visão adaptou-se à intensa luminosidade, até que pô-de enxergar seu Reino, de paz e harmonia, sem desavenças, sem injusti-ça, sem pobreza, sem dor, sem miséria. Era o reino que Sokárin vinha sonhando, aquele que ele acreditava possível quando gravou o nome de Kadriel Vahan na placa. Se ele passasse pelas provas que o aguardavam, a indicação se mostraria acertada. Sokárin sentiu uma alegria intensa em seu coração. Ficaria ali para sempre. Quando olhou para trás, na direção do seu quarto, nada pôde ver pois estava escuro lá dentro. Preferiu seu reino de luz e não olhou mais para trás...

13.

s arautos percorriam a Capital anunciando a morte do Rei e o luto oficial de sessenta dias. O mesmo ocorria em todas as

cidades do Reino. Mulheres choravam, muitos dispuseram panos negros O

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nas janelas, em demonstração de luto. A comoção foi geral. Sokárin havia reinado muitos anos, as pessoas estavam acostumadas com ele. Mesmo aqueles alijados de oportunidades durante o seu reinado lamen-tavam.

Os prognósticos começavam. Quem seria o sucessor? Obviamente o substituto natural seria Golan, filho do Rei. Não, o Primeiro-Ministro era quem governava de fato, portanto daria continuidade ao trabalho. Rohel era o nome mais indicado, pois era um homem sério, acima de qualquer crítica. Não, de modo algum, muito idoso, era preciso alguém mais jovem.

E assim as conjecturas percorriam o reino em todas as esferas, desde os estratos mais pobres da população, que nada entendiam de governo ou de política, que mediam o desempenho de um governante pela quan-tidade de comida que chegava à mesa, e com que frequência, até a alta cúpula do governo, em que as conversas eram preenchidas com palavras mais bonitas, frases mais bem elaboradas, raciocínios que aparentavam uma lógica irrefutável e o conhecimento de causa de quem estava ao lado do Rei quando ele gravou a placa. A verdade é que todos temiam ainda que inconscientemente os períodos de sucessão. Muitas coisas podiam acontecer. Mudanças nunca são muito bem vindas. Ainda que a opção possa ser melhor, o pior conhecido é preferível. Cada um buscava suas maneiras de aliviar a ansiedade, e os exercícios de adivinhação eram uma delas.

Kadriel passara a maior parte do tempo, nos últimos dias, com Ravi

Medhavin. Ele era uma pessoa interessante, de vasta cultura e grande magnetismo. Kadriel sentiu por ele grande empatia, como se o conhe-cesse há séculos. Em poucos dias, já se sentia como um velho amigo, ou para retratar melhor, como um filho. Ravi lhe transmitia a segurança de um pai.

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Ravi era o único que sabia o conteúdo da conversa de Kadriel com o Rei. Kadriel o revelara no mesmo dia em que Sokárin morrera, mas não antes, a fim de manter sua palavra. Ravi não transparecera nenhuma surpresa, mas lhe deu alguns conselhos que poderiam ser valiosos no futuro.

Os dois foram juntos para a cerimônia de cremação do Rei. Como o acesso era livre ao público, as ruas estavam intransitáveis. Milhares de pessoas se apinhavam para dar seu último adeus a Sokárin. Os membros de governo e convidados especiais tinham o acesso facilitado pela polí-cia e pela Guarda Real. Somente assim Kadriel e Ravi puderam chegar até as proximidades da cerimônia. A população era mantida a certa dis-tância, podendo observar daí o que se passava, mas quem tentava cruzar a linha limite era detido com veemência. Alguns poucos mais empolga-dos tentaram fazê-lo, mas foram todos impedidos.

A cremação foi emocionante, com cânticos entoados pelas sacerdoti-sas, e palavras cerimoniais no idioma antigo sendo pronunciadas pelos sacerdotes. Todos se esqueceram, por duas horas, da sucessão, só vol-tando o assunto à memória coletiva quando começaram a decair as chamas que consumiam o corpo físico de Sokárin, que havia sido cuida-dosamente preparado. O sinete real, que passava de governante em go-vernante desde tempos imemoriais, fora retirado e estava com o Capitão da Guarda Real, que o entregaria ao Custódio das Tradições, para abrir, no momento oportuno, a placa com o nome do novo rei.

Fazia calor. – Não vá desmaiar – cochichou Ravi ao seu ouvido – não ficaria bem

para um rei. – Ainda custo a acreditar que Sokárin falava sério – cochichou de

volta. – Há certas coisas com que não se brinca. – Mas não sei se houve tempo para ele efetuar a troca das placas.

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– Isso não importa. O que importa é o que você sabe e o que o Rei lhe pediu: para lutar por sua posição.

O Senador Rohel tomou a palavra, abrindo um pequeno envelope: – Senhoras e Senhores aqui presentes, que vieram de todo o Reino

prestar suas últimas homenagens ao Rei Sokárin: ele próprio confiou-me esta mensagem para ser lida nesta ocasião, de suas honras fúnebres. Diz a mensagem:

“Estão aqui presentes todos aqueles de quem dependerá o sucesso do próximo dirigente, meu sucessor, cujo nome será conhecido dentro de algumas semanas. Por isso, rogo a todos, povo, senado, clero, militares, que apoiem a pessoa indicada e lhe prestem todo o suporte necessário ao bom desenvolvimento do Estado. A sucessão deve decorrer, como tem decorrido das últimas vezes, em total harmonia e tranquilidade, sob pe-na de se repetirem os dias terríveis de guerra civil que conhecemos so-mente pelos livros de história. Na única vez em que isso ocorreu na his-tória conhecida de nosso País, ainda antes do tempo do Império, uma guerra fratricida de mais de dez anos nos atrasou e fez derramar nosso sangue por sangue idêntico. Fez trazer a barbárie aonde havia civiliza-ção, fez brotar o ódio onde havia cordialidade, fez prevalecer a ignorân-cia à razão, fez soçobrar os valores mais básicos de nossa sociedade no lodo das paixões, tendo custado muito trabalho, muita vontade e muitas vidas para que enfim as grandes águias que guardaram em seus ninhos nas montanhas mais altas as sementes da Sabedoria pudessem restaurar a chama da civilização. A verdade, por mais que pareça obscura, ao final prevalecerá, pois dela emana a luz. Para aqueles que veem com o coração não há escuridão. Vejam, pois, com a consciência. Vida longa e próspera ao Rei!”

O Senador Rohel estava visivelmente emocionado ao terminar de ler aquelas palavras de seu soberano e amigo. Fez uma pausa, como que para se recompor, e retomou a palavra:

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78 PAZ GUERREIRA - HUMILDADE

– Outro ponto – esperou até que os rumores na assistência silen-ciassem – encontramos nos aposentos do Rei um escrito, que possivel-mente são suas últimas palavras. Estavam num papiro escrito de próprio punho por Sokárin, guardado na caixa que conteve a nova placa com o nome do sucessor, sobre a sua escrivaninha. A placa não estava lá. Por-tanto, não temos como saber se Sokárin já a havia colocado na estela ou se a guardou em outro lugar. Mas entendo que essas palavras devem ser conhecidas por todos os aqui presentes, e, como são um tanto enigmáti-cas, cada um deverá entendê-las como o seu coração mandar. Sokárin escreveu:

“PARA O FALCÃO PODER POUSAR

É PRECISO QUE O NINHO ESTEJA PREPARADO”.

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TALAL HUSSEINI 81

14.

s dois homens caminhavam havia algumas horas. Mulil já não fazia ideia de onde estava, pareciam andar em círculos. Mas

evidentemente não andavam. Montuhotep sabia exatamente o que fazia. Quando Mulil pensava em entregar-se ao cansaço físico e jogar-se ao chão, morrendo ali mesmo, seu Mestre disse que descansariam um pou-co. Foram apenas alguns minutos, uns goles d’água e nenhuma pala-vra. A curiosidade corroía o jovem, mas preferiu poupar suas forças para o que estava por vir, fosse o que fosse. O ancião não deixava mui-tos espaços para a personalidade de seus discípulos, principalmente Mulil, a quem, apesar da aparente tranquilidade, era evidente que bus-cava preparar o mais rápido possível para algo...

Mulil se perguntava como o velho homem aguentava a caminhada sob aquele Sol escaldante, durante horas, sem transpirar uma gota se-quer, sem demonstrar qualquer traço de cansaço. Foi seu último pen-samento antes de retomarem a marcha. Ao cabo de mais quatro horas, Montuhotep parou, olhou ao redor com satisfação, respirou fundo e disse, mais para os ventos do que para Mulil:

– Aqui estamos! Era um local plano e alto. Estavam sobre um penhasco. Sim, Mulil o

reconhecia. Sete anos antes ali estivera, mas havia percorrido outro caminho. Haviam chegado pela parte inferior do rochedo, aquele ro-chedo que tivera de escalar até o ninho do falcão que lhe deixara mar-cas indeléveis no braço e no espírito. Desta vez estavam no alto do pe-nhasco. Aquele lugar ficava nos limites do deserto, não havia vegetação, salvo algumas touças rasteiras, mas o solo ainda não era de areia solta, e sim de terra seca, dura – último estágio de desidratação antes do piso propriamente desértico – e algumas pedras.

O

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82 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO

Era final de tarde. Montuhotep proclamou que deviam se preparar para descansar, pois teriam muito trabalho à noite. Cada um trazia pouco peso: uma manta, pão e água. O ancião ainda carregava consigo uma pequena sacola que segundo ele continha alguns produtos úteis. Os últimos raios do Sol do ocaso permitiram a Mulil uma visão assus-tadora: uma parede de areia se aproximava...

Seu Mestre continuava impassível. Apenas retirou da sua sacola dois lenços, entregou um a Mulil e envolveu seu rosto no outro, exortando-o com os olhos a fazer o mesmo. Mulil estava nervoso, a areia lhe enchia os olhos, até fazê-lo entender que ficavam melhor fechados. O jovem agarrava-se ao braço de Montuhotep como um náufrago a uma tábua de salvação. Tentava falar mas o vento levava suas palavras como fos-sem folhas secas.

Subitamente, o braço de seu Mestre lhe escapou. Mulil restou como um cego numa floresta, exceto que não havia árvores em que se apoiar. Andou por alguns minutos a esmo, os braços estendidos à frente do corpo fazendo movimentos laterais como para evitar o choque com as árvores inexistentes ou talvez para encontrá-las. Seu senso de direção não mais existia quando se lembrou de que estava próximo de um pe-nhasco e seu próximo passo poderia ser no nada. Parou. Lembrou-se do que havia aprendido sobre o medo, essa reação natural que muitas vezes podia significar a diferença entre a vida e a morte, mas que dei-xava uma trilha delgada. Ausência de medo: morte. Excesso de medo: morte. A vida residia no estreito caminho do controle do medo.

Mulil tranquilizou então sua respiração, baixou os braços, já que não serviriam para detectar o vazio. Finalmente, decidiu que a melhor es-tratégia era ficar parado. Sentou-se no chão, entocando-se em sua man-ta, de modo a ser o menos atingido possível pela areia. Já se haviam passado horas, ao menos em sua avaliação. A estratégia funcionou por algum tempo, mas a temperatura começou a baixar drasticamente, in-

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TALAL HUSSEINI 83

dicando que já caíra a noite no deserto. A inércia que por algum tempo significou sobrevivência agora significava morte, pelo frio. Mulil pela primeira vez entendeu o que seu Mestre sempre lhe dizia sobre a vida e a morte: que eram as duas faces da mesma moeda.

Levantou-se e começou a andar com dificuldade, tateando o chão an-tes de completar cada passo. Tinha de encontrar seu Mestre, era seu único pensamento, sem ele não havia esperança de sobrevivência na-quele ambiente hostil. Mulil sentiu-se desfalecer em meio ao turbilhão de areia.

Recuperou lentamente a consciência e, quando conseguiu focalizar sua visão embaçada, pôde ver o rosto sulcado de Montuhotep, que re-petia estranhos mantras numa língua desconhecida para Mulil. Esta-vam dentro de algum tipo de caverna em que mal se podia ficar em pé.

O ancião ordenou que Mulil se sentasse à moda dos escribas, ao que obedeceu de imediato, embora se sentisse bastante tonto. Ele devia permanecer ereto e repetir alguns exercícios respiratórios. Continua-ram esses exercícios por algumas horas, até Mulil não sentir mais suas pernas, nem seus braços e por fim nenhuma parte de seu corpo. Em certos momentos, Mulil chegou a pensar que iria desmaiar, mas conse-guiu manter-se em razão da presença de seu Mestre, diante de quem não queria falhar. Aos poucos, a dor se transformou em amortecimento, mas não um amortecimento físico, e sim uma polarização que permitia ao jovem ignorar seu corpo físico. Desse modo, o mal-estar tornou-se conforto.

Por fim, o velho Mestre ordenou que fechasse os olhos e visualizasse um falcão dourado. Então, Mulil devia imaginar-se cada vez menor ante esse pássaro, até que ele se tornasse gigante à sua frente. Em se-guida, Mulil devia projetar-se em direção ao falcão dourado e entrar nele, fundindo-se nele. O discípulo o fez sem dificuldade. Montuhotep continuava a entoar a sequência de mantras, em meio aos quais orien-tava o jovem:

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84 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO

– Agora, você é o falcão! Abra suas asas, sinta-as. Busque a saída da caverna e voe em direção ao céu.

Mulil obedeceu. Voou para a saída da caverna e viu-se novamente

em meio à tempestade de areia. Mas desta feita ela não o assustava. Bateu mais forte suas asas e de repente ganhou o firmamento. Sobrevo-ou a tempestade, que se transformava numa pequena nuvem de areia na medida em que o falcão ganhava altura. A luz dourada que emanava de Mulil iluminava tudo ao seu redor, refletindo-se na terra distante. O jovem voltava sua cabeça de falcão para os lados e via suas asas domi-nando o vento. Nunca vira tantas estrelas. Sentia-se uma delas, sentia-se parte do espaço absoluto. Subiu até as arestas do mundo terrestre se desfazerem, e as cores se esfumarem na noite profunda. Voava em dire-ção ao ser essencial. Estava livre…

Mesmo ao longe continuava a ouvir a voz de seu Mestre como se es-tivesse ao seu lado. Ouvia com o coração. Ela o chamava. Mulil não queria voltar, não queria mais ser um homem, queria permanecer fal-cão, queria permanecer livre, queria ganhar o espaço infinito e as es-trelas suas irmãs. Mas devia obedecer. Sentia um misto de alegria pelo sentimento que experimentava e de tristeza por ter de abandoná-lo. Seus olhos de falcão viram através da areia, que já se dissipava, o pe-queno buraco no chão, de onde saíra. Mergulhou em direção a ele, ga-nhando-o rapidamente.

Sentia agora o peso de sua coluna vertebral. As palavras de seu Mes-tre norteavam seu retorno, tornando-o seguro. Mulil sentia-se humano novamente. Abriu lentamente os olhos. Dava graças por seu Mestre ser o único ser humano ali presente. Não queria palavras, não queria emo-ções, não queria pensamentos humanos.

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TALAL HUSSEINI 85

Kadriel despertou daquele sonho com uma sensação de distanciamen-to. Sentia-se, como Mulil, uma ave, um falcão voando distante da terra dos homens mas sem perdê-la de vista, voando sob as estrelas mas sem poder tocá-las. Não queria contato com pessoas, preferia estar consigo mesmo. Novamente um sonho com aqueles personagens longínquos no tempo.

As palavras do Rei, lidas pelo Senador Rohel, ainda ecoavam na men-te de Kadriel: “Para o falcão poder pousar...”, misturando-se com as imagens do seu sonho. Por que o Rei deixara aquelas palavras? Seriam fruto do delírio de um moribundo? Ou guardariam algum segredo impe-netrável? Por que o falcão, figura renitente no seu sonho e na sua vida?

O jovem sentou-se no chão, à moda dos antigos escribas, fechou os olhos e procurou reproduzir a concentração que o discípulo fizera no seu sonho. Nenhum resultado.

Kadriel passou o dia sem sair de casa, cogitando, um tanto aéreo. Era curioso que a única pessoa com quem imaginava poder conversar na-quele momento era Ravi, apesar de tê-lo conhecido há tão pouco tempo. Já perto das cinco horas da tarde, resolveu tomar uma atitude: dirigiu-se à casa de Ravi.

15.

o dia da morte do Rei, o Capitão ficara extremamente descon-fiado. Aquele ingresso indevido nos aposentos, que ele mesmo

permitira, e o subsequente óbito eram coincidência demais para uma mente treinada como a sua. Ele observara atentamente cada detalhe do quarto. O Rei estivera escrevendo, comera sua refeição e deitara-se no terraço para dali não mais sair vivo.

N

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86 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO

A comida não era uma hipótese, pois havia o provador oficial Peckus. Ademais a refeição não estava lá quando da invasão. As cozinheiras e Peckus haviam sido detalhadamente questionados. Nada indicava algu-ma participação na morte de Sokárin.

Tudo indicava que a resposta mais direta era a correta: morte natural. Mas os instintos de guarda do Capitão dificilmente falhavam e ele ainda estranhava algo, não sabia bem o que era, mas descobriria. Se houvesse alguma irregularidade no caso, ele descobriria. Por via das dúvidas, ha-via recolhido a pena e algumas das folhas que o Rei utilizava para es-crever nos seus últimos momentos deste lado da existência. Mandara fazer seus próprios testes. A pessoa que os realizou era da sua confiança e além disso não sabia do que se tratava. Disse haver um traço de uma substância que poderia ser venenosa, mas não tinha como afirmar com certeza por ser altamente volátil e já estar terminando de se dissipar quando ele fez os testes. Quando os repetiu para confirmação, nada mais encontrou. De qualquer maneira, o Capitão guardou consigo esse mate-rial, poderia ser-lhe de alguma utilidade no futuro. Pedir um exame do corpo do Rei, sendo que nada indicava qualquer crime, seria loucura, profanação, o soldado não ousou cogitar tal hipótese. Se havia algum indício no corpo do Rei de que sua morte não tinha sido natural seria cremado junto com o Soberano. Só lhe restava aguardar e concentrar suas preocupações em outro assunto relevante: sua família.

Era o dia seguinte à cerimônia fúnebre real, e era seu dia de folga. Resolveu não sair de casa na esperança de que os sequestradores fizes-sem contato. Sua expectativa foi atendida. Uma batida na porta e um envelope sob ela. Faltou pouco para as mãos firmes do Capitão treme-rem ao abrir o envelope. Continha apenas um local. Entendeu que indi-cava aonde devia se dirigir e lá foi.

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– Nesse local, outro envelope idêntico ao primeiro continha outra indi-cação geográfica. Finalmente, no sétimo envelope, havia um endereço e um horário. A velha olaria desativada, três horas depois de o Sol se pôr...

Esse compromisso o Capitão não iria perder. Ao chegar à casa de Ravi, Kadriel foi recebido por uma moça que não

fez nenhuma pergunta, como se ele estivesse sendo esperado. Indicou-lhe o caminho do jardim, nos fundos da residência, que se localizava no extremo da cidade com vista direta para o vulcão Anthar, que em sua última erupção, mil anos antes, havia causado grandes estragos à cidade. Desde então, estava tranquilo. Não inativo, pois diz-se que não existem vulcões inativos e sim adormecidos, com seu grande poder latente espe-rando o momento certo para eclodir. Nesse sentido, os vulcões são co-mo as pessoas...

Ravi foi rápido em deixar Kadriel bastante à vontade: – Você vê este bosque? – indagou apontando as árvores que ficavam

no fundo do seu quintal; Kadriel assentiu com a cabeça – gosto de olhar para ele todas as tardes. O Sol o cobre com essa névoa amarelada, até esconder-se atrás do grande vulcão, que domina nossa cidade.

– Realmente, aqui o senhor tem uma paisagem muito bonita. – Mais do que bonita, ela tem a intensidade da vida, que se renova

todos os dias, permitindo que nunca nos esqueçamos dos ciclos que a compõem. Meditando neste lugar perante o Sol que vai, pode-se sentir a respiração do Universo, seu lento movimento de contração e expansão. Tudo em nossa existência é assim: expande-se até um ponto extremo, para depois novamente contrair-se até um único ponto. Quando o Uni-verso se contrai num ponto há apenas o Ser, e não a manifestação, não o Existir...

– Não estou certo de que entendo isso muito bem...

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88 PAZ GUERREIRA - ADMIRAÇÃO

– É porque nem tudo se pode entender racionalmente. Certas coisas só podem ser intuídas, após muita contemplação.

Kadriel não respondeu, não sabia o que dizer. Procurava uma brecha para abordar o assunto que o levara até ali. Ravi reparou na sua ansieda-de:

– Kadriel, você obviamente veio até aqui porque quer contar-me al-guma coisa.

– De fato, mas é que na verdade nem sei bem porque estou aqui. Co-nhecemo-nos tão pouco e o senhor já sabe certas coisas sobre mim que eu não disse a mais ninguém...

– Você quer falar da sucessão? – Não. Quer dizer, sim, gostaria de falar sobre isso também, pois não

tenho certeza se saberei cuidar sozinho do que me espera... Mas não foi isso que me trouxe aqui desta vez... É que esta noite tive um sonho es-tranho...

Ravi não fez qualquer comentário, só permaneceu com a atitude de quem está aberto ao discurso do seu interlocutor. Kadriel prosseguiu:

– O mais estranho é que quando acordei sentia-me como que fora deste mundo. E a única pessoa em quem conseguia pensar, para conver-sar sobre isso, era o senhor...

– Conte-me seu sonho, Kadriel. Relatou-o, então, como também o primeiro sonho com esses mesmos

personagens, na prova do penhasco. Falou das impressões que tivera durante estes momentos oníricos, parecendo-lhe estes mais realidade do que sua realidade vigílica. Começava a achar que aqueles sonhos teriam algum significado, mas não sabia qual.

– O falcão aparece nos dois sonhos. E as últimas palavras do Rei mencionavam o falcão – foi o único comentário de Ravi – prossiga.

– Depois que acordei, sentia-me como se ainda estivesse sonhando. Na verdade, tentei fazer a concentração que Mulil fez no sonho, para

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tentar reproduzir suas experiências, mas não obtive sucesso – confessou Kadriel, um pouco encabulado.

– A meditação tem uma forma correta para ser feita. Se quiser, posso ensiná-lo.

Kadriel concordou, demonstrando entusiasmo pela ideia. Ravi conti-nuou:

– Você já subiu no vulcão Anthar? – Nunca. Não é proibido? Dizem que é perigoso, pois ele pode entrar

em atividade. Ravi sorriu, como quem se dirige a uma criança a quem disseram que

o fogo é perigoso porque queima, que a água é perigosa porque afoga, que os animais são perigosos porque mordem, e que tudo deve ser temi-do porque é perigoso de alguma maneira, ainda que não saibamos de momento qual seja. A educação pautada no medo fazia rir a Ravi, mas era um riso de condescendência e ao mesmo tempo de tristeza, diante da incapacidade humana em se fazer entender de forma construtiva, mesmo pelas crianças. A humanidade havia desaprendido como ter obediência por respeito e por admiração. O medo era a ferramenta mais fácil, co-meçava a ser utilizada na infância e continuava até a morte, o maior de todos os medos. As pessoas viviam com medo e morriam com medo, quando não morriam, muitas vezes, do próprio medo. O instrumento natural de proteção e sobrevivência era transformado em aparelho de letargia e inconsciência.

– Se ele entrar em atividade, não fará muita diferença estarmos dentro da sua cratera ou estarmos bem aqui neste quintal olhando para esse bosque. Teremos apenas alguns minutos a mais para olhar de frente a nossa própria morte.

Aquelas palavras ao contrário de infundir temor em Kadriel o enche-ram com um sentimento novo, uma vontade de escalar as costas da ve-lha montanha, para a qual – agora percebia – sequer olhava detidamen-

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te. Sentia vontade de aproximar-se do céu e dos deuses. Ravi, como que percebendo seus pensamentos, lhe fez sinal que o seguisse e adentrou no bosque, com passos rápidos. Cruzaram todo o bosque até ganhar um descampado. Intuindo a pergunta que ardia na garganta de Kadriel, Ravi respondeu sem responder, apenas fazendo um ligeiro movimento de sobrancelha em direção ao vulcão.

Enquanto caminhavam lado a lado, em silêncio, o Sol se punha, tin-gindo de escarlate o ocaso e a planície; pinceladas de azul e amarelo terminavam de tecer aquele final de tarde. Ravi não deixou transparecer sua consternação com o prenúncio que o vermelho trazia: sangue seria derramado...

Quando começaram a parte mais íngreme da subida, Ravi explicou a Kadriel como ele devia andar sem fazer força com os músculos, apenas utilizando as articulações. Explicou-lhe também que ele devia manter a conversa enquanto fazia esforços, para descondicionar a respiração. Entre um assunto e outro, caminharam horas, sem qualquer cansaço. Quando Kadriel se deu conta, estava diante da cratera.

– Você queria fazer a meditação, deixe-me explicar-lhe algumas questões. Para meditar é necessário se concentrar e contemplar. Primei-ro, é necessário concentrar-se, pois só assim você conseguirá ver a uni-dade por trás das coisas. Concentrando-se com firmeza num único pon-to, logrará ver o que está por trás desse ponto, e depois o que está por trás desse outro e assim sucessivamente até chegar à unidade das coisas. Então, será necessário desacelerar os pensamentos, para aumentar a velocidade da mente. A mente livre de pensamentos atingirá uma vibra-ção que lhe permitirá chegar ao silêncio, sobre o qual foi construído todo o Universo, silêncio este que pode ser vislumbrado entre as pala-vras, ou entre as letras de uma palavra, ou nos intervalos entre os sons... Aí cessa a mente e começa a meditação, que vai lhe permitir contem-

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plar. E a contemplação vai lhe permitir descobrir que esse todo é a Uni-dade. Quem contempla não tem a visão do observador e de Deus como coisas distintas. Tudo passa a ser uma coisa só. Meditar é silenciar-se em Deus. Agora vou mostrar-lhe a prática do que lhe ensinei, que aprendi com o meu Mestre – disse, indicando que se sentasse sobre os joelhos, com a coluna reta – ouça apenas a minha voz, deixe-se guiar por ela...

Na medida em que Kadriel ia realizando os passos, ouvia ao fundo a voz de Ravi, que em tom suave parecia integrar-se à natureza:

Circulação. O Centro é algo que não pode ser ensinado, tampouco aprendido. O

Centro é algo que somente pode ser recordado. Um velho sábio disse aos seus discípulos que quando saíssem em

busca do seu Ideal e no caminho sentissem as primeiras dificuldades, quando sentissem os músculos enfraquecer, a palidez tomar conta dos lábios, os olhos titubear e o coração sentir o hálito do fracasso, se lem-brassem de que um dia estiveram lado a lado com seus irmãos, em torno de uma fogueira, cantando os hinos de glória e de vitória desse Ideal Superior. Essa lembrança lhes traria a força às veias e certeza às almas, pois o maior mal da humanidade é o esquecimento.

Fluxo. É na recordação que nos encontramos. É nesse ponto de recordação

que todas as coisas do universo se encontram. É no Centro que todas as coisas nascem, desenvolvem-se, e são no-

vamente consumidas. Para o Centro todas as coisas marcham. Pulso. Onde os mares deságuam, onde a rotação da terra gira, onde as galá-

xias flutuam, onde os pássaros encontram seu destino. Onde o silêncio é o corpo de Deus, e o movimento deixa de existir. Lá é o Centro.

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Irradiação. Onde o coração do cisne celeste se transforma em diamante e suas

asas de luz se projetam tocando o cosmos. Onde a magia é a única reali-dade ponderável. Onde o mortal transmuta-se em imortal. Lá é o Centro.

O Centro é o ponto onde todo o universo se une. Onde a eternidade é engolida pela duração, e o Uno do infinito é absorvido pelo Absoluto.

Iluminação. O discípulo é o único que pode conceber o Centro. É infinito o poten-

cial latente que reside dentro do coração do discípulo. Focalização. O cérebro é o ministro. O coração é o rei. Esse rei segue os impulsos

da vontade do ser. Esse ser é o infinito, o poder interno, o Centro que habita o coração de cada discípulo. Por ser infinito, não nasce, não morre.

Polarização. Selo. Kadriel visualizou um círculo branco dentro de um círculo dourado.

Lembrou-se da imagem que, enquanto falcão, vira formar-se na tempes-tade de areia. Abriu os olhos. A imagem que se formara era semelhante à do seu sonho: nuvens em torno da cratera e claridade apenas no cen-tro. Ele enxergava toda a montanha. Voava. Sentiu algo puxá-lo. Olhou para baixo. Lá estava seu corpo, sentado sobre os joelhos. Ravi parado à sua frente lhe falava. A cada palavra que dizia, sentia uma força compe-li-lo para baixo.

Sentiu-se cair. Tudo tornou-se escuro. Seus pensamentos, sentimen-tos, seu corpo... tudo estava confuso. Nada parecia fixar-se. Abriu os olhos, agora de verdade. Em meio à confusão mental que experimenta-va, tinha uma certeza: sentira o Centro no coração. Seu corpo estava gelado. Aquela pequena experiência o fizera ver as coisas com um pou-co mais de realidade. Não sabia como, apenas sentia. Melhor, intuía.

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O universo parecia-lhe parado. Sentia apenas seu coração pulsando. Um falcão cortou o céu sobre a cratera. Seu grito ecoava pela monta-

nha. Kadriel pensou que tinha sido aquele falcão, ao menos por alguns momentos. Invejou-o, no bom sentido.

Ravi, como que lendo seus pensamentos, disse: – Os seres da natureza têm muito a nos ensinar. Nos momentos em

que tudo parece perdido, o discípulo pode renovar-se e brilhar como nunca. Certas aves, como os falcões e as águias, têm características mui-to especiais, sempre foram mencionadas nas tradições como símbolo de poder e sapiência. Ao contrário de outras aves, quando veem uma tor-menta, vão diretamente de encontro a ela, não se escondem, nem ficam agitadas, abrem suas asas poderosas e velozes e enfrentam a tormenta, superam as nuvens negras, a tempestade, os choques elétricos proveni-entes dos raios. Sabe por quê?

E prosseguiu, sem esperar a resposta: – Porque sabem que acima, para além da tormenta, está o brilho do

Sol! Kadriel sentiu vontade de chorar.

16.

olaria era num lugar ermo. Nenhum morador por perto. Como estava abandonada havia anos, não havia sequer um guardião.

Era objeto de um litígio entre herdeiros, muitos donos, nenhum dono, e o patrimônio se deteriorava. Ademais, havia o boato de que aquele lugar era mal-assombrado. O velho proprietário falecido não conseguira deixar o local e atormentava qualquer um que se aventurasse naquelas paragens.

A

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Exceto algumas turmas de jovens que, animados pelo álcool, por vez ou outra lá iam para instigar a adrenalina, saciando as necessidades do velho fantasma, ninguém ousava passar por ali. O silêncio era perturba-dor. Se caísse um simples alfinete, a reverberação da queda soaria como uma bomba.

Quando o Capitão abriu o portão, sentiu o magnetismo pesado. Um arrepio lhe percorreu a espinha, e até os cabelos se eriçaram. Manteve o controle. Observou tudo ao seu redor. Nenhum sinal de vida. Havia uma enorme construção, em ruínas. O Capitão gritou para ver se alguém res-pondia. Nada. Percorreu o lugar rapidamente, tentando encontrar um possível cativeiro. Não, sua mulher e sua filha não estavam ali. Os se-questradores não seriam tão imprudentes. Verificou as possíveis saídas e procurou se inteirar dos materiais deixados no local, canos, pedras, fer-ramentas, que poderiam transformar-se em armas.

Prosseguiu caminhando em campo aberto, para ver se alguém fazia contato. Finalmente parou onde podia ver a entrada e ali permaneceu, à espera. Vestia o uniforme negro da guarda real acrescido de uma espé-cie de capuz que não permitia ver seu rosto, salvo de muito perto.

Nos bastidores desse cenário, duas sombras se moviam em silêncio. Uma delas posicionou-se dentro do prédio, atrás do Capitão. Era um arqueiro que tinha a mira fixada bem na sua nuca, bastava retesar o arco e disparar. Só aguardava o sinal. Não estava ciente da outra sombra, que flutuava em sua direção, qual um espectro. Ela não tinha peso, não emi-tia nenhum som. Por certo, não pertencia a este mundo.

Quando o arqueiro se deu conta, a sombra já estava sobre ele. Sentiu uma pontada nas costas que paralisou completamente seus músculos. Sem poder se mover, quase nem sentiu outra pontada, no pescoço, que o privou da existência.

De repente, dois homens entraram na velha olaria, andando rapida-mente em direção ao Capitão. Este foi também na sua direção para esta-

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belecer contato. Mas não teve tempo de pronunciar nenhuma palavra, pois quando já estavam bem próximos os homens sacaram espadas. A sombra que desabilitara o arqueiro havia tomado para si o arco, mas só teve tempo de disparar uma flecha, que atingiu no peito um dos homens. O outro desferiu um corte rápido e preciso, que atingiu o Capitão no pescoço. A morte foi instantânea. Seu corpo tombou de lado, inerte. Outra seta partiu da sombra atingindo o agressor na perna, logo acima do joelho. Ele tentou fugir, mas o ferimento não permitia um desloca-mento eficiente. Logo, a sombra estava sobre ele.

Já desarmado, o agressor ferido fez um olhar de pavor quando pôde ver de perto o vulto que o atingira. O Capitão…! Mas não podia ser, acabara de matá-lo..., pensava, olhando para o corpo que jazia mais adi-ante. Na verdade, aquele era um amigo do Capitão que propositalmente se fizera passar por ele para evitar a emboscada. Sua morte foi lamentá-vel. O Capitão não esperava uma ação tão rápida e direta de seus inimi-gos. Mas choraria a morte do companheiro de armas depois:

– Onde está a minha família? – Eu não sei... – sua frase foi interrompida por um duro golpe. – Não tenho tempo a perder com mentiras inúteis! – respondeu o Ca-

pitão – você vai morrer mesmo, mas tem a possibilidade de escolher se vai ser com pouca dor ou com muita dor!

– Eu recebi ordens apenas para matá-lo, não sei onde elas estão, juro! – Quem deu essas ordens? – inquiriu, amarrando os pulsos do homem

em torno de uma pilastra. – Nós nunca fazemos contato direto, recebemos apenas ordens escri-

tas, que devemos queimar em seguida... O Capitão sacou uma faca. Sem anunciar seu movimento, cortou na

metade o dedo indicador da mão direita do interrogado, que soltou um grito pavoroso.

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– Estou apenas começando com você. Se quer me fazer perder tempo, terei prazer em gastar esse tempo com você. Onde estão minha mulher e minha filha?

– O senhor precisa acreditar em mim, jamais as vi. O Capitão assentiu com a cabeça, soltando o ar dos pulmões, como

quem está no limite da sua paciência. Aproximou a faca do olho do ra-paz. Este assumiu uma expressão de pavor, aguardando a próxima per-gunta e já cogitando até respondê-la. Mas a pergunta não veio. Veio a faca e arrancou seu olho da órbita. A vítima esqueceu a dor do dedo.

– Você pensa que eu estou brincando, não é? Com a vida da minha família? Pois você vai gostar das brincadeiras que ainda tenho reserva-das para você.

– Não tenho as informações que quer! Mate-me logo! – Muito fácil. Agora você quer morrer. Quando eu terminar, desejará

nem ter nascido. Um calafrio trespassou-lhe a espinha. Sentiu que era sério. Resolveu

falar: – Senhor... Elas estão mortas! – Mentira! Mentira! Seu cão! – socou-o algumas vezes na cara. – Não tenho por que mentir. Já estou morto. A intenção nunca foi de-

volvê-las. O senhor foi usado e deveria estar morto agora. – Quem? – Já disse, não sei... Não temos essa informação. O Capitão começou a bater com o fio de sua faca contra uma pedra,

ao tempo em que se dirigia ao seu prisioneiro: – Você sabe por que estou fazendo isto? Porque esta é a faca que vai

decapitá-lo... Não pode estar muito afiada. E vai estar cada vez menos, conforme você demore em responder o que quero. Quem?

O Capitão pensava em sua filhinha enquanto começava a cumprir sua promessa. O homem resolveu falar e antes de ter sua vida e seu martírio

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TALAL HUSSEINI 97

abreviados pela misericórdia de seu algoz, pronunciou um quase que chiado apenas:

– Ofis... Adaran e Haggi se encontraram na Real Sociedade para um duelo

com espadas como sempre que possível faziam. Os últimos dias tinham sido conturbados, com a morte do Rei e toda a tensão que precede a sucessão. Mas, finalmente, ambos haviam conseguido algum tempo em suas agendas cheias, sempre em nome de uma boa luta, e quem sabe uma conversa interessante.

Começaram de forma lenta, para aquecimento, sem trocar palavra. O ritmo do combate foi aumentando gradativamente. O som do metal com metal marcava a cadência. O combate já estava em frequência real quando Adaran obteve um êxito, ao desferir o que seria um corte no rosto de Haggi, que apenas deu seu sorriso irônico. Adaran não resistiu:

– Sinto-me bem hoje. Não lhe darei qualquer chance. Haggi fingiu ignorar a observação e concentrou-se ainda mais na luta,

pois, como o seu oponente, não gostava de perder. Adaran riscou-lhe o braço com a espada. Riu de novo.

– Em quem você aposta? – Você sabe que sempre aposto em mim, Adaran. – Para o reino... – Aposto no nome que está escrito na placa – respondeu Haggi, com

diplomacia. O combate continuava acirrado. Adaran atingiu Haggi com outro gol-

pe fictício, desta vez um corte horizontal no abdômen. – Aposto em mim – tripudiou Adaran. – Para o reino...? Adaran riu e não respondeu. Logrou outro golpe:

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– Para o combate é uma aposta ganha. Você me parece um pouco len-to hoje, Haggi. Algo o preocupa?

– Creio que é você que está inspirado, Adaran. Algo o anima? – O futuro do reino depende do nome que está escrito na placa. Espe-

ro que Sokárin tenha sabido escolher... Mas o fato de ele ter solicitado uma placa para troca no final... Não sei...

– Não sabemos se ele chegou a gravar a nova placa. E ao que parece nunca saberemos. Não apareceram vestígios da placa entre os pertences do Rei. Portanto, não há como saber se foi gravada.

Os dois contendores conversavam enquanto combatiam, mas estavam mais concentrados do que nunca. Mais nenhum golpe aterrou. Adaran prosseguiu:

– Soube que você vai ao interior. Alguma razão específica? – Vou a pedido do Senador Rohel. É missão oficial solicitada na qua-

lidade de Chefe do Conselho dos Anciãos, que é quem responde pelo Reino neste período de vacância.

– Qual o objetivo? – Apenas estar em contato com os chefes locais e assegurar que estão

tranquilos quanto à sucessão e que irão apoiá-la, seja quem for o esco-lhido. Quer vir junto, Adaran? Você parece ter bastante interesse nesse assunto.

– Para você não preciso fingir, Haggi, não tenho interesse em assumir o trono, pois é um desgaste muito grande. Mas sei que tenho chances e se for esse o caso, precisarei de todo apoio possível. Seria muito útil que os chefes locais estivessem fechados em torno do meu nome caso eu fosse o escolhido. Uma transição segura é melhor para todos. Os inte-resses deles seriam preservados...

– Você quer dizer os privilégios... – Quem não os tem? Veja você, Haggi, você é pago pelo Estado para

viajar, comer e beber bem, estar perto das mais belas mulheres. Imagine

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se isso acabasse de uma hora para outra! – ao terminar a frase atingiu novamente Haggi, eram cinco contra zero, encarou-o e continuou: – um rei detém o poder, atinge sem ser atingido. As alianças evitam conflitos. E todos queremos evitar os conflitos, não é Haggi? – acertou-o pela sexta vez – principalmente quando vamos perder...

– De fato, vou me lembrar das suas palavras quando estiver no interi-or do País. Você sabe que a diplomacia sempre traz saídas menos one-rosas do que os conflitos. Qualquer rei não prescindiria dos serviços de um diplomata hábil, principalmente quando pode perder... – ao concluir a frase, acertou o golpe fatal em Adaran, parando a espada junto ao seu pescoço – muitos golpes fracos não são tão efetivos quanto um bem aplicado. Isso é diplomacia.

Haggi baixou a espada e deu as costas para seu oponente: – Creio que basta, por hoje. Caso tivesse se voltado teria visto em Adaran um olhar ameaçador.

17.

akar passeava tranquilo na feira da praça central, que tinha lu-gar nos dias de saturno, como fazia todas as semanas. A feira

era pitoresca: barracas amontoavam-se lado a lado, num caos aparente, guardando certas regras de organização que podiam parecer muitas ve-zes misteriosas para um visitante, mas que faziam todo sentido para quem estava habituado a elas.

O pouco espaço que restava para o trânsito era plenamente ocupado por centenas de transeuntes que buscavam comprar algum utensílio ou simplesmente passeavam, como Bakar, olhando o movimento de pesso-as e de mercadorias.

B

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A compleição física de Bakar o fazia destacar-se do restante da mul-tidão, eis que seus ombros e cabeça ficavam acima do mar de cabeças que enchia as ruas dos arredores do centro da Capital. O gigante estava detido numa das barracas que comercializava artigos de cavalaria, como selas, ferragens e outros materiais. Bakar analisava uma ferradura, cujo jogo pensava comprar para seu cavalo, quando uma altercação a alguns metros de onde se achava chamou a sua atenção. Escutou alguns gritos de mulher e observou que cinco homens cercavam uma moça, tentando roubar sua bolsa de couro, à qual agarrou-se fortemente, a ponto de cair quando um dos assaltantes tentou puxá-la.

Abriu-se uma roda de pessoas em torno da situação, mas ninguém movia uma palha para ajudar a vítima do ataque. Um dos homens prepa-rava-se para chutar a moça caída, quando seu gesto foi interrompido por um soco no seu plexo que literalmente o arremessou por sobre uma bar-raca de frutas. O homem caiu sobre algumas abóboras, esmagando-as e ficando coberto daquela gosma alaranjada.

Bakar brandia seu enorme punho, ainda fechado, em direção aos de-mais agressores, que se entreolharam compartilhando o medo, depois de passar pelo companheiro desfalecido entre as abóboras, e sobre um ou-tro que parecia ser o líder, como que esperando um ato de coragem. Coagido moralmente, o suposto líder sacou uma faca e, sem muita con-vicção, arremeteu gritando na direção de Bakar, que sem esboçar ne-nhuma reação no semblante, apenas desferiu um chute que imprimiu a sola da sua bota na cara do seu oponente, interrompendo o grito e o ata-que. Faca para um lado e mais um agressor jazendo inerte do outro, este parecendo mais gravemente ferido que o primeiro.

O sólido cavalheiro voltou-se para os três restantes, que saíram em disparada por entre a população, ao ver que no calor da luta, sem perce-ber, Bakar simplesmente amassara a ferradura que ainda estava na sua mão esquerda. Os assaltantes desapareceram, sem que alguém os pudes-

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se seguir, pois já conheciam o ritmo da multidão. Cadenciavam sua cor-rida de modo a, incrivelmente, não esbarrar em ninguém.

O gigante voltou-se para a moça, que ainda estava caída, assistindo àquele confronto inusitado, admirada com seu defensor inesperado:

– Você está bem? – Sim, graças a você. Os olhos de Bakar brilharam. Nunca tinha visto uma mulher tão linda.

Morena. Olhos ligeiramente puxados e brilhantes. Cílios longos. Nariz fino. Dentes perfeitos. Cabelos negros lisos e compridos.

– Você poderia...? – disse a moça, estendendo a mão para que o dis-traído Bakar a ajudasse a se levantar.

– Claro – alçou-a como se fosse de papel. – O que você fez foi realmente impressionante... Fico agradecida. – Não precisa agradecer, qualquer um teria feito o mesmo. – Mas de todas as pessoas que estavam aqui, ninguém fez. Você é

muito forte... Bakar enrubesceu. Não sabia muito bem como lidar com aquele tipo

de situação, uma mulher, tão bonita... Talvez fosse a dama que ele espe-rava há tanto tempo...

Já em pé, a moça limpou sua roupa batendo o pó com a mão. Era es-guia, de porte elegante. Havia cortado o braço na queda. Bakar interce-deu:

– Você está ferida. Precisamos ver esse corte. – Não é nada, apenas um arranhão. – Mesmo assim é melhor você vir comigo dar uma olhada nesse cor-

te, minha casa não fica longe daqui – disse com inocência – só preciso pagar por esta ferradura antes.

Na barraca de onde retirara a ferradura agora imprestável, o dono se recusou a receber o pagamento e disse:

– Não, o senhor é um herói, não precisa pagar.

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Bakar deixou as moedas correspondentes ao valor da ferradura sobre o balcão e voltou-se para a sua protegida sob os protestos do vendedor que insistia em não receber.

– Vamos? A moça o acompanhou. Ao chegar na sua casa, antes de entrar, Bakar

caiu em si. Como convidava uma moça solteira, que acabara de conhe-cer, já para entrar na sua casa?! Estúpido. Desculpou-se:

– Puxa, me desculpe! Que falta de educação a minha convidar al-guém que acabei de conhecer, uma moça, para entrar na minha casa... Acho melhor que você faça um curativo no seu braço em outro lugar. Desculpe mesmo... – Bakar parecia sinceramente constrangido.

– Não se preocupe, você não precisa se desculpar, eu sei que suas in-tenções são as melhores possíveis. Você me parece alguém confiável. Vamos entrar. Mas posso ao menos saber o nome do meu salvador?

– Bakar. – Combina com você. Eu me chamo Mirta. Ofis recebeu um envelope cor púrpura. Não continha nada. Ele sabia

que devia dirigir-se a um local previamente designado num horário já estabelecido. Ofis não era homem de grandes alternâncias de humor, mas aquela mensagem velada o deixava irrequieto. No horário previsto, obedeceu.

Cuidou que ninguém o visse entrar na velha casa. Entregou o envelo-pe a dois guardas encapuzados, que lhe franquearam a passagem. De-pois de passar por entre móveis velhos e empoeirados, Ofis abriu um alçapão oculto e desceu escadas íngremes. Numa antessala, vestiu uma túnica negra e prosseguiu até ganhar um grande salão retangular, de alto pé direito, e teto sustentado por seis colunas três de cada lado. O chão de granito polido formava desenhos de estranhas mandalas. Tomou po-sição e ali permaneceu, imóvel.

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Também receberam o envelope de cor púrpura outras três pessoas, que acorreram ao mesmo local, adotando o mesmo procedimento de Ofis. Todos só se encontraram no salão, já com suas túnicas e capuzes, o que indicava que os envelopes tinham uma significação de horário diferente para cada uma daquelas pessoas.

Os quatro, que tinham posições preestabelecidas, voltaram-se para uma espécie de altar que ficava numa das extremidades da sala e se ajo-elharam, tocando a cabeça no chão à sua frente. Entrou uma pessoa nu-ma túnica de cor púrpura e acendeu o fogo no altar. Derramou sobre o fogo um líquido vermelho que estava num pequeno recipiente de vidro. Um cheiro férreo espalhou-se pelo ar. Sua voz reverberou naquele espa-ço:

– Meus caros! Chamei-os aqui porque vocês são os meus colaborado-res mais próximos. Uma grande batalha se aproxima. O reino passa por um período de transição e ao que tudo indica isso não acontecerá da forma tranquila que esperávamos. Sokárin fugiu ao controle nos seus últimos momentos de vida. Entretanto, isso não importa mais. A ceri-mônia da colocação da nova placa na estela não ocorreu, o que significa que o nome que lá está é o meu. Se a nova placa tivesse sido encontrada e destruída, as garantias seriam maiores. Como não foi, há possibilidade de já ter sido gravada e alguém a encontrar, e pretender com isso justifi-car uma luta pelo poder. Mas mesmo que isso venha a acontecer, não podemos abrir mão do que é nosso por direito. A lei do reino determina que a alteração somente se perfaz com a cerimônia de troca. Portanto, vale o nome que lá está agora. Lutaremos até o fim, e levaremos a morte aos nossos inimigos e a todos aqueles que se interpuserem em nosso caminho rumo ao poder. Nosso Mestre nos determinou que estejamos atentos a uma pessoa em especial, e ao grupo que o cerca: Kadriel. Ele é um funcionário sem expressão, de segundo escalão, mas Ayamarusa deve ter suas razões para nos dar essas ordens, e não nos cabe questio-

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ná-las, e sim segui-las. Cada um já tem suas instruções com relação a isso. Podem levantar-se agora.

Os quatro obedeceram. Ofis ouvia atentamente. Nenhum deles sabia quem eram os demais.

Ofis desconfiava de algumas pessoas, mas não tinha certeza. Ainda não era o momento de se conhecerem. Talvez depois que estivessem assegu-rados no poder.

Sob o capuz da túnica púrpura, apenas se viam olhos brilhantes, metá-licos, do condutor da reunião, a sugerir argúcia e determinação. Ele con-tinuou seu discurso:

– Nós que aqui estamos somos o centro de tudo o que vai acontecer neste país daqui por diante. Somos os pilares onde se sustentam milha-res, milhões de aliados. Tenho estabelecido contatos com pessoas im-portantes que apoiarão nossa causa. Abaixo de nós há um exército pron-to para a batalha. Acima de nós, estão forças que mal podemos compreender, mas que detêm poderes que nos levarão ao domínio. Nos-sa missão imediata é encontrar a placa gravada por Sokárin antes de morrer. Mas temos de estar preparados para enfrentar qualquer batalha.

Seus olhos brilhavam. Ele já sentia o poder próximo de suas mãos, bastava agarrá-lo.

– Sei que todos estão cientes de suas tarefas. Depois conversarei com cada um em particular para verificar o andamento dos planos e revisar os detalhes. Alguma dúvida? Que bom! As comunicações continuarão sendo efetuadas pelas cores dos envelopes e pelos sinais nos cumpri-mentos. Agora vão! A vitória se aproxima! – e dirigindo-se a Ofis, sem identificá-lo perante os demais: – Você, permaneça, pois tenho mais um assunto a tratar.

Depois que os outros se retiraram, o homem de púrpura dirigiu-se a Ofis vociferando:

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– Soube que você realizou uma ação contra o Capitão… – Ofis assen-tiu com a cabeça – Mas ele ainda caminha entre os vivos…

– Meus homens falharam, senhor... – Não, não – respondeu com tranquilidade, aproximando-se do seu

interlocutor, que estava de cabeça baixa – VOCÊ falhou! – gritou a ple-nos pulmões.

Caminhou em torno de Ofis e prosseguiu, novamente em tom calmo: – O primeiro passo para conseguir o que desejamos é assumir nossos

erros. Quem lhe deu a ordem para matar o Capitão? – Ninguém, senhor, mas eu pensei… – Faça-me uma gentileza: não pense! Limite-se a cumprir as minhas

ordens! Eu tenho planos para o Capitão. Ele serve melhor aos nossos propósitos vivo. Nunca mais desobedeça a uma ordem minha nem tome iniciativas que podem prejudicar todos os nossos planos. Nesse sentido foi bom você ter falhado, mas isso não justifica nem a desobediência e nem a incompetência. Você agiu por conta própria e ainda falhou. Se você não tinha pessoas habilitadas, deveria ter feito isso você mesmo. Mas essa foi sua penúltima falha... Erros não são mais aceitáveis a partir de agora. Sua próxima falha será a última... e tenho certeza de que você a cometerá! Mas agora os planos em relação ao Capitão... ele voltará para buscar a família, pois não acredita que sua mulher e sua filha estão mortas, e terá uma grande surpresa! Viverá, mas em desgraça...

– Talvez seja um erro... Penso que devíamos eliminar logo o Capi-tão...

– Daqui em diante guarde para si suas opiniões estúpidas. O Capitão fugiu ao nosso controle, é um elemento perigoso, mas morto não nos serve, será mais útil vivo, porém desacreditado. Ficará destruído, acaba-do, mas não terá a chance de abandonar tão facilmente seu purgatório, vamos destruir a sua essência – olhou novamente para Ofis, que parece

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ter-se animado ao lembrar sua missão e prosseguiu explicando com de-talhes como ele deveria proceder dali em diante.

18.

adriel ficara muito impressionado com a experiência que Ravi lhe proporcionara. Kadriel sentia ter descoberto seu Mestre, o

que o enchia com um sentimento muito bom, seu coração parecia muito grande para caber no peito, queria expandir-se, explodir de alegria.

Escolheu o caminho mais longo para voltar para a sua casa, aquele que margeava o rio que cortava a Capital. Era um passeio muito bonito. Kadriel aproveitava para colocar em ordem seus pensamentos, para absorver as novas situações que se desencadeavam rapidamente ao seu redor. Parou defronte à água corrente e permaneceu a olhá-la durante vários minutos. Colheu uma rosa e lançou-a ao rio, numa espécie de cerimônia, muito íntima, de contato direto com a natureza, como gesto de agradecimento por tudo que a vida lhe havia dado e fundamental-mente por ter encontrado um Mestre que pudesse guiá-lo nesta grande vida.

Na beira do rio, com carinho, segurava a rosa e, antes de lançá-la, pensou:

“Vai, rosa... Como símbolo daquilo que de melhor vive em mim, de alguma maneira toque o que de melhor vive nesse rio... E que possam os deuses saber que já não estou só. Tenho Mestre e sei que através dele todos os Mestres vivem. Sonho em ser digno de tal honra e pretendo servir-lhes inexoravelmente.”

Deixou a bela rosa vermelha cair ao rio e lentamente começar a desli-zar em sua suave e delicada correnteza.

K

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Ajoelhado, observando a rosa, algo estranho aconteceu: Kadriel sen-tiu que por alguns instantes tudo começou a ficar vermelho e sentia um frio estranho percorrer seu corpo. Quando se deu conta, estava mergu-lhado no rio e tudo se movia devagar... Tentou nadar, mas era impossí-vel... Percebeu que ele era a rosa. Não ficou desesperado, apenas não compreendia o que estava acontecendo. Olhava ao seu redor e via o mundo passar. Era reconfortante a maciez do rio, que o acolhia perfei-tamente em sua fluidez. De repente, Kadriel viu uma luz se aproximan-do e pergunta:

– Quem és? A luz respondeu: – Sou a consciência unificadora. – O que queres de mim? – Não posso pedir algo que ainda não possuis. – O que pretendes? – Que entendas... – O que queres que eu entenda? – O teu destino. – Diz-me aonde devo chegar, e irei. – Chegar não é tão importante quanto é caminhar. É a trilha que con-

ta, é a jornada que modifica. – Mas não se descobre o mistério quando se chega a ele? Não deve-

mos chegar a algum lugar para chegar a esse mistério? – O mistério que se encontra no final é o mesmo mistério que se en-

contra no início e no meio... Para a rosa não interessa o mistério do seu destino, mas a jornada no rio.

– Desculpe-me a impertinência, consciência unificadora, mas diz-me por quê.

– A rosa se transforma no rio, e o rio na rosa, na medida em que se-gue sua jornada, pois a rosa que saiu de algum ponto não é a mesma de

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hoje, nem será a mesma amanhã. Quando a rosa começou a fazer parte do rio, ele também deixou de ser o que era e a cada instante se torna um novo rio. A rosa segue o fluxo do rio, e o rio se adapta à forma da rosa, que a cada instante já não é a mesma. A jornada é evolução, e o mistério da evolução transfere-se para a rosa e para o rio a cada instante. O im-portante não é a rosa no rio, mas a rosa se transformar em rio.

– Porque rosa e rio são um só... – Esse grande rio que vês nasceu de um pequeno córrego, que por sua

vez nasceu da união de pequenas gotas, que por sua vez nasceram da força invisível da natureza. A rosa que és nasceu de um agregado de energia, que por sua vez veio da terra, que por sua vez foi alimentada por uma força invisível. Essa força invisível faz crescer e viver os cabe-los, a grama, as unhas, um feto, um vento, uma estrela. Essa força é a vida que unifica todas as coisas, que dá sentido a todas elas. Tanto rosa quanto rio compartilham da mesma força invisível da natureza: a vida. Evolução, vida e jornada são uma mesma coisa.

– E como posso unir coisas que parecem tão distintas? – Através da consciência unificadora. Por um instante, Kadriel sentiu-se confuso, e em alguns segundos de-

pois abriu os olhos e viu que nunca havia saído da posição em que esta-va e do ponto em que se encontrava, na beira do rio. Embora nunca ti-vesse saído do lugar, já não era mais o mesmo. Talvez até tivesse saído do lugar de uma forma mágica... Mas isso não era importante. Teve a nítida impressão que de alguma forma conhecia aquela luz que vira no rio e que o transportara para dentro d'água, transformando-o numa rosa. Sim, aquela luz, a consciência unificadora, sempre estivera dentro de-le...

O caminho de volta à cidade transcorreu tranquilamente, sem qual-

quer incidente. Kadriel sentia-se leve. Mais do que isso: sentia-se outra

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pessoa, como se tivesse morrido e nascido de novo. De certa forma, era isto que tinha acontecido: Kadriel tivera um nascimento espiritual.

As paisagens lhe pareciam mais belas, as cores mais nítidas, o ar mais puro, sentia-o encher seus pulmões. Sentia o oxigênio espalhar-se por todas as células do seu corpo, através da corrente sanguínea. Nunca se sentira tão bem.

Kadriel chegou a pensar que estranharia o ambiente urbano depois do tempo que passou em meio à natureza, como no seu sonho com Mulil e o falcão, mas para sua surpresa, ao contrário, sentia-se preparado para qualquer situação, para qualquer desafio.

Agora, já via Ravi de modo muito diferente do que quando o conhe-cera. Enxergava toda a energia que ele emanava. Essa energia o fazia parecer mais alto e mais forte do que ele era fisicamente. Seus olhos percorriam constantemente todo o ambiente em que se encontrava, en-viando a seu cérebro com rapidez um relatório completo e detalhado de tudo: os objetos e a sua disposição, as pessoas presentes, seus proble-mas, preocupações, interesses. As emoções e pensamentos pairando à volta. Não que tudo isso o afetasse, ao contrário, estar consciente do que ocorria ao seu redor lhe permitia estar mais centrado. Suas emoções também pareciam sempre sob o mais perfeito controle, mas isso não o tornava frio, ao revés, era bastante caloroso e sempre pronto a ajudar a quem quer que fosse. Mas o que mais impressionava Kadriel era a men-te de Ravi. Ele sabia tantas coisas, que parecia impossível para um ser humano aprendê-las todas em uma única vida, ainda que passasse o tempo todo a estudar.

A mente de Kadriel trabalhava sem cessar. Ele tinha dificuldade em compreender a separação entre os homens, separação esta que afastava a possibilidade de a humanidade retomar a trilha divina, o caminho da hierarquia branca. Precisava ser restaurada a união mágica, liberando uma energia tal que mudasse os rumos da humanidade como era então

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conhecida, permitindo que a verdadeira sabedoria voltasse a ser transmi-tida aos homens, ligados ao raio de luz divina, que ilumina desde o me-nor dos seres até chegar ao Sol fulgurante e sublime do Deus único e infinito.

Kadriel assustava-se com seus próprios pensamentos e com a grande-za dessas ideias, que ao mesmo tempo eram muito belas. Mas por que alguém quereria impedir essa evolução? Por que há na terra seres que não desejam a evolução da humanidade, mas sim seu afastamento cada vez maior do que é espiritual e divino, o que a levará à inafastável des-truição.

Não importavam os porquês, mas sim o fato de que há tais seres, que pretendem corromper a ordem do universo, rompendo o fio que une a humanidade à sua verdadeira essência divina, deixando não mais do que cascas vazias...

Sim, ele lutaria até o último fio de suas forças para que isso não acon-tecesse, para que essas forças obscuras não triunfassem sobre o que é bom, belo e justo...

19.

fis deixou o palácio no mesmo horário de todos os dias. Per-manecia realizando suas funções – que ninguém sabia dizer ao

certo quais eram – junto ao Primeiro Ministro. Este o tratava como a um empregado qualquer, não denotando de modo algum que pudessem ter outras ligações que não as estritamente ligadas ao ministério. Como sempre, ia a pé. Seguia um caminho que atravessava certas ruelas obs-curas da cidade, nas quais poucas pessoas de bem ousariam passar, mesmo durante o dia.

O

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Quando passava por um beco, pressentiu um ataque vindo de um can-to escuro. Teve tempo apenas de se esquivar parcialmente. A adaga veio ao seu encontro num forte golpe desferido de cima para baixo. Seu an-tebraço foi ferido, mas seu peito, que era o alvo, foi poupado. Recuou, procurando divisar seu adversário, que seguiu atacando. Desta vez, Ofis teve mais sucesso e conseguiu, sem ser atingido, fazer com que seu oponente largasse a arma.

Mas o embate prosseguiu. O homem de preto – pela força dos golpes, sem dúvida era um homem – arrojou-se novamente contra Ofis, que não foi rápido o suficiente para impedir que um soco lhe atingisse a boca. Sentiu seu lábio inferior latejar. Era um golpe duro. Sentiu sua consci-ência desvanecer por uma fração de segundo. Qualquer outro teria caí-do. Reagiu, logrando derrubar seu oponente, que rapidamente colocou-se em pé mais uma vez.

Quando Ofis finalmente pôde ver seu rosto, tornou-se irônico: – Capitão?! Por que não estou surpreso? – Onde está minha família, seu canalha? Elas estão vivas? – Eu não sei do que você está falando... – sorriu, cínico. – Eu matei os homens que você enviou para me emboscar. Um deles,

antes de morrer, disse seu nome. Sei que você é responsável pelo desa-parecimento de minha mulher e minha filha e imagino que está por trás também da morte do Rei. Tenho provas de que não foi uma morte natu-ral...

Um traço de sombra passou pelos olhos de Ofis ao ouvir essa frase, mas respondeu com sarcasmo:

– Ninguém acreditará nessa sua absurda teoria da conspiração. Sua voz será um eco solitário. Você não tem prova alguma de nada, e ainda que tivesse facilmente seria desmentida.

– É o que veremos! – ao mesmo tempo em que terminava a frase, já havia agarrado Ofis novamente – Você vai me dizer onde elas estão.

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Ofis desvencilhou-se do Capitão e o atingiu com um violento soco na ponta do queixo. O Capitão cambaleou quando outros dois golpes bem ajustados o levaram ao chão. Conseguiu, mesmo grogue, aparar um chu-te que vinha em direção ao seu rosto. Derrubou seu oponente e lançou-se sobre ele. Mesmo combalido, ainda conseguia manter um fio de consciência de seus movimentos, fruto de muitos anos de treinamento. Atingiu Ofis com alguns socos, mas este não parecia acusá-los, parecia feito de madeira. O Capitão, ao contrário, já se ressentia das pancadas. Mas o coração o mantinha no combate.

A mão dura de Ofis o atingiu no fígado. O Capitão dobrou-se. O se-gundo golpe veio agudo direto no seu baço. Parecia ter sido com a ponta dos dedos. Sua visão embaçou. Uma testada em seu nariz terminou de escurecê-la. Somente o ódio e a adrenalina o mantinham acordado. Não caiu porque uma tenaz o agarrou pelo pescoço, pressionando sua tra-queia. Ofis o segurava forte. Aproximou seus lábios do ouvido do Capi-tão e sussurrou:

– Você quer saber como elas morreram? O Capitão tentou desvencilhar-se em vão. Também não conseguia fa-

lar pois sua respiração era obstruída pelos dedos firmes de Ofis. Apenas fazia debater-se. Seu algoz continuava:

– Primeiro foi sua mulher... A menina assistindo. Depois a criança... Não vou perder mais tempo com você. Sua alma me pertence. Você é um morto-vivo. Extraímos qualquer coisa que você pudesse ter de bom em seu coração. Tente viver sem esperança, vagando pelo mundo, per-dido... Elas estão esperando por você em casa!

Ao terminar a frase desferiu outro soco no fígado do Capitão, soltan-do ao mesmo tempo seu pescoço. Este caiu sobre as próprias pernas. Um último chute ainda lhe extraiu alguns dentes. Pensou ter ouvido Ofis rir enquanto virava as costas. O Capitão estava caído de cara na terra vermelha.

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O curioso era que aquelas últimas palavras de Ofis ao contrário de o devastar, reacenderam suas expectativas de encontrá-las. Sim, elas o estavam esperando em casa... O Capitão sorriu por trás do semblante desfigurado. Precisava reunir suas últimas forças... Queria ver sua es-posa e filha... Saudade... Levantou-se e arrojou-se sobre Ofis, derruban-do-o.

A luta recrudesceu. O Capitão, que parecia batido, recuperou-se acer-tando alguns golpes sobre o outro. Ofis parecia ter finalmente se cansa-do e esmorecia, já não opunha tanta resistência. O Capitão sentia que a situação virava a seu favor. Quando dominava o combate, Ofis conse-guiu espetá-lo com algo pontiagudo. Não era um ferimento grave, mas sua vista ficou um tanto embaçada, seu corpo mais mole, seus pensa-mentos confusos. Ofis tratou de fugir.

O Capitão o perseguiu pelas ruas, mas somente lograva enxergar o su-ficiente para ver sua silhueta, e se movimentar o suficiente para segui-lo de longe. Viu, à distância, Ofis entrar numa casa. Alguns minutos de-pois chegou à porta e entrou atabalhoadamente. Somente então percebeu que era a sua própria casa. Sua esposa estava sentada no chão, coberta de sangue, com as costas apoiadas sobre a parede. Tinha vários cortes sobre todo o tórax, e uma grande faca enterrada no peito sobre o cora-ção. O Capitão jogou-se de joelhos ao seu lado e num impulso reflexo retirou a faca, largando-a ao lado. Tentava, em atitude desesperada fe-char com as mãos os ferimentos que sangravam sem parar, principal-mente aquele de onde retirara a faca. A pobre mulher ainda estava viva, mas apenas por alguns segundos... eram as últimas convulsões. Nada falou, mas ainda pôde voltar seus olhos para o marido e em seguida di-rigi-los para o outro canto da sala.

Lá estava a sua filha, caída no chão. O Capitão, com a mente obnubi-lada pela substância que a picada certamente lhe injetara, com as emo-ções absolutamente fora de controle pela situação que o envolvia, apa-

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nhou-a nos braços, encostando o ouvido em seu peito. Ela fora vítima da mesma arma que sua mãe, mas ainda vivia. Era apenas um sopro de vida. Seus olhos de criança, marejados, olhavam com ternura para o pai, como que mais a procurar tranquilizá-lo do que a pedir auxílio. Na sua percepção de infante, sabia que não havia mais auxílio possível. Conse-guiu sorrir, fechou os olhos e expirou...

O pai a abraçava, inerte, contra o peito e soluçava, chorando copio-samente.

Foi quando ouviu os chamados dos soldados do lado de fora, avisan-do que a casa estava cercada e que iriam entrar. O Capitão ainda estava confuso. Foi até a janela e verificou que não era um blefe. Muitos sol-dados de infantaria e arqueiros estavam de prontidão. O Capitão sabia que seria suspeito, caíra estupidamente numa armadilha. E sua família fora vítima desse pesadelo cruel. E elas não estavam mais com ele... As lágrimas verteram novamente, mas ele as reteve. Precisava se controlar, pensar em como contornar aquela situação. Só havia uma maneira: fu-gir... Se fosse preso, não teria como provar sua inocência. Por que não o haviam matado?

O oficial responsável pelo cerco o reconhecera de sua aparição na ja-nela e gritou:

– Capitão! Sabemos que o senhor está aí dentro. Houve um chamado da vizinhança devido ao grande barulho proveniente de sua casa. Está tudo bem? Foi relatada situação de violência.

Sim, precisava escapar, pensariam que ele era o responsável pelas mortes.

O Capitão sempre fora precavido, como exigia a sua profissão. Sua casa possuía uma saída subterrânea que ele mesmo escavara até uma rua paralela. A entrada ficava atrás de um armário no porão. Foi até lá e evadiu-se, do modo que lhe permitiam as dores do corpo e da alma.

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Quando os soldados adentraram à casa, ele já estava fora de alcance. Todos ficaram horrorizados com a chacina. O Capitão enlouquecera... e assassinara sua família. A notícia correu rápido. Em poucas horas, era o homem mais procurado da Cidade. O Conselho dos Anciãos, ao qual cabiam as responsabilidades do reino até a abertura da sucessão, decla-rou imediatamente sua exoneração da Guarda Real. De soldado real, o Capitão passava a foragido da justiça.

20.

adriel foi almoçar com Haggi. Sabia da viagem que este faria ao interior do País e não queria deixar de lhe desejar boa sorte.

Haggi ficara muito tempo fora, mas Kadriel o considerava um bom a-migo e excelente cavalheiro. O encontro foi numa discreta tasca no bair-ro antigo da Capital. Esse local consistia num emaranhado de ruelas e becos que formavam um labirinto impossível de decifrar para quem não o conhecesse. Mas os dois jovens se haviam praticamente criado naque-le local. Guiavam-se ali melhor do que a grande maioria das pessoas.

O local a que se dirigiram ficava numa dessas ruas. A entrada era abaixo do nível da rua – era necessário descer uns quatro degraus para ganhar o interior. O proprietário era um velho conhecido dos dois, cha-mado Ragatis. Era um tipo rosado, possuidor de uma enorme barriga, cultivada à base de muito vinho e muita comida. Desde que conheciam aquele local, o que fazia muitos anos, aparentava ter a mesma idade. Sempre usava um avental surrado e camisa de mangas curtas, não im-portava o quão rigoroso fosse o inverno. Careca, com grandes orelhas, nariz de batata, olhos pequenos e perspicazes, sorriso franco e mãos gordas, quando viu Kadriel chegar, deu apenas um sorriso e indicou

K

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com um rápido movimento de olhos a mesa em que Haggi o esperava. Quando Kadriel sentou-se, o taverneiro perguntou-lhes:

– O de sempre? Diante do assentimento, trouxe uma jarra de vinho da casa e um prato

de petiscos. – E, então, meu amigo, soube que está de viagem marcada para o in-

terior? – Sim, o Chefe do Conselho dos Anciãos me envia para assegurar a

colaboração das lideranças regionais para com o sucessor. O equilíbrio conseguido pelo Imperador Gur Medhavin deve ser mantido.

– Concordo que isso seria muito bom, mas tenho minhas dúvidas quanto à tranquilidade desta sucessão – lançou Kadriel.

– Sim, também percebo certas tensões no ar. – O que pensa o Primeiro-Ministro? – Adaran é um homem difícil de decifrar... – Mas vocês são companheiros de espada na Real Sociedade... E para

um homem observador como você não deve ser difícil detectar suas intenções.

– Adaran sabe perseguir seus objetivos, é tenaz e determinado para conseguir o que quer.

– Ele quer o reino? – Por mais que seu discurso seja desinteressado, creio que ele não

desgostaria de assumir o trono, já que gosta do poder. Diria que ele pen-sa nessa possibilidade, e não hesitaria em comprar os apoios necessários para isso com privilégios, mordomias e presentes. Os chefes do interior são terreno propício para esse tipo de ação, pois querem manter seus domínios a qualquer preço.

– E se a sucessão não transcorresse de forma pacífica? – O que poderia suceder? O nome de sucessor está na placa e ponto

final, não há o que discutir.

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– Todos sabem que Sokárin solicitou uma nova placa, o que indica que pretendia trocar o nome do sucessor.

– Mas não trocou, não houve cerimônia de substituição da placa... – Em contrapartida, a nova placa não foi encontrada, o que significa

que poderia já estar gravada. Isso indicaria que o nome que lá está não reflete a vontade de Sokárin. A troca, a cerimônia, é apenas uma forma-lidade.

– Kadriel, nós nos conhecemos há muito tempo. Você está querendo me dizer alguma coisa?

– Sim, Haggi, na verdade estou. Mas isso não pode sair desta mesa... O outro concordou com a cabeça. – O nome que estaria ou que está na nova placa é o meu. Haggi não conseguiu esconder sua surpresa. Os dois amigos se olha-

ram, em silêncio, por alguns momentos. Kadriel esperou que Haggi fa-lasse:

– Como você pode saber disso? – O próprio Sokárin me falou, antes de morrer. Disse-lhe que não es-

tava preparado para tal encargo, mas ele me pediu que aceitasse pois sabia melhor do que eu quem estava ou não preparado...

– Mas por que ele não trocou a placa? – Ao que parece, não teve tempo. Ou a idade o traiu ou sua morte foi

antecipada... Não duvido disso. – Mas, quem...? – Muitas pessoas poderiam ter interesse em abreviar a vida do Rei,

mas o maior suspeito está com seu nome gravado na placa atual... Só saberemos no dia da abertura.

– Sempre intuí que você seria um grande governante um dia, só não imaginei que pudesse ser tão cedo. Você é jovem, haveria muitas resis-tências... Mas de qualquer modo parece que isso não importa mais, a lei estabelece que vale o nome da estela.

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– Mas nós sabemos que esse não é o nome que Sokárin desejava. E ao menos uma pessoa neste mundo sabe que sua vontade era que eu assumisse o governo, mesmo contra a minha vontade: eu.

– Confesso que agora seu tom de voz deixou-me preocupado, Kadriel. Você não pensa em questionar o sucessor?

O silêncio de Kadriel foi bastante eloquente. Haggi passou a mão es-querda sobre o olho, descendo até o queixo e soltando a respiração, num gesto que lhe era peculiar em momentos de grande preocupação. Co-nhecia o amigo e sabia que ele falava sério. Fazendo um sinal positivo com a cabeça, como se tivesse entendido, e, franzindo o cenho, prosse-guiu:

– E o que pretende fazer? – Primeiramente, encontrar a placa que estava em poder de Sokárin.

Ele mesmo me disse que eu deveria lutar se fosse preciso. A placa com meu nome justificaria de alguma maneira essa luta. Ainda que não pe-rante a lei, mas ao menos perante o povo. Tenho a convicção de que Sokárin a gravou, caso contrário não a teria escondido.

– Na sua linha de raciocínio, o que garante que as mesmas pessoas que assassinaram o Rei não teriam destruído a placa?

– Garantir...? Nada. Mas a justiça não tem garantias entre os homens. Não passa de um ridículo arremedo da justiça dos deuses. Mas isso não nos afasta do dever de buscá-la... – e mudando de direção a conversa, emendou: – preciso saber de uma coisa, Haggi.

O diplomata permaneceu a fitá-lo com olhar inquisidor. Kadriel pros-seguiu:

– Se você está comigo nesta jornada, até o fim, custe o que custar. Haggi não hesitou nenhum instante em responder, sustentando com

firmeza o olhar forte de Kadriel: – Sim, meu amigo, pode contar comigo. Até o fim. Custe o que cus-

tar.

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Os dois se cumprimentaram de modo fraterno e deixaram o local se-paradamente.

Bakar não via a hora de seu encontro com Mirta. Estava encantado

desde o primeiro, e até então único, encontro. Sonhara com ela nas três noites que se haviam passado desde então. Avistou-a no local onde ha-viam combinado. Estava linda! Cabelos soltos sobre os ombros, pele lisa. Bakar foi em sua direção. Apesar do tamanho, ele não era desajei-tado. Mas desta vez a emoção o fazia parecer um rinoceronte solto num parque. Só não derrubou pessoas pelo caminho porque, qual fosse um rinoceronte de verdade, todos se afastavam à medida que ele se aproxi-mava.

Finalmente chegou perto de Mirta, que sorria discretamente e o rece-beu com afeto:

– Como você está elegante, Bakar! Não quer se sentar um pouco? Ruborizado com o inesperado elogio, sentou-se. Mirta continuou: – Um chá? – Sim, claro. – Onde você trabalha, Bakar? – No ministério, com meu amigo Kadriel. Você precisa conhecê-lo, é

muito boa pessoa. Aliás, vou encontrá-lo daqui a pouco, se quiser vir comigo...

– Claro, eu adoraria passar mais tempo com você... Após o chá, os dois caminharam pelo parque, em direção ao escritório

do ministério, onde encontrariam Kadriel. Lá chegando, foram até a sala em que Bakar trabalhava. Bakar fez festa com seu amigo – na verdade, queria mostrar sua nova amiga:

– Olá Kadriel, quero lhe apresentar uma pessoa.

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Kadriel voltou-se. Ao vislumbrar a bela morena, teve de disfarçar sua surpresa ao ver tão formosa dama em companhia de Bakar. Não que ele não merecesse, mas não era comum vê-lo acompanhado, devido à sua timidez. A moça foi discreta. Kadriel não pôde deixar de reparar nos seus olhos negros. Sua primeira impressão foi de que havia bondade naquele olhar. A moça era realmente muito bonita.

Bakar se entreteve com algumas pessoas que o chamaram, deixando Mirta a sós com Kadriel, que notando seu desconforto procurou deixá-la à vontade:

– Você quer beber alguma coisa? – Não, obrigada, acabamos de tomar um chá. – Sim, claro... – e tentando manter a conversa – faz tempo que você

conhece Bakar? – Para dizer a verdade, acabamos de nos conhecer, em circunstâncias

engraçadas... – ela interrompeu a frase, como se não quisesse perder o tempo de seu interlocutor com assuntos pessoais.

– Sim, continue... você ia dizendo como o conheceu. – Não... deixe que ele lhe conte... – Mas vocês dois estão...? – fez uma expressão facial, como querendo

que ela completasse a frase, mas Mirta se manteve em silêncio. Então ele insistiu: – você sabe...

– Se você quiser saber alguma coisa, basta perguntar. – Vocês estão namorando? Ela deu uma gargalhada, mas não com desdém. Ao contrário, com ex-

trema espontaneidade: – Não. Acabamos de nos conhecer. Tivemos uma simpatia mútua e

imediata, só isso... Acho Bakar bondoso e engraçado, mas pretendo ser apenas sua amiga.

Kadriel teve uma sensação estranha diante daquelas palavras. Conhe-cia seu amigo e já notara que ele estava completamente apaixonado pela

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moça. Ela não parecia ter os mesmos sentimentos em relação a ele, o que podia não ser muito bom. Mas algo dentro de Kadriel gostara da-quelas palavras. Ela era realmente muito bonita...

21.

aggi partira cedo, junto com Tarin, seu empregado e braço direito. Tarin cuidara de seu pai e agora cuidava de Haggi.

Não lhe deixava faltar nada. Antecipava suas necessidades, trazendo as soluções antes que Haggi sequer pensasse que tinha um desejo. Era um homem de certa idade, apesar de parecer bem mais jovem do que real-mente era. Pele parda, sem nenhuma ruga, cabelos grisalhos, olhar dis-creto, mas profundo, o que só um observador mais atento poderia ver. Já havia providenciado tudo o que seria necessário para a viagem por terra. Os barcos não agradavam a Haggi, que preferia a possibilidade de du-rante o trajeto encontrar-se com pessoas do povo, cujas palavras traça-vam o mais fiel retrato do país e dos anseios da população.

Viajavam a cavalo, mas com vestimentas comuns, que não denota-vam a origem nobre de Haggi. Não era vantajoso chamar muito a aten-ção naquelas estradas. A meio caminho da cidade que ficava sob o do-mínio de Nakan, líder da Aliança dos Doze, pararam numa estalagem, pois já se fazia noite. Depois de instalados, foram até a taverna que fun-cionava no mesmo local. Estava lotada. Muitas pessoas bebiam, conver-savam em voz alta e gargalhavam. Discretamente, se instalaram numa mesa no fundo do salão, de costas para a parede e de frente para a porta de entrada.

Daquela posição, Haggi observava todo o ambiente. Rapidamente ha-via contado quantas pessoas havia, e sua disposição nas mesas, quais

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estavam já alterados pelo vinho, quais poderiam ser perigosos, e todas as informações que lhe pudessem ser úteis. Tal habilidade, que era para ele um hábito, fora fruto de muito treinamento. Haggi observava o esta-lajadeiro, um homem de meia idade que não estava bebendo álcool e que, como ele, perscrutava a tudo e a todos. O homem estava suado e com aspecto cansado, por estar procurando atender a todos, mas feliz por ver seus lucros indo de vento em popa. Haggi tomava sossegado uma sopa acompanhada de vinho e percebeu a entrada de três homens de feição sisuda. Imediatamente sabia que causariam algum tipo de pro-blema. Reparou que o estalajadeiro também notou a presença dos ho-mens. Ambos, entretanto, permaneceram impassíveis.

Haggi, automaticamente, avaliou que objetos naquele local poderiam transformar-se em armas, para uma eventualidade. Eram, sem dúvida, caçadores, pois portavam arcos e aljavas, bem como traziam os ombros guarnecidos por peles de animais abatidos. Foram em direção a uma das mesas, onde estava sentado um jovem corpulento, que Haggi identificou como sendo um ferreiro ou algo do gênero, pelas roupas e tipo físico. Usava uma camisa sem mangas, nos pulsos largos braceletes de couro. Os braços queimados denotavam exposição constante ao calor. Do lado esquerdo da cinta, levava uma adaga rústica, que os homens que chega-ram não viam, eis que a mesa a ocultava.

As deduções do diplomata foram confirmadas quando aquele que pa-recia ser o líder dos caçadores jogou sobre a mesa uma dessas armadi-lhas de caça que consistem numa boca dentada, de ferro, que é forçada a ficar na posição aberta e quando acionado um dispositivo de molas no seu centro, geralmente pela pisada do animal – a armadilha está escon-dida sob folhas – se fecha fortemente sobre a presa, prendendo-a pela pata, que imediatamente se quebra com o impacto. A presa não morre e nem tem sua pele danificada, o que é bom para a venda.

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– Este conserto que você fez está uma porcaria! A mola não tem pres-são, os animais escapam.

O ferreiro permaneceu impassível, limitando-se a analisar o objeto com os olhos, que em seguida se voltaram novamente para a sua comi-da:

– Eu não consertei essa armadilha – respondeu secamente. – Como não consertou? Você trocou o sistema de molas há duas se-

manas e já não está funcionando. – Já disse que, se isso foi consertado por alguém, não foi por mim. – Você está me chamando de mentiroso?! A essa altura, todos já haviam percebido a altercação e voltavam suas

atenções para aquela mesa. Muitos se levantaram. O ferreiro respondeu com tranquilidade:

– Estou dizendo que jamais coloquei minhas mãos nessa peça. Se vo-cê é ou não mentiroso não posso afirmar pois não o conheço bem. Suas amigas aí atrás é que poderiam responder melhor... – ao proferir essa ofensa já se levantou, aproximando a mão da faca, esperando uma rea-ção mais dura.

Foi o que um dos acompanhantes do caçador pretendeu fazer, mas es-te o conteve.

– Não queremos problemas, apenas quero que seja realizado o serviço pelo qual paguei.

– De fato você me pagou pelo conserto de uma armadilha, mas não foi esta. Veja: este sistema de molas não é o que eu utilizo, inclusive nem se utiliza nesta região.

– Penso que não estou sendo bem claro. Se você não quiser consertar esta armadilha vai terminar com o seu pescoço no meio dela.

– Vai ser preciso bem mais do que vocês três para colocar o meu pes-coço aí.

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O clima estava bem quente. Haggi percebeu a apreensão do proprietá-rio do estabelecimento. Várias opiniões começaram a surgir por entre os frequentadores, mas dificilmente se percebia o autor de cada interven-ção:

– Se fez um serviço mal feito, tem de arrumar! – disse alguém. – Esses caçadores são muito arrogantes, provavelmente estão mentin-

do... – interveio outro. – Esse ferreiro faz tudo mal feito. Deve ter estragado a armadilha... – Quem com ferro fere, com ferro será ferido. Um dia é da caça e ou-

tro do caçador – proferiu um homem que já estava embriagado. Todos o olharam, fazendo alguns segundos de silêncio para então re-

tomar as discussões. Entrementes, as partes envolvidas já estavam na iminência do confronto físico. Foi quando Haggi resolveu interferir.

– Senhores, não pude deixar de ouvir sua interessante discussão, a respeito de armadilhas de caça...

– E posso saber quem é o senhor – interveio o caçador. – Quem eu sou é o que menos importa neste momento. O que importa

é que a discussão já se vai acalorando, a ponto de logo se iniciarem as vias de fato, o que seria desagradável para o meu jantar e para o estabe-lecimento.

O proprietário aprovava suas palavras com a cabeça. Mas os conten-dores não compartilhavam dessa aprovação. Desta vez foi o ferreiro que intercedeu:

– Creio que podemos resolver muito bem nossos problemas. É me-lhor o senhor voltar para a sua mesa e continuar sua refeição se não qui-ser arrumar problemas para si mesmo.

Haggi não se abalou com a ameaça e prosseguiu em tom sereno: – É claro que vocês podem resolver seus problemas, mas não penso

simplesmente em resolver problemas, penso em como podemos todos ganhar com isso... – enquanto os dois homens pensavam em suas pala-

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vras, Haggi continuou, voltando-se para o ferreiro: – o senhor é capaz de consertar este tipo de armadilha?

– Evidente que sim. Não só consertar como melhorá-la... Este sistema de molas é antiquado, perde muito rapidamente a força. Na minha opi-nião deveria ser substituído por outro mais eficiente.

– E o senhor faz essa substituição... – o ferreiro assentiu. Neste ponto o caçador nada dizia. Haggi o interpelou: – o senhor utiliza muitas ar-madilhas como esta?

O homem não hesitou em responder, com certo ar de gabação: – É claro! Nosso grupo caça muito. Temos algumas dezenas destas. – Então, é possível que o senhor tenha-se enganado, e que a armadi-

lha deixada para conserto seja outra? O homem pareceu apanhado de surpresa por aquela pergunta. Havia

caído na armadilha de Haggi. Sustentou seu ponto de vista, já sem tanta convicção:

– Conheço cada uma das minhas armadilhas... foi esta que ele conser-tou...

O ferreiro já ia responder alguma coisa, mas Haggi se antecipou: – Também conheço de armadilhas, eis que venho de uma família de

caçadores, e de fato este tipo de mola não é utilizado nesta região. Mas entendo que quem tem tantas armadilhas semelhantes possa cometer um engano inocente em relação a isso. De todas essas armadilhas, suponho que muitas já estejam precisando de reparos e manutenção. Por que não as traz todas para nosso amigo ferreiro consertar?

– Espere um momento, amigo, eu não trabalho de graça. Cobrarei ca-da conserto e para esse indivíduo – olhou com desdém para o caçador – o preço é mais alto.

– Você vai cobrar o preço justo, porque ele será um excelente cliente, que tem muitas peças para consertar. E as terá sempre. Mais vale ganhar menos e sempre do que ganhar muito apenas uma vez – decretou Haggi

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com autoridade. Desta vez foi o caçador a ponderar, já em tom mais moderado:

– Mas o problema é que eu não tenho como pagar por todos esses consertos...

– Viu só? – disse o ferreiro, com ares de quem tinha razão. – Com armadilhas ruins você caça bem menos, certo? Se ele não caça

e não tem dinheiro, são vários trabalhos de conserto a menos, não é? Eis o que vamos fazer.

Haggi chamou os dois homens num canto e lhes pediu que viessem apenas os dois, deixando seus respectivos amigos de lado:

– Primeiramente, me prometam que escutarão minha proposta até o final, sem interrupções – os dois homens concordaram – depois, se não quiserem segui-la, tomo meu rumo e o problema será de vocês. Você consertará cinco armadilhas dele, sem cobrar nada – o ferreiro se rete-sou, mas manteve sua palavra de não interromper – agora. Mas depois de conseguir caça, você pagará por esse serviço, acrescendo um décimo ao seu valor em retribuição à confiança e ao crédito que o ferreiro lhe deu. As peles conseguidas você vai negociar com um amigo meu. Mos-tre-lhe isto – estendeu um pequeno pedaço de pergaminho com um sím-bolo desenhado – e a partir daí os negócios com ele ficam por sua conta. Já aviso que ele só trabalha com material de primeira, mas paga bem mais do que nestas redondezas. Quando você voltar para pagar pelo primeiro conserto, deixará mais cinco armadilhas para consertar, pagan-do adiantado desta vez. O ferreiro lhe cobrará um décimo a menos no valor dos serviços, em face do adiantamento. Na próxima vez, você tra-rá mais cinco armadilhas para consertar, e a partir daí o pagamento será no preço normal, sendo metade ao deixar as armadilhas e a outra metade ao retirá-las. Todos ganham. Você caçará mais com armadilhas boas. Estas sempre precisarão de reparos, pois quando as últimas estiverem consertadas, já as primeiras precisarão de novos reparos. É um ciclo que não termina.

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Os dois homens se olharam, olharam para Haggi. Por mais que ten-tassem pensar em alguma falha naquele plano, não conseguiam. Foi o ferreiro que tentou, já esperando por uma resposta:

– Mas e se ele não aparecer mais para me pagar o primeiro conserto? – Então você terá o prejuízo desse serviço, mas eu ficarei sabendo e

ele não mais conseguirá vender sua caça para o meu contato. Então, todo o ciclo que descrevi ficaria corrompido e ninguém sairia ganhando. Só idiotas fariam isso. Como sei que vocês não são idiotas, creio que o plano funcionará – os dois concordaram – então vamos selar este acordo com um brinde?

Os três se cumprimentaram, brindaram e continuaram conversando. Os caçadores e os amigos do ferreiro, que olhavam à distância, não en-tendiam o que se passava. Estavam desejosos de uma boa briga, mas suas expectativas foram frustradas pelo estranho. Não restava senão continuar a se divertir.

Os três homens ainda permaneceram algumas horas conversando, como velhos amigos. Haggi tinha este dom: fazer com que pessoas que acabara de conhecer se sentissem à vontade com ele, a ponto de lhe con-fiar seus mais recônditos segredos. Aproveitava essas oportunidades para perquirir sobre o que o povo pensava dos governantes, da política, das necessidades. Para um governante é importante ouvir a população, não esperando dela soluções, mas para ter uma correta leitura dos pro-blemas. Haggi conquistara, naquela noite, dois amigos, dois aliados. Não eram nobres, não tinham exércitos, mas tinham lealdade. Homens leais são sempre importantes nos momentos difíceis.

Na verdade, conquistara três aliados, pois ainda que ninguém mais re-conhecesse o valor daquela intervenção, ao menos um homem reconhe-cia: o dono do estabelecimento, que já contabilizava os prejuízos que a briga poderia causar. Todos que conheciam sua fama de sovina estra-nharam quando ele ofereceu uma rodada por conta da casa. Todos, ex-ceto Haggi.

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22.

adriel tinha uma curiosidade histórica sobre Ravi, e como ga-nhavam intimidade a cada dia, resolveu perguntar por que seu

pai não sucedera Gur Medhavin e depois o próprio Ravi, que seria então Rei a esta altura. Ravi respondeu com a mesma naturalidade de sempre. Os meandros do poder não exerciam sobre ele nenhum apelo. Tratava o assunto sem qualquer exaltação, apesar de ser descendente direto de um dos maiores dirigentes da história recente. Foi nesse tom que Ravi res-pondeu:

– Kadriel, não falemos num governo de sábios, pois já nos esquece-mos o que é isso. Mas mesmo em um governo de filósofos, como já experimentamos em nosso País, a sucessão não se dá por linhagem san-guínea e sim por retidão, capacidade e solidez moral. Normalmente, um soberano procura preparar para sucedê-lo seus filhos de sangue, aos quais poderá dar exemplos próximos e práticos de como governar. Mas muitas vezes o Destino intervém para subverter isso que em nossa visão limitada parece ser ordem, em prol de uma ordem superior, que resta de difícil entendimento para os homens. Às vezes, a despeito de esmerada educação, aquele que deveria suceder se deixa dominar por sua persona-lidade e fica suscetível a vícios inaceitáveis num governante. Não pode-rá, então, suceder. Se força essa situação, lança o caos. A personalidade é como um cavalo que deve ser domado, ora com carícias, ora com chi-batadas. Mas pobre do cavaleiro que se deixa conduzir pelo cavalo ao invés de conduzi-lo. Perder-se-á do caminho ou será jogado ao chão onde perecerá.

Ravi parou diante de uma flor, observou-a durante longos minutos. Kadriel não ousou interromper aquele momento de contemplação. Ao contrário, conseguiu compartilhar a admiração que Ravi demonstrava

K

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por uma simples flor. Quase pôde vislumbrar a perfeição que pode con-ter uma pétala. Como uma flor transcende os sentidos para despertar percepções naquele que, ao olhar, sabe ver... Ravi retomou suas pala-vras como se não as tivesse largado:

– Meu avô foi um homem precoce na vida e na morte. Foi um solda-do no período das guerras incessantes que assolaram nosso País. Por coincidência, por destino ou por arranjos do Universo – escolha o que preferir –, numa batalha decisiva, todos os oficiais superiores de sua unidade sucumbiram. De forma natural, Gur assumiu a liderança dos soldados. Foi um daqueles instantes que só acontecem em combate. Ninguém precisou dizer nenhuma palavra, ele sabia que devia liderar e todos sabiam que ele devia ser o líder. De uma situação de inferioridade, ele obteve uma vitória estrondosa. Era um militar nato. Quando isso ocorreu, tinha apenas dezoito anos de idade. O Imperador o nomeou General de Campo. Num período de um ano, tornou favorável nossa situação na guerra, o que àquela altura parecia impossível. Esta é uma característica dos grandes homens: conquistar o impossível. Mesmo aqueles que por convicção ou por inveja haviam se manifestado contra-riamente à sua nomeação tiveram de reconhecer sua capacidade.

Kadriel ouvia atentamente, como se não quisesse perder nem um de-talhe. Ravi relatava como se tivesse presenciado os fatos. E Kadriel também os vivenciava naquele relato:

– Foi então que o Imperador surpreendeu ainda mais a todos, inclusi-ve ao próprio Gur: nomeou-o seu sucessor e afastou-se do trono ainda em vida. Inicialmente Gur Medhavin relutou, se dizia um soldado e não um governante, mas o Imperador, com a visão que só os grandes diri-gentes têm, lhe mostrou que esse era o caminho e o demoveu das suas resistências. Não fosse a firmeza de caráter e o prestígio com que conta-va o Imperador, aquele menino de apenas dezenove anos não teria resis-tido às pressões. Mas até a sua morte o Imperador se manteve ao lado

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do jovem, como seu Mestre e conselheiro. Gur Medhavin ainda enfren-taria mais sete anos de guerra em seu governo e depois mais sete anos de paz. No período de guerra, Gur Medhavin não perdeu uma única ba-talha, por menor que fosse. E a paz foi conquistada da maneira mais inusitada possível, da maneira guerreira. Gur pacificou os inimigos já sem, no final, precisar sequer lutar. Consolidou o apoio das lideranças regionais, criando a Aliança dos Doze, que eram os dirigentes das doze maiores cidades do Império. Durante esse período de paz, deu acesso a alimentos a todos com uma agricultura eficiente, promoveu a educação, calcada no senso de justiça, na vivência moral, na importância de falar a verdade, no domínio do medo. Deu suporte à cultura e à ciência, criando bibliotecas e universidades, fundou templos, permitindo a liberdade de religiões, exceto a feitiçaria. Fundou uma escola de dirigentes, onde se poderiam preparar aqueles que fossem exercer cargos públicos. Teve muitas realizações.

Os olhos de Kadriel brilhavam ao pensar que tudo aquilo era possível. Sim, se já havia existido, poderia voltar a existir. Ravi continuou, ciente de que a maior curiosidade de Kadriel não havia sido respondida, ainda que ele não se lembrasse:

– Tudo isso foi elaborado num período curto, pois, como disse, Gur Medhavin não foi prematuro somente na vida, mas também na morte. Morreu aos trinta e três anos, quando meu pai tinha apenas oito e não poderia sucedê-lo. Deixar o trono para um menino, que dependeria de um tutor, seria inconcebível e jogaria por terra todas as conquistas. Gur era consciente. Nomeou como seu sucessor um homem de sua extrema confiança: o pai de Sokárin. Mas Gur decretou que a partir de então não haveria mais Império e sim um Reino. No futuro, quando as condições se apresentassem novamente, o Império ressurgiria.

Kadriel conseguia ver a admiração com que Ravi se referia ao Impe-rador Gur Medhavin e partilhava dessa admiração. Mais do que isso,

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partilhava do sonho de reconquistar aquelas épocas gloriosas. Absorvi-do por aquelas palavras, assumia definitivamente o seu destino. Enten-dia por que Sokárin o havia escolhido e por que lhe ordenara lutar pelo poder. Kadriel, como Gur, não queria o poder, e era exatamente isso que o legitimava. Somente quem não deseja o poder para si saberá usá-lo em benefício da justiça.

Estava pronto para a batalha.

Ao chegar no palácio de Nakan, Haggi foi recebido com todas as hon-ras de um grande líder. Enquanto alguns empregados, juntamente com Tarin, tomavam conta de seus pertences, o próprio Nakan veio ao seu encontro para dar as boas vindas. Nakan era um homem de seus cin-quenta e tantos anos, cabelos grisalhos nas têmporas, olhos negros des-pertos, mãos largas, o que denunciava um bom soco. Estava em boa forma física, aspecto militar. Haggi pôde sentir sua força quando o cumprimentou com um aperto de mãos, reforçado pela outra mão agar-rando com vigor o pulso de Haggi.

– Haggi Eitan! Há quanto tempo não nos vemos. Fiquei feliz quando chegou o mensageiro anunciando sua visita. Sempre passamos momen-tos agradáveis quando nos encontramos. Você sabe, fora da Capital, é difícil encontrar conversas refinadas. A mensagem, entretanto, não in-cluía o motivo da visita, mas deixemos para tratar disso após o jantar. Há um bom banho quente preparado para você nos seus aposentos. Ivis irá acompanhá-lo – concluiu, indicando uma bela moça que aguardava em silêncio o fim da conversa.

– Nakan – respondeu Haggi, com o mesmo entusiasmo de seu anfitri-ão – eu é que fico honrado em ser recebido na sua corte. Como estão as coisas na principal cidade da aliança? Vejo que seu bom gosto para as coisas belas da vida não se perdeu – acrescentou, fazendo referência a

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Ivis – vejo também que você mantém sua boa forma. Espero termos tempo para um combate com sabres.

– É sempre uma honra combater com alguém hábil. Por aqui já não tenho adversários. Mas teremos tempo para isso nos próximos dias. Por hora, descanse da viagem. Mandarei chamá-lo para o jantar. Então po-deremos conversar melhor.

– Agradeço-lhe desde logo a hospitalidade. Vou aceitar de bom grado a oferta do banho, pois a viagem para cá não é das mais confortáveis.

– Até mais tarde, então. Ivis, com um sorriso, pediu a Haggi que a acompanhasse. Disparou,

lépida, pelos corredores, deixando atrás de si um rastro inebriante de perfume de flores. Aquele aroma, por si só, já dissipava o cansaço do diplomata, que era um emérito apreciador do sexo oposto, sabendo ler com precisão o corpo e a psiquê femininos. Deixou-se conduzir pela moça, que lhe indicou seu quarto, junto ao qual havia uma casa de ba-nho com uma banheira esfumaçante, preparada com ervas aromáticas. Ivis fechou a porta atrás de si. Olhou para Haggi com seus lindos olhos cor de mel, cabelos ruivos cacheados, tez branca, e declarou com natu-ralidade:

– Nakan me ordenou que cuidasse muito bem do senhor – disse apro-ximando-se de Haggi.

Ela sorria com os olhos. Esta é uma característica admirável nas pes-soas, principalmente nas mulheres: sorrir com os olhos. Ivis não possuía qualquer traço de vulgaridade ou lascívia, era linda e discreta, mesmo oferecendo entregar-se ao visitante. Haggi, apesar do encantamento que o tomou, respondeu como um cavalheiro:

– Ivis, você é belíssima! Muito me agradaria sua companhia, desde que fosse por sua própria vontade e não por ordens de Nakan. Sei que ele quer agradar-me e sou grato por isso. Vejo também que ele não po-deria ter escolhido melhor, pois você é, além de bela, discreta, o que é

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uma qualidade adorável. Tem os mais lindos olhos em que um homem poderia querer mergulhar, silhueta digna das princesas, perfume de ro-sas. Apenas lhe peço uma coisa: me chame de Haggi, não de senhor...

– Sim, senhor, quer dizer, sim... Haggi. Quer que o deixe, então? Se não o agrado, Nakan pode providenciar outra companhia...

– Não, por favor – interrompeu Haggi – espero que você me dê a honra de sentar-se ao meu lado no jantar. Agora estou de fato muito cansado e vou aproveitar estes momentos para me recompor. Quando você estiver ao meu lado sem falar em Nakan e sem pensar nas ordens que ele lhe deu, tenho a certeza de que nos entenderemos muito bem.

– Com licença. Haggi consentiu com a cabeça. Ivis retirou-se, fechando atrás de si a

porta. Haggi soltou a respiração de uma só vez, sentando-se na cama. Mais alguns segundos e não teria resistido. Ivis era simplesmente mara-vilhosa. Normalmente teria aceitado de imediato a proposta de uma mu-lher como ela, mas aquela moça era especial, ele reconhecera isso desde quando a vira no saguão. Ela deveria ser uma conquista plena. E ao não usurpar seu corpo, ganhara pontos no seu coração. O diplomata afun-dou-se na banheira para apaziguar seu ânimo.

Os serviçais haviam deixado sobre a cama uma túnica para ser usada

durante o jantar. Haggi a vestiu. Sentia-se confortável no palácio de Nakan, apesar de estar acostumado a muitas cortes, de vários países. Desceu para o salão em que seria servido o jantar. Ao deparar-se com o número de cortesãos, percebeu que não seria fácil ter os momentos de privacidade com Nakan de que precisaria para tratar dos assuntos de estado. Aproximou-se sorridente do governador, ao lado do qual havia um lugar que lhe estava reservado.

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– Ivis não lhe agradou, meu caro Haggi? Posso providenciar outra moça para cuidar de você em sua estada. Quem sabe mais de uma...?

– Ivis me agrada muito, Nakan. Mas você me conhece. Sabe que gos-to de realizar sozinho minhas conquistas amorosas.

– Quem falou em amor? Estou falando de companhia e diversão. Ve-ja – disse, olhando em direção a um grupo de moças, dentre as quais se encontrava Ivis. Ela olhou na direção dos observadores e sorriu. Nakan alçou sua taça em direção a ela. Haggi devolveu o sorriso, pensando consigo mesmo o quão encantadora ela era.

– Nakan, você sabe que não estou aqui somente para me divertir e passear. A visita é oficial, determinada pelo Senador Rohel. Ele me pe-diu que verificasse como as doze cidades estão vivendo a expectativa da sucessão e que assegurasse seu apoio e união em torno do novo rei.

– Haggi, sei que você está ansioso para resolver as questões políticas que o trouxeram até aqui, mas agora há muitos ouvidos atentos por per-to. Deixemos essas conversas para outro momento, quem sabe durante uma luta de sabres amanhã...?

Como bom diplomata, Haggi entendeu de imediato que o governador não queria tratar de assuntos de estado naquele momento. Dançou con-forme a música:

– Isso é um desafio? Alguma vez você já me venceu com o sabre, Nakan?

– Não me lembro é de você alguma vez ter me vencido. – Se sua luta estiver tão ruim quanto sua memória não terei muita di-

ficuldade. Haggi aproveitou o assunto de lutas, querendo sondar as possibilida-

des bélicas da Aliança: – Meu nobre Nakan, você sabe que lhe guardo muito respeito, mas

você é um general de um exército de brinquedo. Muito bem treinado, é

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verdade... Mas como saber se no fragor da luta real se irão portar como verdadeiros guerreiros?

Nakan, compreendendo de imediato aonde Haggi queria chegar, não se ofendeu, pelo contrário, respondeu na linguagem do jovem – com diplomacia –, puxando para perto de si um pequeno gato que estava ao seu lado, atado por uma coleira:

– Haggi, meu caro, você vê este filhote de leão? Foi retirado da selva recém-nascido, por caçadores que abateram sua mãe e mo deram de presente. Sem ela, não teria qualquer chance de sobrevivência lá fora. Aqui no palácio, é adulado pelas cortesãs e criado junto aos gatos do-mésticos e animais de companhia, brincando com as ovelhas – parou de falar, acariciando a cabeça do gatinho, que, nervoso, procurava livrar-se da contenção, mordendo e arranhando, sem a força necessária, as mãos que o retinham.

Haggi aguardou a conclusão, que não demorou: – Você acha que por ter sido criado entre ovelhas, perderá sua nature-

za de leão? – nesse momento o pequeno felídeo conseguiu finalmente encaixar uma boa mordida na mão de Nakan, que o soltou, mostrando a Haggi o pequeno corte, com um levantar de sobrancelhas.

– Você tem razão: um leão será sempre um leão. Resta saber de quem será a mão que ele irá morder...

Os dois riram, para quebrar o rumo sério que a conversa tomara, e passaram a conversar amenidades. Falaram dos lugares em comum que tinham visitado. Falaram de história e de filosofia. De mulheres e de lutas, enfim, de todos os assuntos possíveis para desviar da sucessão.

Mas Haggi entendera a mensagem: um guerreiro seria sempre um guerreiro, pronto para a batalha, bastando que ela se apresentasse. Pen-sava consigo mesmo que ter aquele leão do seu lado seria muito melhor do que tê-lo contra si.

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Pediu licença ao governador e foi em direção a Ivis, que lhe sorriu, com os olhos...

23.

odo o Reino vivia a agitação do dia da abertura da placa, que finalmente era chegado. Seria exposto, na Pedra dos Mil Reis, o

nome do sucessor de Sokárin. O País passara por um período de luto e reflexão para alguns, e de planejamento e conluio para outros. A ansie-dade incontida teria fim. Aqueles cujas possibilidades eram reais expe-rimentavam verdadeira tensão.

Golan, filho de Sokárin, era o mais nervoso. Acompanhado por seus acólitos, não conseguia disfarçar a impaciência. Só adentravam ao salão real os senadores, os ministros de estado e funcionários de alto escalão, os nobres e algumas pessoas convidadas. A população permanecia do lado de fora, na grande praça em frente ao palácio. A multidão tomava todas as ruas dos arredores. O burburinho era grande. Em alguns mo-mentos, pequenos grupos ensaiavam um coro com nome de sua prefe-rência. Mas logo era retomado o silêncio da expectativa. Era um mo-mento ímpar.

Dentro do salão real, a cerimônia era presidida pelo Senador Rohel, na qualidade de Chefe do Conselho dos Anciãos. Próximos a ele, na parte mais elevada do salão, onde ficava a Pedra, o Primeiro-Ministro Adaran, Golan, os demais senadores e alguns guardas reais estrategica-mente espalhados, imóveis em seus trajes negros que impunham sóbrio respeito. O Senador Rohel tomou a palavra, acenando para o público ali presente, a fim de que se fizesse silêncio:

T

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– Autoridades aqui presentes, cidadãos das mais respeitadas famílias do reino, servidores do Estado, população que preenche as ruas fora deste palácio a aguardar o nome de seu novo soberano, damas e cava-lheiros, é chegado o momento por que todos tanto esperamos: a revela-ção da placa de pedra que guarda o nome daquele que irá dirigir este Reino daqui por diante. Qual é o nome que ali está é o que menos im-porta agora! Porque a partir do instante em que for revelado assumirá não apenas um título, mas um encargo, o pesado encargo de governar.

Fez uma pausa e prosseguiu: – Governar com sabedoria é tarefa das mais difíceis. Exige denodo,

abnegação, renúncia à vida pessoal. Dedicar-se ao Estado e ao povo demanda afastar-se de si mesmo, e aproximar-se de si mesmo. Afastar-se da personalidade traiçoeira e aproximar-se do espírito clarividente. Exige intuição, que é a visão direta das coisas, despida da intermediação dos sentidos. Confiamos em nosso monarca Sokárin para ter sabido es-colher aquele que reunirá essas condições. Como disse, o nome não importa tanto quanto a confiança em que o escolhido assumirá as vestes de um verdadeiro estadista, de um verdadeiro rei. O apoio incondicional de todos será imprescindível para o futuro deste país. Como é de praxe, antes da abertura, fica aberta a palavra aos ministros de estado e aos senadores que dela queiram fazer uso. Depois da abertura, somente o silêncio respeitoso.

Passaram-se alguns segundos, até que um velho senador deu um pas-so adiante e educadamente aguardou que o presidente da cerimônia lhe outorgasse a palavra:

– Ainda não foi encontrada a placa solicitada por Sokárin, nem gra-vada e nem destruída. Mas o simples fato de ter ele solicitado outra pla-ca significa de forma muito clara uma coisa: o nome que aí está não era o do seu desejo – dando um passo atrás o ancião voltou à sua posição original.

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Um burburinho se fez sentir no salão. Outro senador pediu a palavra, e iniciou sua intervenção mal esperando a licença do Senador Rohel:

– O nobre colega deverá desculpar-me, mas não comungo da sua opi-nião. Entendo que sua manifestação foi intempestiva, tendo por único fim lançar a dúvida e a discórdia em torno do nosso novo soberano, seja ele quem for. Nenhum outro nome foi cogitado, nem placa alguma foi encontrada. Assim sendo, devemos esquecer que ela um dia existiu, devemos esquecer que Sokárin a solicitou, devemos prestar nosso inte-gral apoio ao novo Rei.

– Discordo – intercedeu outro, já sem praticamente pedir licença ao presidente da cerimônia, que já dava mostras de impaciência – no nosso sistema sucessório, o Rei é quem escolhe quem deverá substituí-lo, sua vontade é determinante. Sokárin requereu outra placa, como esta não foi encontrada, não sabemos qual seria o nome da sua vontade, mas sabe-mos que por certo não é o nome que aí está!

Estava criado o debate. Não havia como voltar atrás, pensava Rohel. Tinha de pensar numa forma de apaziguar os ânimos, pois era certo o que todos haviam dito até aquele momento. De fato, possivelmente o nome que ali estava não era o dos desejos de Sokárin, mas era o único de que dispunham.

Já se fazia difícil conter a audiência. O vozerio tomava conta do am-biente. Do lado de fora, o povo não entendia o porquê de ainda não ser conhecido o nome do novo Rei, mas já circulavam rumores sobre o de-bate que se travava no interior do palácio, o qual se reproduzia nas ruas, com as devidas proporções retóricas.

Dentro, a discussão se acirrara. As opiniões formavam duas facções de mesmo peso numérico. Kadriel, que assistia à cerimônia ao lado de Ravi, mantinha-se sereno. De algum modo, a situação que se apresenta-ra lhe dava forças, pois não ficava completamente desprovido de argu-mentos na luta que pretendia entabular. O futuro próximo não seria pa-

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cífico, mas justificaria o porvir. Na mente e no coração de Kadriel não havia lugar para o cinza, ele conseguia distinguir perfeitamente, naquele momento, o branco do negro...

Quem tomou novamente a palavra, com o intuito de pôr fim à pen-denga, foi o Senador Rohel. Respeitabilíssimo, conseguiu recompor o silêncio e pôde se manifestar com tranquilidade:

– Senhores, senhores, por favor, todos que aqui se manifestaram o fi-zeram com muita propriedade, tanto na forma de se expressar, demons-trando cultura, discernimento e conhecimentos profundos de oratória, quanto no mérito dessas expressões. É fato que ter o Rei Sokárin solici-tado outra placa poderia indicar a vontade de alterar o nome que aí está. Por outro lado, essa vontade só se consolidaria com a efetiva substitui-ção da placa, uma vez que antes disso muita coisa poderia acontecer: poderia voltar atrás em sua opinião, por exemplo. Sei que alguém pode-ria argumentar que nesse caso o Rei deveria devolver a placa aos sacer-dotes para que fosse destruída. Mas não o fez. Talvez lhe tenha faltado tempo para isso, assim como esse mesmo tempo pode lhe ter faltado para fazer a substituição da placa. Nem uma coisa, nem outra. E mais, não há sequer sinal dessa nova placa, não se sabe se chegou mesmo a ser gravada. Mas nada disso importa mais. Nossas leis são muito claras ao dizer que eventual alteração somente será convalidada com a ceri-mônia de substituição da placa conduzida pessoal e privativamente pelo Rei. Tal cerimônia não teve lugar. O único nome que temos para a con-dução do nosso reino é o que está velado por essa chapa de metal. O mais sábio que podemos fazer neste momento é prosseguir com esta cerimônia, prestando nosso suporte ao novo monarca. Assim sendo, se ninguém mais tiver nenhum pronunciamento relevante, prosseguimos com a abertura.

Como ninguém se manifestasse, Rohel aproximou-se da estela, sacou um anel da sua mão esquerda e outro da direita, este último era o anel de

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Sokárin que ficara sob sua custódia até aquele dia e que logo passaria às mãos do Rei. Os anéis eram as chaves que reunidas serviriam para re-mover a placa de metal que recobria a placa de pedra com o nome gra-vado.

Rohel inseriu os dois anéis nas posições corretas, mas eles não gira-ram como deveriam. De fato, havia uma resistência. Talvez o tempo que a placa ali estivera tivesse gerado uma oxidação do metal que agora o prendia. Dois guardas reais se aproximaram a um sinal do Senador. Os anéis finalmente giraram, mas a chapa continuava presa. Era uma situa-ção inusitada e um tanto desconfortável. Os mais supersticiosos se apressavam em imaginar que o fantasma de Sokárin segurava a placa por não desejar aquele nome. Foi trazido um pé-de-cabra, com o qual se forçou a retirada da chapa de metal.

A chapa finalmente cedeu, mas com o esforço algo desagradável ocorreu: a placa de pedra com o nome rachou ao meio.

Para desfazer a tensão criada, Rohel prosseguiu como se nada tivesse acontecido – o que era difícil, pois o estalo da pedra quebrando foi ou-vido em todo o salão, que guardava silêncio mortal – revelou a todos em voz alta: Adaran.

Foi nesse instante que todos tiveram um sobressalto. O chão tremeu por alguns segundos, parou, e voltou a tremer por mais alguns segundos, fazendo-se ouvir um forte estrondo. A agitação entre os presentes e nas ruas foi grande. Todos acorreram às janelas do salão. Nas ruas, viam-se muitos braços apontando na direção de Anthar.

Uma coluna de fumaça cinza escura, quase negra, se elevava aos céus. O vulcão, inerte havia muito tempo, dera um sinal de vida. Não era uma erupção, mas o velho Anthar vivia... e usurpava o momento de glória de Adaran.

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TALAL HUSSEINI 143

24.

ulil tinha-se desenvolvido muito como discípulo desde a pro-va no deserto, na qual enfrentara a tempestade de areia co-

mo um falcão. Seu laço de confiança com Montuhotep era absoluto. Por isso, não questionou, nem sequer em pensamento, quando o velho Mes-tre lhe deu uma missão que parecia impossível:

– Mulil, preciso que você realize uma tarefa de extrema importância. Não tenho mais ninguém a quem possa confiá-la, exceto você; – fez uma pausa e prosseguiu – quero que você saia da cidade pelo lado oes-te, em direção ao deserto. E não pare, senão para descansar, durante sete dias, sempre perseguindo o Sol poente.

Todos sabiam que o deserto era imenso e voraz naquela direção. Ninguém se aventurava naquele sítio inóspito, nem mesmo os bandos de saqueadores nômades, até mesmo porque não havia quem saquear. Uma missão de um homem só, com os víveres que ele pudesse carregar, só conseguiria caminhar três dias, considerando outros três para vol-tar. Quatro dias viajando não deixariam margem para o retorno. Mas Mulil não pôs isso em questão. Simplesmente assentiu com a cabeça e perguntou:

– Quando parto? – Amanhã, ao raiar do dia. – Mais alguma coisa que devo saber? – Se você estiver à altura do desafio, o deserto lhe dirá. Apenas lem-

bre-se de tudo que já aprendeu. E mais uma coisa: o deserto é capri-choso, um passo fora da trilha e você poderá nunca mais reencontrá-la. E, para um discípulo, perder a trilha é o pior dos castigos. Agora, sugi-ro que você comece os preparativos para a viagem.

Mulil obedeceu sem pestanejar.

M

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Outra pessoa talvez tivesse feito mais perguntas. Mulil nada pergun-tou. Outro discípulo talvez tivesse dúvidas. Mulil não teve nenhuma dúvida. Outro talvez tivesse medo. Mulil não teve medo. Era uma jor-nada ao desconhecido, ao deserto profundo, ao nada... O que Montuhotep pedia levaria certamente à morte. Mas era o seu Mestre quem pedia. Do que já aprendera, Mulil repetia para si mesmo sempre uma máxima: confiar nos Mestres até a morte. Agora lhe era dada a oportunidade de praticar esse ensinamento. Lançou-se sem hesitação ao desafio. Lançou-se ao deserto.

Mulil partiu só e a pé, pois não considerava justo arrastar consigo

mais nenhuma pessoa ou animal. A tarefa era sua. Caminhou sem mai-ores problemas durante os três primeiros dias. Na terceira noite, foi tomado por uma certa agitação. Sua mente de desejos começou a ques-tioná-lo. Se quisesse sobreviver, na manhã seguinte devia começar o percurso de volta. Em contrapartida, seguir adiante significava ultra-passar o ponto sem volta. Dali em diante seria impossível completar o caminho de retorno.

O castigo que duas noites e três dias no deserto já lhe haviam impos-to até então era uma simples amostra do que estaria por vir. A dúvida assolou Mulil, qual a vaga atinge o rochedo. Aparentemente não lhe faz estrago, mas cria frinchas na pedra, enfraquece paulatinamente a es-trutura do sólido para em algum momento derrubá-lo. Mulil estava ciente desse processo, mas as incertezas eram muitas. Dúvida, a fra-queza da mente. A única forma de impedir a queda do rochedo é evitar que a água o atinja. Mulil lutava para isto: evitar que a dúvida o atin-gisse. Resolveu deixar a decisão para o dia seguinte ao acordar. De qualquer modo, precisava descansar. Tinha então a dura tarefa de si-lenciar seus pensamentos e dormir. Sentia-se mais desgastado pelas

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últimas horas de pensamentos do que por toda a sua caminhada. À noi-te, a temperatura caía quase ao ponto de congelamento da água, en-quanto com o Sol a pino, o calor era muito maior do que o do sangue humano enquanto circula nas veias. O extremo calor e o extremo frio não eram o pior, mas sim a mudança brusca, que se dava em poucos minutos.

Foi uma noite de muitos sonhos, na sua maioria pesadelos, situações confusas que não permitiam saída. Mulil já havia aprendido algumas técnicas básicas do estado onírico, como voluntariamente trocar de sonho ou fazer o sonho parar, mas naquela noite não conseguia aplicá-las. Ficava encurralado num pesadelo, conseguia trocar de sonho e momentos depois se encontrava novamente na mesma situação. Acor-dou exausto antes do Sol. Saiu debaixo das suas mantas para o frio da noite desértica. O ar gélido o despertou, precisava decidir: prosseguir para a morte certa ou retornar e encarar a decepção de seu Mestre. Sem perceber, Mulil estava à mercê de sua mente inferior.

Foi então que retomando os ensinamentos de seu Mestre parou de pensar, deixou a decisão para o coração. E seu grande coração lhe respondeu com uma única palavra que ficou ecoando em sua cabeça: abismo. Quantas vezes crescera quando se lançara ao abismo? Este era o maior dos abismos com que já se deparara...

Sem mais cogitar, apanhou seus apetrechos e marchou sobre o deser-to, deixando às suas costas o Sol que nascia. Não se voltou para ver o céu de azul claro sobre o horizonte dourado. Partiu em direção à noite, como se andando para oeste rápido o bastante pudesse fazer o tempo parar.

Tornou ainda mais rígido o racionamento dos seus víveres e princi-palmente da água, que acabou por completo no quinto dia de jornada. Ainda tinha pão, mas parou de comê-lo para evitar que a sede o casti-gasse mais ainda. Mais se arrastava do que caminhava em direção ao

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Sol que se punha, como lhe tinha indicado seu Mestre. Sua pele estava toda rachada pelo Sol. Seus lábios pareciam ter escamas, que sangra-vam ao menor movimento, devido à agrura da ausência de líquido. Seu corpo chegava ao limite. Suas últimas forças eram consumidas rapida-mente. Ele já tentava apenas manter-se sob controle, para morrer com dignidade e não chorando em desespero como aqueles sem trilha, nem guia. De repente, mais para a sua direita, a salvação...

Mulil vislumbrara algumas palmeiras. Vegetação significava água. Juntou o ânimo que lhe restava e correu como pôde em direção àquele oásis, que estava mais longe do que lhe parecera inicialmente, pois não chegava nunca. Subitamente, o oásis evaporou diante dos seus olhos. Foi quando se deu conta de que estava mais perto do que calculara, estava na sua mente. Miragem. O deserto pregava peças e pregou-lhe a maior de todas, pois a noite caíra, e Mulil saíra da trilha. No deserto, basta afastar-se alguns passos da trilha para perdê-la para sempre. Mulil se afastara bastante.

Deixou-se cair de joelhos sobre a areia macia e ali permaneceu, prostrado, durante longos minutos. Ou seriam horas? Já não sabia. Era o fim, ele falhara. Lembrou-se então de algo que um beduíno certa vez lhe ensinara para sobreviver – ao menos um pouco mais – no deserto. O homem lhe relatara uma situação parecida com esta em que ora se encontrava. Sobrevivera extraindo água do estômago do camelo, be-bendo seu sangue e utilizando a gordura de suas corcovas. Mulil não tinha camelo. Tirou sua faca, fez um corte no antebraço e bebeu seu próprio sangue. Adiava um pouco a desidratação completa. Colocou-se sentado sobre os joelhos, para meditar.

Depois da prova do falcão na tempestade de areia, Montuhotep o le-vara a um templo em que passaria por uma primeira grande sala com várias esfinges enfileiradas dos dois lados, umas de frente para as ou-tras. Ali passara por provas que lhe permitiriam um elevado grau de

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domínio do seu corpo físico. Resgatou então aquele conhecimento para relevar as dores que seu corpo ora lhe impunha. Sentiu-se melhor pola-rizando e vendo as reais condições que aquele corpo ainda tinha para levá-lo mais adiante naquela missão. Sim, era possível prosseguir. Após a sala com as esfinges, passava por um gigantesco portal, formado por dois obeliscos encimados por bandeiras flamejantes, que lhe permitiam administrar com eficiência a energia que o animava. Conseguiu então infundir uma nova carga de vitalidade no seu corpo alquebrado. Passa-va, então, à terceira sala, que era na verdade um pátio aberto, onde os sacerdotes faziam as curas, inclusive pelo sonho, e ensinavam a contro-lar as emoções – o que lhes permitia também dominar os animais –, evitando que elas o fizessem se sentir destruído antes de a destruição de fato chegar.

Essa meditação recompôs Mulil. O repouso da noite completaria a recuperação. Mas ainda restava um problema grave: saíra da trilha e não sabia como reencontrá-la. Ademais, nem mesmo sabia para onde essa trilha o levaria, apenas acreditava que o levaria a algum lugar com base na confiança que depositava em Montuhotep. Foi com essa confiança que Mulil caiu no sono, ainda em posição de meditação.

Ele era novamente um falcão. Alçou voo para a noite infinita. Mesmo na escuridão, o céu ainda tinha a luz das estrelas. O chão parecia um imenso oceano negro. Era curioso como sempre que ficava entre o céu e a terra preferia o céu. Passou-lhe a ideia de não mais voltar, mas sua missão naquele momento era na terra. Em meio ao negrume da areia do deserto, viu um caminho dourado, muito nítido. Viu também seu cor-po ajoelhado na areia ao longe e soube então como retomar a trilha. Era uma oportunidade a poucos dada no deserto. Bastava seguir os ensinamentos da tradição: sempre que estiver em dúvida sobre que ca-minho seguir, escolha o mais difícil.

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Quando amanheceu o dia, Mulil analisou o local em que estava. Areia de todos os lados, exceto de um. Todos sabiam que o deserto fora mar em outras épocas. Havia então algumas áreas em que esse mar salgado ficava petrificado, formando uma crosta de sal que tornava ainda mais forte o calor, pois refletia de forma intensa a luz do Sol. Tais locais eram muito perigosos, pois, além do calor insuportável e do perigo de rompimento da superfície salgada – o que poderia tragar uma pessoa ou animal de forma muito mais rápida e fatal do que areia movediça –, ali era um habitat profícuo para milhares de escorpiões. Sem nenhuma dúvida, aquele era o caminho mais difícil. Sem mais di-gressões, Mulil prosseguiu por ali. E conseguiu encontrar a trilha.

Era o sétimo dia. Montuhotep lhe dissera para prosseguir durante se-te dias, mas ele não via absolutamente nada nem ninguém. Pensou que seu ritmo de viagem não fora intenso o bastante. Talvez por se ter per-dido teve seu itinerário atrasado.

Continuou caminhando o quanto pôde, mas num dado momento suas forças o abandonaram por completo. O expediente de beber o sangue era um paliativo que só o enfraqueceria naquela altura. As meditações para concentrar as energias também não podiam mais ajudá-lo, pois seus recursos de simples discípulo haviam chegado ao fim.

Enfrentara com bravura os limites humanos e a força da natureza, ali representada pelo fogo do deserto, mas agora não restava mais nada. Curvou-se, humilde, e reconheceu a soberania dos deuses. Usou suas últimas forças para agradecer pela feliz encarnação que tivera, com a oportunidade de ter tido um Mestre. E pela primeira vez em suas ora-ções pediu. Pediu que alguém pudesse ter êxito nesta empreitada em que falhara. E pediu para novamente nascer discípulo na sua próxima encarnação. Caiu com o rosto sobre a areia escaldante.

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25.

adriel acordou com o coração disparado. Aqueles sonhos ti-nham de ter algum significado, alguma relação com sua vida.

O que Mulil estava buscando? Por que seu Mestre o mandara para a morte? Que presságio lúgubre era aquele?

Sim, só podia significar o fim de seu reinado que não foi. Não havia placa. Sokárin não fizera a troca. Adaran era o novo rei, aclamado em cerimônia pública após a abertura da placa. É certo que a atividade de Anthar diluíra a atenção de todos, povo ou nobreza. Não foi possível reunir novamente a assistência para o encerramento oficial da coroação, pois a consternação foi geral. Até um certo pânico se iniciou com pes-soas deixando suas casas com o que podiam, para abandonar a cidade e escapar à cólera do vulcão.

O Chefe do Conselho dos Anciãos passou então o cetro real a Adaran e pronto, nada mais. O País tem novo rei. Hoje era o dia seguinte. Todos aguardavam os primeiros decretos do novo monarca. Kadriel começou desanimado esse dia. Precisava falar com Ravi. Aprontou-se rapidamen-te e saiu. Nem conversou direito com Mirta, que chegava à sua casa naquele momento, encontrando-o já de saída do lado de fora. Ela trajava uma roupa provocante, como de hábito, que salientava as formas de seu corpo. Kadriel mal reparou, perguntando de maneira seca, o que não lhe era peculiar:

– O que faz aqui, Mirta? – Bakar convidou-me para a reunião de logo mais. Como aqui é meu

caminho, resolvi passar um pouco antes, para podermos conversar em particular...

– Infelizmente, não poderemos conversar agora, pois estou de saída. Mas foi bom que você veio – Mirta abriu um sorriso, que se desfez logo

K

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que Kadriel completou sua frase: – preciso que você avise Bakar de que a reunião deverá ser adiada para o período da tarde. Peça a ele que avise aos demais, por favor.

– Sim, é claro... – respondeu Mirta, mal conseguindo esconder seu ar de desapontamento, no qual Kadriel nem sequer reparou, saindo e dei-xando a moça plantada no meio da rua.

Quando se dirigia à casa de Ravi, Kadriel ouviu gritos que eram de

um homem cujo cavalo havia disparado. As pessoas que estavam à volta nada faziam. Quando Kadriel tomou um cavalo para perseguir o conjun-to descontrolado e tentar pará-lo, uma mulher já havia tomado a diantei-ra com o mesmo intuito. Kadriel apertou o passo de sua cavalgadura, mas a amazona era bastante hábil e a distância não encurtava. Quando ela já estava bem próxima do cavalo disparado, o ginete deste despen-cou. Ao tocar o solo, ouviu-se o estalido seco de algo se deslocando ou quebrando. Imediatamente, a moça desmontou e aproximou-se para verificar o estado do caído e ajudá-lo se possível.

O cavalo responsável pela queda, aliviado do peso que o atormentava, diminuiu o ritmo e parou mais adiante.

O homem caído estava pálido, condição típica da baixa de pressão sanguínea causada pelo rompimento de tendões. O ombro estava deslo-cado, o que projetava todo o braço para frente. O homem gritava de dor. Nesse momento, Kadriel já havia chegado ao local mas só fez observar, uma vez que a situação estava totalmente controlada pela mulher. Ela falava mansamente com o ferido, tranquilizando-o e dizendo que não era nada de grave, explicava que era médica e que iria verificar as con-dições da lesão. Sua voz era suave e, de fato, tranquilizou não só a víti-ma da queda como também Kadriel, que tinha os olhos fixos nos longos cachos da médica.

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Ao mesmo tempo em que conversava com o paciente, que já estava bem mais tranquilo, a moça tocou de leve o ombro deslocado com a ponta dos dedos de uma mão, enquanto com a outra segurava o pulso do homem. Num movimento rápido, preciso e suave, recolocou o braço no lugar. Kadriel estava deveras impressionado, e o homem agradecido. Movia o braço para um lado e outro, como que para se convencer de que estava realmente consertado. A médica entregou ao homem algu-mas ervas e lhe recomendou:

– Faça com isto uma infusão e aplique no local durante três dias. Nesse período deve evitar grandes esforços com esse braço. Depois dis-so, estará novo.

Kadriel observara tudo atentamente, embasbacado com a desenvoltu-ra daquela moça. Sem ver seu rosto, já a achava linda. Ao menos seus cabelos o eram, e sua voz... Após certificar-se de que seu paciente ines-perado estava mesmo bem, levantou-se, voltando-se para Kadriel, que ficou mudo ao cruzarem olhares. Aqueles olhos verdes... pensava reco-nhecê-los. Finalmente, quebrou a hipnose em que o haviam induzido e pôde ver todo o seu rosto, de pele clara, entornado por cabelos negros, sorriso luminoso de dentes perfeitos. Kadriel pensou estar diante da mulher de sua vida. Logo, seus arranjos mentais começaram a fornecer-lhe uma identidade. Balbuciou:

– Mas você é... – Dhara – ela completou – e você é Kadriel! Kadriel estava obtendo relativo êxito em não fazer cara de parvo, mas

estava obviamente desajeitado. Lembrou-se do dia em que se despedi-ram, ainda crianças, e de como tivera a certeza de que a reencontraria. Esse dia demorou a chegar, mas finalmente ali estava Dhara, diante de-le, a menina se tornara uma bela mulher. Não sabia como reagir, o que dizer, se a abraçava, se estendia a mão. O impasse não deve ter durado

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mais do que alguns segundos, que lhe pareceram séculos. Foi Dhara quem, percebendo a situação, quebrou o gelo:

– Será que uma velha amiga não merece ao menos um abraço? Não foi necessário repetir a pergunta, Kadriel estreitou-a nos braços,

numa união terna. Quanto durou aquele abraço? Provavelmente nenhum dos dois saberia dizer. Kadriel tampouco sabia o que Dhara pensava naquele momento, mas ele... vivera toda uma vida ao lado dela naquele instante. Sua mente e seu corpo reagiam... Tinha agora certeza do que antes apenas ousara supor: estava diante da mulher da sua vida.

26.

ustara-lhe muito chegar até lá, mas agora o Capitão se recupe-rava das suas mazelas físicas. Aquela área montanhosa não

recebia visitantes, dado o seu acesso difícil e as suas condições hostis. Ele mantinha por lá uma cabana de caça com suprimentos e materiais necessários para passar ali um bom tempo. Havia o inconveniente de não poder se aquecer com o fogo, para não chamar a atenção de nin-guém com a fumaça. Ainda que realmente não houvesse trânsito de pes-soas, o Capitão não queria correr nenhum risco de ser encontrado antes de estar completamente recuperado.

Nas proximidades havia um grande lago de água gelada, onde se ba-nhava. Gostava da energia da água. A baixa temperatura lhe fazia doer até os ossos. Mas o Capitão de certa maneira queria impor a si mesmo aquele sofrimento. Suas feridas psíquicas eram graves. Sentia culpa por ter envolvido sua família em questões de estado, o que resultara na sua morte. Sentia ódio dos assassinos. Sentia raiva de si mesmo por ter ce-dido à coação. Alimentava sua sanidade com a vingança. Mas estava no

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limiar da loucura. Às vezes, ele mesmo não tinha absoluta certeza se não enlouquecera, se não estava vivendo um pesadelo tenebroso, do qual acordaria a qualquer momento. Mas seu sono era tão agitado quan-to seus dias. Sempre que acordava, percebia que ainda estava naquele purgatório psicológico. Talvez alguma outra pessoa, no seu lugar, tives-se optado por interromper sua vida. Mas o Capitão, não. Apenas a certe-za de que acabaria com todos que tiveram alguma relação com a morte de sua esposa e filha o mantinha lúcido.

Contava os dias para esse momento de glória, que provavelmente se-ria o seu último... Planejava, traçava roteiros, depois os mudava, criava outros, voltava aos anteriores. Sua mente era um turbilhão. Ele mesmo sabia que só poderia partir para a ação quando conseguisse aquietar seus pensamentos. E isso ocorreria quando também seu corpo estivesse forte o bastante para a batalha que esperava por ele, um lobo que caça solitá-rio sob a luz errante da noite.

27.

entilmente, Haggi voltou-se para o líder da Aliança das Doze Cidades, agradecendo sua hospitalidade e os ensinamentos

sobre o espírito guerreiro dos leões, mas dizendo que tinha agora outros assuntos para tratar. Foi então em direção a Ivis, sob os olhares marotos das suas companheiras, acompanhados de risinhos e cochichos. Ivis enrubesceu, o que a tornou ainda mais atraente para o diplomata, que lhe estendeu a mão dizendo:

– Você prometeu sentar-se comigo durante o jantar... Antes que ela respondesse, uma das mulheres do grupo se antecipou:

G

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– Sente-se você aqui conosco. Não é sempre que temos a honra da companhia de homens refinados.

– É claro que muito me agradaria estar entre tão formosas damas, mas minha estada na cidade será de apenas algumas semanas, com uma a-genda oficial muito cheia, o que me deixará pouco tempo para conver-sas agradáveis como a que preciso ter com Ivis. Portanto, sei que enten-derão – concluiu alçando para fora do grupo Ivis, que já lhe pegara a mão estendida.

– Obrigada por me salvar – sussurrou-lhe a moça quando já se afasta-vam – não aguentava mais as conversas banais, das quais por sinal você foi objeto.

– Devo ficar preocupado? – Creio que eu deveria, pois elas queriam devorá-lo vivo – disse sor-

rindo. O jovem casal sentou-se a uma mesa mais no canto da sala, sob o

olhar atento de Nakan, que discretamente observava seus movimentos. Beberam algumas taças de vinho, não o suficiente para inebriar-se, mas o bastante para perder um pouco a inibição. Quem os visse poderia pen-sar se tratar de um casal unido há muito tempo, pois riam e pareciam ter uma intimidade de fazer inveja a muitos casais.

Os dois saíram para um balcão, onde podiam respirar o ar fresco da noite e ficar mais distantes dos olhares e da música. A companhia de Ivis realmente agradava a Haggi e a recíproca era verdadeira. Havia uma empatia entre eles. De repente, veio aquele momento de silêncio, em que toda a animada conversa cessa, restam os olhares e sorrisos ini-bidos. É o momento do beijo. Agora, Haggi sentia que Ivis, de fato, es-tava com ele, por ela mesma e não por determinação de Nakan ou de quem quer que fosse. Ele aproximou seus lábios dos dela, parou quando faltavam aproximadamente dez por cento do percurso. Esse último tre-

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cho cabia à mulher, se ela quisesse de verdade o beijo ela o percorreria, caso contrário, se afastaria.

Haggi, como bom cavalheiro, esperou, os olhos cravados nos de Ivis. Tinha de esperar o tempo que fosse necessário até sua definição. Ela sorriu com os olhos, e se aproximou. As mulheres costumam depositar muita confiança no primeiro beijo, pensam que por ele podem descobrir muitas coisas sobre um homem, inclusive se será um companheiro ideal.

Ivis sorriu e disse: – Acho que já está tarde. Vou me retirar – beijou Haggi na face e par-

tiu, completando: – amanhã nos vemos. Boa noite. – Boa noite... Finalmente Haggi fora surpreendido. No jogo da sedução, fora colo-

cado em cheque. Resolveu ir para os seus aposentos, mas o sono não se apresentava. Pensou que a paciência necessária no amor era ainda maior do que a necessária na diplomacia. Era fato que com esse movimento Ivis se tornara ainda mais atraente para ele.

No dia seguinte pela manhã, Haggi encontrou-se com Nakan para um

combate com sabres, como haviam combinado. Era a oportunidade ideal para tratar de assuntos importantes sem ouvintes indesejáveis por perto. Os dois homens eram bastante hábeis com a espada. Haggi tinha um estilo mais sutil, de movimentos leves e rápidos, boas esquivas e contra-ataques. Nakan se destacava pela força e intensidade dos golpes, bem como por sua cadência constante, que obrigava o oponente a movimen-tar-se todo o tempo. Haggi sentia mais dificuldade em lutar com Nakan do que com Adaran, seu adversário principal na Capital, talvez porque já conhecesse melhor seu jogo. Mas o fato é que confiava em vencer qualquer um a qualquer momento. Fazia o jogo do adversário, esperan-do o momento ideal para o ataque fulminante. O duelo seguia acirrado.

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Não havia espaço para conversa. Quando finalmente os dois concorda-ram em fazer um intervalo, sem que se pudesse apontar um vencedor, Haggi tomou a iniciativa:

– E então, Nakan, como estão os chefes das cidades que compõem a aliança em relação ao processo sucessório?

– A Aliança dos Doze está unida. Ninguém manifestou nenhuma in-surgência contra a sucessão.

– Mas, para fazermos um exercício de raciocínio, se houvesse tal dis-cordância, todas as cidades estariam unidas nessa dissidência?

– Você me faz uma pergunta difícil de responder, Haggi. Eu diria que sim, mas em questões políticas é difícil ter absoluta certeza.

– Você tem dúvidas quanto à sua liderança? – É claro que não, até porque sob a bandeira dos gêmeos, símbolo

que representa a minha cidade, luta o exército mais poderoso da Alian-ça. Isoladamente, talvez só o exército da Capital nos supere em número e força. Então, é uma liderança com lastro – sorriu Nakan.

– Como está Egas, o velho Leão? Todos sabem que ele esperava ter sido nomeado no seu lugar para essa liderança. Se ele resolvesse unir forças com outras cidades, poderia contestá-lo...

– Se ele tivesse essa pretensão, já o teria feito. É evidente que ele não ficaria triste se eu quebrasse o pescoço numa caçada. Mantemos boas relações diplomáticas, mas não confiamos um no outro. Haggi, meu amigo, sei que fazer esta observação é a sua atribuição, porém não de-vemos colocar problemas onde eles ainda não existem.

– Esta região é muito rica. Você sabe o quanto foi difícil unificá-la e mantê-la fiel ao País. Depois de muitos séculos, somente Gur Medhavin foi capaz de consegui-lo. Qualquer inconsistência poderia reacender o espírito separatista do povo.

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– Não creio nisso, mas vou ficar atento. Amanhã bem cedo sigo via-gem para a Capital, para a cerimônia de abertura da placa. Você virá comigo?

– Não, minha missão ainda não terminou por aqui... – Entendo. Ivis... – Nakan, você me toma por um cafajeste – respondeu Haggi, sorrindo

– são assuntos de Estado. – É claro, Haggi, é claro. Bem, você terá alguns dias para tratar des-

ses assuntos sem a minha presença. Ainda estará aqui quando eu voltar? – Sem nenhuma dúvida. Creio que ainda teremos muito que conver-

sar depois da posse do novo rei. Haggi provavelmente já conheceria o nome do sucessor antes do re-

torno de Nakan, pois mantinha uma eficiente rede de inteligência por todo o País e inclusive fora dele.

– Aguenta mais um combate? Haggi, sem responder, levantou-se, pegou seu sabre e tomou posição

de guarda. Lutaram por mais duas horas, para ao final não se definir um vencedor. Sim, um empate. Nakan parecia mais feliz do que Haggi, pois normalmente perdia. O diplomata, entretanto, não parecia abalado. Não que a técnica de Nakan tivesse melhorado muito, mas ele lutava com uma garra impressionante.

– Foi um bom combate – concluiu Haggi. – Concordo. Você foi cortês com seu anfitrião não o derrotando em

sua própria casa. Mas da próxima vez, espero mais do que isso. – Nakan, você sabe que eu jamais amoleço num combate. Você é que

lutou bem mesmo – respondeu Haggi, com semblante impassível, mas pensando consigo mesmo o quão astuto era o líder da Aliança. Jamais pôde ter certeza se ele realmente sabia, ou se só estava tentando fazer com que Haggi se traísse.

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O jogo de cena também terminou empatado, pois os dois se mantive-ram indiferentes. Nakan se despediu:

– Ainda nos veremos esta noite, pois darei um jantar para anunciar o noivado de minha filha.

– Ah, sim, você tem uma filha que estudava fora do País, não é mes-mo? Não me lembro dela.

– Tenho certeza de que se lembrará quando a vir. Ela tem me auxilia-do muito no governo desde que retornou. É muito capaz. O mesmo não se pode dizer do homem que ela escolheu...

– Você não o aprova? – Não devia comentar estes assuntos particulares, mas sei que posso

confiar em você, e não tenho mais ninguém com quem possa me abrir com relação a isso. Eu o considero um fraco, apesar de ser de uma das famílias mais ricas da região. Foi um amor de infância que ela reencon-trou na sua volta, mas ela ainda o vê com os olhos de adolescente. Ape-sar de ser muito lúcida para certas coisas, não está agindo de forma ma-dura neste caso.

– Por que você simplesmente não impede o casamento? – Em primeiro lugar, porque em minha casa sempre tratamos com li-

berdade as questões eminentemente pessoais. Na vida pública, já não temos muito espaço para nós mesmos. Se o tolhermos mais ainda, nada restará. E depois porque a minha oposição seria o suficiente para a deci-são final dela a favor desse casamento. Fosse um assunto de Estado, ela me obedeceria de modo absoluto. Mas na sua vida pessoal não gosta de imposições e é muito determinada.

– Neste caso, não sei o que dizer. Creio que só lhe resta esperar pelo inesperado.

– Só me resta contar com que ela veja a realidade por si mesma. Ve-mo-nos à noite.

– Até lá.

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TALAL HUSSEINI 159

Após descansar em seus aposentos, Haggi se propôs uma missão para aquela tarde: encontrar Ivis. Mas ela havia desaparecido. Vasculhou todo o palácio sem sucesso. Perguntava aos serviçais, mas todos o olha-vam com estranheza e não respondiam. A última esperança era o jantar.

A música já tocava e o vinho já era servido. Todos os convivas come-çavam a soltar-se e desinibir-se, Haggi vasculhava com os olhos todo o salão, e nada de avistar Ivis. Nakan fez sinal para que se aproximasse:

– Noto que você está inquieto, meu amigo. – Estou bem – respondeu, sem deixar de procurar com os olhos. – Não está encontrando o que procura? – Aquela moça que estava presente no dia da minha chegada, Ivis,

não a vejo por aqui. – Não se aflija, tenho certeza de que logo ela aparecerá – respondeu

Nakan. Haggi pensou ter sentido um tom de ironia na voz do líder, mas rele-

vou. Os arautos anunciaram a presença do futuro noivo, que já dava sinais

claros de embriaguez. Isso poderia se explicar pela ocasião mas, somado às preocupações que o pai da futura noiva lhe manifestara, tal impressão fez com que Haggi sentisse imediata antipatia pelo sujeito. A filha de Nakan surgiu. Quando a viu, Haggi ficou lívido.

Os arautos anunciaram: – Damas e cavalheiros, a filha do governador Nakan: Ivis! Apenas Nakan percebeu, porque o observava, a reação de surpresa de

Haggi, mas o diplomata prontamente se restabeleceu. Ivis estava linda! O ébrio noivo foi em sua direção, com um sorriso abobado estampado na face, e a tomou pelo braço, dirigindo-se à mesa que lhes estava re-servada, ao lado da de Nakan, onde estava Haggi.

O governador se levantou para fazer o anúncio. Ficou em pé, em si-lêncio por alguns segundos, até que todos se aquietassem. Aguardou

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mais alguns segundos para se certificar de que todos lhe davam a devida atenção e então proclamou:

– Senhoras e senhores aqui presentes, a noite de hoje é muito especial para todos, especialmente para minha filha, Ivis. Não posso dizer que eu esteja feliz, pois qual é o pai que gosta de entregar sua filha? Mas, en-fim, se ela está feliz, tenho que aceitar os fatos. Oficializo perante todos o noivado de Ivis e Garat – completou secamente.

Todos aplaudiram. Os noivos sinalizaram um brinde para Nakan com suas taças. Quando a audiência silenciou, Garat ficou com a palavra:

– Agradeço as palavras, senhor Governador, e lhe digo que farei sua filha muito feliz. Pode estar tranquilo. Também eu gostaria de fazer um anúncio – Ivis pegou no seu braço para tentar contê-lo, mas foi em vão – quero dizer que a data do casamento...

Nakan o interrompeu abruptamente, mas com um sorriso: – Meu caro Garat, creio que é muito cedo para falarmos em datas.

Não criemos expectativas cedo demais. Aproveitem esse momento de noivado e mais tarde, então, sim, poderão marcar a data.

Garat ainda fez menção de continuar falando, mas Nakan finalizou qualquer possibilidade disso:

– Insisto! Não falaremos de datas esta noite. Senhores músicos, to-quem! Senhores convidados, aproveitem a noite!

Não restou ao alegre noivo senão voltar-se para sua taça de vinho, que estava longe de ser a primeira da noite e mais longe ainda de ser a última.

Os convidados afluíam para cumprimentar os noivos. Haggi voltou-se para o governador, em tom cínico: – Que demonstração de alegria, Nakan! – Não sou homem de dissimular minhas opiniões. Ivis sabe que não

aprovo este noivado e quero que isso fique muito claro também para Garat.

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– Não creio que ele tenha compreendido, considerando seu estado... Nakan, posso lhe fazer uma pergunta?

– Faça! – Por que, no dia em que aqui cheguei, você mandou Ivis acompa-

nhar-me, se sabia que ela ficaria noiva? – Era um teste. – Para mim ou para ela? – Para ambos. Haggi entendeu que não conseguiria extrair mais do que isso de

Nakan. Mudou de assunto: – Bem, acho que está na hora de cumprimentar os noivos – deixou a

mesa, tomando nas mãos uma maçã. Aproximou-se da mesa dos noivos, estendeu a mão para Garat, mas

não desviava os olhos de Ivis: – Meus parabéns, Garat! Você é um homem de muita sorte. Sua noi-

va, se me permite dizer, é a mais bela dama deste lugar. Vejo que todos vieram preparados com belos presentes, mas infelizmente eu não sabia da razão deste jantar. O que me trouxe a Rubatis foram outros propósi-tos. Mesmo assim, com a sua licença, não gostaria de me furtar a pre-sentear a noiva.

Dizendo isso, cumprimentou-a com uma mão e estendeu-lhe a maçã com a outra.

Ivis sorriu francamente: – É uma bela maçã, mas confesso que é o presente mais inusitado que

recebi... – Ela é muito mais do que parece. A uma mulher complexa e misteri-

osa forçosamente devem agradar os mistérios, que podem estar presen-tes mesmo nas pequenas coisas.

– Mas que mistério pode residir numa maçã?

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Ao responder, Haggi olhou rapidamente para Garat, de forma que só Ivis o percebesse, e emendou:

– O primeiro deles é que uma maçã, quando está podre, cai sozinha... Tarin, que um pouco afastado de seu Mestre ainda assim ouvia toda a

conversa, pensou consigo: “cai sozinha, mas um vento sempre pode ajudar...”. Conhecia seu patrão. Sabia que ele já articulava em sua mente toda uma estratégia para conquistá-la. Nunca o vira falhar nesse intento.

Ivis perguntou: – Mas quando uma maçã podre cai, surge outra em seu lugar? – Sempre. – E como saber se essa nova maçã também já não está podre? Haggi ainda segurava a mão da noiva durante todo esse diálogo.

Garat se sentia incomodado com aquela conversa da qual nada entendia. Também as pessoas que vinham depois de Haggi para cumprimentar a noiva se impacientavam, mas isso não incomodava em nada o visitante, e tampouco à noiva. Ele respondeu, olhando no fundo dos olhos de Ivis:

– Só há uma maneira de saber quantas sementes há numa maçã: pro-vando-a. Mas mesmo assim, não se pode saber quantas maçãs há numa semente...

Dizendo isso, Haggi se retirou, percebendo que extraíra ainda um úl-timo sorriso de Ivis. Não desviou seus olhos dela até deixar a sala. Ela fez o mesmo. Ele notou que Garat falava com Ivis um pouco exaltado, mas ela não lhe fazia atenção. Quando ganhou o exterior, Haggi respi-rou. Tarin surgiu ao seu lado:

– Senhor, se me permite dizer, creio que após tão demorada e tão in-tensa conversa com a noiva, como todos lá dentro puderam notar, não seria conveniente deixar a festa.

– Sim, Tarin, você tem razão. Vou apenas tomar um pouco de ar e re-tornarei em seguida, para ficar mais alguns momentos.

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Quando entrava novamente no salão, Haggi sentiu uma aproximação pelas costas. Com um leve movimento deslocou-se para o lado, deixan-do passar e cair atabalhoadamente Garat.

Todos perceberam a alteração. Alguns amigos de Garat, tão fúteis quanto ele, haviam enchido sua cabeça com ideias de que Haggi o des-respeitara, mantendo uma conversa muito longa com sua noiva, para ser um simples cumprimento. E que, pior, ela parecia ter gostado dessa conversa. Já embriagado, Garat se inflamou e atacou Haggi, mas sua investida foi fracassada. Estatelou-se de forma humilhante. Ao se levan-tar, desafiou:

– Você não pertence a esta cidade, e vem aqui me desrespeitar. Eu o desafio para lutar!

– Não tenho porque lutar com você, Garat, e não o desrespeitei. Ape-sar de que no estado em que se encontra não merece mesmo respeito e muito menos merece que eu lute com você – ao dizer isso, Haggi virou as costas para deixar o local.

Garat, não se conformando, apanhou uma faca sobre uma das mesas e se lançou sobre Haggi, que num movimento muito rápido derrubou o oponente, tomando-lhe a faca e colocando-a sobre o seu pescoço, ao mesmo tempo em que com a outra mão segurava seu pulso numa torção. O salão todo fez silêncio.

Alguém murmurou: – Você foi atacado. A lei permite que o mate. – Sim – completaram outras vozes – você deve matá-lo! O coro cresceu. Garat chorava, diante da possibilidade real e da pro-

ximidade da morte. No lugar de Haggi, ele nem teria esperado tanto tempo, já teria usado aquela faca. Haggi terminou de lançar Garat ao chão, que ali permaneceu em prantos, jogou a faca longe, e saiu, sem dizer palavra.

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Pôde ouvir os vários comentários dos presentes que estavam sedentos de sangue, inclusive alguns amigos de Garat: “fraco”, “não o matou, demonstrou que não tem valor”, “sem honra”, e por aí afora. Mas ao menos uma pessoa naquele salão não vira fraqueza naquele ato: Nakan. Este vira compaixão, e gostara disso. Ivis talvez também tivesse enten-dido alguma coisa naquela situação, não sobre Haggi, mas sobre Garat e maçãs...

Haggi estava convicto de que agiu de acordo com a sua regra de cava-lheiro: jamais poderia atacar ou matar alguém caído, de costas ou inferi-or na luta. Garat se enquadrava em pelo menos duas dessas situações.

Quando passou pela mesa de Nakan, este o recebeu com um leve tapa nas costas e um sorriso, sem tocar no assunto do que acabara de ocorrer:

– Haggi, amanhã parto cedo para a Capital, para a posse do novo rei. Creio que não nos veremos antes de minha partida, mas espero ainda encontrá-lo na minha volta, dentro de alguns dias.

– Sim, é claro Nakan, estarei aqui. Ainda teremos muito a conversar, depois da posse do novo rei. Agora vou me retirar, creio que já tive ação o bastante por hoje.

28.

daran acordou não cabendo em si no primeiro dia do seu reina-do. Todos esperavam o anúncio das primeiras medidas do novo

soberano, como era de praxe. Ele pretendia fazer história. Pretendia dirigir-se ao povo à tarde, pois tinha várias reuniões pela manhã. Com os militares, com os Ministros e com o Senado.

A primeira reunião foi com o Conselho de Guerra, formado por nove generais de estrela dourada. O mais novo de todos era Nakan, com seus

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cinquenta e tantos anos. Os demais contavam todos mais de sessenta mas em boa forma, apesar do longo período de paz por que passava o Reino. Via-se em seus rostos que eram homens duros, capazes no seu mister, prontos a defender o País com suas vidas contra qualquer ameaça.

Estavam em torno de uma mesa longa. Quando Adaran entrou, fize-ram reverência, até receber a ordem para descansar. Era a primeira reve-rência que Adaran recebia afora a da cerimônia de posse, que acabou prejudicada pelo maldito vulcão. E vinha de uma elite nacional. Adaran saboreou seu momento, esperou um pouco mais do que o necessário para dar o comando de descansar. Finalmente, sentou-se à ponta da me-sa, fazendo um gesto altivo para que os generais o imitassem. Tomou a palavra:

– Senhores Generais, vocês são a elite do nosso exército! O saudoso rei Sokárin ficou muitos anos no poder, teve vida longa. Foi um período de paz, o que pode ter amolecido nossas tropas – o ataque fora direto, mas todos permaneceram impassíveis, exceto um dos mais velhos, que ficou visivelmente contrariado com a observação ofensiva. Entretanto, se conteve e nada disse.

Adaran prosseguiu: – Começamos agora uma nova fase. Pretendo passar em revista nos-

sas tropas, a começar dentro de três dias. Estejam preparados. Não será tolerado qualquer desvio de disciplina! Temos de estar muito bem pre-parados para os novos tempos.

Pedindo licença para falar, um dos generais perguntou: – Vossa Majestade pretende ir à guerra?! Adaran riu: – Para que serve um exército senão para estar preparado para a guer-

ra? Mas isso não significa que precisemos ir à guerra. Apenas não quero

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surpresas. Vou dirigir mais investimentos do Reino para as tropas. No-vas armas, de melhor qualidade, mais cavalos, mais treinamento.

Todos assentiram com a cabeça, alguns até sorriram. Com aquelas promessas Adaran parecia ter conquistado o apoio de alguns. De outros ainda não conseguira fazer a leitura, mas logo saberia a posição de to-dos. Continuou:

– Pretendo implementar muitas mudanças, obviamente para melhor, mas que podem encontrar resistência. Quero que estejamos preparados para suplantar rapidamente qualquer indício de revolta. É imprescindí-vel evitar qualquer estremecimento nas relações internas, para que não enfraqueçamos perante nossos vizinhos em virtude de conflitos e desa-venças intestinas. Estamos todos de acordo? Os senhores são os defen-sores da lei e da ordem. Apoiarão incondicionalmente o novo Rei?

Aguardavam em silêncio para ouvir as medidas que Adaran anun-ciaria:

– Não teremos mais um Ministro da Guerra. Este Conselho se repor-tará diretamente a mim! Em contrapartida, terá suas atribuições aumen-tadas, e também suas vantagens... O fato de estar realizando a primeira reunião oficial de meu reinado com este Conselho demonstra o prestígio que lhe quero outorgar. Tenho certeza de que os senhores compreende-rão a medida que estou prestes a anunciar, mas também estou certo de que outros não o farão. Para fazer entender a todos, até mesmo pela for-ça se for necessário, pois o povo nem sempre entende as medidas do governante, qual o doente que se nega a tomar o remédio por amargo, conto com a pronta ação dos senhores e de seus comandados. Pois bem...

Fez uma longa pausa, deixando todos ansiosos para ouvir o restante, apesar de nenhum deles demonstrá-lo:

– Este Conselho de Guerra passa a exercer as atribuições até agora exercidas pelo Conselho dos Anciãos!

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Novamente Adaran esperou, perscrutando no olhar de cada um as re-ações que pudessem denotar apoio ou contrariedade. Os mesmos três que antes sorriram ao ouvir as notícias sobre suas novas vantagens exul-taram. Claramente aprovavam as medidas do Rei e lhe expressaram total e incondicional apoio. Os seis demais permaneceram impassíveis, à exceção do velho General, que antes já demonstrara impaciência. Des-ta feita, não se conteve, pediu a palavra e quase sem esperar a autoriza-ção do Rei vociferou:

– Isto é um ultraje! Senhores Generais, meus companheiros de armas, vocês não percebem o que está acontecendo aqui?! Isto é um golpe de Estado! Com todo respeito, Vossa Majestade está conspurcando as insti-tuições de nosso país. Este Conselho tem atribuições bem distintas das do Conselho dos Anciãos. Não temos a pretensão nem a capacidade de usurpar suas atribuições! Pretende Vossa Majestade corromper-nos com vantagens e poder? Jamais aceitaremos! Vamos a público desmascará-lo perante o Conselho dos Anciãos e perante o povo. O exército jamais aceitará este disparate! Se assim for, prefiro resignar-me de minhas fun-ções – ao dizer isso, levou a mão à espada para retirá-la da cintura e entregá-la, num gesto de renúncia ao cargo.

Mais do que rápido, a um sinal imperceptível de Adaran, um dos vá-rios guardas reais que faziam a segurança da reunião atingiu o velho general com uma seta disparada da sua balestra. O tiro certeiro calou o general, antes que ele pudesse terminar de retirar sua espada. Ele tom-bou sobre a mesa, para espanto dos demais. Antes que alguém pudesse dizer qualquer coisa, o Rei emendou:

– Todos os senhores viram, são testemunhas, de que o general estava desequilibrado e num gesto impensado ia sacar da sua espada para aten-tar contra a pessoa real. O guarda cumpriu sua obrigação de defender o Rei. É tão tênue a linha que separa os aliados dos inimigos... – comen-tou em tom mais baixo, como se falasse consigo mesmo, e depois em

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tom normal, encarando seus interlocutores com firmeza: – nestes tem-pos em que vivemos, não há espaço para a dúvida. Aqueles que questio-nam o progresso são inimigos do Reino e, como tal, devem ser elimina-dos. Conto com o apoio dos senhores? – perguntou ignorando o cadáver sobre a mesa.

Os generais estavam chocados, apesar de acostumados ao rigor nas atitudes. Procuravam dissimular sua consternação, mas pela primeira vez sentiram o peso da autoridade do novo Rei. Um dos que havia sorri-do antes, pediu a palavra e se levantou:

– Vossa Majestade conta com o apoio dos generais! E acho que falo por todos nós – olhou ao redor indagando os outros com o olhar. Nin-guém se manifestou – se Vossa Majestade me permite perguntar, o que será feito do Conselho dos Anciãos, será dissolvido, seus membros de-vem ser presos?

– É claro que não, meu caro general! O Conselho dos Anciãos ganha-rá novas atribuições. Não podemos extirpar instituições com as quais o povo está acostumado. Os membros do Conselho dos Anciãos são muito idosos para carregar o peso que hoje carregam. Não se trata de um golpe de estado, como disse nosso amigo falecido, mas sim de uma medida humanitária, que visa a proteger a integridade de nossos senadores. Eles manterão seus proventos e ficarão responsáveis por todos os eventos cívicos e festividades nacionais. Aparecerão interna e externamente como um órgão de honra, mas não terão sobre seus ombros o peso do trabalho duro de Estado. Aqueles que não compreenderem essa situação e essa intenção deverão ser detidos, para evitar que contaminem os de-mais e o povo.

Alguns assentiram com um gesto de cabeça, outros concordaram com o seu silêncio. Adaran continuou:

– Por fim, precisamos recompor o número de nove neste Conselho. Então, nomeio agora mais um general de estrela dourada, a quem espero que todos recebam como a um irmão: General Ofis!

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Ao ouvir sua deixa, Ofis, que aguardava do lado de fora da sala, aden-trou, já em trajes de general de estrela dourada, como se não esperasse outra coisa daquele encontro. Ao ver a cena, até mesmo o General Tybur, que era o mais prestativo para com o novo soberano, não conse-guiu disfarçar seu constrangimento. Um sujeito que nem era militar, nomeado general de estrela dourada, era algo inusitado. Era certo que a comenda era privativa do Rei, e não havia lei que dissesse que só pode-ria ser dada a militares, mas a tradição... Adaran estava bem a par da lei e amenizou a situação, ao menos com seu mais novo aliado, fazendo mais um anúncio:

– O Conselho de Guerra precisará de um líder, que será a ponte direta entre o que se passa aqui dentro e os ouvidos reais. Assim sendo, eu nomeio Presidente do Conselho de Guerra o General Tybur!

O General agradeceu e dissipou qualquer constrangimento que ainda tivesse em seu semblante em relação a Ofis. O mesmo não se podia di-zer dos demais, que disfarçavam o melhor que conseguiam seus pensa-mentos e emoções, pensando na reação e no fim que teve o velho gene-ral, cujo corpo finalmente era retirado pela Guarda Real.

O Rei Adaran deixou a reunião e foi a público fazer seus anúncios o-

ficiais. Quebrando a tradição, resolveu dirigir-se primeiro à população e somente depois ao Conselho dos Anciãos. Anunciou como em seu rei-nado promoveria a igualdade entre todas as pessoas, pois somente sendo iguais poderiam ser livres. O pobre seria igual ao rico, o covarde igual ao valente, o estudioso igual ao ignorante. Tais distinções incabíveis não mais teriam lugar neste Reino. Igualdade e liberdade seriam então reali-dades para todos, indistintamente. A educação seria promovida com vistas ao futuro e não mais ao passado, pois era importante vislumbrar a evolução e o desenvolvimento, em lugar de ficar atrelados às tradições e à história, que só faziam perder tempo precioso de estudo e frear a ciên-

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cia, que esta sim traçava os rumos de um conhecimento sólido e palpá-vel, ao contrário da filosofia e das religiões, que cuidavam do irreal, do metafísico, portanto, de coisas ilusórias que só serviam para atrapalhar o verdadeiro desenvolvimento individual e social do povo.

Todos aplaudiam com vigor. A praça pública estava lotada. O povo finalmente tinha a sensação de que um verdadeiro líder chegara para lançar o país numa nova era, desatrelada do passado. O apoio da popu-lação fora facilmente conquistado. Agora, restava dirigir-se ao Conselho dos Anciãos. Com as vantagens de ganhos que, antes de mais nada, pre-tendia anunciar, Adaran tinha por objetivo neutralizar boa parte das e-ventuais reações adversas no Senado.

A realidade saiu um pouco diferente do que esperava. Anunciou com sucesso os benefícios que dava aos senadores, mas quando relatou as modificações nas atribuições do Senado que implementava, a reação foi forte. Aqueles cujo apoio já tinha o mantiveram, os que não lhe eram simpáticos reagiram com violência, como também aqueles que se posi-cionavam de maneira neutra, dificultando, assim, os planos de Adaran que almejava trazê-los para o seu lado. O tumulto chegou à exaltação e, não fossem os senadores todos de certa idade, teriam ido às vias de fato.

O Rei concluiu agradecendo os serviços prestados até então pelo Se-nado e principalmente por tudo que ainda teriam de fazer nas suas novas funções e se retirou rapidamente, deixando as discussões e divergências para os que subiam ao púlpito. Vários soldados da Guarda Real perma-neceram no Senado após o Rei se ter retirado, mas não interferiram nas disputas, apenas fazendo observar quais eram as posições de cada um. Aqueles que não apoiavam as iniciativas do Rei, já nomeados pelos ou-tros como oposicionistas, conclamavam o Senador Rohel, que era uma espécie de baluarte dessa corrente, a subir à tribuna e dirigir-se à plená-ria. Este aceitou, mas estava visivelmente abatido. Não era naquele dia o orador inflamado de outros tempos. Apenas deixou claro seu repúdio às

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medidas anunciadas por Adaran em relação ao Senado, o que, segundo ele, caracterizava um isolamento daquela Casa, de forma a extirpá-la da vida pública do País. Falou pouco. Desceu da tribuna entre aplausos e apupos dos dois grupos que dividiam o Senado. Rohel já vislumbrava o porvir. Sabia que os dias de paz e tranquilidade se aproximavam do fim. Saiu da tribuna direto para a sua casa.

Inari, que conhecia seu marido, ao vê-lo chegar, apenas franziu o so-brolho. Entendendo a pergunta que ela não lhe fizera, respondeu:

– Vamos nos preparar para o pior, Inari, minha querida!

29.

o chegar à casa de Ravi, Kadriel estava ansioso para lhe relatar seu sonho e para conversar sobre o reino, a sucessão e tudo

mais, porém sua ansiedade tinha sido dissipada pelo encontro com Dhara. Ele estava aéreo. Ravi, que examinava tranquilamente alguns escritos, convidou-o a sentar-se:

– Olá, Kadriel. Esperava você um pouco mais ansioso neste primeiro dia de reinado de Adaran, mas vejo que está bem tranquilo. O que o traz aqui?

– É que esta noite tive um sonho... – Novamente com Mulil. – Sim... E acho que ele morreu... – Você acha? – É, não tenho certeza. – De qualquer modo, não se esqueça de que é apenas um sonho. – Cada vez mais eu acho que esses sonhos têm relação com a minha

vida. Cada vez mais me identifico com Mulil. Tudo parece tão real...

A

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– Os sonhos são reais, na sua esfera. O que nos parece etéreo e fanta-sioso pode ser a realidade em uma outra perspectiva. E o que vivemos como realidade pode não passar de ilusão. Já pensou nisso? Mas conte-me seu sonho, vamos ver qual é a sua realidade onírica.

Kadriel contou em detalhes o que sonhara e disse que estava curioso para saber o que aconteceria em seguida com Mulil, pois já reparava que os sonhos pareciam seguir uma sequência.

Ravi respondeu-lhe que poderia aprender muito com esses sonhos, a partir das experiências vividas por Mulil, que poderia fazê-las suas. Dis-se-lhe que quando sonhasse devia se lembrar de guardar as memórias do sonho dentro do coração, pois por mais real e vívido que fosse, poderia ser esquecido algum tempo depois de acordar. Também era uma prática interessante tomar notas logo ao acordar. Kadriel assim faria. Os dois conversavam acerca do sonho, quando chegou à casa um militar, fazen-do-se anunciar e chamando por Ravi.

O dono da casa mandou que o fizessem entrar. O homem tinha um ar circunspecto e aparentava estar preocupado:

– Bom dia, General Aldhar. Como estão as coisas? O General não respondeu, dirigindo o olhar para Kadriel. Entendendo

suas dúvidas, Ravi o tranquilizou: – Este é Kadriel, Aldhar – os dois se cumprimentaram com um gesto

de cabeça – ele é da minha mais absoluta confiança. Podemos conver-sar.

Quase inconscientemente, Kadriel sentiu-se orgulhoso das palavras de Ravi. Esse sentimento o fez perceber o quão importante a opinião de Ravi se tornara para ele. Sentiu um calor aconchegante no coração. O General Aldhar continuou:

– Estou preocupado, Ravi! Você já soube das primeiras declarações do novo Rei?

– Não, ainda não tive notícias...

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– Seu primeiro ato foi uma reunião com o Conselho de Guerra, da qual participei, juntamente com os outros oito generais de estrela de ouro. Ele ampliou as vantagens e as atribuições do Conselho de Guerra – fez uma pausa, como aguardando alguma intervenção de Ravi, que permaneceu calado. Então prosseguiu: – o Rei vai destinar muitos in-vestimentos ao exército. Ele disse que não quer fazer a guerra, mas se trata de uma preparação para isso. Pediu nosso apoio para tornar o Con-selho dos Anciãos um ente inoperante, meramente decorativo, que não terá mais qualquer atribuição prática.

– E os generais apoiaram tal medida? E o velho General Margut, ran-zinza por natureza?

– Margut... está morto! Ravi não conseguiu esconder sua surpresa, assumindo uma feição sé-

ria. Aldhar continuou sua narrativa: – O General não se conformou com as medidas, se manifestou de

forma exaltada. Levou a mão à sua espada, como tinha o hábito de fazer sempre que discursava de maneira mais inflamada. Um dos guardas reais o abateu com uma seta. Adaran afirmou que o general iria atacá-lo, mas Margut tinha muito senso de dever e respeito à coroa, independente de quem a usasse. A mim me pareceu mais que ele ia entregar sua espa-da. Em todo caso, nunca saberemos ao certo. Adaran continuou sua pro-lação com o cadáver ali estendido sobre a mesa, em um tom de certa forma de ameaça contra quem não o apoiasse integralmente.

– E como você acha que os outros vão se posicionar? – Difícil dizer. Ao menos Tybur, que foi nomeado presidente do Con-

selho, e mais um parecem apoiá-lo incondicionalmente. O terceiro é Ofis, que foi nomeado general para compor o Conselho no lugar de Margut.

– Ofis...? – É um lacaio de Adaran desde os tempos em que era ministro. Nem

sequer é militar, mas a regra diz que a nomeação do Conselho de Guerra

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174 PAZ GUERREIRA - FORÇA

é privativa do Rei, dentre aqueles que ele entender capacitados... Os outros, e também eu mesmo, saíram em silêncio, não pude fazer uma leitura de ninguém. Todos pareciam estudar a nova situação, para depois se posicionar. Mas o Rei é Adaran, então não parece haver muita opção.

Ravi parecia pensativo: – Sim, Aldhar, é verdade, mantenha-se discreto, ficaremos em conta-

to. O General despediu-se de Ravi com um abraço e saiu marchando, vi-

sivelmente consternado. Ravi dirigiu-se então a Kadriel: – Você vê, meu jovem? Adaran agiu rápido, está consolidando sua

posição, apesar de não senti-la realmente ameaçada. – Sim, e ao investir no exército está aumentando e confirmando sua

força... – Força? Não. O que Adaran tem não é força. Ele é vaidoso, e o vai-

doso não tem força porque está sempre sozinho, ainda que compre apoi-os e companhia.

– Mas se isso não é força, então o que é a força? – A força é a virtude que compartilham todos os guerreiros de um clã,

não é uma questão pessoal, mas sim um poder coletivo. Os antigos dizi-am que um homem sem cidade não é nada, pois carece de força para lutar como um guerreiro. A força e o espírito que emanam da compa-nhia vêm da união dos cavalheiros diante de um ideal superior.

Dizendo isso, Ravi apanhou no chão um graveto e o entregou a Kadriel, mandando-o quebrá-lo. Kadriel o fez com facilidade. Então, Ravi juntou vários gravetos num feixe e mandou que Kadriel os que-brasse. Ele não conseguia, por mais força que empregasse.

– Por trás de cada graveto existe uma linha de força que os une e jus-tifica, é como uma linha luminosa que se manifesta quando as partes descobrem que na realidade são unas em essência. Tudo no universo está interligado e interconectado, o ser humano, quando desliza pelo aroma do mistério da união, encontra a força que vem do ideal, e através

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TALAL HUSSEINI 175

da técnica o guerreiro é capaz de explorar com eficácia tudo o que a força do ideal lhe oferece. Espírito, força e técnica compõem as três armas do verdadeiro guerreiro.

Kadriel queria entender melhor tudo aquilo. Era um ensinamento que não podia ser digerido de uma só vez, exigia reflexão. Kadriel despediu-se de Ravi, com a intenção de voltar para a sua casa e pensar no assunto. Quando já estava do lado de fora da porta, indo em direção à rua, Ravi lhe perguntou:

– E como é ela? Kadriel voltou-se, sem entender direito a que seu Mestre queria refe-

rir-se. Perguntou, com ar confuso: – Ela quem...? – Ora, a mulher que colocou esse brilho nos seus olhos. Desde que

você chegou aqui hoje, notei que está diferente, mais tranquilo, um pou-co disperso. Dessas observações, ficou claro que só pode ser uma moça.

Kadriel surpreendeu-se com a percepção demonstrada por Ravi, pois não imaginava que cada célula de seu corpo transparecia seus sentimen-tos. Voltou até a porta e contou a Ravi então o que se passara quando vinha de sua casa. Seus olhos brilhavam novamente ao falar de Dhara:

– Você nunca poderá dizer que o primeiro dia de reinado de Adaran foi ruim para você, – ironizou Ravi – você encontrou uma dama muito especial, que ao que parece tem alma nobre. O coração tem sabedoria para encontrar seus próprios caminhos.

30.

ulil acordou sem saber onde estava. Alguém o havia limpa-do, colocado roupas novas. Estava dentro de um edifício.

Tinha dormido sobre uma esteira. O aposento era confortável, apesar M

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de simples. Sua última lembrança era de estar sucumbindo ao deserto, à sede e à fome. Caminhara o que pudera, para além do ponto sem vol-ta. Perdera-se da trilha por perseguir uma miragem, mas a conseguira reencontrar graças ao ensinamento de seu Mestre. Quando caiu ao solo, lembrou-se de uma prática que havia aprendido, que consistia em reduzir a respiração, pacificar as emoções e esvaziar a mente, de modo que o corpo passava a ter um gasto mínimo de energia, possibilitando a sobrevivência. Era como um estado de hibernação. O corpo ficava iner-te, quase como uma pedra. Mulil teve tempo somente de induzir esse estado. Assim foi encontrado.

– Você passou o umbral – disse uma voz suave às suas costas, reti-rando-o de seus pensamentos.

Era um homem esguio, cuja aproximação Mulil não percebera. Usa-va uma túnica típica dos antigos sacerdotes. O homem prosseguiu, sor-rindo:

– Nós o encontramos deitado na areia do deserto, com os sinais vi-tais muito fracos. Já o esperávamos, mas não tínhamos certeza de que conseguiria.

– Que lugar é este? – É o templo de Zohar. É o lugar a que você tinha de chegar para

cumprir a missão que seu Mestre lhe designou. – Mas eu nunca ouvi falar de nenhum templo nesta parte do deserto. – Somente os sacerdotes e alguns sábios o conhecem. O deserto, que

costuma expulsar ou engolir aqueles que nele se aventuram, nos aco-lheu e nos protege contra visitantes indesejados. Você é um bom discí-pulo, cumpriu à risca a missão que seu Mestre lhe outorgou, mesmo que ela o fosse levar à morte.

– E o que o deserto tem a me dizer?

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– Se houver resposta para essa pergunta, ela lhe será dada numa pe-quena cerimônia logo mais. Você agora precisa se alimentar, pois pas-sou por privações na sua viagem e precisa se recuperar.

No início da noite, após um repasto frugal, Mulil foi conduzido a um

salão cerimonial. Era iluminado com várias tochas de fogo azul, o que dava um ar etéreo ao ambiente. Havia apenas quatro sacerdotes no local, que aguardavam Mulil em torno de um altar, sobre o qual ficava uma pia cheia d’água. Também havia um recipiente em que se queima-vam incenso e mirra. Os sacerdotes explicaram a Mulil que ele devia guardar aquele altar durante toda a noite, sentado sobre os joelhos. Após algumas horas, já não sentia mais as pernas. Depois polarizou, procurando esquecer até mesmo que tinha um corpo. O cheiro da mirra e do incenso, e a luz diáfana azul causavam-lhe tontura. Mulil procura-va resistir, mas sentia que iria desmaiar a qualquer momento. Fechou os olhos, perdendo por um instante a consciência da realidade que o cercava. Foi quando alguém tocou-lhe suavemente o ombro. Ele des-pertou, deparando-se com uma mulher esguia, de pele muito clara, que usava uma espécie de turbante, não permitindo que se lhe vissem os cabelos. Seu rosto era excessivamente alongado, grandes e profundos olhos negros. Estendeu a mão sobre Mulil.

– O que você veio fazer aqui? – perguntou a mulher. – Vim por ordens de meu Mestre... Estou velando o fogo... – O que você veio fazer aqui? – insistiu. – Vim saber o que o deserto tem para me dizer... – Sobre o deserto marcha o vento, capaz de gerar tempestades, sub-

verter cidades, destruir civilizações, tudo por uma força silenciosa, de fonte invisível mas extremamente poderosa. Quando você conseguir

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ouvir essa força silenciosa, sentir esse vento marchar sobre sua alma, vai aprender a dominar a si mesmo e a vencer sem lutar.

Ela fez uma pausa e prosseguiu, respondendo a pergunta que Mulil não fez:

– A chave está nas dezesseis partes do Deus, nas dezesseis pétalas, nas dezesseis virtudes.

Mulil queria perguntar mais, mas um forte odor penetrou suas nari-nas, sua vista ficou enevoada. Quando o ardor se dissipou, a mulher não estava mais na sua frente. Ele prosseguiu sua velatura, até que os sacerdotes vieram rendê-lo. Demorou vários minutos até conseguir mover suas pernas. Disse aos sacerdotes:

– Gostaria de falar novamente com a sacerdotisa que veio ter comigo durante a meditação.

– Não temos nenhuma sacerdotisa em nosso templo... apenas sacer-dotes.

Mulil não escondeu sua perplexidade. Tudo fora tão real. Sentia-se muito diferente do que quando chegara ao templo, e mais ainda do que antes de partir naquela jornada inusitada no deserto. O sacerdote le-vou-o até uma área externa, onde alguns homens trabalhavam em tare-fas manuais, como pintura, escultura, marcenaria. Aproximaram-se de um dos artesãos, que não desviou o olhar nem a atenção do seu traba-lho. O sacerdote indicou-o a Mulil, dizendo:

– Este é Sigés. Ele é a razão concreta de sua vinda ao nosso templo. Você deve levá-lo até Montuhotep, que tem um trabalho específico para ele realizar, o qual não pode ser executado por outro – o artesão fez uma ligeira mesura com a cabeça, sem perder o foco da sua obra.

Mulil dirigiu-se a ele: – Chamo-me Mulil. Espero que possamos fazer uma viagem rápida e

tranquila até a cidade.

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Sigés nada respondeu. O sacerdote explicou: – Ele não pode lhe responder. Fez um voto de silêncio, que não lhe

permite pronunciar palavra. Já há cinco anos nada fala. Seu mundo são as suas obras. Ele conhece as proporções mágicas, pois aprendeu com seus Mestres a dominar os números mágicos. Consegue com isso dar movimento à pedra, infundir-lhe a energia que lhe dá vida. Diz-se que suas estátuas podem locomover-se sozinhas...

Na viagem de volta de Mulil e Sigés, tudo correu tranquilamente. Cruzaram o deserto sem maiores problemas, mas não sabiam o que os aguardava na chegada…

31.

adriel sentia-se feliz por Mulil não ter morrido no seu sonho. Também sentia-se disposto a iniciar sua missão. Tinha de

cumprir o que prometera a Sokárin: lutar pelo poder. Primeiro, precisa-va encontrar a placa. Tinha a certeza no seu íntimo de que ela existia e de que o Rei falecido a escondera, para ser encontrada no momento oportuno. Esse momento era agora. O início da sua luta dependia de um fator que o justificasse. É certo que perante a lei pouco importava, pois a cerimônia de troca das placas e a inserção da nova placa na estela é que determinavam o nome do sucessor. Isso não ocorrera. O trono era de Adaran. Mas perante a Justiça, o trono era seu. Essa era a vontade de Sokárin. Confiava em que muitas pessoas entenderiam a verdade e o apoiariam.

Ia reunir-se com Bakar para traçarem uma estratégia de busca. Havia perguntado a Ravi o que ele achava, mas este lhe respondera que esta era uma batalha que Kadriel precisava lutar sozinho. Era importante que

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assim fosse, pois essa prova fazia parte de algo maior, e se não pudesse ser vencida, significava que Kadriel não merecia nem cogitar a coroa.

Kadriel já tentara detectar algum indício do possível esconderijo da placa através da frase que Sokárin deixara, mas não lhe ocorria nada. O enigma falava de falcão, também seus sonhos tinham a presença reni-tente dessa ave... Bakar chegou. Kadriel esperava sua ajuda mais para as questões operacionais, pois não tinha muita esperança de que ele pudes-se ajudar com o enigma, uma vez que seu forte não era o intelecto.

O gigante deu-lhe um forte abraço. Como já o conhecia, Kadriel pre-parou-se para o aperto. Um desavisado, ao receber o abraço amistoso de Bakar, podia ficar com dor nas costelas por alguns dias.

– Então, Kadriel, para que me chamou aqui? Aonde vamos? Kadriel relatou para o amigo toda a história, desde a sua conversa

com Sokárin. O outro ouvia estupefato. Via-se em seu olhar um misto de admiração e incredulidade. Quando Kadriel terminou seu relato, ele disse, com firmeza:

– Ora, e o que estamos esperando? Vamos logo buscar essa placa. – O problema é que não sabemos onde ela está. – Como não sabemos? Você mesmo não acabou de dizer na sua estó-

ria que ela está no ninho do falcão? É só ir buscá-la! – concluiu Bakar, achando incompreensível por que ainda não estavam a caminho.

– O enigma não é literal, Bakar, é apenas uma metáfora, é simbólico. – Quem foi que disse isso?! Se o Rei falou sobre ninhos e falcões é

por que queria dizer isso mesmo. Além do mais, você tem alguma ideia melhor para começar a procurar? Em vez de ficarmos aqui perdendo tempo com pensamentos inúteis, vamos agir. O único lugar que conheço com falcões aqui por perto é aquela montanha em que nos perdemos quando éramos crianças. Vamos logo! Se não estiver lá, aí pensamos em mais alguma coisa.

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Kadriel pensou consigo que de fato seu amigo de grandes proporções tinha toda a razão. A energia e a disposição que Bakar demonstrava infundiram-lhes ânimo para partirem logo. Sem demora, já estavam subindo a montanha. Ela parecia menor do que da última vez em que ali estiveram. Na oportunidade, Kadriel ganhara as cicatrizes no seu ante-braço.

Os dois amigos chegaram à beira do abismo em que anos antes havi-am estado, junto com Dhara e Haggi. Deitaram-se na borda e olharam para baixo. Não viram alguns vultos que se locomoviam às suas costas. Lá estava o ninho. Não devia ser o mesmo ninho da sua infância, mas estava no mesmo lugar. Kadriel começou a descer pela encosta para se aproximar. Desta vez, tomaram o cuidado de amarrar uma corda na sua cintura, cuja outra ponta foi atada a uma árvore.

Kadriel chegou rapidamente ao ninho. Nenhuma ave por perto. Re-mexeu a palha do ninho, até que suas mãos se depararam com algo sóli-do. O objeto estava envolto em um pedaço de tecido. Kadriel reconhe-ceu o brasão de Sokárin. Seu coração palpitou. Apanhou o embrulho e iniciou o caminho de subida. Chegando ao plano, sentou-se no chão para abrir o invólucro. Não pôde conter a emoção quando viu que era o mesmo tipo de rocha da pedra dos mil reis. As lágrimas rolaram sobre a sua face ao se deparar com o nome escrito na pedra real: KADRIEL VAHAN.

Bakar colocou-se imediatamente sobre o joelho direito, inclinando-se em reverência, cabeça abaixada. Kadriel fez sinal para que não fizesse aquilo, mas ao mesmo tempo sentiu uma estranha satisfação, era o pri-meiro cumprimento que recebia como rei.

Era a deixa que esperavam os vultos. Surgiram rápidos de seu esconderijo e lançaram sobre os dois amigos

uma rede. Bakar ficou retido, mas Kadriel conseguiu escapar. Não por muito tempo, pois os quatro homens se lançaram sobre ele. Tudo isso se

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passou no mais absoluto silêncio. A única agitação se dava dentro da cabeça de Kadriel, que estava um turbilhão.

Os pensamentos de Kadriel retomaram o rumo de uma possível rea-ção. Como lesse seus pensamentos, um dos homens aproximou uma balestra da cabeça de Kadriel e disse:

– Não tente nada. Mal acabara a frase, Kadriel surpreendeu-o com um golpe rápido que

lançou a arma nas trevas. Quando se preparava para atacar seu oponen-te, outro dos homens pulou sobre suas costas, apertando-lhe o pescoço com o antebraço. Enquanto tentava se soltar, outros dois o apanharam. Kadriel lutava com vontade, mas logo estava com um dos homens tor-cendo cada um de seus braços para trás, um terceiro segurando-o pela cintura e o primeiro segurando-lhe o pescoço.

Não conseguia mais se movimentar, faltava-lhe o ar, seus braços pa-reciam prestes a quebrar. Quando estava a ponto de desistir, Kadriel transportou-se. Tinha a sensação de estar flutuando no ar. No ar não, numa substância mais densa que o ar e menos densa que a água. Fez-se silêncio, que lhe dizia para relaxar, esquecer a dor. Aos poucos, Kadriel relaxava. Sua respiração foi baixando e se tornando consciente. Ele in-flou o ventre e abriu as costelas para os lados e para cima. Abriu o peito, pressionando os ombros para baixo, facilitando a respiração. Abriu as fossas nasais, respirando como um touro furioso. Seu olhar tornou-se duro como o da águia que fixa sua presa.

Com movimentos suaves, mas rápidos e irresistíveis, Kadriel livrou-se dos seus oponentes, arremessando-os com facilidade nas quatro dire-ções. Surpresos com a reação inesperada, voltaram à carga desordena-dos. O primeiro e o segundo foram projetados com facilidade. Kadriel movimentava-se como o fogo. Seus gritos foram diminuindo até desapa-recer, o que o fez lembrar de onde estava: na beira de um precipício. Não se ouviu nenhum baque, o que indicava a profundidade.

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O terceiro homem foi barrado com um chute na garganta. O estalido do pescoço soou claro no silêncio da montanha. Quando o corpo rolou pelo precipício, já estava sem vida. A morte fora instantânea. A monta-nha seria o seu sepulcro, junto com seus dois companheiros. Kadriel voltou sua atenção para o quarto elemento, que fugia correndo em dire-ção à floresta. Quando Kadriel pensou em começar a persegui-lo, Bakar, que havia finalmente conseguido rasgar a rede, lançou um pedregulho certeiro em direção ao fugitivo, que o atingiu na nuca, levando-o à mor-te instantânea.

Bakar virou-se para Kadriel, com ar de total indignação: – Ao menos um você deixou para mim! O comentário, que não podia partir de outro senão de Bakar, fez dis-

sipar a tensão que envolvia Kadriel, e este sorriu para o amigo, olhou para a placa e respondeu:

– Não se preocupe, Bakar, nossa luta está apenas começando! Hoje é o primeiro dia de um futuro que acaba de chegar.

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TALAL HUSSEINI 187

32.

akan entrou casmurro no seu palácio, com passos marciais, quase marchando, sem falar com ninguém. Os serviçais que o

conheciam há mais tempo sabiam que nessas ocasiões não se devia diri-gir a palavra ao governador nem para desejar um bom dia, sob o risco de deixá-lo ainda mais irritado. Aparentemente, algo na viagem à Capi-tal o havia desagradado. Mas de qualquer modo não podia se furtar a encontrar seu hóspede Haggi, que havia permanecido na cidade até a sua volta atendendo a um pedido seu. O governador mandou chamar Haggi para encontrá-lo a sós na biblioteca do palácio. Quando o gover-nador chegou ao local designado, Haggi já o aguardava, pois, como bom diplomata, jamais deixava uma autoridade esperando. O governador vociferou:

– Adaran...!! – Perdão, Nakan, não compreendi... – As primeiras ações de Adaran como novo Rei não me agradaram

nem um pouco! – completou Nakan. Haggi fingiu surpresa. O General completou: – Não vou esconder meu descontentamento. Não acho que ele seja a

pessoa mais indicada para conduzir o reino. O velho Sokárin devia estar certo em alterar o sucessor. É lamentável que não tenha tido tempo para trocar a placa...

– Mas Adaran é um homem inteligente e capaz. Será que não pode fazer um bom reinado?

– Não duvido da capacidade nem da inteligência de Adaran. Só não tenho certeza sobre o seu caráter.

– Posso entender, então, que o Rei não terá o apoio do interior. Será que uma revolta se aproxima?

N

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– Não, de forma alguma vou me rebelar ou conspirar contra o Rei, mas também não terei grande prazer em apoiá-lo em suas empreitadas. Pressinto tempos difíceis.

A conversa decorria num tom bastante franco, o que não era tão co-mum entre aqueles dois homens treinados nas artes diplomáticas. Nakan relatou então o episódio ocorrido na reunião com os generais, que cul-minou com a morte de um velho general. Desse fato Haggi não sabia, pois sua rede de informações não contava com ninguém dentro do Con-selho de Guerra.

– Nakan, você sabe que minha missão aqui é verificar as condições em que a Aliança das Doze Cidades vai encarar a sucessão, e agora o novo Rei. Posso dizer em meu relatório que o apoio da Aliança ao novo Rei é absoluto?

– Meu caro amigo – retrucou Nakan, tornando contido o ritmo da conversa – penso que relatórios não devem conter juízos de valor muito específicos. Relatórios são tanto mais precisos quanto menos informa-ções trouxerem.

– Entendo... Entre nós, podemos pensar em algo mais conclusivo? – Haggi, minha conclusão é que vou procurar cuidar da melhor forma

possível dos interesses da minha cidade e das demais cidades da Alian-ça, sem entrar em atrito com o poder central. Mas por certo não aceita-remos nenhuma imposição que venha a restringir de qualquer forma nossas posições. A Aliança das Doze Cidades procurará manter sua au-tonomia.

– E se o governo central não permitir? – Prefiro não pensar nessa hipótese, por enquanto, mas não iremos

nos submeter. Assim dito, Nakan despediu-se de Haggi. Esse era mais um teste que

impunha ao rapaz, pois sabia que ele representava o Estado, e que ao deixar sua posição de insurgência tão exposta corria sérios riscos. Se

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relatasse a Adaran o que ouvira, certamente ele tomaria medidas contra a Aliança, ou contra Nakan, mas este estava preparado. Já a Aliança... seria mesmo uma aliança? Nakan estava absolutamente certo com rela-ção à fidelidade de duas cidades, acreditava em outras duas, mas não colocaria sua mão no fogo. Quatro eram duvidosas e as outras três por certo estariam com o Rei. O choque não seria fácil...

Haggi despediu-se do governador e foi em direção aos seus aposen-tos. Quando já estava perto, um vulto surgido do nada o surpreendeu. Era Ivis. Não se tinham visto desde o episódio no jantar. Depois daqui-lo, Haggi estivera ocupado com seus afazeres oficiais e algumas viagens curtas até outras cidades da Aliança. Haggi não era homem de ser sur-preendido e muito menos de se assustar. Ivis havia sido discreta. O susto mesclou-se à satisfação em vê-la.

– Ivis...! Que surpresa! – Precisava vê-lo... Não tive a oportunidade de me desculpar por

Garat. – Você não tem do que se desculpar, pois nada fez. Se alguma culpa

lhe assiste é a de estar noiva daquele imbecil. – Creio que essa culpa já expiei, pois não sou mais noiva... nem dele,

nem de ninguém. Haggi teve trabalho para ocultar a alegria que sentiu com tal notícia.

Uma demonstração dessa natureza arruinaria sua estratégia de conquis-ta. O próprio fato de sentir aquela alegria foi estranho para Haggi, pois não era a satisfação de um movimento bem sucedido no tabuleiro da conquista, e sim um sentimento verdadeiro, cuja origem ele não conse-guia identificar. Ao se recompor internamente, Haggi indagou:

– Não é mais noiva? Mas e Garat? E as famílias? E tudo que envolve esse tipo de situação?

– Não posso me importar com tudo isso se minha felicidade estiver em jogo. Garat é um covarde, falta-lhe o valor de um cavalheiro.

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190 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

– E o que a traz aqui? Posso ajudar de alguma maneira? – dizendo is-so, Haggi aproximou seu rosto do de Ivis e por um instante estiveram verdadeiramente perto de se beijar, não fosse um serviçal do palácio tê-los abordado correndo, desesperado e resfolegado:

– Senhor, uma convocação do Rei, o senhor precisa ir imediatamente à Capital!

– Pois bem, não há necessidade para tamanho desespero, amanhã preparar-me-ei para a viagem.

– O senhor não entendeu, a convocação é para agora! Há uma carrua-gem real a aguardá-lo no pátio, para partir imediatamente. Suas malas já foram arrumadas e estarão na carruagem.

O rapaz fez uma pausa e prosseguiu: – Creio que não exista a opção de não ir agora, pois há guardas reais

para a sua escolta, com firmes ordens para seguir imediatamente para a Capital, com o senhor...

– Entendo. Haggi afastou-se de Ivis, com um olhar resignado: – O dever me chama, mas por certo nos encontraremos novamente.

Vou esperá-la na Capital. Não fique noiva de novo sem me consultar. Ivis sorriu e acenou um adeus tímido, de quem não conseguiu obter o

que queria.

33.

figura que comandava a reunião era tenebrosa. Pele acinzen-tada, longos cabelos desgrenhados, olhos fundos, negros como

breu. Sua voz não parecia humana, soava algum tanto metálica e ao A

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mesmo tempo grave, fazia vibrar as entranhas de quem o ouvia, mais precisamente o estômago, causando uma sensação incômoda. Vestia apenas uns trapos em torno da cintura, lembrando o estilo utilizado pelos povos de além do Indo, mas mais folgados.

Ayamarusa admoestava seus interlocutores, que eram os seus discí-pulos, ou, antes, seus servos. Ele começou imprecando-os de palavrões, pois haviam permitido que Mulil completasse sua missão no deserto. A notícia era que Mulil estava percorrendo o caminho de volta, trazendo com ele um artesão sagrado, encarregado de cumprir não se sabe qual missão de Montuhotep. Nenhum dos presentes ousava sequer olhá-lo diretamente, pois era realmente uma visão desagradável. Se apenas sua voz já causava náuseas, esta acompanhada da sua figura faria qualquer um desmaiar. Quem ousou responder à pergunta de Ayamarusa de por que havia sido permitido a Mulil chegar ao seu destino foi um homem com idade entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco anos, de estatu-ra bastante elevada, cabelos curtos, rosto largo e quadrado. Pelos tra-jes, via-se que era militar de alta patente do exército egípcio. Os om-bros largos e braços secos terminados por grandes mãos denotavam grande força física.

Knef era um assassino profissional. Conhecia todas as formas de ma-tar, desde as mais violentas até as mais sutis. Conhecia muito bem to-das as técnicas de combate manual e armado. Todas essas habilidades somadas a uma mente extremamente metódica o tornavam um homem muito perigoso. Ele redarguiu ao seu Mestre que lhes pareceu mais conveniente deixar que o deserto destruísse Mulil.

– Mas não destruiu! – esbravejou Ayamarusa – Vocês o subestima-ram, e agora corremos sério risco. O artesão não pode chegar à pre-sença de Montuhotep. Devemos capturá-lo com vida, para extrair dele as informações sobre a missão que lhe foi confiada. Reúnam todas as forças para realizar essa tarefa. O momento ideal é agora, pois devem

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estar chegando à cidade. Depois que estiverem entre os seus, será mui-to mais difícil nos aproximarmos. Vão! E desta vez não falhem!

Todos obedeceram imediatamente, seguindo em direção à entrada

oeste da cidade, por onde sabiam que Mulil chegaria. Era um grupo bizarro, formado por assassinos e vilões de todos os tipos. Além de Knef, havia um sujeito magro e alto, de idade indefinida e de raça tam-bém indefinida, pálido, chamado Agap. Ele era um mago, perito nas artes da sabotagem e da intriga. Dentro do meio da magia e da feitiça-ria não tinha grande poder, mas o que possuía era o suficiente para provocar grandes estragos em pessoas desprotegidas. Nos círculos que frequentava, todos sabiam que ele era mau-caráter, mas ninguém con-seguia prová-lo.

Também na linha da feitiçaria, fazia parte do grupo uma mulher, com ares sensuais, de boa aparência física, salvo pelo olho esquerdo es-branquiçado. Aparentava pouco mais de trinta anos de idade, devido a certos rituais de magia negra que costumava realizar, pois em verdade tinha idade bem mais avançada. Sethini dominava o sonho. Interferindo nesse ambiente, conseguia induzir as pessoas a fazer o que ela quisesse e, se fosse o caso, poderia causar-lhes danos psíquicos levando-as até mesmo à loucura ou à morte.

O último componente do estranho grupo se chamava Ripu. Era um homem de instintos violentos, utilizado para fazer todos os trabalhos mais sujos que eram necessários. Foi cooptado por meio do sequestro de sua família, perpetrado pelo restante do grupo para chantageá-lo. Certo dia, quando procuravam forçá-lo a um trabalho ameaçando de morte seus familiares cativos, ele mesmo se adiantou e os matou, espo-sa e três filhos. Seu semblante nem sequer se alterou. Em seguida, rea-lizou o trabalho que lhe ordenavam, assim como realizou todos os que lhe solicitaram depois disso. Gostava, não era questão de coação. Ja-

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mais mencionou palavra sobre sua família, seguiu trabalhando para Ayamarusa como se nada tivesse acontecido. Com isso ganhou sua confiança.

Os quatro começaram a fazer os preparativos para cumprir sua mis-são. Desta vez, não podiam falhar. O erro de cálculo sobre o deserto fora grave. Jamais imaginariam que Mulil pudesse conseguir. Poucas pessoas haviam sobrevivido àquelas areias, ainda mais sem conhecê-las previamente. Mas agora não falhariam. O plano era perfeito. O artesão capturado e Mulil morto, isso lhes bastava...

Mulil e Sigés haviam feito uma tranquila viagem de volta. É mais fá-

cil traçar planos de viagem quando se conhece o itinerário e as distân-cias a percorrer. Entretanto, por mais que no início Mulil tivesse tenta-do encetar alguma conversa, não obteve qualquer resultado além de alguns sinais. Além de silencioso, Sigés era bastante compenetrado. Parecia fazer cálculos e planos mentais durante toda a viagem, apesar de ainda não conhecer sua próxima tarefa.

Já se aproximavam da cidade, o denotavam algumas palmeiras que surgiam ao longo do caminho e aquela névoa que, ao longe, formava uma espécie de redoma em torno do povoado, que distorcia as imagens naquela área. Sigés carregava seus instrumentos com cuidado. Trazia-os num grande saco de lona que parecia bastante pesado, mas em mo-mento algum permitiu que Mulil o ajudasse a levá-lo. Ambos estavam exaustos.

Surgiram no horizonte, vindo em sua direção, duas silhuetas. Mulil ficou desconfiado, mas daquela distância ainda não se divisava seus rostos. De qualquer modo, alertou Sigés, que já estava com uma marre-ta, que era uma das suas ferramentas, nas mãos. Mulil tinha um longo bastão que, aprendera com seu Mestre, era um importante instrumento para longas caminhadas.

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Talvez fossem seus amigos que viessem recebê-los. Sentia saudades de sua amada Sekhmetis. Uma das silhuetas podia ser de seu amigo Zimbro, pelas grandes proporções. Zimbro era um grande guerreiro, dotado de extrema força física e domínio sobre os animais. Parecia comunicar-se com eles, nunca estava desacompanhado de Onix, sua pantera negra. Não, não podia ser ele, pois não havia nenhum animal ao seu lado. A preocupação de Mulil cresceu.

Os dois vultos que, agora se via, eram de homens, começaram a cor-rer em sua direção. Não havia onde se esconder, pois estavam em cam-po aberto. Fugir também era inútil, pois com o cansaço da viagem fa-talmente seriam alcançados. Restava lutar.

Esperaram parados. Knef lançou-se sobre Mulil, que conseguiu se esquivar do primeiro assalto. O combate tornou-se feroz entre os dois homens. Evidentemente, Knef o superava em força física e técnicas de combate, mas Mulil aprendera com seu Mestre muito sobre tática e estratégia, o que lhe permitia equilibrar as ações.

Enquanto isso, Sigés surpreendeu contra o violento Ripu, logrando desviar do seu ataque e contra-atacá-lo com uma forte marretada nas costelas, que o retirou de combate com duas ou três quebradas. Sigés passou a ajudar Mulil contra Knef, que intensificava seus ataques. Mas não viu chegar Agap, que lhe soprou um pó no rosto, paralisando os seus músculos e deixando-o consciente, mas sem qualquer possibilidade de reação. Juntou-se a ele Sethini, colocando um capuz negro sobre a cabeça de Sigés e ajudando Agap a colocá-lo sobre um cavalo.

Mulil viu que levavam o artesão, mas nada podia fazer, pois já estava em grande dificuldade na sua luta contra Knef. Os rigores do deserto minavam sua resistência. Knef conseguiu derrubá-lo, sacou uma espada curta e foi em sua direção, pronto para liquidá-lo. Foi quando uma flecha passou zunindo por ele, riscando-lhe o ombro. A espada caiu. Mulil lançou-se sobre ela, mas Knef a chutou para longe. Voltou-se

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para o vulto que disparara contra ele. Estava muito longe para que pudesse identificar. Fora um excelente tiro para aquela distância. Era uma pessoa pequena, mas estava acompanhada de outra, bem maior, com um animal ao lado. Vinham rápido na sua direção. Knef pensou por um momento em qual seria a melhor atitude. Terminar de acabar com Mulil..., mas ficaria exposto a outro disparo. Enfrentar os inimigos desconhecidos... seriam três contra um, pois seus companheiros já ha-viam fugido com o prisioneiro, acompanhara-os Ripu, ferido. Resolveu fazer uma retirada estratégica, mas ainda teve tempo de se dirigir a Mulil:

– Ainda vamos nos encontrar de novo! E você não terá tanta sorte! Chamo-me Knef, guarde bem este nome, pois será o último que ouvirá antes da sua morte – ao dizer isso, saltou sobre um cavalo que seus companheiros lhe haviam deixado, e partiu em disparada.

O primeiro vulto a chegar perto de Mulil foi Onix, a pantera negra de Zimbro. Ela poderia ter alcançado o fugitivo, mas permaneceu com Mulil, atendendo a um assobio de seu companheiro. Os outros dois chegaram em seguida. O gigante Zimbro sorria, como sempre, feliz em rever o amigo. A pessoa menor era Sekhmetis, que ajoelhou-se ao lado do prostrado Mulil, abraçando-o carinhosamente. Ver aqueles olhos verdes fazia com que se esquecesse de todas as agruras do deserto. En-quanto o casal se perdia num abraço sem fim, quem disse as primeiras palavras foi Zimbro:

– Mulil, você está horrível, o deserto acabou mesmo com você... De fato, o discípulo de Montuhotep estava mais magro, com a pele

queimada pelo Sol e ressecada pelo sal, barba de semanas, sujeira de dias. Mas ainda teve energia para responder com humor:

– Quase acabou, meu amigo, quase... não fosse o tiro preciso, como sempre, de Sekhmetis.

A jovem sorriu. Mas Mulil prosseguiu em tom mais grave: – Ocorre que conseguiram levar Sigés!

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– Quem é Sigés? – perguntaram quase em uníssono. – É um artesão. Foi o motivo de minha viagem pelo deserto. Devia

trazê-lo à presença de Montuhotep, que tinha para ele uma tarefa. Mas eu pus tudo a perder... Graças à minha falha, intuo que ele está nas mãos de Ayamarusa.

– Montuhotep saberá o que fazer, precisamos ir até ele sem perda de tempo – respondeu Sekhmetis.

Os dois homens concordaram. O grupo partiu apressado para ter com o Mestre.

34.

adriel parecia ter dormido vários dias. A busca da placa fora desgastante. Sua vontade era ir direto a Ravi para lhe relatar as

novas, mas o cansaço e a hora tardia em que retornaram o fizeram ir diretamente para a sua casa. Bakar, que o acompanhara, roncava sono-ramente sobre uma manta no chão da sala. Como nenhum dos homens que os haviam atacado na montanha sobrevivera, acharam seguro ir para casa, uma vez que a notícia da placa ainda não teria chegado aos ouvi-dos de ninguém, principalmente de Adaran, que não permitiria que seu trono fosse ameaçado por nada.

Kadriel não via a hora de falar com Ravi, ele saberia como esconder a placa e como utilizá-la da maneira mais adequada e no momento opor-tuno. Resolveu, entretanto, fazer a prática de concentração que aprende-ra com Ravi, enquanto esperava que Bakar acordasse.

Sentou-se sobre os joelhos, na posição que lhe havia sido indicada como a mais adequada para concentrar-se, e iniciou os passos. Ao che-gar perante o senhor das portas, algo inusitado aconteceu: surgiu um

K

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ruído agudo que quase estourava seus ouvidos. De repente, Kadriel co-mo que se transportou, em velocidade espantosa, passando sobre mares e cidades, até as altas montanhas do topo do mundo, parando brusca-mente, frente a frente com um indivíduo magro, a ponto de deixar apa-recer as costelas sob a pele, vestido apenas com um tipo de calção indi-ano curto, de tecido, folgado, justo apenas na cintura e em torno das coxas, sentado com as pernas cruzadas, como os escribas, em frente à entrada de uma caverna. Kadriel flutuava em frente a esse indivíduo. Sua pele era de uma cor estranha: um misto de escura acinzentada com um tom avermelhado, como se tivesse apanhado muito Sol. Os cabelos e a barba longos estavam desalinhados. A vibração ensurdecedora con-tinuava. Kadriel sentia que aquela vibração fazia com que tudo à sua volta tendesse ao caos, como se o mundo fosse desintegrar-se a qualquer momento. Quando olhou para trás, Kadriel viu uma multidão vibrando daquela forma, como que hipnotizada. Voltou-se novamente para aquela figura bizarra e deparou-se com uma imagem que nunca mais esquece-ria: os olhos. Seus olhos eram negros como o abismo, praticamente não tinham esclerótica. Duas esferas negras, de uma profundidade insupor-tável. Kadriel viu seu nome, que jamais ousaria pronunciar: Ayamarusa.

No exato momento em que soube seu nome, foi arrebatado de volta pelo mesmo caminho até a sua casa. O impacto do retorno foi tanto, que Kadriel não conseguira recuperar de imediato a consciência. Quando abriu os olhos, deparou-se com Bakar, que o retinha em seus braços com uma expressão de pavor na face. Kadriel sangrava pelas narinas, sentia náuseas e tonturas. Bakar gaguejou:

– Você está bem...? Kadriel pensou na resposta, mas ela não saiu de seus lábios. Fez um

gesto afirmativo lento com a cabeça, o que pareceu não convencer ao seu amigo, que insistiu:

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– Pois você não me parece nada bem, acho melhor irmos a um médi-co. Você está tremendo, e sangrando... – concluiu tocando seu próprio nariz, para indicar onde era o sangramento.

Kadriel levou as costas da mão ao nariz, depois a olhou, para consta-tar o que já sabia ser verdade. Procurou respirar com calma, buscando forças para pronunciar algumas palavras que pudessem tranquilizar Bakar:

– Estou melhor... Um médico não será necessário. Precisamos ir até a casa de Ravi.

Bakar o ajudou a se levantar. Kadriel ainda estava visivelmente trê-mulo, mas o sangramento estancara. Os dois partiram rapidamente rumo à casa de Ravi. Havia muito que conversar.

Chegando à casa de Ravi, este os recebeu pessoalmente, fazendo-os

entrar no jardim que ficava na parte posterior da casa, aquele que possu-ía vista para Anthar. Percebendo que Kadriel não estava muito bem, Ravi fez sinal a uma serviçal para que lhe trouxesse algo de beber. Ape-nas pelo sinal, ela sabia que devia trazer vinho. Serviu as taças a partir de uma ânfora decorada com estranhos símbolos, desconhecidos tanto para Kadriel quanto para Bakar, pois não pareciam humanos. Kadriel ficou curioso, mas deixou as perguntas para uma outra oportunidade, já que havia muitos assuntos importantes para tratar.

Sem pronunciar palavra, com um ar solene, Kadriel fez sinal a Bakar para que mostrasse a Ravi o fruto de seus esforços. Bakar, fazendo ares ainda mais cerimoniais, colocou sobre a mesa um embrulho e o foi des-velando vagarosamente. Ravi não demonstrou qualquer surpresa ao se deparar com a placa, apenas pousou a mão sobre ela, saboreando com o tato cada uma das letras que formavam o nome de Kadriel. Ravi inda-gou:

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– Vocês tiveram algum problema para consegui-la? Você não me pa-rece nada bem, Kadriel. Tome um pouco deste vinho envelhecido, lhe fará bem.

– Não foi um problema com a placa... Quer dizer, na verdade tivemos sim alguns problemas... Mas, quero dizer... Não foram eles que me dei-xaram assim – Kadriel ainda estava visivelmente perturbado. Ravi fez uma expressão interrogativa, e foi Bakar quem tomou a palavra para tentar explicar.

– Senhor, nós encontramos a placa num ninho de falcão nas monta-nhas, no mesmo local em que certa vez, na nossa infância, havíamos sido atacados por um falcão. Nós a pegamos sem maiores problemas, mas quando estávamos de saída, apareceram alguns homens... – fez uma pausa, esperando alguma pergunta de Ravi, mas este permaneceu em silêncio, como tinha por hábito fazer, aguardando a continuação. Então Bakar prosseguiu: – eram quatro, nos pegaram de surpresa, me acerta-ram na cabeça, colocando-me fora de combate, e então os quatro parti-ram para cima de Kadriel. Quando me recuperei, ele não havia deixado quase nada para mim, três deles estavam mortos e o último fugia em disparada em direção à floresta. Tive de abatê-lo com uma pedrada. Como era muito tarde e estávamos cansados, voltamos para casa.

– Então por que Kadriel está atônito? Chegou a ser golpeado? – Não, senhor, ontem quando retornamos ele estava bem. Hoje pela

manhã, quando acordei, o encontrei ajoelhado no chão, trêmulo, com o nariz sangrando muito... – neste momento da narrativa, Ravi o inter-rompeu:

– Trêmulo e sangrando?! Rápido, ajude-me a colocá-lo neste catre. Colocou uma mão sobre o coração de Kadriel e a outra sobre a cabeça

e, fechando os olhos, pronunciou algumas palavras impossíveis de se entender. Depois preparou um chá e fez Kadriel bebê-lo. Este logo pe-

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gou no sono, dormindo por aproximadamente meia hora. Quando des-pertou, Ravi o velava:

– O que aconteceu, Kadriel? – Nós recuperamos a placa... – Sim, isso eu já sei, Bakar me contou tudo. Você fez uma prática de

concentração? – Sim, aquela que o senhor me ensinou, mas algo muito estranho

aconteceu... – Kadriel relatou então sua experiência. Bakar, que também ouvia, parecia impressionado. Ravi limitou-se a

dizer: – Ayamarusa quis vê-lo de perto. Agora já o conhece. Mas não se

preocupe, não acontecerá de novo, já criei algumas barreiras que o im-pedirão de chegar novamente até você.

– Mas quem é esse? É uma figura real, ou uma fantasia tenebrosa dos meus pesadelos? Pois o vi também no meu sonho. Ele era o líder de um grupo que atacou Mulil.

– Ele é ambos. O mal que ele pode fazer é bem real. Só esperava um novo momento histórico para buscar realizar seus intentos malignos.

– O senhor o conhece, então? – Sim, o conheço há muito tempo. Mas você não deve se preocupar

com ele agora. Suas atenções devem estar focadas em como cumprir o seu destino, como lutar pelo trono e fazer deste País um lugar belo e justo. Quanto mais tempo Adaran ficar no poder, pior ficará a situação da população.

– Vamos levar a placa a público, tenho certeza de que muitos nos apoiarão!

– Sim – concordou Bakar – vamos lutar pelo direito de Kadriel à su-cessão.

– Entendo o seu açodamento, rapazes, ele é fruto da juventude, mas o momento agora é para uma estratégia mais elaborada. Temos que traçar alianças fortes em torno de um núcleo formado pelos guerreiros mais fiéis. Assim que Adaran souber da placa, não poupará esforços para

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destruí-la e também àqueles que a viram. Para isso, precisaremos partir, para retornar quando estivermos preparados.

– O senhor sugere fugir? – perguntou Kadriel, com certa indignação. – Não se trata de fugir, mas de se retirar para uma posição estrategi-

camente melhor. Como estamos agora, seremos facilmente destruídos. Devemos aproveitar para partir enquanto não somos procurados. Depois disso, nossa vida ficará bem mais difícil. Preparem o básico para uma longa viagem, mas evitando peso demais. Encontrem-me aqui amanhã, no início da noite.

Já na saída, Kadriel lembrou-se da placa: – Pode deixá-la comigo, eu a esconderei onde jamais poderão encon-

trá-la. Agora vão! Os dois obedeceram. Kadriel ainda tinha muitos questionamentos: o

que Ayamarusa representava em relação a Mulil, nos seus sonhos, e em relação a ele mesmo, nas suas meditações? E na montanha, o que se passara, como conseguira força para arremessar os quatro oponentes como fossem bonecos de palha? No momento oportuno, Kadriel per-guntaria sobre isso a Ravi. Por agora, era melhor obedecer.

35.

hara se surpreendeu quando chegou ao seu local de trabalho. Desde que voltara do exterior, pouco antes da morte do Rei

Sokárin, trabalhava num consultório de atendimento médico ao público mantido pelo governo. As portas estavam fechadas. Na porta, apenas uma nota dando conta do fechamento por determinação do Rei Adaran.

Formava-se uma fila de pessoas do lado de fora, para serem atendi-das, algumas em estado grave. A maioria dos médicos colegas de Dhara havia ido embora ao se deparar com a notícia do fechamento. Dhara ia

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fazer o mesmo, mas uma mulher de certa idade lhe implorou por ajuda, e a médica não pôde deixar de lhe prestar atendimento, observando o juramento que fizera para poder exercer a medicina. Esse juramento não era muito praticado na época, mas Dhara o levava a sério.

Sua vontade era ir até o palácio real tirar satisfações sobre aquele ab-surdo: deixar a população sem atendimento de saúde. No entanto, logo que terminava de atender a um paciente, outro lhe pedia ajuda. Mais dois médicos que estavam por ali começaram a ajudá-la, talvez por consciência, talvez por se sentirem mal com o exemplo. Havia também alguns auxiliares, que passaram a ajudar, sob o comando de Dhara.

Terminando de atender ao último paciente realmente grave, Dhara di-rigiu-se às outras pessoas que ali estavam:

– Todos os casos mais graves já receberam tratamento inicial. Não poderemos atender a mais ninguém, pois do lado de fora não temos as condições para isso. Peço que retornem amanhã, quando este mal-entendido já deverá ter sido solucionado, ou que se dirijam a outro cen-tro de atendimento.

– Este é o terceiro centro a que venho – gritou um homem do meio da multidão – todos estavam fechados!

– Não temos mais informações do que vocês. Agora só o que peço é que voltem às suas casas. Por ora, não temos solução. Desculpem!

A população começava a se tornar hostil. O vozerio se elevava, al-guns objetos começavam a ser atirados nos médicos. Dhara tentava con-ter, em vão, a multidão. Mas a massa humana não tem um comporta-mento racional, antes comporta-se como um grande e perigoso animal, pronto para devastar tudo à sua frente quando seus desejos não são atendidos. Dhara divisava as expressões de ódio e desespero, revolta e indignação:

– Por favor, tenham calma! Tudo será resolvido! Ninguém a ouvia, e a situação já estava ficando crítica. Os médicos

conseguiram sair do local, graças a uma ou outra voz de bom senso que

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reconheceu que os que ali estavam ao menos atenderam algumas pesso-as, e que não eram os culpados pelo ocorrido. Mas mesmo essas vozes logo foram caladas pela multidão em fúria. Houve tempo apenas para que Dhara e os outros saíssem dali.

Dhara decidiu ir imediatamente até o palácio real, para ser recebida por alguém que lhe desse uma explicação plausível para aquela situação absurda. Entretanto, ela ainda não tinha sequer a informação do nome do novo ministro da saúde.

No caminho para o Palácio Real, Kadriel a avistou. Ela andava rápi-do, falando consigo mesma, a ensaiar o que diria ao Rei, ao Ministro, ao Secretário, enfim a quem a recebesse. Ele a chamou. Como não ouvisse, correu até ela, interceptando o seu passo:

– Dhara! Tudo bem? Vejo que está com pressa como eu... – Sim, muita, o rei mandou fechar os centros de saúde. A população

está perecendo nas ruas. – E o que você pretende fazer? – Pretendo não, já estou fazendo, estou indo até o Palácio Real, para

obter mais informações. – Não quero desiludi-la, mas isso me parece inútil... e perigoso, pois

Adaran está se mostrando um tanto autoritário. – Creio que você tem razão, mas quero ouvi-lo da boca de alguma au-

toridade governamental. – Dhara, escute com atenção – disse Kadriel em tom sério, seguran-

do-a nos dois ombros – preciso que você confie em mim, apesar de eu não poder lhe explicar muito agora. Se você quer ir ao palácio, não vou tentar dissuadi-la, mas depois me encontre em minha casa, até o cair da noite, sem falta.

– Mas por quê? – Simplesmente esteja lá, aí lhe explico melhor a situação. Mas con-

fie em mim, ela é muito mais grave do que parece... Esteja lá, certo? Você promete?

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– Sim, tudo bem... – concordou Dhara, mais por ter ficado impressio-nada com a forma como Kadriel colocou a situação do que propriamen-te com as circunstâncias.

– Outra coisa: não se exponha, nem confronte as autoridades, o mo-mento é realmente muito delicado, você poderá se colocar em risco.

Ela assentiu e continuou seu caminho. Subiu com passo firme as es-cadarias do palácio. Observou que a segurança havia sido redobrada. Os guardas que estavam à porta barraram sua entrada.

– Alto! Identifique-se! – Sou médica do reino! Os guardas se entreolharam e resolveram deixá-la passar, afinal ali

era apenas o primeiro ponto de checagem, e que mal poderia oferecer uma moça?

Tendo entrado mais vinte metros, nova parada. Desta vez ela não es-perou ser inquirida e foi logo se adiantando:

– Sou médica do reino. Gostaria de ver imediatamente o responsável pela saúde!

Os guardas cochicharam. Um deles saiu, o outro permaneceu em si-lêncio perante Dhara. O primeiro guarda voltou acompanhado de um indivíduo de baixa estatura, franzino, nariz longo, olhos pequenos, tron-co ligeiramente curvado para a frente, mãos finas e longas em relação à sua estatura, juntas dos dedos salientes. O pequeno homem se aproxi-mou de Dhara com um sorriso pouco convincente:

– Em que posso ajudá-la, senhora? – Pode levar-me imediatamente para ver o Ministro da Saúde! – re-

trucou Dhara, com autoridade. O homem não demonstrou qualquer perturbação, deu um sorriso igual

ao primeiro e respondeu: – Temo que isso não seja possível.

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Dhara o fuzilou com os olhos, mas antes que ela pudesse dizer qual-quer coisa, ele completou:

– Sua Majestade, o Rei Adaran, ainda não nomeou seu ministério. Portanto, a pessoa que a senhora deseja ver – fez uma pausa estalando os dedos das mãos – não existe.

Desta vez, foi Dhara quem não se abalou e emendou com firmeza: – Bem, neste caso, o Rei ainda é responsável por cada um dos minis-

térios! Exijo uma audiência imediatamente! – Não quero ser pessimista, mas diria que isso é um tanto... como di-

rei? Impossível. O Rei não concede audiências a qualquer pessoa que bate às portas do palácio. Sugiro que a senhora tente marcar um apon-tamento com a assessoria do Rei e quem sabe em dois ou três anos será atendida... – deu novamente o seu sorriso sarcástico e voltou-se para deixar a sala. Via-se que era um desses funcionários medíocres a quem fazia gosto abusar do pequeno poder que lhe fora dado.

O que ele não viu, quando voltou as costas para Dhara, foi seu olho esquerdo escurecer, sua fisionomia assumir traços que pouco lembra-vam a beleza que despertou o amor de Kadriel. Ela avançou sobre o homenzinho e agarrou-o pela gola do casaco antes que qualquer dos guardas tivesse tempo para esboçar uma reação. Talvez eles não tives-sem a vontade para isso, pois aquele homem era do tipo irritante para todos e não apenas para o povo que acorria ao Rei. Ela o puxou com vigor, fazendo-o voltar-se para ela. Agora que estava à sua mercê, sua arrogância tinha desaparecido, se transformando em medo:

– Escute aqui, meu senhor, acabo de vir do centro de saúde no qual trabalho como médica, acabo de atender a várias pessoas em estado gra-ve que, como eu, deram com a cara na porta. Posso entender que o Rei não queira me atender, mas não suportarei o cinismo de um subalterno qualquer. O senhor vai terminar de me atender e vai me explicar exata-

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mente o que eu preciso fazer para agendar uma audiência com o Rei, ainda que leve dez anos...!

O homem estava visivelmente intimidado, mas ainda não tivera tem-po de responder quando um oficial da Guarda Real, acompanhado de dois soldados, intercedeu:

– Já basta, senhora! – o sorriso voltou aos lábios do homenzinho, que pensou ter retomado o controle da situação, mas o oficial completou: – o Rei vai vê-la imediatamente, senhora. Por favor nos acompanhe.

O sorriso se desvaneceu da face do homenzinho. Dhara retomou a fi-sionomia tranquila e acompanhou os guardas. Não lhe ocorreu que po-deria ser um subterfúgio para prendê-la, até mesmo por que se quises-sem fazê-lo não precisariam de subterfúgios. Fizeram-na entrar numa grande sala, que era o ofício de despachos do Monarca. Se Dhara tivesse conhecido aquela sala nos tempos de Sokárin, teria percebido que o no-vo Rei fora bastante ágil em redecorá-la, com grandes cortinas de velu-do, mobília clássica, tapetes tecidos a mão. O Rei estava próximo a uma grande lareira acesa. Dhara ajoelhou-se em sinal de respeito. Depois de alguns segundos, Adaran fez sinal para que ela se levantasse:

– Eu a estava observando em sua conversa com o meu funcionário... Gosto de pessoas determinadas, por isso lhe concedo esta audiência. Você é médica, pois não?

Dhara assentiu. – Você é muito bonita, para uma médica. Dhara não entendeu se aquilo era um elogio, preferiu fingir que não

ouviu. Adaran parecia estudá-la, andava em torno dela, medindo-a dos pés à cabeça. Outra pessoa teria começado a se sentir desconfortável. Dhara ousou tomar a palavra:

– Majestade, o que me traz à sua presença é o fechamento dos centros de saúde... – antes que ela pudesse concluir o raciocínio, Adaran pros-seguiu:

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TALAL HUSSEINI 207

– O que você acha de ficar para o jantar? Poderíamos discutir isso com mais... privacidade.

– Majestade, seu convite realmente é uma honra, mas não vejo o as-sunto como de ordem privada e sim de ordem pública. Gostaria de saber apenas se o fechamento é temporário ou definitivo. E se os médicos dos centros podem considerar-se à disposição ou se ainda estão vinculados ao governo.

– O fechamento é por tempo indeterminado, pois estamos redirecio-nando as prioridades. Os médicos continuam vinculados ao governo, pois serão muito úteis nos próximos tempos. Algo mais?

– Nada mais Majestade – disse Dhara, ajoelhando-se novamente co-mo para se despedir da entrevista.

– Por que tanta pressa? Afinal você ainda não me respondeu sobre o jantar...

– Infelizmente ainda tenho muitos doentes para atender hoje... – men-tiu Dhara.

– Eles podem esperar. Os que têm chance de sobreviver vão aguentar até amanhã. Os outros, bem..., morrerão de qualquer jeito...

– Sim, Majestade, pode ser, mas minha obrigação é ao menos tentar evitá-lo. Agora, peço permissão para me retirar.

O Rei demorou a responder, deixando Dhara mais alguns segundos ajoelhada. Então a dispensou. Quando ela já saía pela porta do aposento, o Rei lançou:

– Também sou como você, – Dhara voltou-se – determinado. Sempre consigo o que quero… refiro-me ao jantar. Você ainda não me disse seu nome...

– Dhara, Majestade – e deixou o salão. Ela manteve a compostura até deixar o Palácio Real. Já nas ruas, res-

pirou fundo. O novo Rei era uma figura no mínimo bizarra. Dhara não

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208 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

estava se sentindo muito bem. Havia algo no ar do Palácio que não lhe fez bem. Seguiu para a sua casa o mais rápido que pôde.

36.

arauto do rei anunciou a presença de Haggi no Palácio Real, atendendo à convocação que lhe fora feita. O diplomata teve

de aguardar alguns minutos antes de ser recebido, o que preferiu fazer de pé. Ficou imóvel, pernas separadas, mãos para trás, em posição de descanso, diante do funcionário franzino, de sorriso sarcástico, o mesmo que havia atendido Dhara. Depois de cinco minutos com Haggi a enca-rá-lo, seu sorriso já havia desaparecido da face, após dez minutos já se sentia desconfortável. Vinte minutos de espera e o homenzinho já reza-va para que o Rei atendesse logo aquele visitante. Suas preces foram atendidas: Haggi foi chamado.

Entrando na suntuosa sala de despachos do novo rei, Haggi logo per-cebeu as profundas alterações na decoração. Na verdade, estava bem mais aconchegante do que a sala austera que Sokárin utilizava, salvo pela presença de Adaran, que não era nem de perto tão agradável quanto a do antigo monarca.

Haggi ajoelhou-se diante de seu parceiro de combates com sabre, cumprindo o protocolo real. Adaran demorou-se um pouco até lhe dar a ordem para se levantar, saboreando o momento. Finalmente, dirigiu-se ao diplomata:

– Meu caro Haggi, há quanto tempo! Levante-se. Soube que você es-tava quase gostando da vida do interior – ironizou Adaran.

– Majestade...! – terminou Haggi a mesura – sim a vida no interior não é das mais desagradáveis. Sabem receber bem seus hóspedes.

O

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TALAL HUSSEINI 209

– Diga-me: como se posiciona Nakan em relação à sucessão? – fuzi-lou o Rei, de forma bem mais direta do que as conversas que costuma-vam ter.

– Pareceu-me tranquilo, em princípio, disse que fosse quem fosse o sucessor, apoiaria a decisão de Sokárin.

– E depois que soube quem de fato era o sucessor...? – O tom do seu discurso não mudou, mas não sei... – O que você não sabe? – Não sei se ele ficou feliz. Procurou não demonstrar nada aberta-

mente, mas o percebi um pouco reticente. Não sei se foi alguma coisa que ele ouviu na reunião do Conselho de Guerra... Bem, poderia ser só uma impressão minha.

– Ele mencionou algo do que foi conversado no Conselho de Guerra? – Não, Majestade, mas sou treinado para perceber a intenção das pes-

soas, e por mais que Nakan saiba dissimular muito bem seus pensamen-tos, pude notar algo diferente.

– Haggi, como rei, não tenho tempo para conversas muito prolonga-das. O que preciso saber é se posso ou não confiar em Nakan e qual sua posição em relação à Aliança.

Haggi mirou fixamente nos olhos o Rei, antes de responder: – Majestade, na sua posição, eu não confiaria em Nakan. Quanto à

segunda pergunta, creio que se ele tivesse de tomar uma posição aberta, haveria divisão dentro da aliança. E como sabemos, tudo que está divi-dido fica mais fraco.

– Está certo. Era só o que eu precisava saber. Permaneça na cidade, Haggi, pois em breve terei outra designação para você. Como sempre dizíamos, um diplomata hábil é útil para qualquer governo.

Haggi fez um sinal com a cabeça e preparou-se para sair. Quando já deixava o aposento, o Rei lhe falou:

– Ah, e tão logo meus compromissos me permitam não vamos abrir mão de um bom combate com sabres.

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210 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

Saindo, Haggi respondeu: – Sim, Majestade, quando quiser. A diferença é que agora não creio

que possa vencê-lo... Depois que Haggi se havia afastado do recinto, uma figura que estava

oculta numa sala contígua apareceu diante do Rei. – Então, General Ofis, nosso diplomata passou no teste. Confirmou o

que nossos informantes já haviam dito: Nakan não é confiável. Creio que agora poderemos designar-lhe a próxima missão.

– Creio que sim, Majestade... – respondeu o sombrio Ofis, roçando a mão no cavanhaque, com ares de quem não estava plenamente conven-cido da confiabilidade de Haggi.

O Rei não se importou muito com isso, pois afinal de contas, Ofis não confiava em ninguém mesmo.

37.

uando Bakar chegava perto de sua casa para fazer seus prepara-tivos, conforme Ravi determinara, alguém o chamou:

– Bakar, tudo bem? O que você faz por aqui? Bakar voltou-se surpreso e deparou-se com Mirta. – Mirta...! – Então, o que faz por estes lados? – É que... bem... eu moro aqui perto. – E por que tanta pressa? – É que tenho umas coisas para arrumar em casa. – É uma pena... Pois tinha pensado em darmos um passeio. – Infelizmente, hoje não vai ser possível.

Q

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TALAL HUSSEINI 211

– Bem, estou indo para a mesma direção, posso ao menos acompa-nhá-lo até a sua casa. Se não se importar.

– É claro que não. – Como estão os seus amigos? – Bem, estão bem, preparando a viagem – Bakar interrompeu a frase,

sentindo que falou demais. – Vocês vão fazer uma viagem entre amigos. Que ótimo! Gostaria de

fazer algo assim, mas não tenho tantos amigos... Para onde vão? – Ainda não sei, mas acho que você poderia vir conosco. – Uma viagem surpresa! Adoro surpresas! Será que seus amigos não

se importariam? – Creio que não. Arrume suas coisas, poucas coisas. Partiremos ama-

nhã, e me encontre aqui na minha casa no final da tarde, certo? – Certo, até depois – respondeu Mirta, saindo em disparada. Jamais passaria por uma mente ingênua como a de Bakar achar algo

de estranho em alguém que ele conhecia há tão pouco tempo, aceitar acompanhá-lo numa viagem de destino desconhecido. Agregue-se a isso o fato de Bakar estar apaixonado por Mirta. E, ademais, haviam-se en-contrado por coincidência, e quem mencionou a viagem e a convidou foi ele, Bakar.

O gigante arrumou rapidamente suas coisas e ficou o resto do tempo pensando em Mirta.

38.

akan passava em revista suas tropas. A fama era de que seus homens eram os mais bem treinados do reino. O governador

acreditava nessa fama e fazia questão de incentivá-la. Após ter presen-N

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212 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

ciado o ocorrido na reunião do Conselho de Guerra com o Rei, o Gene-ral Nakan havia acirrado ainda mais os exercícios. Sua cidade era uma das poucas fortificadas no Reino. Nakan determinara a restauração e o reforço de todos os pontos falhos na muralha. Dessa forma, o acesso à cidade ficava muito difícil, só sendo possível por dois grandes portões, ao Norte e a Leste, este na direção da Capital. Os homens já se pergun-tavam se o País se preparava para alguma guerra. Nenhum oficial sabia de nada nesse sentido. O General negava a hipótese, limitando-se a di-zer que estar bem preparado para a guerra pode ser, muitas vezes, uma garantia da paz.

A verdade é que Nakan estava inquieto. Também havia muita gente que dizia que ele se preparava para um golpe de estado, para marchar com suas forças rumo à Capital. Tal hipótese, no entanto, era absurda, pois mesmo a força das doze cidades reunida não era bastante para su-perar o exército real e principalmente a unidade de elite da Guarda Real.

Mas Nakan de fato estava pensativo naqueles dias. Já se havia reuni-do com alguns dos governadores das outras cidades da Aliança. A uni-dade desta já não era a mesma de tempos passados. A ganância, a sede de poder, o orgulho dos líderes locais, cada vez mais, levava cada um a buscar seus próprios interesses, sem pensar na coalizão. Nakan sabia que isso os enfraquecia, mas nada podia fazer, ao menos por enquanto.

O arauto anunciou o visitante: o Rei Escorpião. Ele governava a me-nor cidade da Aliança. Seu exército era menos numeroso do que os de-mais, mas essa limitação era compensada com um treinamento rigoroso e soldados muito fortes e valorosos. Seu pequeno número não permitia que sustentassem sozinhos uma longa campanha, mas ao engrossar ou-tras fileiras podiam fazer a diferença. Em suma, todos os queriam como aliados. O Rei sempre acompanhava seus soldados nas campanhas, dei-xando um substituto para gerir a cidade na sua ausência e na hipótese de

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TALAL HUSSEINI 213

não retornar com vida. Nakan gostou da conversa. Podia contar com aquele apoio incondicional.

Outras duas cidades lhe prestaram apoio integral, qualquer que fosse a posição por ele adotada. Quatro governadores de outras cidades nem sequer atenderam ao seu convite, o que deixava claras suas intenções de romper a Aliança. Nakan não havia em momento algum dissimulado seus sentimentos em relação ao governo central de Adaran. Suas atitu-des no Conselho de Guerra e em relação ao Conselho dos Anciãos o haviam deixado extremamente preocupado, a ponto de manifestar pu-blicamente sua repulsa, não pelo Rei mas por suas condutas, o que dava no mesmo. Os que não atenderam ao seu chamado queriam deixar clara sua postura de total alinhamento com o governo da Capital.

As quatro outras cidades anunciaram que viriam conversar em bloco, o que demonstrava que haviam tecido sua união antes de qualquer outra coisa. Sua manifestação de apoio ou de repúdio, ou ainda de neutralida-de, seria realizada também em bloco. Uma coisa preocupava Nakan: seu líder.

Os governadores foram anunciados. Entraram lado a lado na sala, pre-tendendo demonstrar igualdade. Mas na conversa Nakan rapidamente confirmou suas suspeitas: o Velho Leão os tinha em suas mãos, ou seri-am garras. A certa altura da conversa, Nakan passou a se dirigir somente ao líder, deixando os outros governadores em segundo plano:

– Egas, vamos ser francos e diretos nesta conversa. Por ora, a única coisa que fica clara para mim é que vocês quatro se posicionarão em conjunto – disparou Nakan.

– Creio que em um ponto concordamos, para mim também parece a única coisa clara nesta sala – esbravejou o Leão, com sua voz tonitroan-te – você ainda não disse por que conversa com os governadores da Ali-ança, por que testa seus apoios. Quer realizar um levante contra o go-verno central?

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214 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

– Egas, meu caro, a situação ainda não está definida. Não sei se po-demos confiar no novo Rei. Não quero levantar-me contra ele, nem le-var o País a uma guerra civil. Apenas quero resguardar os interesses das cidades da Aliança. Apenas quero manter a autonomia que sempre ti-vemos, desde os tempos do Imperador Medhavin. Nossa região é rica, pode fazer crescer os olhos de um Rei ganancioso – Nakan relatou-lhes o que presenciara no Conselho de Guerra, depois continuou seu discur-so: – evidentemente não quero guerra contra o Rei, mas gostaria de me mostrar forte o suficiente para que ele também não queira guerra comi-go. E isso só é possível com a Aliança sólida.

O Velho Leão coçou a barba, como sempre fazia quando estava pen-sando seriamente sobre alguma coisa. Disse pausadamente:

– Dois leões não reinam juntos... – Entendo, Egas, mas podem lutar juntos para ter sobre o que reinar... – Nós lhe deixaremos saber nossa posição no momento oportuno,

Nakan – declarou Egas já se levantando, no que o acompanharam os demais governadores.

Nakan também se levantou, em sinal de educação e quando já esta-vam na porta de saída, lançou:

– Só espero que esse momento não seja no campo de batalha, Egas. O Leão sorriu e deixou a sala. Todos os soldados de Nakan estavam em alerta, bem como todos os

portões da cidade eram mantidos fechados. E exatamente nestas condi-ções ela se apresentava quando surgiu diante da cidade um emissário do Rei, acompanhado de uma força considerável, de aproximadamente mil soldados. Um sentinela foi de imediato avisar ao governador, que diri-giu-se pessoalmente ao portão.

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TALAL HUSSEINI 215

O emissário dava claros sinais de irritação quando o governador or-denou que se abrisse o portão. Permitiu que entrasse o emissário, acom-panhado do capitão que comandava aquela divisão, mas lhes solicitou que os soldados permanecessem do lado de fora, pois causariam tumulto na cidade.

O emissário portava um escrito com o selo real, que deveria entregar a Nakan dependendo da resposta que este desse a uma pergunta que devia fazer:

– Senhor Governador Nakan, jura fidelidade e obediência ao novo Rei? O senhor deve responder e beijar o selo real que aqui trago.

Nakan sabia que se respondesse a verdade, isto é, que não juraria ab-solutamente nada por Adaran, seria destituído do governo e provavel-mente preso. Mas um guerreiro não pode deixar de dizer a verdade. Essa era a sua formação. Todos à sua volta guardavam um silêncio ansioso, esperando pela jura. Nakan por fim respondeu:

– Eu juro – o emissário respirou aliviado, mas seu alívio durou pouco – fidelidade ao povo da minha cidade, juro obediência aos meus Mes-tres, e beijo o selo da Divindade. Juro defender a justiça, a beleza e a bondade. O Rei Adaran não representa para mim nenhum desses valo-res. Portanto, não posso segui-lo.

O emissário, que sabia do conteúdo da carta, suava frio. Tinha que entregá-la. Se o General Nakan resolvesse resistir, eles seriam rechaça-dos com facilidade. Provavelmente sua cabeça seria enviada à Capital cravada numa lança. Nakan abriu lentamente o envelope: ele estava destituído do posto de general do reino e também de governador da ci-dade. Seus bens estavam confiscados, e ele estava exilado. Tinha um dia para juntar seus pertences pessoais e deixar a cidade. E uma semana para deixar o País.

Nakan limitou-se a responder:

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– Os senhores são meus convidados no palácio para esta noite. Mas os soldados continuam do lado de fora das muralhas.

O emissário aceitou de pronto o convite, o capitão disse que preferia ficar acampado do lado de fora com seus homens.

A notícia se espalhou rapidamente pela cidade. O burburinho era ine-vitável. A maior parte da população se revoltava contra o Rei e apostava que Nakan não entregaria a cidade sem luta.

O governador parecia o menos preocupado. Passou a noite pensando na medida mais certa a tomar. O Rei o surpreendera, fora rápido em suas ações. É certo que ele não escondera uma certa animosidade contra o Rei, mas quem lhe teria dito? Haggi? Outros informantes? Impossível saber. O importante era resolver o momento. A Aurora ainda não anun-ciara seus róseos cabelos sobre a curva do horizonte quando um grupo formado por todos os capitães do exército de Nakan lhe pediu audiên-cia:

– Senhor, viemos prestar-lhe nossa solidariedade e dizer que estamos ao seu lado, seja em que circunstâncias for.

Nakan sorriu: – Agradeço-lhes, meus fiéis camaradas, mas o mais acertado a se fa-

zer é aceitar as ordens do Rei. Eu me retiro e nossa cidade será poupada. – Mas nós podemos exterminar os soldados do Rei. – Esses sim. Mas e os outros que virão? O exército do Rei é mais for-

te do que todo o exército da Aliança. E já nem podemos dizer que há uma Aliança. Se resistirmos seremos nós os exterminados.

– Então, vamos morrer combatendo, senhor. – Nós, que temos o espírito guerreiro, nos sentiríamos felizes com tal

morte, mas a população sofreria, nossa cidade seria maltratada. Já deci-di: podem comunicar aos homens que me retirarei da cidade amanhã ao meio-dia.

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TALAL HUSSEINI 217

Próximo do meio-dia, todos os soldados de Nakan se perfilaram no pátio em frente ao portão, do lado de dentro, sob as ordens dos seus ca-pitães, para saudar o general que se despedia. Levava consigo uma car-roça carregada com mantimentos para a viagem e alguns gêneros úteis. Ivis o acompanhava. Ele não conseguira demovê-la desse propósito. Ninguém de toda a corte se propusera a acompanhá-lo, pois sabiam que sua vida dali em diante seria difícil.

Do lado de fora, os soldados do Rei, que não sabiam da decisão do governador, estavam tensos. Estavam preparados para entrar em comba-te, mas sabiam que seriam massacrados. Sua preocupação aumentou quando começaram a escutar as formações de soldados e os gritos de guerra do lado de dentro dos muros.

Nakan passou em revista seus soldados. Primeiro, percorreu toda a li-nha de frente a cavalo. Depois desmontou e foi conversando com os homens como se cada um deles fosse seu filho. Ao escutar no meio da tropa gritos sugerindo a batalha, imediatamente os dissuadiu, ordenando que não reagissem contra os soldados do Rei e que acatassem as ordens dos seus novos superiores que viriam.

Ele terminou sua peroração, montou em seu cavalo e já se preparava para partir, quando escutou a frase dirigida a um dos capitães:

– Permissão para sair de forma, senhor, e acompanhar o meu general – disse um soldado dando um passo à frente.

– Permissão concedida! – Permissão para sair de forma, senhor – disse outro. – Permissão concedida! – repetiu o capitão. E assim vários soldados, quase metade do total o fizeram, formando-

se atrás de Nakan, preparados para segui-lo. Esses soldados já tinham deixado preparados seus sacos de viagem. Além da infantaria, vários cavaleiros fizeram o mesmo.

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O emissário corria desesperado de um lado para o outro, tentando conter a deserção:

– Parem! Todos vocês! Apenas Nakan foi exilado! Quem o acompa-nhar será considerado um fora da lei!

Ninguém lhe dava ouvidos. Os portões se abriram. Os soldados do Rei fizeram menção de tentar

conter a saída dos soldados de Nakan, mas este se dirigiu ao comandan-te:

– Eu poderia ter resistido a essa ordem de usurpação do meu governo e da minha cidade, mas não o fiz para evitar derramamento de sangue. Não conclamei ninguém a me acompanhar, pelo contrário, tentei demo-vê-los dessa ideia. Mas eles me acompanham mesmo assim. Pretende-mos sair em paz, mas se vocês tentarem nos impedir, não hesitaremos em entrar em combate.

– Senhor, mas esses são soldados do Reino, e as armas e equipamen-tos que portam pertencem ao governo. Não posso permitir que os levem.

– Em primeiro lugar, esses não são soldados do reino, são homens li-vres! E, em segundo lugar, você precisaria muito mais do que esses mil homens para pedir que deixemos as armas. Se você realmente as quer, terá de vir pegá-las.

O capitão entendeu a mensagem, impressionado com a imponência de Nakan, e ordenou a seus homens que não interferissem na saída. Depois que Nakan estava longe, entraram na cidade para mantê-la sob controle e noticiar à população algumas medidas do novo Rei.

Questionado por um dos oficiais sobre para onde pretendia rumar ao deixar o País, Nakan respondeu com seu velho sorriso, de quem já sabia perfeitamente para onde ir, com a segurança de quem não olhou para trás, para ver diminuir as muralhas de sua amada cidade, nem uma vez sequer. Dirigiu seus homens em direção à região das montanhas.

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TALAL HUSSEINI 219

39.

Capitão só pensava em sua vingança contra Ofis, agora Gene-ral Ofis, e contra Adaran, agora Sua Majestade Adaran. Seus

inimigos haviam crescido, mas isso não importava, o Capitão ainda ti-nha bem claras em sua memória as imagens finais de sua família, e isso o alimentava em seu sonho revanchista.

Também não podia esquecer que, além de procurar Justiça, era um homem procurado pela Justiça, sob a acusação de assassinato de sua família. Mesmo assim, depois que se recuperara no lago, o Capitão con-seguira fazer contato com alguns de seus homens, os de maior confian-ça, que acreditariam na sua estória. Alguns desses de fato acreditaram e reuniram-se a ele, formando uma milícia que se ocultava nas monta-nhas. Não era um grupo grande, mas era bem preparado, na sua maioria formado por ex-componentes da Guarda Real. O Capitão se tornara uma espécie de guia daqueles jovens – praticamente todos os que o seguiram eram aqueles que não tinham família e procuravam uma bandeira por que lutar –, apesar de sempre fazer questão de deixar claras suas inten-ções de vingança.

No reino, não se propagavam entre o povo quaisquer notícias a res-peito desse grupo, mas na corte sabia-se da sua existência e, apesar de até aquele momento não terem realizado nenhuma ação contra o poder constituído, essa existência devia terminar, antes de se tornar relevante.

Além do Capitão, os nomes de todos os que haviam deixado a Guarda Real após a ascensão de Adaran ao trono faziam parte da lista de procu-rados. Nos povoados das montanhas, conhecia-se o grupo e nutria-se por ele certa simpatia, já que essas populações se consideravam esque-cidas pelo governo e tinham em seu sangue uma certa rebeldia contra

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qualquer um que estivesse no poder. Agradava-lhes a ideia de alguém que confrontasse as autoridades.

O grupo do Capitão preparava uma ação ousada: assassinar o Rei. Misturar-se-iam à população, em disfarces, alguns membros do grupo provocariam um tumulto ante a passagem do Rei, para desviar a aten-ção, enquanto pelo outro lado os arqueiros entrariam em ação. Ninguém poderia ser capturado, todos carregavam uma pequena adaga que servi-ria para o suicídio em caso de captura.

A população aclamava a passagem do Rei, que vinha cercado por vá-rios homens da Guarda Real. Quando o tumulto premeditado começou, instintivamente a maioria dos Guardas colocou-se à frente do Rei volta-da para o lado da algazarra. O lado oposto ficou menos protegido.

Nesse instante, o Capitão e mais quatro de seus homens, os melhores arqueiros, atiraram simultaneamente. Uma das setas passou raspando pelo ombro do Rei, mas as outras foram barradas pelo escudo de Ofis, que, ao contrário dos demais, não havia se deslocado para o lado do tumulto, como que pressentindo algum perigo. Alguns Guardas Reais misturaram-se ao povo na tentativa de perseguição dos agressores. Não obtiveram sucesso com os arqueiros, mas os dois causadores da distra-ção foram presos. Foram incontinenti ligados ao ataque contra a pessoa real. Um deles conseguiu sacar sua faca e auto-infligir-se um golpe fa-tal. O segundo tentou fazer o mesmo, mas foi impedido. Foi bastante golpeado pelos Guardas e imediatamente arrastado à presença do Gene-ral Ofis. A essa altura, Adaran já estava em segurança dentro do Palá-cio. Não se percebeu o discreto sorriso de escárnio no rosto de alguns Guardas Reais ante a reação desesperada e quase histérica do Rei diante do perigo.

O homem foi amarrado num palanque, sob os apupos da população sedenta de sangue. Levou várias chibatadas, intercaladas com perguntas

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TALAL HUSSEINI 221

sobre quem era o autor daquele atentado, as quais não respondia. Ofis aproximou-se do ouvido do prisioneiro e sussurrou:

– Você já está morto... Resta saber se será de forma rápida ou lenta, com muita dor ou com pouca dor. Diga quem o mandou e morrerá rapi-damente. Particularmente, espero que você não fale logo...

Iniciou-se então uma tortura, que consistia em arrancar lentamente as vísceras do prisioneiro, ainda vivo, com pequenos anzóis. Quando co-meçava essa sessão, uma flecha precisa, disparada não se sabia de onde, atingiu o cativo no olho esquerdo, privando-o instantaneamente da exis-tência. Ofis não escondia seu desapontamento. Alguns Guardas tenta-ram em vão encontrar o atirador.

O General percebeu então na seta cravada no prisioneiro uma grava-ção: “assassinos”. Havia gravações idênticas nas flechas que atingiram o escudo de Ofis. Não se sabia se aquele termo visava a denominar o gru-po de atiradores ou suas pretensas vítimas, o que era mais provável. Em todo caso, a partir daquele momento, o grupo do Capitão ficou conheci-do em todo o reino como os “assassinos”.

O incidente, ainda que frustrado, tornou impossível para as autorida-des esconder a existência de uma oposição hostil e agressiva contra o reinado de Adaran. Ao passar de boca em boca, a história do atentado era aumentada, a ponto de os “assassinos” se tornarem figuras quase míticas, que inspiravam em muitos o temor e em muitos outros curiosi-dade e simpatia.

Escondidos novamente nas montanhas, os “assassinos” lamentavam o fracasso de sua ação e a perda de dois homens, mas sentiam-se orgulho-sos e excitados com a tentativa e com a repercussão que esta teria. De-veriam redobrar os cuidados com segurança, pois agora os esforços para prendê-los seriam maiores. O Capitão falou aos homens sobre o ocorri-do e pôde perceber nos seus olhos a confiança que lhe dedicavam. Fez

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questão de ressaltar mais uma vez que sua missão terminaria com a morte do General Ofis e do Rei.

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hara chegou à casa de Kadriel ainda irritada com o descaso demonstrado pelo Rei pela situação da saúde. E também pelo

assédio do Monarca que parecia exceder à questão pública. Depois que ela terminou de falar e desabafar sua inquietação, calmamente Kadriel começou a lhe relatar tudo o que se vinha passando no reino desde a sua conversa com Sokárin.

De alguma maneira, sabia que podia confiar em Dhara. Esta ficou em silêncio durante vários segundos, assimilando todas aquelas informa-ções. Quando ia dizer alguma coisa, Kadriel se antecipou:

– Dhara, em razão disso tudo, deixaremos a cidade amanhã. Se Ada-ran desconfiar das intenções do nosso grupo estaremos perdidos. Por isso, a partida abrupta. Fora da Capital e do alcance do Rei, será possí-vel traçar uma estratégia mais eficaz. Você já teve uma amostra do cará-ter do Rei, nós sabemos de outras situações que corroboram seu autori-tarismo. Quanto mais tempo ele permanecer no poder, pior se tornará a situação do povo – fez uma pausa e emendou: – você vem conosco?

– É difícil saber que posição tomar, assim, repentinamente. Até on-tem minha vida estava tranquila, hoje não tenho mais trabalho, descubro que o Rei é um tirano, e me encontro em meio a uma rebelião... Since-ramente, não sei o que fazer...

– Entendo sua hesitação. É difícil assimilar as voltas que a vida nos dá. Mas você não está no meio de uma rebelião, e sim de um grupo que legitimamente quer reclamar o trono, pois essa era a vontade de

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Sokárin. Não se trata de buscar o poder a qualquer preço, pois eu nunca quis estar nesta posição, mas sim de ter de assumir o destino que me foi reservado. Por mais que o preço seja alto, e o caminho adiante seja duro, não posso dar as costas a esse destino. E você também, Dhara, tem de tomar uma posição, e infelizmente tem de ser agora. Se não lutarmos, estaremos condenando o povo, já miserável, à definitiva miséria da de-sesperança. Agora é o momento. Se quiser vir conosco, esteja aqui antes do final da tarde, para irmos até a casa de Ravi, de onde partiremos. Vou esperar por você.

Dhara saiu, ainda atônita com as palavras de Kadriel. A noite seria longa para ela. Teria muito em que pensar.

Perto do final da tarde do dia seguinte, Kadriel, já pronto para sair,

aguardava apenas a chegada de Dhara, quando alguém bateu na porta. Kadriel não pôde conter sua felicidade, que foi tão grande quanto sua decepção ao abrir a porta e se deparar com dois soldados da Guarda Real:

– Senhor Kadriel? – Sim – confirmou Kadriel, desconfiado – em que posso ajudá-los? – O senhor deve nos acompanhar até o ministério. O senhor trabalha

lá, não é? Kadriel até havia esquecido que trabalhava no ministério, ademais,

com a mudança de rei, não ficaram vacantes todos os cargos? – Sim, trabalho... Mas neste momento não posso acompanhá-los, te-

nho um compromisso... – Nossas ordens são para escoltá-lo até lá. Nesse momento, Kadriel viu que Dhara chegava, já olhando com es-

tranheza para os soldados. Ele lhe fez um sinal muito discreto para que seguisse caminho e não parasse ali. Felizmente ela o entendeu e passou direto por sua casa. Kadriel dirigiu-se então aos guardas:

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– Bem, eu estava aguardando uma pessoa, que vai ficar preocupada se não me encontrar aqui. Permitam ao menos que eu deixe uma men-sagem.

Como os guardas concordaram com o seu pedido, dirigiu-se para den-tro de sua casa para apanhar o material de escrita. Entrou no seu quarto, agitado, olhando para todos os lados e pensando na melhor opção. En-frentar os dois guardas sozinho seria suicídio. Só restava fugir. Mas e se fosse um assunto banal? Não, nesse caso, não teriam enviado a Guarda Real, bastaria uma convocação. Assim, apanhou parte de suas coisas e saiu por uma janela nos fundos da casa. Quando os guardas estranharam a demora e resolveram entrar para verificar o que tinha acontecido, ele já estava próximo à casa de Ravi. Dhara já estava lá relatando o ocorri-do a Ravi. Ficaram aliviados quando viram Kadriel chegando esbafori-do. Dhara se antecipou:

– Kadriel, você está bem? O que os guardas queriam com você? – Não sei, porque não fiquei lá para ver. Mas a minha fuga deve tê-

los colocado em alerta. Precisamos partir imediatamente! Ravi concordou. Todos já estavam reunidos, podiam seguir viagem:

Ravi, Kadriel, Dhara, Bakar e Mirta. Também estavam presentes o Se-nador Rohel e sua esposa Inari, mas apenas para se despedir. Eles não tinham mais idade para enfrentar uma viagem daquelas. O Senador con-tinuaria lutando à sua maneira, enquanto o Senado existisse, já que suas atribuições haviam sido drasticamente reduzidas.

A caravana partiu com duas carruagens puxadas por quatro cavalos cada uma. Levavam mais dois cavalos, para revezar e outros dois em que Bakar e Kadriel iam montados. Por decisão de Ravi, foram em dire-ção à região das montanhas.

Retornando ao Palácio, os guardas que haviam ido à casa de Kadriel

reportaram-se diretamente ao General Ofis, e não ao ministro Doran,

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como deram a entender no que disseram a Kadriel. Ao vê-los de mãos vazias, o semblante de Ofis se transtornou:

– Onde está ele?! – Bem, senhor... ele... nos enganou... – Como os enganou? Ele nem sabia que se tratava de uma prisão.

Vocês não disseram que era um chamado do ministro? – Sim, senhor, mas acho que ele desconfiou... – Idiotas! Uma semana na limpeza das latrinas, que é só para isso que

vocês servem. Agora desapareçam da minha frente. Ofis pensou consigo que teria de aguardar um comunicado de seu in-

formante, e no momento oportuno os interceptaria. O Rei não estava muito preocupado com Kadriel e seu bando, mas ele sabia que o rapaz ainda lhes causaria problemas. Queria evitá-los enquanto isso ainda era fácil. Mas talvez o Rei tivesse razão, e não houvesse com que se preo-cupar. Em outro momento pensaria nisso. A prioridade do momento era o grupo dos assassinos.

Ao retornar à sua casa, o Senador Rohel se deparou com Guardas Re-

ais, que o esperavam junto ao portão principal. O Senador foi em sua direção e os interpelou sobre o que queriam.

– Precisamos que o senhor nos acompanhe, Senador. – Posso saber aonde? – Ao quartel da Guarda Real. O General Ofis deseja vê-lo. – “General” Ofis! Hum. Como se aquele lacaio de Adaran tivesse fei-

to alguma coisa que lhe pudesse valer essa patente... – os guardas fingi-ram não ouvir, muitos não discordariam dessa frase. Rohel dirigiu-se a sua esposa: – Inari, fique em casa e não se preocupe, logo estarei de volta.

– Mas, querido, para onde vão levá-lo?

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– Ao quartel da Guarda Real. Caso eu não volte hoje contate... – e cochichou um nome junto ao seu ouvido. Ela assentiu e entrou, enquan-to o Senador acompanhou os soldados.

Chegando ao quartel, foi levado imediatamente à presença de Ofis: – Vou ser bem direto, Senador. O senhor esteve com Kadriel? – Posso saber a que título estou aqui? Estou preso? – É claro que não, Senador. O senhor é nosso convidado, apenas para

esclarecer se esteve com um fugitivo da lei recentemente. – Não estive com nenhum fugitivo da lei! – De onde o senhor veio quando chegou à sua casa? – Da casa de meu amigo Ravi. – Que também é amigo de Kadriel... – Sim, e de muitas outras pessoas... não há crime algum nisso. E

Kadriel, cometeu que crime para ser procurado pela justiça? – Nós pensaremos em algum, Senador, nós pensaremos em algum... –

respondeu o General, ironicamente. – Sim, é claro... bem ao seu feitio e do seu patrão. – Se o senhor estiver se referindo a Sua Majestade posso mandar

prendê-lo por desacato à coroa. – Rapaz, olhe bem para mim, você acha que eu tenho idade para te-

mer esse tipo de ameaça? Ainda mais vinda de um lacaio desqualificado como você? Pois me prenda! Como se precisasse de motivo para isso.

Ofis não se alterou com as ofensas, limitou-se a provocar: – O senhor pode não se importar com nossas prisões, mas sua esposa

Inari... O ancião arremeteu contra Ofis, mas foi detido pelos guardas: – Não ouse ameaçar minha esposa, seu verme! Você não vale absolu-

tamente nada! Vou estar na primeira fila no dia que terminar essa pan-tomima a que vocês chamam de reinado!

– Já basta! Saia daqui, velho! Antes que eu mande mesmo prendê-lo!

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O Senador não esperou que ele repetisse a ordem e saiu rapidamente. Os guardas nem piscavam. Ofis lhes disse:

– E vocês, idiotas, uma palavra sobre o que aconteceu aqui, e vão passar o resto das suas vidas miseráveis limpando as cocheiras! Dis-pensados!

No caminho para as montanhas, Ravi aproveitou um momento de pa-

rada para descanso e, magistralmente, como num passe de mágica, de-sapareceu ante os olhos de Kadriel. Estupefato, este começou a se em-brenhar na floresta com a esperança de encontrar o Mestre. Depois de alguns minutos, avistou ao longe, sentado numa pedra frente ao rio, a figura de Ravi contemplando a natureza com a pureza própria de uma criança. Aproximou-se e, de um silêncio pleno, irrompeu a voz quase metalizada de Ravi:

– Sente, cale a sua mente e observe. Kadriel começou a admirar toda a paisagem, sem saber ao certo o que

deveria ver, se é que deveria ver alguma coisa. Tratou de pacificar as emoções e pouco a pouco sentiu sua mente se aquietar.

Ravi ordenou que Kadriel levasse todos os sons para o seu coração, como se escoassem por um funil e se envolvessem em uníssono no seu centro solar.

Sentiu que por trás de todos os sons havia uma espécie de segundo som, muito sutil, que após alguns eternos segundos, se traduziram num silêncio indescritível.

– Da solidão do guerreiro nasce o silêncio, e do silêncio, qual véus que se abrem aos mistérios, surge o poder. O poder é a ponte entre o Ser e a existência. É o que abre as portas para a magia e para a vida. Por ser uno com o Ser, é puro. Por isso, o poder nunca pode corromper. Os ho-mens, por perderem o canal do poder, é que se corrompem. Para um

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homem de poder, não existe o impossível, pois tem consciência de sua unidade interior e de sua própria imortalidade.

Enquanto ouvia atentamente o Mestre, Kadriel sentia um misto de muitas coisas. Sentia algo frio subir a coluna, ao mesmo tempo em que algo quente descia. Sua mente por momentos vislumbrava o que signifi-cava o poder para aquele que reina e ao mesmo tempo via que o poder era interior. Lutava para se concentrar e manter viva aquela experiência.

O guerreiro que canaliza o poder se torna representante desse atributo divino na terra. A isso chamamos liderança. Um líder é um canal do poder. Como numa espécie de “aura mágica”, faz com que todos que estão ao seu redor voltem a sonhar e a ter esperanças. Faz que as pesso-as se sintam seguras e protegidas, motivadas e valorizadas, sintam que suas vidas podem tocar o incomum, se vejam capazes de romper as li-mitações e de rasgar a mediocridade. Um líder encontra as respostas para todas as perguntas em sua própria alma, nada está para além dele, sabe que a realidade do poder está dentro de seu círculo interno.

Um líder sempre toma a iniciativa e sabe que rumo seguir. Sempre u-tiliza o elemento surpresa e com carisma garante o êxito. O líder é como o Sol: quando surge, o caos e as sombras abrem espaço para a sua pas-sagem.

– Chegou o momento de você realmente aceitar seu destino Kadriel, não tema o poder, pois quando nos encontramos com ele descobrimos que sempre fomos o poder. Não tema liderar, pois não só as pessoas que estão com você o necessitam, como você também necessita delas. Cada um nasce para algo neste mundo. Só encontramos nossa identidade quando efetivamente agimos em conformidade com o nosso destino. O eixo do poder é o canal pelo qual Deus se manifesta. Quatro são as vir-tudes que o guerreiro deve desenvolver para abrir passo a esse poder: a humildade entra como forma de energia espiritual e sai como admira-ção; entra a força, que se exterioriza como liderança. Esse quadrante de

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virtudes conforma as quatro primeiras pétalas necessárias para o guer-reiro trilhar a conquista da sua guerra interior. Só quem tem o poder de vencer dentro poderá vencer fora.

Kadriel compreendia cada ensinamento como se fosse único. Sentia um aperto forte na garganta, de alguma forma intuía que a decisão se localizava fisicamente na garganta. Também intuía que o ser humano se compromete com o universo no momento em que as palavras lhe saem da garganta e se liberam pela boca.

– Serei digno de honrar o poder. Liderarei com todas as minhas for-ças e trarei paz e justiça para o nosso reino.

Ravi forjava o rapaz com muito amor. Sabia que na realidade não lhe ensinava nada novo, só fazia-lhe lembrar aquilo que de alguma forma sua alma já conhecia. O que precisava era formar seu caráter.

Voltaram em silêncio. A cada pulso do coração, Kadriel sentia o pul-so da natureza em sua manifestação.

Quando chegaram ao vilarejo, Ravi aproveitou o momento de parada para retomar com Kadriel o assunto daquilo que ocorrera no penhasco, quando foram apanhar a placa. De como ele enfrentara quatro oponen-tes, livrando-se de todos eles, quase sem fazer esforço. Intuitivamente, Kadriel havia utilizado uma técnica de Nei Kung – A Arte Guerreira da Ação Inteligente –: a técnica dos quatro dragões. Ravi a explicou deta-lhadamente a Kadriel, que conseguia vislumbrar em tudo aquilo que havia sentido no penhasco os aspectos que lhe eram objetivamente transmitidos agora. Na ocasião ele não tinha essa consciência, mas ago-ra conseguia fazer as relações. Ravi frisava:

– Lembre-se que o objetivo da técnica dos quatro dragões é buscar o centro, esse lugar mágico onde se encontra o poder e se pode controlar e dominar os quatro elementos... Cada dragão representa um obstáculo a essa busca dura e complicada: o dragão mental é o desejo, o dragão

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emocional é a ansiedade, o dragão vital é a agitação e o dragão étero-físico é a rigidez corporal...

Kadriel passou o resto do tempo no vilarejo ao pé da montanha pen-sando sobre tudo aquilo. Sobre os quatro dragões, sobre o poder e a li-derança. Por um segundo, pensou em ser alguém comum, ter sossego, uma vida simples, sem grandes preocupações. Mas seu destino era o de um dirigente, de um guerreiro, que teria de fazer de tudo para que as pessoas pudessem ter uma vida tranquila, boa e justa. Também viu que não poderia ser feliz tendo uma vida comum. Para alguns neste mundo, a felicidade está na proporção do sacrifício. Kadriel era um desses.

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or ser um grupo reduzido, conseguiram instalar-se no pequeno vilarejo sem maiores problemas, pois Ravi conhecia seu líder,

Durkan. Este era um homem austero, como a vida rígida das montanhas determinava. Era, como todos os homens da aldeia, um camponês, não sendo afeito às questões da política, de governos ou de guerra. Ravi conversou com ele em particular, recebendo todo o apoio de que neces-sitassem.

Entretanto, ao saber das intenções de Ravi de não permanecer muito tempo ali, e sim rumar com seu grupo para regiões mais altas nas mon-tanhas, alertou-os de que aquela era uma região de domínio dos “assas-sinos” e que seria perigoso ir mais adiante. Conforme se subia nas mon-tanhas, os povoados que se encontravam eram menos hospitaleiros, pois os víveres eram mais escassos. Não se confiava muito nas pessoas dos vales, principalmente da Capital. Ravi pareceu reflexivo por um mo-mento. Logo agradeceu a acolhida e foi ter com os seus. Chamou de

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lado Kadriel e Bakar, falando-lhes durante alguns minutos. Parecia dar-lhes instruções minuciosas sobre alguma coisa.

Os dois saíram em seguida em direção ao alto da montanha. Tinham que encontrar o chefe dos “assassinos”. Ou melhor, segundo Ravi, bas-tava que se embrenhassem por aquelas paragens, que eles seriam encon-trados. Não levavam consigo nenhuma arma, fato com o qual Bakar não se conformava, como sua expressão deixava saber, apesar de nada ter dito.

Caminharam cerca de duas horas. Até aquela altitude, a vegetação ainda era cerrada. Os caminhantes tinham a sensação de que estavam sendo observados o tempo todo. De repente, uma flecha veio cravar-se no chão bem à frente de Kadriel, que imediatamente deteve o passo. Era evidente que a intenção não fora atingi-lo, caso contrário estaria morto. Ele gritou para as árvores:

– Quem está aí? Nenhuma resposta. Uma rede foi lançada da copa das árvores, mas

apanhou apenas Kadriel, Bakar conseguiu esquivar-se, com uma agili-dade inesperada para o seu corpanzil. Vários homens lançaram-se sobre ele. Dois, que o agarram cada um dos braços, foram logo arremessados. Outro agressor que, incauto, ficou parado na sua frente, contando que seus braços estivessem imobilizados, levou um soco apontado ao nariz, mas que atingia o rosto inteiro, dadas as dimensões da mão de Bakar. Seu nariz desapareceu dentro do rosto, e a consciência o abandonou de imediato. Restava um agarrado às suas costas. Bakar lançou-se de costas contra um tronco, amassando o passageiro indesejado. Mas nesse mo-mento outros homens surgiram, juntamente com os dois que haviam sido arremessados no início. Um deles acertou uma paulada em Bakar, que lhe atingiu as costas, não causando aparentemente nenhum efeito, mas veio outra paulada na testa, que escureceu um pouco a visão do gigante, apesar de não derrubá-lo. Quando a luz voltou-lhe aos olhos,

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mais de meia dúzia de flechas estavam apontadas para ele, os arcos ten-sionados, prontos para disparar. De dentro da rede, Kadriel, lendo as intenções de Bakar nos seus olhos gritou:

– Bakar! Não faça isso! Não reaja! Ao ouvir a voz do amigo, Bakar cedeu, relaxou os braços ao lado do

corpo. Aquele que parecia ser o líder falou: – Esse é um bom conselho – e dirigindo-se aos outros: – amarrem-no! Os dois foram amarrados e encapuzados, para que não soubessem a-

onde estavam indo. Kadriel permaneceu em silêncio. Bakar tentou fazer algumas perguntas no início – quem são vocês? Para onde estão nos levando? –, mas não obteve qualquer resposta.

Depois de cerca de uma hora de caminhada, pararam e tiveram os ca-puzes retirados. Estavam numa espécie de acampamento, que ficava numa clareira aberta propositalmente para esse fim. A vegetação ainda era espessa no entorno, o que denotava que não deviam estar a grande altitude. Kadriel pensou conhecer o líder do bando. Ele estava bastante mudado, principalmente o olhar, que estava vazio, mas sim, era ele, o Capitão da Guarda Real!

– O que vocês querem aqui?! Não sabem que estes são domínios dos “assassinos”? Têm sorte de estar vivos!

– Se estamos vivos, é por que você quis assim. Por que não nos ma-tou?

– Tive vontade quando meus homens me relataram o estrago que seu amigo mastodonte fez, mas por outro lado fiquei pensando que quem fosse louco o bastante para entrar nestas matas, desarmado, devia ter alguma coisa interessante para dizer... E, ademais, se eu estiver engana-do, ainda posso matá-los a qualquer momento. Portanto, eu ganho de todas as maneiras – fez um pequeno trejeito com o canto da boca, que devia representar o máximo de um sorriso para aquele homem, que completou: – então, me enganei?

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– Não – respondeu Kadriel – creio que nós temos interesses em co-mum. Meu nome é Kadriel Vahan, e pretendo lutar contra Adaran.

– Sei quem você é. Por que pretende lutar contra o Rei? – Porque a coroa é minha! Todos os homens riram da frase, menos o Capitão. Kadriel não se in-

timidou e prosseguiu, seguindo à risca o que Ravi lhe dissera para fazer: – Você sabe que Sokárin havia gravado outra placa de sucessão antes

de morrer, mas não teve tempo de colocá-la na estela, certo? – Muitos dizem que essa placa não existe... – Mas ela existe. Sokárin a escondeu. E nós a encontramos – ao dizer

isso, levou a mão dentro das roupas para pegar alguma coisa. Imediata-mente várias lanças foram encostadas contra seu peito. Ele olhou para o Capitão, que fez sinal a seus homens para se afastar. Kadriel retirou então um embrulho e o entregou ao Capitão.

Ao abri-lo, este sentiu um calafrio. Procurou não demonstrá-lo e des-denhar do que estava diante dos seus olhos.

– Sim. Isto é uma pedra com seu nome gravado... O que isso prova? – Essa é uma pedra dos mil reis. Você sabe disso. Quantas vezes

montou guarda diante da estela? Além disso, ela poderá, no momento oportuno, passar pelo teste alquímico.

– Certo. Suponhamos que eu acredite que esta pedra é verdadeira, o que você espera? Que eu me ajoelhe aos seus pés e lhe jure obediência? Você é um rei sem coroa, sem trono, sem cidade e, pior, sem exército.

– Não espero que você me reconheça como seu rei, mas está claro que temos um inimigo em comum e, como diz o ditado guerreiro, “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Todos os itens que você men-cionou, os terei, cada um a seu tempo...

O Capitão ficou pensativo, depois respondeu: – Minha única motivação é a vingança! Não me interesso por reis,

príncipes, imperadores ou o que quer que seja.

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– Entendo isso. Mas podemos reunir esforços? Ainda numa última hesitação, o Capitão perguntou: – Eu tenho homens, que não são muitos, mas são na sua maioria ex-

soldados da Guarda Real, combatentes de elite. E você, o que tem? – Além da legitimidade à coroa, tenho um Mestre! Ravi Medhavin

encabeça o nosso grupo. Sua sabedoria nos será muito valiosa. O Capitão admirava muito o imperador Medhavin. A menção a al-

guém daquela linhagem o agradou. Ele estendeu a mão para Kadriel: – Temos um pacto! Kadriel e Bakar sorriram. O Capitão mandou dois homens à cidade

para escoltar o resto do grupo de Kadriel até o acampamento, pois seria perigoso ficar na cidade. As forças do Rei poderiam aparecer.

Quando todos chegaram já era noite. Uma comemoração foi feita, ainda que com a sobriedade e a austeridade de quem está em guerra e não pode se dar ao luxo do desperdício. Mas todos se reuniram em torno de uma fogueira e contaram estórias. Ravi encantou a todos com relatos de suas viagens pelo mundo, alguns que nem mesmo Kadriel tinha ou-vido. A alegria foi interrompida por um dos sentinelas, que viera da parte mais baixa da montanha:

– O exército marcha para cá! Depois de indagado com mais calma, após ter descansado um pouco

da carreira, disse que uma enorme formação de soldados se aproximava. Era uma superioridade numérica muito grande. Seriam dizimados. A agitação tomou conta do acampamento. Como descobriram aquele lu-gar. A culpa era de Kadriel, alguém os havia seguido... Quem interrom-peu a confusão foi Ravi, com seu tom de voz tranquilo:

– Fui eu quem disse a eles que estaríamos aqui! – e continuou antes que alguém tivesse tempo de fazer qualquer colocação – eu disse isso há muitos anos.

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Ravi se divertia com os olhares de confusão de todos, inclusive de Kadriel, que nada sabia a respeito do que acabara de proferir. Ravi diri-giu-se ao mensageiro:

– Como eram os estandartes que portavam? Tinham as cores do rei Adaran?

– Havia três estandartes na linha de frente, ao que me pareceu, repre-sentando constelações. Havia a de gêmeos, a do caranguejo e a de pei-xes.

– Senhores, esses não são exércitos do Rei, são os nossos exércitos! – anunciou – são exércitos da Aliança das Doze Cidades. A constelação de gêmeos representa a cidade de meu amigo Nakan. As outras devem ser seus aliados. Provavelmente, o Rei não os considerou confiáveis e eles agora aqui estão.

– Mas são apenas três estandartes e a Aliança tem doze cidades. Onde estão as outras? – perguntou alguém.

– As outras, meu amigo, quando for o momento você as encontrará no campo de batalha...

Quando se encontraram, Ravi e Nakan se estreitaram num abraço fra-

terno, de velhos amigos. As apresentações foram feitas, Kadriel, Bakar, o Capitão, e todos os outros. Nakan, apesar do seu bom humor, estava preocupado com quais seriam os próximos passos daquele grupo. Ele tinha metade dos seus homens, na cidade do escorpião todos haviam acompanhado seu general, mas eram poucos no total, as outras duas cidades também tinham vindo com menos de metade do seu contingen-te. Isso não seria suficiente nem para fazer cócegas nas forças do Rei, ainda mais com o reforço das outras cidades da Aliança.

Ravi continuava tranquilo e disse que tudo teria seu tempo certo. O momento não era agora, muitos preparativos ainda teriam de ser feitos

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antes de poderem confrontar Adaran, que por sinal não era seu pior ini-migo. Ninguém entendeu muito bem o sentido daquelas últimas pala-vras que Ravi parecia ter dito mais para si mesmo, mas ninguém per-guntou.

Ravi relatou aos governadores das cidades a história da sucessão, da mesma forma que Kadriel a havia exposto ao Capitão, que agora a escu-tava novamente. Kadriel estava imóvel ao seu lado. Sua postura estava diferente, parecia ter assumido seu destino. Os líderes no entanto ainda não pareciam conformados em segui-lo como Rei.

Os dias se passaram e o clima não cooperava com a situação precária de um acampamento. A chuva já durava mais de trinta dias. Se isso con-tinuasse, as plantações das cidades montesinas estariam completamente perdidas. Os prognósticos dos anciãos das cidades encarregados de fazer a leitura do tempo não eram boas: em meio à tempestade, viria o venda-val, na forma de ciclones. De fato, no dia seguinte, logo que o dia raiou, se é que se podia chamar assim, uma vez que ainda parecia noite, no horizonte, unindo o céu cinza à terra escura, um paredão. Aproximava-se rápido, trazendo seu cinza ainda mais escuro na direção das aldeias. À sua frente, qual cavaleiros de escolta, quatro formações de vento, sa-indo do céu, no meio das nuvens, em redemoinho que ia fincar sua pon-ta no chão. Eles se contorciam num balé assustador, pareciam debochar dos pobres humanos que os aguardavam atônitos.

Se alguém um dia tivesse uma visão do fim do mundo, certamente se-ria aquela. Perto do meio-dia, tudo escureceu, haviam chegado as legi-ões dos ventos, a artilharia dos raios que retumbavam seus tambores ao fulminar árvores gigantes apenas para demonstrar seu poder, a água que insistente amolecia as consciências... Era uma luta que os homens não podiam vencer. Restava-lhes esperar.

Todos pensaram que Kadriel enlouquecera quando ele foi na direção de que vinha o temporal, levantou os braços, com as palmas das mãos

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abertas, e começou a recitar palavras incompreensíveis. Alguns até sen-tiriam vontade de rir, não fosse a situação desesperadora.

Mas a estupefação foi geral quando tudo pareceu parar: a chuva, os raios, e o vento, o próprio tempo... Fez-se o mais absoluto silêncio, ne-nhum pássaro cantava, nenhum animal da floresta emitia qualquer som, ninguém falava, ninguém sequer respirava. Em meio ao céu cinzento, abriu-se um círculo de claridade exatamente sobre a montanha, sobre o lugar onde estavam, deixando entrar toda a luz e todo o calor do Sol do meio-dia. Ouviu-se então um guincho, era um falcão que descia através daquela espécie de portal que se abrira entre as nuvens. Ele vinha de onde não havia tempestade, de onde o céu era claro e o Sol brilhava pleno. Demorou mais de dois minutos na sua descida, pois voava em forma circular, descrevendo uma espiral para baixo, até pousar sobre o ombro de Kadriel.

Era um falcão diferente dos demais. Normalmente tinham a pluma-gem de cor marrom, aquele era amarelo. O efeito brilhante que as aves têm nas suas penas o fazia parecer dourado ao Sol. O destino pousara nos ombros de Kadriel. Sim, este seria seu nome: Destino.

O céu se abriu por completo, terminando de dissipar a tempestade. Todos ficaram olhando fixamente para o homem e a ave. Bastou que

um o fizesse, para que todos em sequência o imitassem: um a um todos ajoelhavam-se sobre o joelho direito, baixando a cabeça, em sinal de reverência, em direção a Kadriel.

O poder que ele demonstrara não era dos homens comuns, era digno dos reis. O presságio do falcão afastava qualquer dúvida que porventura ainda persistisse.

Até mesmo o Capitão sentiu vontade de fazer reverência, mas resistiu ao enorme peso que lhe pressionava os ombros, não, ele jamais seguiria alguém novamente, sua vida poderia acabar quando cumprisse sua vin-gança.

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238 PAZ GUERREIRA - LIDERANÇA

Kadriel fez sinal a todos para que se levantassem. Um brado espontâ-neo elevou-se da soldadesca para exultá-lo. Os generais se aproxima-ram, os demais também, todos queriam estar perto do Príncipe. Podia-se sentir o seu magnetismo.

Agora tinham uma bandeira por que lutar. Estava reunida a companhia de heróis.