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Monitoração da Consciência Per-Operatória 85 Monitoração da Consciência Per-Operatória Alberto Esteves Gemmal* Introdução Anestesia Geral tem como característica imprescindível e indissociável a supressão da consciência durante o ato cirúrgico. Embora algumas respostas do organismo aos estímulos cirúrgi- cos, tais como alterações na volemia, no ritmo cardíaco e a neces- sidade ou não de relaxantes musculares sejam observadas e con- troladas, não existe ainda um monitor de consciência. O proprio conceito consciência/inconsciência é demasiada- mente abrangente e inadequado para descrever o estado ao qual conduzimos nossos pacientes durante o ato anestésico cirúrgico. Não existe ainda um consenso ou definição consistente sobre o que é consciência. Como medir o que não conseguimos sequer definir? William Thompson (1824-1907), físico irlandês também co- nhecido como Lorde Kelvin, declarou que quando podemos ex- pressar o assunto sobre o qual estamos falando por intermédio de medidas e números, então podemos dizer que sabemos algo so- bre este assunto. Quando não conseguimos nos expressar a res- peito deste mesmo assunto por números, mas apenas o qualifica- mos, nosso conhecimento sobre este assunto ainda é pequeno e insatisfatório. Mal arranhamos a superfície do conhecimento cien- tífico acerca deste assunto, qualquer que seja êle. Estamos ape- nas iniciando nesta ciência, qualquer que seja ela. A monitoração dos sistemas fisiológicos é realizada pela ob- servação de seus sinais. Estes sinais são mensagens emitidas e

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anestesiologia

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Monitoração da Consciência Per-Operatória 85

Monitoração da ConsciênciaPer-Operatória

Alberto Esteves Gemmal*

Introdução

Anestesia Geral tem como característica imprescindível eindissociável a supressão da consciência durante o ato cirúrgico.Embora algumas respostas do organismo aos estímulos cirúrgi-cos, tais como alterações na volemia, no ritmo cardíaco e a neces-sidade ou não de relaxantes musculares sejam observadas e con-troladas, não existe ainda um monitor de consciência.

O proprio conceito consciência/inconsciência é demasiada-mente abrangente e inadequado para descrever o estado ao qualconduzimos nossos pacientes durante o ato anestésico cirúrgico.Não existe ainda um consenso ou definição consistente sobre oque é consciência. Como medir o que não conseguimos sequerdefinir?

William Thompson (1824-1907), físico irlandês também co-nhecido como Lorde Kelvin, declarou que quando podemos ex-pressar o assunto sobre o qual estamos falando por intermédio demedidas e números, então podemos dizer que sabemos algo so-bre este assunto. Quando não conseguimos nos expressar a res-peito deste mesmo assunto por números, mas apenas o qualifica-mos, nosso conhecimento sobre este assunto ainda é pequeno einsatisfatório. Mal arranhamos a superfície do conhecimento cien-tífico acerca deste assunto, qualquer que seja êle. Estamos ape-nas iniciando nesta ciência, qualquer que seja ela.

A monitoração dos sistemas fisiológicos é realizada pela ob-servação de seus sinais. Estes sinais são mensagens emitidas e

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detectáveis que contém e carreiam informações sobre determina-das características destes sistemas. No entanto, porque esta in-formação se encontra imersa em um amplo espectro de frequênciase apresenta uma variedade de graus de complexidade em suamorfologia, deve ser processada para remover o ruído agregado einútil, estraindo assim as informações desejadas. Após este pro-cesso, estas informações serão interpretadas gerando conclusõessobre o comportamento do sistema e a possibilidade de controlede suas respostas aos estímulos.

Anestesia Geral, duas Hipóteses e uma definição

A cada ano alguns milhões de atos cirúrgicos são realizadossob Anestesia Geral no Brasil. Embora a ciência anestésica sejaestruturada em conhecimentos de fisiologia, farmacologia e clíni-ca médica, sua prática clínica ainda é exercida como uma arte.

Usamos conceitos anacrônicos e ainda nos reportamos a pla-nos anestésicos que foram desenvolvidos para o éter anestésicono início do século passado. Esta droga não é mais usada e o usocombinado de opióides e relaxantes musculares mascara os sinaisclínicos usados por Guedel. Relatamos a seguir um breve resumohistórico e apresentamos duas hipóteses que concluem com umadefinição de anestesia geral.

Desde a primeira demostração pública desta nova ciência,em 16 de outubro de 1846 no Massachusetts General Hospital,diversas tentativas de categorização e classificação foram pro-postas. John Snow (1847), médico inglês que se tornou o primei-ro especialista em Anestesiologia, descreveu cinco graus denarcotismo1. Os dois ultimos foram relacionados à anestesia ci-rúrgica.

Neste mesmo ano, Plomley2 propôs três estágios ou grausde anestesia (Tabela I):

Os primeiros anestésicos gerais utilizados clinicamente foramo Óxido Nitroso (N

2O), o Éter Anestésico e o Clorofórmio. Anestesia

geral foi predominantemente inalatória em sua origem, emboramais tarde outras vias tenham sido incorporadas ao uso clínico.

Em 1937, Guedel3 publicou seu livro “Inhalation Anaesthesia:

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A Fundamental Guide”, onde descreveu seis sinais clínicos (Respi-ração, Atividade ocular, Diametro pupilar, Reflexo ciliar, Deglutiçãoe Presença de vômitos) usados para auxiliar a classificação equantificação da anestesia geral obtida por éter anestésico emestágios e planos. Êle propôs a divisão do continuum de anestesiageral em quatro estágios predominantemente baseados emreflexologia autonômica (Figura 1).

1 - Analgesia2 - Delírio3 - Estágio Cirúrgico, subdividido em quatro pla-

nos (sendo o segundo e o terceiro chamadosde planos cirúrgicos)

4 - Paralisia respiratória (seguindo-se a morte)

Tabela I - Estágios de Anestesia segundo Plomley

1.Intoxicação2.Excitação (consciente e inconsciente)3.Narcose (estágio cirúrgico propriamente dito)

QuatroEstágios:

Figura 1 - Gráfico elaborado por Guedel em 1927, categorizandoos diversos estágios e planos anestésicos necessários paraanestesia cirúrgica pelo Éter Anestésico.

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Em 1957, Woodbridge7 acrescentou um quarto elemento,redescrevendo os quatro componentes formadores da anestesiageral como sensorial, motor, reflexo e mental.

Seguindo-se a uma série de experimentos interessantes,Eiger8 publicou em 1965 as bases farmacológicas para o uso raci-onal dos anestésicos inalatórios. A Concentração Alveolar Mínima(CAM) permanece como um dado farmacodinâmico importante eútil que acontece nos moto-neurônios periféricos9,10 e possibilitaum controle farmacocinético acurado sendo obtida “on line” a cadaato ventilatório. Sua grande vantagem resulta do fato de que aperda da consciência precede a depressão dos reflexos motores.

White11 propôs, em 1987, que anestesia geral é um estadoreversível de depressão do sistema nervoso central, com tal in-

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tensidade, que após a sua recuperação nada é lembrado em rela-ção ao período cirúrgico. Destacamos dois tópicos importantes: aperda da conciência e da memória, já que o controle das altera-ções fisiológicas durante o ato anestésico cirúrgico pode ser feitopor uma série de drogas, sejam elas anestésicas ou não.

Em novembro de 1987, o Professor Cedric Prys-Roberts pu-blicou um editorial no British Journal of Anaesthesia12 denuncian-do o conceito de profundidade de planos anestésicos como ultra-passado e inconsistente. Neste texto êle descreveu duas hipóte-ses e propôs uma redefinição filosófica para Anestesia Geral.

Hipótese 1 - Inconsciência é a característica essencial e im-prescindível da anestesia geral.

Não existe anestesia geral com o paciente acordado. Discorda-mos veementemente de recente afirmação publicada na literaturaanestésica especializada sobre consciência per-operatória. Dominoe Aitkenhead13 afirmam que a ocorrência de consciência per-opera-tória é aceitável no paciente grave, onde anestesia geral suposta-mente causa morte ou injúria permanente. No século XXI a supres-são da consciência não é fator limitante, já que existem drogas quebloqueam a consciência sem bloquear a resposta simpática.

Hipótese 2 - O paciente dormindo sob anestesia geral apre-senta reações reflexas (autonômicas, motoras, endócrino-me-tabólicas, inflamatórias, neuro-humorais e outras) aos estímu-los nociceptivos (intubação, incisão e manipulação cirúrgica,etc.).

Segundo a definição proposta pela Associação Internacio-nal para o Estudos da Dor14 (IASP – http://www.iasp-pain.org):“Dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, comdano tissular real ou potencial, ou ainda descrita em termos des-te dano”. O sentimento da dor é sempre pessoal e subjetivo,enquanto as respostas ao estímulo podem ser motoras,autonômicas, endócrino-metabólicas, neurohumorais e inflama-tórias, entre outras. Enfatizamos que o controle das respostasaos estímulos nociceptivos também pode ser obtido por drogasnão anestésicas.

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O uso do termo dor é correto e apropriado para o pacienteacordado, onde este descreve uma resposta afetivo-relacionalenvolvendo um sentimento e emocional envolvendo as respostasfisiológicas ao stress15) (ver o tópico IV sobre aferência dolorosa).No paciente anestesiado e inconsciente, conforme a hipótese 2,este termo se torna inapropriado.

O seu controle pode ser obtido por diferentes drogas e me-canismos usados no momento apropriado, segundo a conveniên-cia farmacológica16. Opióides venosos ou no neuroeixo, anestési-cos locais, vasodilatadores, bloqueadores ganglionares, beta-bloqueadores ou agonistas alfa, além dos próprios anestésicosgerais podem ser utilizados para modular estas respostas.

A inibição das respostas motoras pode ser obtida por meiode relaxantes musculares, anestésicos gerais (anestésicos geraisinalatórios são particularmente úteis neste aspecto!) e/ou blo-queios anestésicos do neuroeixo. O uso de relaxante muscularcomo droga per operatória única é prática condenável. A possibi-lidade de pacientes acordados durante o ato operatório pode cau-sar sofrimento intenso e danos psíquicos graves e irreparáveis,conforme descrito no tópico III.

Opióides tornam-se particularmente úteis e convenientes noper e no pós-operatório por serem drogas baratas e farmacodina-micamente conhecidas no controle das respostas nociceptivas,bloqueando a aferência dolorosa desde o neuroeixo até o sistemanervoso central. Após o ato anestésico cirúrgico, quando o paci-ente retorna ao estado vigil prévio, então o efeito residual destesopióides contribui para o controle da dor.

O uso de opióides para controlar as demais respostasnociceptivas, que não seja a dor no paciente acordado, é limitado porsua propriedade depressora central da ventilação. Insistimos que, porrazões humanitárias, toda queixa de dor deve ser relevada e tratada,em todas circunstâncias! Mesmo que não haja nexo causal conhecido.A escolha de terapias apropriadas será feita caso a caso.

A definição proposta por White adicionada à contestação doProf. Prys-Robets concluem que: Anestesia Geral é um estado nãonatural em que (1) a consciência do paciente é suprimida e (2) suahabilidade em responder aos estímulos nociceptivos é controlada

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reversivelmente por uma variedade de drogas, sejam elas anestésicasou não. Entendemos que esta definição leva a uma abordagem filo-sófica diferenciada dos conceitos antigos de anestesia geral.

Porque memória e não consciência duranteanestesia geral?

Como foi enfatizado no tópico introdutório, não existe aindaum consenso ou definição sobre o que é consciência. Em todo omundo científico vários grupos de pesquisa se dedicam a estudaros componentes separadamente. Desde 1994 é realizado emTucson – EUA, um congresso bianual e multidisciplinar sobre cons-ciência (Figura 2).

Figura 2 - Poster do último congresso sobre consciência em Tukson- Texas, EUA.

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Tabela II - Classificação de memórias segundo Lent

a . Memória operacional (ou de trabalho, com curta dura-ção)

b . Quanto ao tempo de retenção como ultra rápida, curtaduração e longa duração

c . Quanto a natureza:- Explícita ou declarativa, esta subdividida em episódica

e semântica e- Implícita ou não declarativa com os subtipos de

representação perceptual, de procedimentos,associativa, não associativa

Mesmo memória é um assunto complexo e embora apre-sente substrato neural extruturado, ainda restam muitos pontos àesclarecer. É consenso entre autores nacionais e internacionaisque o processo geral siga as seguintes etapas: 1-Aquisição, 2-Retenção (por momentos ou horas), 3

(a)-Consolidação ou 3

(b)-Es-

quecimento e 4-Evocação, para utilização posterior (este últimointimamente ligado à consolidação).

Após esta sequência, a informação pode seguir o cami-nho de retenção duradoura ou esquecimento. Lent17 e Kandel18

e Izquierdo19 descrevem as memórias explícita e implícita. Asdemais classificações funcionais seguem-se nas Tabelas II, IIIe IV.

Kandel, em seu livro sobre neurociências apresenta a classi-ficação descrita na tabela III.

Izquierdo, em seu livro “Memória”, propõe a divisão em doisgrandes grupos:

1 - Memória de trabalho, de curta duração, durando de pou-cos segundos a minutos (referenciada ao córtex pré frontal)

2 - Memórias de curta duração (até seis horas) e longa du-ração. Mais complexas e capazes de sofrer retenção para posteri-or evocação (referenciadas ao hipocampo e córtices entorrinal,

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cingulado e parietal). Estas memórias tem seus componentes re-lacionados à memória explícita ou implícita.

Em 1986, o grupo do Prof. Jones, da Universidad deCambridge, Reino Unido, propôs a utilização dos estados diferen-ciados de acordado e dormindo e o uso das memórias explícita eimplícita para categorizar o continuum desde consciência até in-consciência no pér operatório (modificado aqui pelo autor na Ta-bela IV). Esta proposta fundamenta-se em dois pontos de cortecom substrato neural consistente, o sono e a memória.

Segundo a classificação proposta por Bailey e Jones20 e Jones eKonieczko21, aqui adaptada para anestesia, sugerimos a adoção de

Tabela IV - Níveis de Percepção da Consciênciano Período Pér Operatório

I . Paciente acordado com memória explícitaII . Paciente acordado sem memória explicita porém com

memória implícitaIII. Paciente dormindo com indícios de memória implícitaIV. Paciente dormindo e ausência de memória implícita

Tabela III - Memórias segundo Kendal e suasáreas de associação cortical

Explícita Fatos Eventos Lobo Medial Temporal(declarativa)

Priming Neocórtex

Procedural N.(habilidades Striatum

Memórias e hábitos)de longoprazo Implícita (não Aprendizado Respostas Amígadala

declarativa) associativo emocionais

Musculatura CerebeloAprendizado esqueléticanão associativo Habituação e Vias

sensibilização reflexas

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classificação semelhante à descrita na tabela IV para sedação e pro-pomos uma classificação dos acidentes mnemônicos per-operatóriosconforme descrito na tabela VI. Embora a memória explícita seja re-lativamente fácil de ser recuperada (por inquirição direta ao pacien-te), o mesmo não acontece com a memória implícita, que é estudadapor meios indiretos. Vale ressaltar o fator limitante de que ambas sãorecuperadas após o término do anestésico cirúrgico, ou pós-evento.

Aferência central da dor e afetividade

O estímulo nociceptivo aferente chega ao Sistema NervosoCentral através do neuroeixo projetando-se para quatro regiõescorticais e subcorticais maiores (Tabela V)22. Nestas projeções dis-tinguem-se quatro componentes hierarquicamente arranjados que

Tabela V - Componentes Centrais da Dor e Projeções Centraisdos Tractos Dolorosos

1 - Componente Sensorial DiscriminativoProjeções aos núcleos localizados no Tálamo Ventro-Posterolateral, específicas para tato e nocicepção.

2 - Componente ComportamentalNucleo Giganto celular (sítios de projeção na MedulaOblongata) e Mesencefalo (Matéria CinzentaPeriaqueductal e Núcleo Cuneiforme). Estas projeçõescontribuem para respostas alertas do centrocardiorespiratório, para o surgimento de respostasmotoras e emocionais e os mecanismos de alerta envol-vidos com as respostas comportamentais à dor.

3 - Componente CognitivoHipotálamo. Conecções envolvidas em respostas do sis-tema nervoso autonômico e liberação de hormônios en-volvidos com a resposta ao estresse.

4 - Componente Emocional AfetivoComplexo Amigdaliano (que faz parte da extruturalímbica). Projeções envolvidas nas respostas afetivas eemocionais à dor.

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interagem modulando-se intrinsicamente um ao outro. Os estí-mulos nociceptivos podem ser bloqueados em sua aferência, des-de o local do estímulo ao longo do neuroeixo até o sistema nervo-so central.

Conforme observamos no quadro acima, existe uma extreitarelação entre o estímulo nociceptivo e os centros afetivos respon-sáveis pela emoção e o sentimento. A aferencia nociceptiva deveser adequada e criteriosamente bloqueada durante a anestesiageral para previnir sensibilização e alterações de percepção aosestímulos dolorosos no pós operatório. A aferencia dolorosa noindivíduo acordado pode desencadear o quadro de dor crônica,que não é objeto desta discussão.

Consequências de episódios de lembrançasper-operatórias

A possibilidade de ocorrência de lembranças pér operatóri-as, tanto descrita em termos de memória explícita quanto implíci-ta, pode desencadear quadros de ansiedade no pré e no pós ope-ratório imediatos com consequências drásticas para o paciente,seus familiares e comunicantes. Os autores americanos e euro-peus descrevem estes episódios na litertura internacional comoTranstorno de Stress Pós-traumático (TSPT), conforme descritono CID-10 sob a sigla f.43.1.

Estatísticas internacionais sugerem que estes episódios ocor-ram entre 0,1 e 0,7% ou até um para cada 150 pacientes subme-tidos a procedimentos eletivos, alcançando a surpreendentemen-te incidência de um para cada tres casos (35%) em emergência,obstetrícia ou cirurgia cardíaca23,24.

Cerca de 10% dos pacientes que apresentem estas lem-branças podem desenvolver um quadro de disturbio de ansie-dade apresentando ansiedade pós-operatória, desordens de or-dem psíquica com pesadelos, insônia e desajustes no lar e notrabalho, além de explosões de agressividade incontrolável commedo inesplicável e alterações de humor e personalidade. Es-tes sintomas podem ser desencadeados por meios diretos ouindiretos.

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Embora os pacientes submetidos à anestesia geral sejamabordados como vítimas de TSPT, a concorrência de drogaspsicoativas somadas a possibilidade de haver pacientes que este-jam dormindo porém apresentando indícios de preservação dememória implícita25,26 diferencia este quadro próprio à anestesiado de TSPT, em que é descrito que a vítima está necessariamenteacordada e lúcida.

A partir desta observação, sugerimos abertura de discussãopara adição de um sub-ítem específico à sigla f.43.1 que nomeie eaborde como Transtornos Mnemônicos Per-Operatórios (TMPO)27,entidade distinta da TSPT, a ser incluida na classificação atual. Oacidente mnemônico pode se apresentar de três formas distintas,descritas na Tabela 6:

Se considerarmos que existe a possibilidade destes pacientesapresentarem acidente mnemônico do tipo III, que envolve memóriaimplícita ou não declarativa, percebemos como pode se tornar difícil odiagnóstico. Cada um dos ítens descritos acima deve ser devidamenteesclarecido ao paciente na visita pós operatória, como parte do trata-mento e preferencialmente pelo médico anestesiologista que o aten-deu. Os pacientes devem ser encaminhados a um profissional da áreade saúde mental para provisão de tratamento adequado.

Tabela VI - Acidentes Mnemônicos Per Operatórios

Tipos Características Gerais

I O paciente submetido à anestesia geral, sob efeito derelaxantes musculares porém acordado, apresentamemória explícita (relato de fatos e atos do períodoper-operatório) e relata ter sentido dor.

II O paciente submetido à anestesia geral, sob o efeitode relaxantes musculares e acordado, porém comanalgesia eficiente. Apresenta memória explícita po-rém relata não ter sentido dor.

III O paciente submetido à anestesia geral e dormindo,porém apresenta indícios de preservação de memó-ria implícita de atos e fatos per-operatórios.

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Monitorização da consciência per-operatória. Mitos efatos

Desde a descoberta do eletroencefalograma por Berger28,em 1929, muito se tem pesquisado para tentar entender a lingua-gem e significação dos sinais cerebrais. O proprio Berger aplicoudrogas anestésicas em seu filho Frank para estudar as variaçõesmorfológicas das ondas cerebrais α e β.

A atividade elétrica cerebral é formada pelo somatório dasmicrocorrentes geradas de maneira dessincronizada pelos neurôniose glia cerebrais. Suas variações se situam em torno de 50 µV. OEEG pode ser dividido por frequência em ondas δ (0,1 a 4 HZ), θ (4a 8 HZ) α (8 a 12 HZ) e β1 (12 a 30 Hz) e β2 (30 a 60 Hz). Bandasde frequência mais altas não participam do EEG por não terempotência expressiva nem utilidade biológica definida29.

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O EEG vem sendo pesquisado, desde sua descoberta, para odesenvolvimento de aparelhos de monitorização da consciênciadurante anestesia. Em 1950 Bickford

30 utilizou ondas cerebrais de

gatos para realizar a primeira anestesia com sistema de controlede malha fechada (Closed-Loop Control System), mantendo umgato anestesiado com nembutal sódico segundo os parâmetroseletroencefalográficos pré-estabelecidos por cerca de 14 horas (Fi-gura 3).

No indivíduo acordado há predominancia de ondas de altafrequência (α e β) e baixa amplitude elétrica (sigla em inglês HFLA),enquanto no indivíduo dormindo há tendência a inversão destespadrões (LFHA).

Figura 3 - Experimento de Bickford para anestesia controlada por EEG.

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O sono fisiológico é dividido segundo o predomínio de pa-drões de frequência em cinco fases. O sono REM (Rapid EyeMoviment – movimentos rápidos dos olhos e predominância deatividade β durante o sono) é uma das cinco fases do sono fisioló-gico e apresenta atividade elétrica semelhante à hiperativaçãocortical e episódios epilépticos. A diferenciação automatizada dasfases do sono é muito difícil por sobreposição de frequência deondas e padrões.

A pesquisa dos estados de alerta e sono anestésico tem sidoexplorada de várias maneiras, embora nenhuma seja ainda con-clusiva. Não existe um correlato elétrofisiológico claro e definidodurante o sono, mas predominância temporal de padrões defrequência característicos a cada uma de suas cinco fases.

Silêncio elétrico cerebral e supressão de surto (BurstSuppression) acontecem quando a atividade elétrica cerebral ficaabaixo de 5 µV por períodos superiores a meio segundo. A taxa desupressão de surto (Burst Suppression Rate - BSR) é a razãoentre o tempo de supressão de surto e um minuto, variando dezero a um. Chamamos de silêncio cerebral a supressão de surtoque siga indefinidamente no tempo. Silencio cerebral é sugestivode sofrimento e morte cerebral.

A dificuldade em pesquizar a memória implícita, agravadaao fato de ser pós evento, levou Tunstall, obstetra e anestesistainglês, a publicar entre 1977 e 198031-33 uma série de experimen-tos interessantes. A circulação sanguínea do braço do paciente aser anestesiado era isolada por um garrote antes da introduçãodo relaxante muscular e o anestesista se comunicava com estepaciente, enquanto entubado e anestesiado. Houve respostaspositivas durante o ato cirurgico e estas foram descritas.

Exemplos de análises temporais do sinal de EEG são a aná-lise visual direta das variações do sinal de EEG e a Zero-CrossingIndex29. Estas análises requerem um técnico experiente para de-tectar visualmente as alterações típicas de cada fase.

No domínio da frequência citamos o monitor de função cere-bral (Brain Function Monitor), monitorização de ondas alfa,monitorização de borda de frequências espectrais, monitorizaçãode valor medio espectral e uma derivativa que ainda é segredo

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industrial supostamente baseada em estatísticas espectrais desegunda ordem ou bi-espectrais chamada BIS (Indice Bi-Espectral)29.

Os potenciais evocados visual e auditivo de latencia mé-dia34, além do somato-sensitivo foram tentados, porém sem su-cesso. A variabilidade dos sinais obtidos nos potenciais evocadossuplantava em muito os pequenos sinais originais.

Recentemente foi lançada uma tecnologia no mercado, po-rém sem base científica explicável, a análise da banda de frequênciaeletroencefalográfica superior a 60Hz até 400Hz (faixa defrequência em que, pelos parâmetros neurológicos vigentes, asondas cerebrais se confundem com o ruído de fundo).

De qualquer maneira, os aparelhos encontrados no merca-do são medidores de atividade elétrica cerebral, que, por inter-médio de softwares elegantes, tentam se relacionar à perda dacapacidade de processar informações, ou consciência. Mas a ques-tão de encontrar uma variável relacionada a consciência, comoafirmado, ainda não foi solucionada.

Técnicas anestésicas e acidentes Mnemônicosper-operatórios

O que nos resta então? A literatura não apresenta evidênci-as claras apontando uma maior ou menor predominância de Aci-dentes Mnemônicos Per-Operatórios para técnicas inalatórias ouvenosas. Existem sim descrições de técnicas combinando opióidese Óxido Nitroso (N

2O) ou benzodiazepínicos e N

2O, em que foi

constatada maior incidencia de memórias explícitas16.As medidas preventivas básicas são o conhecimento

farmacocinético e farmacodinâmico das drogas aplicadas aos pa-cientes, que somadas à ótica da abordagem filosófica aqui descri-ta para anestesia geral somadas ao uso criterioso de relaxantesmusculares, inclusive com monitorização da atividade motora comorotina em sala de cirurgia.

Ressaltamos que pacientes dormindo sono anestésico e queapresentem hiper ou hipotensões e bradi ou taquicardias não de-vem ser interpretados como plano superficial ou profundo, mas

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respostas fisiológicas que devem ser corrigidas. O paciente devenecessariamente ser mantido em sono anestésico durante todo oato anestésico cirúrgico.

Conclusão

O que fazer então? O que nos resta fazer com os sinaissinais clínicos?

1 - Certificar-se de que o paciente esteja farmacocineti-camente dormindo sono anestésico. Rever a CAM queestá sendo usada (CAM50?, CAM99,5?, CAMbar?).

2 - Avaliar os parâmetros monitorizados e compensar asrespostas fisiológicas aos diversos estímulos nociceptivose variações de volemia segundo a conveniênciafarmacológica (usar a droga certa na hora certa)

3 - Usar relaxantes musculares judiciosamente

Como avaliar a intensidade da resposta autonômica?

1 - Observar sinais de lacrimejamento, suor e turgor depele, taquicardia e hipertensão, e outros indicativos deresposta autonômica exacerbada (que podem ser par-cialmente bloqueados pelo uso de opióides).

2 - Identificar fatores que alterem a tensão arterial e frequênciade pulso e corrigir (p.ex. anestésicos gerais, opióides, β-bloqueadores, α-agonistas, vasodilatadores e outros).

3 - Normalizar as respostas fisiológicas ao estímulo nocivocom a droga apropriada para o momento anestésicocirúrgico. Estas respostas serão tratadas diferen-ciadamente no pós operatório imediato, segundo a con-veniência farmacológica, como descrito.

Que tipo de resposta motora está acontecendo decorrenteao estímulo nociceptivo? Intencional ou reflexa? Após certificar-mos de que o paciente esteja dormindo farmacologicamente, sóentão administramos o relaxante muscular.

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Que parâmetros usar? Primeiramente certificar-se de que opaciente esteja inconsciente para depois tomar a ação necessária.

O que nos resta? Prevenir para não ter que remediar!As medidas devem ser preventivas, pois as consequências

são drásticas e imprevisíveis. Uma vez que aconteça o infortúniodo acidente de lembrança de atos e fatos per-operatórios, o paci-ente deve ser cuidadosamente abordado, preferencialmente pelomédico que o assistiu, e devidamente orientado.

Os conhecimentos farmacocinéticos e farmacodinâmicos dasdrogas usadas para suprimir a consciência devem ser de domíniodo profissional e a abordagem das reações deve ser correta. Avigilância do médico anestesiologista aliada ao conhecimento dastécnicas e drogas usadas, somados à dedicação e o bom conheci-mento clínico do paciente concorrem para o bom exercício da arte.

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Monitoração da Consciência Per-Operatória 103

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* Prof. Associado em Anestesiologia - Faculdade de Medicina da Universida-de Federal FluminensePhD em Anestesiologia (University of Bristol, UK)MSc em Engenharia Biomédica (COPPE/UFRJ) TSA/SBACo-responsável pelo CET do Hospital Universitário Antonio Pedro - UFF