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1 AFRICANIDADES E ESCOLARIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO: UM OLHAR SOBRE OS MATERIAIS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA Maria Telvira da Conceição Introdução O texto apresenta um breve panorama das questões relativas à História e Cultura Africana e Afrobrasileira nos materiais didáticos de História. A discussão está fundamentada nas exigências legais, na historiografia sobre o negro e no ensino de História no Brasil. Com esse objetivo, tratamos dos seguintes assuntos: o ensino de História no contexto das exigências da Lei 10.639/2003; a revisão historiográfica das africanidades no Brasil como pressuposto para repensar a literatura didática de História e seu uso no ensino básico e, por fim, como se apresentam essas questões nos livros didáticos de História. O ensino de História no contexto das exigências das Diretrizes Étnico-raciais e Lei n. 10.639/2003 A preocupação com as africanidades na educação se deu de forma mais enfática com a aprovação da Lei n. 10.649/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana em vigor a partir de 2004. 1 Para o ensino de História no nível básico, a emergência dessa legislação representou um momento indiscutivelmente propício de problematização desse campo de ensino em relação às questões étnico- raciais. E por qual razão? Porque trata de uma área de conhecimento com enorme complexidade em relação à formação da consciência étnica e da educação da memória 1 A expressão africanidades brasileiras é atualmente utilizada por teóricos e pesquisadores do assunto para referir-se às raízes da cultura brasileira que têm origem africana. Ou seja, ao modo de ser, de viver e de organizar suas lutas próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que, independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia.

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AFRICANIDADES E ESCOLARIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO: UM

OLHAR SOBRE OS MATERIAIS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA

Maria Telvira da Conceição

Introdução

O texto apresenta um breve panorama das questões relativas à História e Cultura

Africana e Afrobrasileira nos materiais didáticos de História. A discussão está

fundamentada nas exigências legais, na historiografia sobre o negro e no ensino de

História no Brasil. Com esse objetivo, tratamos dos seguintes assuntos: o ensino de

História no contexto das exigências da Lei 10.639/2003; a revisão historiográfica das

africanidades no Brasil como pressuposto para repensar a literatura didática de História

e seu uso no ensino básico e, por fim, como se apresentam essas questões nos livros

didáticos de História.

O ensino de História no contexto das exigências das Diretrizes Étnico-raciais e Lei

n. 10.639/2003

A preocupação com as africanidades na educação se deu de forma mais enfática

com a aprovação da Lei n. 10.649/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-

Brasileira e Africana em vigor a partir de 2004. 1

Para o ensino de História no nível

básico, a emergência dessa legislação representou um momento indiscutivelmente

propício de problematização desse campo de ensino em relação às questões étnico-

raciais. E por qual razão? Porque trata de uma área de conhecimento com enorme

complexidade em relação à formação da consciência étnica e da educação da memória

1 A expressão africanidades brasileiras é atualmente utilizada por teóricos e pesquisadores do assunto

para referir-se às raízes da cultura brasileira que têm origem africana. Ou seja, ao modo de ser, de viver e

de organizar suas lutas próprio dos negros brasileiros e, de outro lado, às marcas da cultura africana que,

independentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte do seu dia-a-dia.

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histórica em nosso país, desde sua constituição como disciplina escolar na primeira

metade do século XIX.

Dessa forma, problematizar questões como, por exemplo, a exclusão ou a

simplificação da história e da cultura dos afrobrasileiros no ensino de História e na

literatura didática, o desconhecimento da história e da cultura africanas, a reprodução de

visões e representações estereotipadas, dentre outras, são práticas que encontram

vinculação profunda com a produção historiográfica e com o processo de escolarização

do conhecimento histórico efetivado em sala de aula ao longo de todo esse tempo. Mas

quais foram as principais consequências decorrentes dessa vinculação, em se tratando da

abordagem da história do negro no ensino de História? Uma versão da história e da

cultura do negro no Brasil, que foi marcada por um enfoque eurocêntrico e etnocêntrico;

uma seleção cultural de conteúdos alheios às africanidades de uma forma geral;

programas curriculares que ausentaram esse conhecimento na formulação de suas

propostas; livros didáticos que simplificaram, estereotiparam e excluíram o assunto e,

dessa forma, as possibilidades de sua reflexão no ensino de História, entre outras. Todas

essas questões guardaram estreita relação com a escrita da História do século XIX e

uma parte significativa do século XX.

Não obstante o questionamento às práticas de ensino, aos programas curriculares

e à formação do professor que norteou a revisão do ensino de História no Brasil a partir

do final dos anos de 1970, a aprovação da Lei n. 10.639/2003 e das Diretrizes

Étnicoraciais colocou um conjunto de desafios para a educação e o ensino de História

em especial. Como construir novos parâmetros de concepção, abordagem e práticas

sobre as africanidades em nossas salas de aulas?

Uma leitura atenta da referida legislação nos ajuda a compreender que são mais

numerosos os desafios que temos a enfrentar. Vejamos:

A negação da existência de problemas racistas nas práticas educativas no

processo formal de ensino, amparado no discurso do tratamento igualitário e

universalista da educação;

A prática educativa a serviço da diversidade, o que significa transcender o

cânone da mestiçagem para o da diversidade cultural;

A inclusão da temática nos currículos do ensino básico e superior;

Inclusão de objetivos de combate ao racismo em todos os documentos da escola;

Incentivo a pesquisas escolares sobre história e cultura africana e afrobrasileira;

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A formação de atitudes, posturas e valores que ajudem os cidadãos a valorizar

seu “pertencimento étnico”, num ambiente de diálogo e democrático (DCN,

2004, p. 5-8).

Além desses desafios, que a lei denomina de enfrentamentos, é importante

ressaltar os princípios que justificam as exigências da legislação, a saber: consciência

política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; e ações

educativas de combate ao racismo e a discriminações (DCN, 2004, p. 9-10). Esses

princípios também colocaram para o ensino de História a necessidade de repensar não

somente a inclusão das africanidades, mas, sobretudo, a sua abordagem. E o que isto

implica em relação aos materiais didáticos de história? Qual a importância e o papel

desses materiais para a efetivação, por exemplo, dos princípios norteadores da inclusão

das africanidades no ensino de História?

A edição de livros e materiais didáticos tratando do tema da história e da cultura

afrobrasileira e africana foi considerada, no texto das Diretrizes Étnico-raciais, uma das

estratégias essenciais de sua efetivação (DCN, 2004, p.15), ou seja, uma estratégia para

concretizar a re-educação das relações étnico-raciais na escola. Entretanto, no que se

refere à edição de materiais didáticos de História, além do imperativo da legislação, é

imprescindível incorporar a revisão historiográfica como pressuposto fundamental do

seu papel estratégico, conforme atribuído na atual legislação. Mas, quais são os aspectos

fundamentais dessa revisão da história social do negro?

A revisão historiográfica das africanidades no Brasil: uma ponte necessária para

repensar a literatura didática de História e seu uso no ensino básico

A releitura da historiografia iniciada nos anos 1970 é, sem dúvida, um aspecto

fundamental para problematizar a questão das africanidades na literatura didática de

História, sobretudo no tocante aos equívocos e simplificações verificadas nesses

materiais acerca dessa temática. E, por quê?

Na esteira da retomada da historiografia sob o paradigma da escola dos Annales,

particularmente da 3ª geração, ocorreu uma importante revisão da história social do

negro no Brasil, com foco na escravidão. Vejamos, de forma geral, como se concretizou

esse percurso no Brasil:

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Gráfico 1 – Evolução da história social do negro no Brasil

Como podemos identificar no gráfico 1, as discussões que antecederam a

renovação historiográfica da década de 1970 se iniciaram pela superação do modelo

explicativo do século XIX acerca da história do negro, com a releitura da historiografia

abolicionista. Esta produção, bastante influenciada por Joaquim Nabuco, teve como

foco principal de discussão as questões relacionadas à sobrevivência dos escravos, à

terra e à liberdade (BRITO, MALANDRINO, 2007).

Imagem 1 – Joaquim Nabuco, político abolicionista do século XIX

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No século XX, principalmente nas décadas de 1930 e 1960, essa discussão

estava posta na obra do sociólogo Gilberto Freire que defendeu a tese da “cordialidade”

nas relações sociais entre senhores e escravos. As questões em torno dessa historiografia

foram bastante discutidas pelos trabalhos de autores como Nina Rodrigues, Artur

Ramos, Roger Bastide, Edison Carneiro e Clovis Moura.

Na década de 1960, a revisão da história do negro foi marcada pela Escola

Paulista, respaldada em autores como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso

e Octavio Ianni. O esforço de revisão dos referidos autores pôs em discussão a chamada

“visão endêmica das relações escravistas e a coisificação do escravo”. Entretanto,

conforme chamaram a atenção vários críticos, a revisão empreendida pela Escola

Paulista não levou em conta a dimensão da resistência negra à escravidão, por exemplo.

Imagem 2 – Cativos vendedores de leite

A partir dos anos 1970, no contexto da revisão historiográfica brasileira, a

história social do negro ganhou um conjunto significativo de pesquisas e pesquisadores,

firmando para a temática da história e da cultura afrobrasileira contribuições relevantes,

seja do ponto de vista das questões revisadas, seja das perspectivas analíticas que

nortearam esses trabalhos. Quais os aspectos tratados por essa produção, que se

caracteriza como inovadora em relação aos estudos anteriores?

Essas pesquisas levaram em conta:

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O estudo do cotidiano dos escravos na sociedade colonial e a superação de

uma visão bipolarizada na interpretação da experiência dos africanos e

afrobrasileiros nesse período histórico;

Uma crítica à história social da escravidão;

A problematização do etnocentrismo e eurocentrismo no enfoque da História

do Brasil do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/IHGB, sobretudo no

que respeita as percepções sobre a formação étnica e a problemática da

identidade nacional;

O questionamento aos esterótipos legado por uma boa parte da historiografia

clássica que simbolizou e descreveu o negro e sua experiência histórica

(MOURA, 1990);

O enfrentamento teórico da questão da cultura e da identidade nacional, e

A problematização da idéia de um Brasil mestiço.

Imagem 3 – Mães escravas levando seus filhos para serem batizados

A partir da década de 1980 em diante, verifica-se uma ampliação das questões

revisadas nos anos 1970, com base em estudos de historiadores como, por exemplo,

Luiz Felipe Alencastro, Leila Mezan, Hebe Maria Mattos, Sidney Chalhoub, Kátia

Mattoso, Lilia Moritz Schwarcz. Considerando o negro como um agente ativo na

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sociedade escravista e pondo em questão a rigidez da ordem escravista e a vitimização

de um escravo passivo, entre outros aspectos, que marcaram a análise historiográfica

anterior, esses estudos trouxeram importantes contribuições para uma nova abordagem

sobre o tema da escravidão e da abolição no Brasil. Vejamos: um estudo minucioso do

cotidiano dos escravos, a superação de questões como, por exemplo, a negação da

constituição familiar dos escravos; a tese da marginalização e do isolamento dos

quilombos; uma explicação do tráfico sem a perspectiva da reprodução estrutural dessa

experiência nos dois continentes, ou seja, um tráfico afrobrasileiro e não apenas

atlântico; o uso da lei pelos escravos para exigir seus direitos no contexto da sociedade

escravista e a negação do papel político dos escravos nessa sociedade. Essas foram

algumas das questões que marcaram a revisão da história social do negro no Brasil no

âmbito das pesquisas desenvolvidas no campo da História.

Saindo do âmbito da historiografia brasileira, é importante assinalar que essa

preocupação com a revisão da história eurocêntrica e etnocêntrica também foi tema de

estudos e debates entre os historiadores africanos. Assim, a partir dos anos 1960, os

historiadores africanos, conforme explica Leila Hernandez (2005), iniciaram um

importante processo de revisão que teve como conseqüências, dentre outras: o

questionamento aos postulados ocidentais e, sobretudo europeus, que construíram uma

interpretação estereotipada sobre a história africana; a desconstrução de mitos racistas

como, por exemplo: o isolamento da África; a afirmação que a natureza do continente é

bruta e virgem, o que forneceu, na opinião da historiadora, mais uma justificativa para a

invasão europeia ao continente; o desconhecimento do papel da oralidade na África; a

ideologia da tribalização africana; e a falsa idéia de que a África constitui uma unidade,

ignorando sua diversidade.

Todos esses elementos precisam e devem nortear a revisão necessária da

literatura didática de História para o ensino básico. Tal releitura deve tomar como base

as questões relativas à interpretação, à incorporação e à atualização da historiografia

sobre essa temática, mediada por um diálogo convergente entre a historiografia e o

ensino de História, em particular com a escrita didática. Mas como se configura essa

problemática nos livros didáticos de História? Quais as questões sobre a História e a

cultura africana e abrobrasileira que devem ser atualizadas nesses materiais, com vistas

a um ensino de História que dialogue com uma história social do negro pensada sob

outros parâmetros de análise?

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A problemática das africanidades nos livros didáticos de História: elementos e

questionamentos para rever nossas práticas em sala de aula

A preocupação com o combate ao racismo nos materiais didáticos esteve sempre

presente nas discussões, reivindicações e atuação do movimento negro brasileiro. No

atual contexto, ela foi retomada pela legislação que orienta a inclusão das africanidades

no ensino nacional. O tema, portanto, constitui uma das primeiras questões analisadas

na produção didática. Na década de 1950 surgiram os primeiros trabalhos do gênero,

como o estudo pioneiro de Dante Moreira Leite, em 1950, intitulado, Preconceito racial

e patriotismo em seis livros didáticos primários brasileiros. A partir daí, seguiram

outros trabalhos como, por exemplo, o de Bazzanell e Holanda. Na década de 1980 e

1990 outros estudos também trataram do tema. Mas o que esses estudos apontaram

sobre o racismo nos livros didáticos? Vejamos esse ponto de acordo com o estudo de

Negrão (1988), citado por Fulvia Rosemberg (2003):

Foram detectados nesses materiais vários tipos de racismos e estereótipos nos

conteúdos, nas imagens e na abordagem. Por exemplo: a supervalorização na

representação de personagens brancos, em detrimento de uma quase ausência de

personagens afrobrasileiros. Eles apareciam em posições sempre subalternas e,

desvinculados de laços familiares. Também observaram esses estudos que os livros

raramente traziam representações positivas sobre as crianças negras. Havia uma

ausência do negro como sujeito na narrativa da história. Além desses aspectos,

verificaram ainda os referidos estudos outros indicativos da representação estereotipada

sobre o negro, quais sejam: exclusão de conteúdos sobre a cultura afrobrasileira e

africana; predominância de uma perspectiva eurocêntrica da História; transcrições de

crônicas nos livros que colaboravam com introjeção de preconceitos nos próprios

negros; ênfase na representação do negro sempre como escravo.

Na década de 2000, novos estudos sobre as africanidades e os materiais didáticos

de história apontaram para conclusões comuns aos estudos anteriores, destacando a

permanência da desvalorização do negro e a valorização do branco, (veja-se OLIVA,

2003, 2007; BUOLOS JUNIOR, 2004; CASTELO BRANCO, 2005; PINA, 2009).

Verifica-se, contudo, uma diversificação das questões problematizadas e dos focos de

abordagem.

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Com base na produção recente sobre a temática, em particular nos trabalhos

acima mencionados, como se apresenta a problemática da história e da cultura

afrobrasileira e africana nos materiais no livro didático de História? Quais os equívocos

decorrentes de uma determinada interpretação historiográfica ainda presente nos

conteúdos de História e nos materiais didáticos utilizados em nossas salas de aula?

Com relação à história e à cultura afrobrasileiras, o primeiro aspecto

problemático diz respeito à interpretação sobre a escravidão, que tem sido tratada

como decorrente dos interesses mercantis ou como um fato necessário e não como

resultado do processo de articulação da economia colonial com o comércio

internacional. Essa abordagem reducionista sustenta, portanto, o argumento da

inabilidade do índio para o trabalho escravo e a vinda do africano para prover a falta de

mão de obra indígena.

Outro aspecto bastante problemático diz respeito à narrativa da abolição por

meio do ritmo das leis abolicionistas do século XIX e da ação dos abolicionistas, sem o

protagonismo dos escravos e sem a crítica ao processo de integração social dos

afrobrasileiros no pós-abolição. A história oficial do abolicionismo abordada nos livros

didáticos de História, portanto, ignora o protagonismo negro e, dessa forma, o direito à

história e à memória relativos a essa experiência histórica.

A interpretação da cultura de origem africana no Brasil constituí mais um dos

problemas a serem revisados nos livros didáticos de História, sobretudo porque sua

abordagem costuma ser trabalhada unicamente como contribuição e não como

resistência desses povos na longa experiência brasileira, resultado de um processo de

reposição, de reinterpretação (SODRÉ, 1983).

Os cortes cronológicos da história do negro. Tais cortes são invariavelmente

restritos a fatos específicos do século XIX e quase sem referência ao século XX. O

silêncio ou a inexpressividade sobre os movimentos de organização social dos

afrodescendentes no século XX é um dos exemplos de cortes cronológicos na

abordagem da história do negro nos livros didáticos de História. As lutas empreendidas

pela afirmação da identidade por parte do movimento negro e construídas ao longo do

século XIX, a exemplo das irmandades e dos quilombos e das organizações do século

XX, ficam completamente desconsideradas na abordagem da história do negro no

Brasil.

Além da história e da cultura afrobrasileiras, os livros didáticos de História

apresentam um conjunto de questões em relação à seleção e à abordagem da História da

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África, conforme mostram estudos como o de Anderson Ribeiro Oliva (2003, 2007),

Alfredo Buolos (2005) etc. Mas como se configura tal problemática nos livros didáticos

de História? De uma forma panorâmica, o que esses estudos apontam como questões a

serem revisadas na literatura didática de História? Vejamos:

Uma interpretação simplificada que associa o africano ao escravo, inclusive

mediada por uma relação imagética (OLIVA, 2003); anacronismos nas

referências explicativas sobre o contexto histórico da escravidão africana. Este

aspecto, segundo Oliva (2003), levou à efetivação de uma série de imprecisões e

equívocos sobre a História da África nos livros didáticos. Além deste aspecto, a

eleição de padrões europeus como critérios para justificar o estudo da África na

proposta didática tem sido recorrente nos livros didáticos de História;

A imprecisão no uso de conceitos como nação e civilização para se referir às

etnias africanas, sem a devida contextualização, constitui mais uma questão

presente nos livros didáticos de História, assim como os equívocos quanto à

abordagem das cosmologias africanas e suas bases constituintes quando esses

livros tratam do pensamento tradicional africano. Em consequência, o tema das

práticas religiosas de matriz africana no Brasil, quando objeto de conteúdo

nesses materiais, tem sido tratado de forma simplificada ou mesmo

estereotipada.

A singularidade do recorte historiográfico sobre a África. Verifica-se uma

seleção de conteúdos que explicam a História da África associada a um passado

mítico e remoto, desconsiderando a sua história contemporânea. Além disso,

estudos constataram uma exaustiva predominância de imagens de viajantes

europeus do século XIX, que não atendem a uma contextualização coerente para

ser compreendida pelos alunos do século XXI. Dessa forma, há uma

predominância de imagens pitorescas que reforçam uma visão negativa do

africano.

Como na História, a abordagem dos aspectos culturais sem atenção às

especificidades culturais dos africanos é mais uma questão que caracteriza a abordagem

da temática nos materiais didáticos de História. Como observa Elio Flores (2007):

[A] África surgiu na estrutura curricular da história ensinada num

recorte historiográfico nada singular: os portugueses circunavegam o

continente etíope em busca do Oriente. Mas os africanos vendem

escravos e os portugueses viajam para comprá-los. O mundo atlântico

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faz o resto: capitalismo, escravidão, tráfico de gente (FLORES, 2007,

p. 68).

Além das questões assinaladas, esses estudos ainda verificaram como problemas

nos materiais de História: a África tratada como uma unidade e não como uma

diversidade, com foco na força de trabalho para caracterizar a sociedade colonial. A

abordagem da sua história começa apenas a partir do início do tráfico atlântico; a

simplificação na identificação dos grupos étnicos, cujo resultado leva ao que Oliva

(2003) denomina de “silêncio, imprecisões e representações eurocêntricas nos materiais

didáticos” de história que fazemos uso em nossas salas de aula. Por essas razões,

entendemos que tão importante quanto a história e a cultura afrobrasileiras é a história

africana como objeto de revisão nos livros didáticos de História. E, nesse sentido,

concordamos com o historiador Elio Flores (2003), que sem a historicidade da África e

dos afrobrasileiros, as temporalidades do Brasil ficam incompletas e inteligíveis.

Considerações finais

Como vimos no breve panorama apresentado nesse texto, as questões sobre a

história e a cultura africana e afrobrasileira nos materiais didáticos constitui uma das

temáticas mais importantes como objeto de revisão no ensino de História, no contexto

dos desafios postos pela Lei n. 10.639/2003 e pela revisão historiográfica da história

social do negro no Brasil. E, nessa tarefa, cabe aos professores de História papel

fundamental, tanto na discussão quanto na efetivação dessa revisão. É o professor o

principal agente e, portanto, o principal sujeito na busca de novos parâmetros para

problematizar e redimensionar as concepções e os usos dos materiais didáticos em

relação à abordagem das africanidades no ensino de História atual.

Sugestões de leitura

Sítios da internet

DOMÍNIO PÚBLICO, disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>.

FUTURA, disponível em: <www.futura.org.br>.

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, disponível em: <portal.mec.gov.br/index>.

FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, disponível em:

<http://www.palmares.gov.br>;

SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE (SCIELO), disponível em:

<http://www.scielo.br>.

Obras

BOULOS JUNIOR, Alfredo. Imagens da África, dos africanos e seus descendentes em

coleções de didáticos de história aprovados no PNLD de 2004. 2008. Tese (Doutorado

em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação, Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível em:

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=114609>. Acesso em: 18 jul. 2010.

MATOS, Hebe. O herói negro no ensino de história do Brasil: representações e usos das

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Martha Abreu; SOIHER Rachel; TEIXEIRA, Rebeca (Org.). Cultura Política,

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OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares. Representações e

imprecisões na literatura didática. In: Estudos afro-asiático, v.25, n.3, p.421-461, 2003.

Disponível em: <www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a03v25n3.pdf>. Acesso em: 23 jul.

2010.

PINA, Maria Cristina Dantas. A escravidão no livro didático de história: três autores

exemplares (1890-1930). 2009. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-

Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009.

Disponível em: <libdigi.unicamp.br/document/?code=000447099>. Acesso em: 12 jul.

2010.

ROSEMBERG, Fúlvia; BAZILLI, Chirley; SILVA, Paulo Vinícius Baptista da.

Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. In:

Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.29, n.1, p. 125-146, jan./jun. 2003.

Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151797022003000

100010&lng=en&nrm=isso>. Acesso em: 15 jul. 2010.

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