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CAPÍTULO4

EPISTEMOLOGIADAEPIDEMIOLOGIA

(CategoriasdeDeterminação:Causalidade,Predição,Contingência,Sobredeterminação)

DeniseCoutinho

NaomardeAlmeidaFilho

LuisDavidCastiel

Ostermoscausalidadeeassociaçãosãoextremamentecarosaopensamentocientífico,emgeral,eaoraciocínio epidemiológico, em particular. No caso específico da pesquisa sobre fenômenos da saúde‐doença‐cuidado, diante da afirmação etiológica estável e demonstrada de que x causa y, não restadúvidaquantoàpossibilidadedeintervençãonumadadarealidadenosentidodepreveniralgumeventoouretificaralgumasituaçãoindesejável.

Um exemplo trivial: colocar obstáculos de proteção em terraços, abismos, pontes e outros locaiselevadosparaevitarquepessoasseaproximemepossamcairéumainiciativaóbviadiantedaameaçaàvidaoferecidapelasquedasdegrandealtura.Damesmaforma,ninguémduvidaquealtastemperaturasoufrio intensorepresentamriscoàsaúde/vidahumana. Istodefine indiscutíveismedidasdeproteçãonoseuuso.Ouseja,noâmbitodaprevençãoemsaúde,nomomentoemqueseestabeleceumarelaçãode causa e efeito de caráter direto, tal relação articula duas dimensões: a definição de algo comoperigosoeasmedidasdeproteção/prevençãoatalperigo.

Noentanto,podemosafirmar,aindaquedemodoesquemático,queomundonãoseregeapenasporestamodalidadederelaçõesentreeventos.Porexemplo,váriosfenômenoscomcaracterísticas,pesos,potencialidadesdiferentes,masquetêmacapacidadedeatuarconjuntamente,nãoobrigatoriamentepara provocar desfechos indesejáveis, dependem inclusive de contingências comodeterminantes dosseusefeitos.Mais:osseresbiológicos–mesmodentrodaprópriaespécie–podemtervariaçõesquelhes conferemcapacidadesdiferentesde reação/resposta adeterminados fenômenosqueos afetam.Mais ainda: por vezes, é difícil separar quais são os efeitos dos contextos culturais em relação àsdimensões físicas e biológicas de indivíduos e populações. Portanto, na atual fase de maturação docampoepidemiológico,asformasdeapresentaçãodosnexos(deassociação,causais,preditivos)entreprocessoseeventosrelativosàsaúde‐doençanasociedademodernanecessitamumreexamecríticodassuas bases lógicas e históricas à luz de recentes transformações epistemológicas nas ciênciascontemporâneas.

Nessascircunstâncias,asexplicaçõessobrerelaçõesentrefenômenospodemdeixaroterrenofirmedacausalidade e adentrar em domínios mais incertos. Aqui, os instrumentos de construção doconhecimento permitem adotar diferentes perspectivas para lidar com a incerteza. A noção deprobabilidade é um dispositivo heurístico desenvolvido com esta finalidade. De um modo geral, asafirmações baseadas em probabilidades são dependentes de contingências eventualmente fora docontroledosobservadoresemseusintentosdeespecificarcausaseefeitos.Assim,asintenções,açõeseintervençõesnosentidodaprevençãodedoençaseprecaução,proteçãoepromoçãodasaúdepassamadependercadavezmaisdedefiniçõescomdosescrescentesdeincerteza.

EsteCapítulotemcomoobjetivoavaliarbaseseprincípiosepistemológicosqueaEpidemiologiautilizaparaa construçãodemodelos teóricosde saúde‐enfermidade‐cuidadoque,por suavez,organizamoconhecimentoproduzidoecontribuemparaorientarpráticasetécnicasdepesquisaedeintervençãonocampodaSaúde.Naprimeiraseção,discutimosoconjuntoarticuladodecategoriasfilosóficas,oupré‐teóricas, que constituem as bases epistemológicas da Epidemiologia, especificamente no que dizrespeitoàdeterminaçãodosfenômenoseprocessosepidemiológicos.Emseguida,argumentamosque,para produzir o conhecimento necessário para justificar e orientar ações de promoção da saúde, aEpidemiologiaprecisa repensarseusvínculoscomomodeloclássicodaprevençãoesuadependênciadascategoriasdecausalidade,prediçãoedeterminação.NasseçõescentraisdesteCapítulo,asdiversas

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formasdeaplicaçãode tais categorias, eixosbasilaresdo raciocínioepidemiológico convencional, sãoavaliadasemseusaspectoslógico‐formais.

Finalmente, as categorias de contingência e sobredeterminação (este último um conceito de Freudrecentementeretomadopelasepistemologiasnão‐cartesianas)ausentesdodebateepistemológiconocampo da Saúde, são propostas como estruturantes de novas modalidades de compreensão dodeterminismo epidemiológico. Tal iniciativa resgata uma investigação de Castiel (1988) que detectouforteanalogiaentreashipótesescausaisdeFreudsobreahisteriaeasconcepçõesempiricistasdeJohnStuart Mill que, um século mais tarde, contribuíram para problematizar a causalidade no raciocínioepidemiológico. Naquela oportunidade, mesmo sem ter aprofundado tal sugestão nem dela terderivadopropostasdeaplicaçãoteórica,oautorsugeriuenpassantumacorrelaçãoentreascategoriasdesobredeterminaçãonaPsicanáliseedecausalidadenaEpidemiologia.

FUNDAMENTOSLÓGICOSDODETERMINISMO

Numa perspectiva histórica da lógica, será interessante examinar três momentos fundantes dodeterminismoepidemiológico.Oprimeiro,definidordocausalismoemgeral,vincula‐seàformalizaçãodalógicaindutiva,atribuídaaPlatãoesistematizadaporAristóteles,comoproduçãodeconhecimentoemobjetosdashojechamadasciênciasnaturaisequeprocedemdoparticularparaouniversal,apartirderepetiçõesoutentativasdereproduçãodeeventosemsuaregularidade.Osegundomomento,localizado em uma fase precoce de emergência da modernidade, terá sido a invenção pascalina doacaso enquanto categoria epistemológica, viabilizada pelo conceito de probabilidade (ELSTER, 1984,HACKING,1990).Oterceiromomentopodeseridentificadoentreosanos1920e1950,noprocessodeevoluçãodaciênciaetécnicaepidemiológicastalcomodescritoporSusser(1987)eAyres(1997),queresultounaconstruçãodanoçãoderiscocomoconceitofundamentaldaciênciaepidemiológica,objetodoCapítuloseguintedestevolume.

Aristóteles

Comotodasasciênciasmodernas,aEpidemiologia temcomofundamentoepistemológicoa linhagemaristotélico‐cartesiana estruturante da racionalidade científico‐tecnológica. De fato, os conceitos decausa, predição e risco sustentam‐se, em suas derivações epidemiológicas, como aplicação da lógicaindutiva e da lógica dedutiva respectivamente a problemas particulares e a problemas gerais dedeterminaçãodefenômenosdesaúde‐doença.

Basedalógicaformal,opensamentoaristotélicopodesersistematizadoapartirdequatroteorias:

(1)teoriadoReal;

(2)teoriadoSer;

(3)teoriadosEventos;

(4)teoriadasCausas.

A consistência geral do sistema filosófico aristotélico impede tratar cada uma dessas teorias comocomponentesisolados,requerendoumaarticulaçãoentreosseusprincípios,categoriaseproposições.

AteoriaaristotélicadoRealrepousasobreduascategoriasprincipais:UniversaleParticular.Aristótelesdivideasproposiçõesemafirmativaoucatáfase(“oquedeclaraalgoacercadeoutro”)enegativaouapófase(“declaraçãodequealgoestáseparadodeoutro”).Estasformulaçõessãoimportantesporquepermitem precisar as categorias de Universal e Particular em termos que interessam aosdesdobramentos da lógica proposicional. Nas proposições particulares (algum, ao menos um), háexemplosdeopostosquepodemsersimultaneamenteverdadeiros:‘algumhomemébranco’e‘algumhomem não é branco’, porque: “das proposições que, referentes ao universal, não são enunciadasuniversalmente,nuncasepodedizerqueumaéverdadeiraeoutrafalsa.”(ARISTÓTELES,1985,p.131).Mesmo para proposições unas e singulares, Aristóteles adverte: caso um nome tenha mais de umsignificado (seja complexo, segundoele), e caso seja referidoaduas coisas, então, tanto a afirmaçãoquanto a negação deixam de ser unas. Em conseqüência, duas proposições contraditórias não sãonecessariamenteverdadeira,uma,efalsa,outra.

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AteoriaaristotélicadoSercompõe‐sedetrêsproposiçõessobreaexistênciadosentesnalinguagemenomundoque,posteriormente,foramreunidascomoprincípiosdalógicaformal:

1. princípiodaidentidade(oSeréigualasipróprio:A=A);

2. princípiodanão‐contradição(oSerédiferentedoquenãoéele:A#¬A);

3. princípiodoterceiroexcluído(oSeréounãoé;verdadeirooufalso:AéVouF;Anuncapodeser,aomesmotempo,VeF).

HáquatroproposiçõesquearticulamateoriadoSercomateoriaaristotélicadoReal:

(1)Universalafirmativa:todoSéP(A);

(2)Universalnegativa:nenhumSéP(E);

(3)Particularafirmativa:algumSéP(I);

(4)Particularnegativa:algumSnãoéP(O).

Aqui,AeEnãopodemserverdadeirasconjuntamente,emboraambaspossamserproposiçõesfalsas.Poroutrolado,IeOpodemserambasverdadeiras,masnuncaambasfalsas.SegundoAristóteles,nãosepodepredicardosujeito,“deummodogeral”,comouniversal,aquiloqueemsuanaturezaéúnico.Umasubstânciatemcomocaracterística,nalógicaaristotélica,admitirqualidadescontrárias“medianteuma alteração em si mesma”. Assim, uma proposição referente a uma substância pode receber “oscontrários”epermaneceramesma.Aristótelesdistingueentãoquatromodosdeoposição:oposiçãoderelativosoucorrelativos,porexemplo,dobro/metade;oposiçãodecontrários,ex:mal/bem;oposiçãoprivação‐possessão:cegueira/visão;edaafirmaçãoànegação:estarsentado/nãoestarsentado.

A teoria aristotélica dos Eventos baseia‐se na proposição de quatro categorias articuladas empolaridades,queposteriormentevieramaserconhecidascomoosmodaisdeAristóteles:

Possível/Impossível;

Necessário/Contingente.

Segundoatradiçãofilosófica,asmodalidadespodemserentendidasconformeoseguinteesquema:

possibilidade:“ÉpossívelqueSsejaP”;

impossibilidade:“ÉimpossívelqueSsejaP”;

contingência:“ÉcontingentequeSsejaP”;

necessidade:“ÉnecessárioqueSsejaP”.

Aproposiçãonecessáriaésempreverdadeira,emqualquercircunstância;apossívelpodeserverdadeiraou falsa;a impossívelésempre falsa.Àcontingência,Aristótelesnãoatribuirávalores,oumelhor,elesustenta que há proposições para as quais se pode atribuir valor de verdadeiro e falso ao mesmosujeito. Trata‐se da categoria dos acidentes.Ao acolher o acidental― contingente― comoumadasmodalidades do ser, Aristóteles avança uma lógica quaternária que inclui proposições indecidíveisquantoaosvaloresverdadeiroefalso(Coutinho,2004).

Finalmente,ateoriadasCausas,queintroduziuumatipologiabastanteconhecidanocampopedagógicodametodologiadapesquisacientífica:

1. Causamaterial;osubstratoconcretodacoisa.

2. Causafinal;oobjetivodacoisa.

3. Causaformal;acoisa,comoprincípioedeterminação.

4. Causaeficiente;oelementoprodutor(fator)dacoisa.

Traduzida e cultuada pela filosofia árabe, absorvida pela filosofia escolástica da alta IdadeMédia, agrandesíntesearistotélicaconstituiaprincipalraizlógicadopensamentocientíficoqueemergiuapósoRenascimento. A base filosófica dos discursos naturalistas sobre a ciência elaborados pelos pioneirospesquisadores e pensadores foi sintetizada na obra cartesiana, marco da abordagem epistemológicaqueviriaadominararacionalidadecientífico‐tecnológicadaModernidade.

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Descartes

Em“ODiscursodoMétodo”,publicadoem1637,RenéDescartes(1596‐1650)apresentaumaespéciedeguia oumanual para que qualquer pessoa possa ascender ao conhecimento racional. Ométododitocientíficocompreendeumamaneiradeaciênciasuperaroestatutodesaberexclusivodealquimistas,sábioseeruditos.Apossibilidadedeoconhecimentodeixardepertencersomenteainiciados,àquelesque participam da elite da produção de saberes socialmente legitimados, é um passo importante nahistóriadahumanidade.Dealguma forma,a ciência cartesiana–a ciência,demodogeral– implicouumademocratizaçãodosaber.

Aanalíticacartesianaébastanteconhecida.Compõe‐sedequatroregras:Aprimeiraregraconsisteemaceitarcomoverdadeirosomenteoqueseconhecedemodoevidente,querdizer,excluindoqualquerdúvida. A segunda: cada problema pode ser solucionado separando‐o em tantas partes quantas sejapossível ser dividido. Identificar, isolar e descrever essas partes significa conhecer o problema (nósfazemosissonamaneiradeanalisar,queetimologicamentequerdizerdividir).Aterceiraregra:conduziros pensamentos em ordem, começando pelosmais simples e fáceis de conhecer, a fim de ascenderpouco a pouco até os conhecimentos mais compostos. Descartes não usou a expressão “maiscomplexos”,mas no pensamento cartesianismo encontra‐se implícita a idéia de que a complexidadeseria apenas a ascensão da simplicidade a partir de somatórias de componentes simples. E a quartaregra,aregradametodologia:fazersempreinventáriostãocompletoseexaustivosquesefiquecertodenadateromitido,paraquequalqueroutropossarepetiroprocessodeproduçãodoconhecimento.1

As implicaçõesepistemológicasdo cartesianismo tambémsãobastante conhecidaspor todosnós. Eisumapequenalista:

Objetividade

Neutralidade

Causalidade

Linearidade

Simplicidade

Disciplinaridade

O projeto de organizar a prática da ciência de modo rigorosamente natural, impessoal e objetivoresultounoprincípioepistemológicodaobjetividade.Trata‐sedaidéiadequeacoisaaserconhecidaencontra‐se tãodistanciadadenósquepodetornar‐seumobjetomanipulável.Emais,que issopodeser feito de um modo neutro, por sujeitos desinteressados e inspirados na busca do conhecimentoverdadeiropelaneutralidadeaxiológicadaciência.

A causalidade é outra implicação epistemológica do cartesianismo, uma tomada de posição clara noprojetodaciênciacomoumabuscadecausas.Eondeéqueseencontraoprincípiocausalnasregrasdométodo? Na valorização da evidência. Descartes não trabalha diretamente com o conceito deexperimento,oudeexperimentação,masemsuaepistemologiajáseencontraimplícitoovalorsuperiordaproduçãoexperimentaldaevidênciaemrelaçãoaoutras formasdeaquisiçãodoconhecimento.Aevidência cartesiana não é só evidência de ocorrência, mas constitui evidência de origem ou, maisrigorosamente,dedeterminação.

A linearidade, idéiaquealgunschamamdereducionismo,dequeosproblemasdevemserentendidosdo simples ao complexo, sempre num processo de ascensão. Falaremos mais sobre esse princípioadiante,quandotratarmosdanão‐linearidade.

A simplicidade, o famoso princípio da parcimônia. Explica‐se algo quando se consegue expressar, domodo mais simples possível, a lógica ou as regras de constituição daquela questão. E isso ocorre

1 Sobre a última regra, gostaríamos de acrescentar um comentário. A ética científica resultante da quarta regrasempre postulou a transparência metodológica: apresentar os procedimentos em um grau de detalhe tal quequalquersujeitopudesserepetirouconfirmaroresultado.Hoje,aéticacartesianaencontra‐seemtotalconfrontocomasleisdepropriedadeintelectual,queescondemdetodasasmaneiras,comosegredoindustrial,osmodosdeencontrarosresultadoscientíficosetecnológicosquetêmpotencialvaloreconômico.

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preferencialmente na linguagem matemática, que o cartesianismo considera como a linguagemuniversaldaciência.Paraaanálisededadoscientíficos,Descartesteveque inventarumamatemáticaquenãoexistianoseutempo.Foiprecursordamodernateoriadasfunçõesetraduziuageometriaemlinguagemalgébrica;alémdisso, inventouocalculodiferenciale integraleosistema,queganhouseunome,decoordenadascartesianas.

A ciência herdada de Descartes traz sempre a intenção de buscar uma equação que resolva (ousintetize) o problema. Como a célebre equação E =mc2 de Einstein, omais famoso dos cartesianos.Claroquepareceumdelírioacharqueestátudoexplicadocomessaúnicaequação.A“balamágica”daepistemologia cartesianaé, emgrandemedida,oprincípiodaparcimônia. Tantoquealguns livrosdefilosofia da ciência apresentam quase como um axioma: “entre duas explicações para um mesmofenômeno, amais simples é amais verdadeira”. Issoéum resquíciodessa implicaçãoepistemológicacartesiana.

Aprincipalconseqüênciainstitucionaldocartesianismoéadisciplinaridade.Noreferencialcartesiano,conhecer é fragmentar, acumular e depois somar elementos, cada vez mais profusos e numerosos.Portanto,seafragmentaçãotemessapossibilidadeinfinita,entãonãoépossívelaumúnicointelectoocontroledoconhecimento.Naciênciamoderna,nãomaiscaberiaumLeonardoDaVinci,ohomemmaissábio do seu tempo, porque o conhecimento é crescente e cumulativo, excedendo a capacidadehumanadearmazená‐loeprocessá‐lo.Porissofoinecessárioterritorializaroconhecimento.Adefiniçãodaespecialidade,seuconteúdoesuasfronteiras:eisainvençãodadisciplinanaciência.

Otermodisciplinatemmuitoavercomordem,tantoqueseusafalarsobrealguémmuitoorganizado:“fulano é disciplinado”. Há uma semântica bélica envolvida na questão, a disciplina militar, masdisciplina temorigemacadêmicapois o termo vemdediscípulo. A territorialidadedo saber era dadapelomestreeseusdiscípulos,demaneiraque,senaEuropadoséculo16alguémquisessesaberalgumacoisasobrevácuo,sóhaviaumsujeitoqueentendiadevácuoeumlugarondeesseconhecimentoerageradoeensinado.Depois,essaformapersistiucomopadrãoouparadigmadeorganizaçãodaciência–eatéhojeaciênciaseestruturadessamaneira.

Pascal

Descartesfoicontemporâneodeumsábioqueatuoumaisoumenosnamesmafaixadeconstruçãodeinteresses, com um projeto semelhante de harmonizar ciência e religião: Blaise Pascal. AmbospretendiamaliaraVerdadecientíficaàVerdadecristã.Adiferençaéque,enquantoDescartesrespondiaaosanseiosorganizadoresdomundoracionalnaproto‐modernidade,Pascalapostavanumacosmologiacujanaturezacomportassevazioeacaso(CHAUI,1999).

Pascal(1623‐1662)temumahistóriafascinante,poisfoiumsujeitoqueteveduasvidas.Aparteinicialdesuaexistênciafoidecompletadissolução,farraseduelos,umavidasemcompromissos.Derepente,teve uma revelação catártica religiosa: sua missão era encontrar Deus na ciência. Criança prodígio,sujeitoextremamenteinteligente,aoseengajarnabuscadarazãodivina,criouumaepistemologianãoregistrada emescritos sistemáticos, pois escrevia empequenos pedaços de papel e os ia guardando.Quando morreu, encontraram em sua casa milhares de papeizinhos com observações que, entãocompiladas,constituíramseusPensamentos.

Omodo compilado comque suaobra foi construídadámargema interpretações contraditórias,masalgumasdassuasidéiassãofascinantes.Umadelaséessa:umarazãogeométricaimpedequetenhamosacessoàfinalidadedomundoeissoimplicaofracassodequalquerumteracessoaDeus.Eletambémdiz que a geometria, apesar de prover uma razão para impedir o conhecimento pleno, não propiciaconhecimentodoprincípioedo fimdas coisas. E as razõesnão seriamdivinas,mas constituídaspelaexperiência humana, pela possibilidade divina e pela probabilidade dos eventos naturais. A visãopascalina do conhecimento do mundo e das ações humanas é não‐totalizante: “Não tireis de vossoaprendizado a conclusão de que sabeis tudo, mas sim a de que vos resta infinitamente a saber”(PASCAL,1999,p.91).

Em suas meditações, Pascal propõe uma polêmica dicotomia, dividindo os homens em geômetras esutis.Nãovalorizavanemumnemoutro,dizendoquesemosgeômetrasnãosetemapossibilidadedesaberquemsãooshomenssutis.Pascalésempreatormentadoequersairdasdicotomias;paraisso,otempo inteiro conjugaopostos.Então,paraele, as verdades sãomúltiplas, fragmentadas,paradoxais;usaosparadoxos,diz“ohomemécréduloeincrédulo”,“possuimisériaegrandeza”.

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Vale a pena ressaltar alguns pontos da filosofia de Pascal que podem contribuir para pensarmetodologicamenteonosso tema:aNaturezanãoobedecea leisuniversaisenecessárias, sendoumprocessosujeitoavariaçõese submetidoa flutuações;oconhecimentoéumsaberquenãoéseguronemneutro,tampoucoindependentedeseuobjeto,masconstitui‐secomoincompletoesubmetidoàsprópriascondiçõesdeenunciação.FoipensandodestamaneiraquePascalformuloumatematicamenteoconceitodeprobabilidademedianteumsistema lógico‐simbólicopreciso.ComoDescartes, tevequeinventar umamatemática própria para suas explorações teóricas e filosóficas, que não existia nessetempo. Foi assim que Pascal inventou o cálculo do acaso, raiz da análise não‐linear e da teoria dasprobabilidades,substratodoconceitoepidemiológicoderisco.

Masomaisfascinantenoseupensamentoéoconceitoderealidadetrabalhada.NãocomoPlatão,quepensava numa representação de algo existente, essencial; também não uma descoberta do mundo,como em Descartes; mas um processo de construção, como ele escreveu, “quase manual” do real.Assim, o conhecimento adquirido é singular, como devem ser os métodos, não havendo, portanto,instrumentosneutrosnemobjetosdescoladosdos sujeitosqueoproduzem.Senãohádecifraçãodomundo,fazerciêncianãosignificaleralgoexistente.ParaPascal,ciênciaéoesforçodepreenchimentodosvazios,oconhecimentoimpossíveldosvazios.Talformulaçãoédeextremamodernidade,umdosaxiomas damodernamatemática da indecidibilidade.Nessa perspectiva, Pascal recupera e valoriza acontingência aristotélica e a propõe como método. Para ele, o objeto do conhecimento não temessência,anaturezanãoobedecea leisuniversais,ésempreflutuaçãoemovimento,oconhecimentonãoéseguro,nãoéneutro.Portudoisso,osaberécontingente(COUTINHO,2004).

AriquezadopensamentodePascal foiredescobertamuitodepoisdesuamortee,sobretudo,porterescritomagistralmentenalínguafrancesaqueentãonascia.Descartes,seugranderivalemvida,queosuplantariainstitucionalmente,posouduranteséculoscomoograndesistematizadordaepistemologiada ciência moderna. Pascal era caótico, assistemático, atormentado e também tendencialmentetransgressor, enquantoDescartes era totalmente centrado,organizado, sistemático, assimiladoe, portudoisso,comenormecapacidadedeinfluenciarodiscursodoseutempo.Talvezsejaumaironiaqueambos convergiam na intenção de articular ciência e fé. Pascal praticamente desistiu da empreitadareligiosa, pois, em seu leito demorte, teve uma tremenda crise de ceticismo. JáDescartes, o grandecético,pertodamortereafirmaaexistênciadeDeusnaracionalidadee,talvezporisso,seupensamentotenhasemantidohegemônicoatéoséculo20.

CAUSALIDADE

Não obstante a consagração do uso, causalismo não é omesmo que causalidade. Causalismo é umadoutrina, um modo de pensar a causa (BUNGE, 1969). O mesmo pode ser dito da diferença entreracionalismo e racionalidade. O primeiro, uma doutrina que atribui aos fenômenos existência real eindependentedossujeitos;járacionalidadeshádiversas,dentreelasasepistemologiasnão‐cartesianasque incluem a subjetividade, o erro e compreendemo conhecimento como construção de sujeitos einstituições(BACHELARD,1996).

Noparadigmacartesiano,causaaparececomoumaforça,umarazãoorganizadoradomundo,externaaosobjetos,paraalémeemtornodoseventos,movendo‐os.Sobretudo,onexocausalépensadocomouma conexão linear, não‐complexa, unívoca e, enquanto tal, dimensionável. Esta propriedade dedimensionalidade justificariaousodeoperaçõesdequantificaçãoparadescrever anaturezadonexocausal. Trata‐se de uma propriedade genética dos objetos, assim como a sua entidade, ou a suaessencialidade, tanto como sua forma; um atributo destacável do objeto, e como tal descritível,vulnerável a processos de inquirição sistemática. Neste contexto, a investigação científica implica oestabelecimentodefunçõesdedeterminaçãocomodescritoresdanaturezahipoteticamentecausaldosnexosenfocados.

A validadeda funçãodeterminanteenquanto função causal nãoédada imediatamentepelaprecisãodosprocedimentosdemedidaempregadosparaestabelecê‐la,nempelocontrastefrenteaosmodelosestatísticosdedistribuiçãoteóricadeeventosusadosparadescartarexplicaçõesestocásticasdeseleçãoamostral para padrões de dados peculiares. De fato, a validade das proposições de causalidade seconstrói pormeio de uma estratégia heurística denominada inferência, processo complexo de algummodo simplificado pela aplicação de critérios de causalidade a associações tipo exposição‐doença

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(WEED, 1986). Nesta “hermenêutica epidemiológica”, os critérios relacionados à inferência são decapital importância como instância particular do problema fundamental das relações parte‐todocaracterísticodométododaindução.

Alógicaclássicaconcebeasrelaçõesentrepartesetodocomodenaturezameramentetopológica(i.e.conteúdo‐continente),porémarelaçãoentreaspartesédemútuaexclusão(externalidade)e,quandoseaplica,dedeterminaçãocausal.Osubconjuntodecausas,ouvariáveisindependentes(parausarumaterminologia corrente entre os metodólogos), deve ser claramente diferenciado do subconjunto deefeitos,asvariáveisdependentes,tambémnosentidodeevitartransgredirasregraslógicasdeconexão.A lógica clássica considera que a determinação circular (ou de causalidade recíproca) constitui umparadoxointolerávele,portanto,umefeitonãopodeemnenhumahipóteseseracausadasuaprópriacausa(SAMAJA,1994).

Samaja(1994)comentaqueasrelaçõesentreelementosconstituem,portanto,relaçõesdepartesextrapartes,oumelhor,relaçõesdeexclusãodepartesalienadasdeumatotalidade,frenteàdistinçãoentrecausa e doença. Que os elementos sejam homogêneos ou diferentes entre si e que eles sejamcomponentes de um mesmo conjunto ou sistema de conjuntos é inteiramente dependente de umprocessodecisóriooperadopelospesquisadores(enquantomembrosdeumainstituiçãosócio‐históricachamadaciência,nocaso,Epidemiologia),enãoresultadeterminadaprimariamentepelosmovimentosconcretos dos elementos no sistema. Em qualquer aproximação teórica com um grau mínimo deesclarecimento,otodoenfimconsegueserreconhecidocomomaisqueasomadaspartes,porémasuadeterminaçãopoderá serainda identificadacomoa somadasdeterminações individuais (denaturezacausal)decadaumadaspartesisoladas.

Nãoobstante,se:

i) conceituarmos os fenômenos da saúde‐doença‐cuidado enquanto processos sociais [pois o bio dobiológico encontra‐se inapelavelmente submetido ao social que o nomeia e descreve, portantobio+lógico];

ii)etambémaceitarmosopressupostodequeosprocessossociaissãocorporais,históricos,complexos,fragmentados,conflitivos,dependenteseincertos(emumapalavra:contingentes);

entãoosmodelos causais, significandoestruturas dedeterminaçãoprodutorasde efeitos específicos,serãoosdispositivosheurísticosmenosadequadosparaareferenciaçãodetaisobjetos.

Odiscursomédicocontemporâneoaceitadebomgradoaidéiadecomplicaçãoentreosnexosdecausaeefeito,assumindoqueumacausapodeproduzirmuitaspatologiasequeumamesmadoençapodeterdiversas causas. No entanto, no horizonte (ou no nível do imaginário científico corrente), o modeloexplicativo correspondente alimenta‐se ainda do sonho do efeito específico condicional a um dadosubconjuntodecausas(VINEIS,1997),aser“descoberto”peloavançodapesquisacientífica.

Emoutraspalavras,nãomaissepostulaaunidadeeespecificidadedacausa,masaindaaunidadeeaespecificidade de uma dada configuração de causas poderão dar conta do entendimento positivo daocorrênciadosfenômenosdasaúde‐doença.Emumsentidopreciso,otermo“multicausalidade”nadainformaemrelaçãoànaturezapotencialmentecomplexadasconexões,oufunçõesderisco,empauta.Tal proposta demulticausalidade, no sentido estrito demúltiplas causas para umdado efeito, não écapazdesuperaroproblemanodaldestalógica:osnexosdoprocessodedeterminaçãodasdoençassãoaindadenaturezacausal,enquantofatores,sempreesperadoscomoprodutoresespecíficosdeefeitos.

Nocasoempauta,anoçãodeefeito‐especificidadeésimplesmentetransferidaaumnívelhierárquicomaiselevado,donexodecausaúnicaàespecificidadedeumcomplexodecausas,como,porexemplo,nas “tortas”de causalidadedeRothman&Greenland (1998).Nesse sentido, serunioumulticausaléirrelevante para a classificação de qualquer modelo determinista, dado que o critério classificatórioefetivo é a natureza do nexo que sintetiza a relação de determinação. Como tal, a expressão“multicausalidade” não indica qualquer aumento substancial do nível de complexidade. Multiplicarcausas e/ou efeitos em algum modelo explanatório não resolve as limitações fundamentais docausalismo, enadanosdiz em relaçãoànaturezapotencialmente rica ediversadas funçõesde risco(VINEIS,1997).Talabordagem,aindanosentidopreciso,porémrestritivodosmanuaisepidemiológicos,refere‐seexclusivamenteacomplicação,enãoacomplexidade.

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Neste momento, é preciso questionar a própria natureza dos nexos construídos pelo conhecimentoepidemiológico, comumente designados pelo rótulo genérico de causa. A insistência dos poucosteóricosda ciência epidemiológica emdebater a questãoda causalidade reafirmaa intençãodeumatraduçãoliteraldeassociaçõespseudo‐probabilísticasderiscocomosefossemlegitimamenterelaçõesde produção de efeitos, ou simplesmente causas. Esta tentativa de apresentar correlações entrevariáveis como nexos causais entre fenômenos concretos, que termina por tomar a causa como umprocessonatural (e,porconseguinte,anistórico),éaparentementesimplóriae fácilderefutar.Porémrapidamenteconstatamosquenãoébemassim, jáquetalabordagemrepresentaaaplicaçãodeumateoria de causalidade baseada no senso‐comum típico da cultura ocidental na modernidade tardia(BECK,1996).

Paraabordaresteproblema,analisemosofundamentológico‐epistemológicodestemododeraciocinar,destacando quais são as operações metafóricas primevas que o viabilizam. O termo “pressupostometafórico” refere‐se a figuras (ou elementos imaginários) que emprincípio se temnecessariamenteque imaginar a fim de operar (e enxergar, compreender, seguir, interpretar etc.) no interior doreferencialdepensamento.

Os pressupostosmetafóricos da lógica causal são basicamente três: asmetáforas de evento, nexo efluxo.

Em primeiro lugar, a metáfora de evento carrega o sentido de algo discreto, no sentido de isolado,distinto, destacado, fragmento de uma realidade ampla e complexa. O mundo (real ou virtual) émetaforicamente traduzido como universo de entidades individuais que podem ser potencialmenteincluídasouexcluídasdeagregadoschamados ‘conjuntos’.Umevento,paramerecerestadesignação,deveser identificadoenquantotal,querdizer,comodiferentedorestodascoisas,detodasasoutrascoisas, doqueele nãoé, doqueo antecede, doqueele determina (ZOURABICHVILI, 1994); emumapalavra, deve ser visto como “outra coisa”. Apesar de que neste sentido os limites também sãofabricados, para tornar‐se um objeto de conhecimento a coisa‐fato‐processo‐fenômeno teráobrigatoriamentequeserisoladadeumtodo(ainda)indiferenciado.Ofilósofogreco‐francêsCorneliusCastoriadis (1992)propõedesignar esteprocessodemetaforização fragmentadorae constituidoradarealidadecomo“lógicaconjuntista‐identitária”.

Aoperaçãomaisfundamental(emboraaparentementeóbvia)edefatoindispensávelparasepensaracausalidadeconsistenadistinçãoentrecausaeefeito.Articulandodiretamenteasteoriasaristotélicasdo Ser, do Evento e da Causa, é preciso que a causa, o evento C (chamemos de antecedente,determinante),sejadistintodorestantedascoisas,diferentedoindiferenciado:

Ctemdeserdiferentede¬C(nãoC).

Da mesma forma, algum outro evento significativo chamado D (de doença, outcome, efeito), devetambém ser diferente do resto, do todo indiferenciado do qual ele faz parte, do¬D (nãoD). Ora, Ccomopartede¬DeDcomopartede¬Csãodiferentesentresi.Portanto,têmsuaprópriaidentidadedefinidaemrelaçãoàidentidadedooutro,sendoambosdistintosenãoredutíveisa[¬D,¬C],porsuasprópriasdefiniçõesepropriedadesenquantoeventosisolados.

Nummodelo causal, C será sempre diferente deD, e nunca deverá ser confundido ou reduzido aD.Conclusão:adistinçãoentrecausaeefeitoéconstruídaatravésdestaoperaçãoelementar,semoquetaistermosjamaisencontrariamsuaidentidadeeseulugarprecisonaesferadareferenciaçãocausal.

Examinemos a segunda metáfora, a noção de nexo. Neste sentido, nexo implica re‐união de umantecedentecausacomumconseqüenteefeito(quechamamosaquiD,dedoença).Matematicamente,aocorrênciadeumdadoeventoDemfunçãodasuacausaCédefinidaapartirdaseguinteformageral:

D=f(C)

NojargãodachamadaEpidemiologiamoderna,trata‐seda“funçãodeocorrênciadorisco”(MIETTINEN,1985). O nexo C‐D é um laço, ligação, relação, conexão, vínculo entre eventos que, anteriormenteseparados,precisamreunir‐senaquela totalidadequeseconstrói comoconhecimentocientífico.Paradefinirestareuniãocomoumacausa,deve‐senecessariamenteenunciá‐ladedentrodeumreferencialextra‐científicoparticular,ocausalismo.

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Falta ainda um elemento para completar a série metafórica constitutiva do objeto epidemiológico:trata‐se da noção de fluxo, aqui no sentido de assimetria, temporalidade, direcionalidade. Tomemosesta metáfora como basicamente uma expressão da representação espacial ou linear do tempo,característica fundamentaldomodomodernodepensarapesardeconstituira lógicasubjacentemaisarcaicadanossacultura(FABIAN,1983).Umadeterminadarelaçãodeordemreferidaaumaseqüênciadada de eventos, tomada como uma abstração espacial, tem sido designada como temporalidade,integrando‐senalógicaconjuntistafundantedopensamentoocidental(CASTORIADIS,1982).

Opensamento convencional sobre a temporalidade se estrutura por referência a termosde lugar ouespaço,oque“permiteuma identidadeaodiferente” (CASTORIADIS,1982).Adiferençaseverificanodecorrer de um tempo que se retém de momento a momento como uma “preservação ideal dopassado”–ouseja,comoumlugarontologicamentedeterminado.Definidocomoordemdesucessão,otempo é sempre referencial e assim permite ao “idêntico diferenciar‐se de simesmo” pela retençãodeste espaçamento temporal virtual e metafórico (e, portanto, lingüístico). Nessa perspectiva, ser‘outro’ não significa amesma coisa que ser ‘diferente de’, e a emergência do outro resulta de umagênese ontológica, quer dizer, da criação de algo “totalmente novo”. Assim é que o tempo “é averdadeira manifestação do fato de que surge um ‘outro’ em relação ao que já existe, trazido àexistênciacomonovooucomooutroenãosimplesmentecomoconseqüênciaoucomoumexemplardiferentedomesmo”(CASTORIADIS,1982,p.185).

PREDIÇÃO

Tomada como fundamento do determinismo inerente à lógica conjuntista‐identitária, a teoriaaristotélicadoSermostra‐se incapazde incorporara“emergência”,ouontogêneseradical,namedidaem que, ao atribuir causalidade a cadeias de categorias preexistentes, apenas descobre variação oudiferençanomesmoser.Dessamaneira,poder‐se‐iaresponsabilizaraapropriaçãomaiscomumdestalógica pela paralisia dos modelos explicativos da realidade, posto que estes operam através docongelamentodascategoriasbásicasdoSer.

Ademais, neste modo de pensar, a sucessão de eventos históricos é considerada como indício dacausalidade,pelomenosemrelaçãoàspropriedadesparticularesdosobjetos.Defato,oprimeiroemaisfundamentaldosclássicoscritériosepidemiológicosdecausalidade,“seqüênciatemporal”,constituiumexemplo de aplicação deste tratamento convencional da temporalidade em um campo científicoparticular.DouglasWeed(1997), importante filósofodaEpidemiologiaquesededicaaodebatesobrecausalidade, argumenta que apenas três desses critérios (retraduzidos como validade, consistência,repetibilidade)têmalgumautilidadepráticaparaaindicaçãodefatoresetiológicos.Emoutraspalavras,aanáliseepidemiológicanãopodeporsisóidentificarquaisfatoresderiscoeventualmentealcançarãoalgumaexpressãoetiológicaquemereçaserincorporadaaoconhecimentoclínicosobreapatologia.

Nestaperspectiva,alémdeprodutorasdecertezas,ascategoriascausais são imunesà transformaçãoradical,oucriaçãodealteridade,sendopordefiniçãoassumidascomouniversalmenteválidasalémdosrequisitos mínimos da referência cultural e social. Na atualidade, a aplicação de tais critérios e seufundamentobásicotemsidoveementementecriticadacomofrutodeuma idealizaçãoenormalizaçãoquenãocorrespondemaoqueefetivamenteseobservanapráticacientíficadaepidemiologiamoderna(ROTHMAN&GREENLAND,1998).

Não obstante, muitos epidemiologistas acreditam que nossa disciplina encontra‐se aparelhada paraenfrentar os rigores da pesquisa etiológica.Mesmo assim, a ciência epidemiológica, ao contrário dosmodelos clínicos, prefere pensar a “causa” como uma multiplicidade de condições propícias que,reunidas em determinadas configurações, aumentam as probabilidades de ocorrência (riscos) dedeterminadosacontecimentos.Na investigaçãodosfenômenos jáocorridosouemdesenvolvimentoedaquelesprocessoscujasvariáveisindependentesescapamaocontroledoexperimentador,as“causas”,portanto,sópodemserexpressasdeformaadjetivaeindireta.Paraosdefensoresdessaperspectiva,aessênciadainvestigaçãoepidemiológicaseráoestabelecimentodeassociaçãocausalentreasprováveisvariáveisprodutoras(denominadasfatoresderisco)eosseuspossíveisprodutos:asdoenças.

Naanáliseepidemiológicaconvencional,variáveisindependentesserãoconsideradasfatoresderiscose(esomentese)puderemserassociadasadoenças,nosentidodequeterãosidojulgadasválidasàluzdecritérios heurísticos epidemiológicos. Quando, após reiteradas validações da hipótese de associação

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entrefatordeexposiçãoedoença,nãosubsistiremmaisdúvidasquantoàsuaexistênciaecontribuiçãoàcausação,ditofatorpassaráaserreconhecidocomofatorderisco.

Trata‐se obviamente de uma postura conservadora perante a questão do papel da epidemiologia naconstrução de um conhecimento sobre os processos de determinação de doenças em sociedadeshumanas. Na prática, a epidemiologia tradicional pretende atribuir o adjetivo causal a associaçõesprobabilísticas,contantoquesejapossívelpreencheramaioriadosrequisitosexpostosacima.

O simplismo e conservadorismo desse tipo de formulação revelam‐se claramente na apologia dasubordinaçãodosresultadosdainvestigaçãoaoconhecimentoestabelecido.Istoéaindamaisreforçadopela submissão aosmodelos biológicos de demonstração experimental, às vezes considerados comocritérioúltimoesoberanoparaadefiniçãodecausalidade.

De fato, a causalidade consiste em uma das muitas categorias que o cientista pode empregar paradeterminar seu objeto de conhecimento, ou seja, estabelecer as proposições que descrevem suascaracterísticas e expõem os nexos que regulam suas transformações. Para Samaja (1994), ainda quecomfreqüênciaseconsiderearelaçãocausalcomoaúnica“determinação”comforçaexplicativa:

i)elanãoéaformaexclusiva(nemsequerumamodalidadeprivilegiada)dadeterminaçãoexplicativa;e

ii)nãoháumaúnicainterpretaçãopossíveldeseuconteúdo.

Nessaperspectiva,emvezdeetapametodológicanecessáriaparaoprocessointerpretativodaciência,ainferênciacausal,emqualquerdassuasmodalidades,revela‐secomoumapretensão.Trata‐sedeumpretensioso esforço de romper as barreiras do tempo e do espaço, procurando trazer uma ilusóriaperenidadeaoconhecimento(provisório,comotodossabemos)restringidoporestasbarreiras.Tempoeespaçosãodefinidoresdasingularidade(oqueincluiaidentidadeconjuntistacastoriadiana),masoqueformatosdeinvestigaçãocomoodaEpidemiologiabuscaméjustamenteageneralidade.Portudoisso,podemosmesmodizer que a relação tempo‐espaço constitui uma das contradições fundamentais daciênciaemgeral,noquea“epidemiologiadapessoa,tempoelugar”(MACMAHON&PUGH,1970)seriaapenasumapatéticatentativadeescamoteartalcontradição.Defato,todooprocessodeproduçãodeconhecimentocomoreferênciaglobaleuniversalnãopassadeumesforçopermanenteparasuperartalparadoxo, certamente com importantes subprodutos manifestados pelo avanço da tecnologia e suacapacidadederecriarosmundoshistóricosemquevivemos.

Causalidademeramente indica uma propriedade genética do evento ou fenômeno, de certamaneiraequivalente à temporalidade (ou existência na ordemmaior das sucessões). Porém a temporalidadesócio‐históricaimplícitadeumadadasociedade(bemcomosuarelaçãocomatemporalidade“natural”)simultaneamentedeterminaesesujeitaàsmetáforasqueconstituemasdimensõessignificativasdoseu“imagináriosocial”(CASTORIADIS,1982).Dentrodoreferencialconjuntista‐identitárioherdadodeumadasvertentesdopensamentoaristotélico,acausalidadesomentepodesercompreendidacomofluxo,apartir de uma série de eventos do passado, resultante de uma temporalidade. Porém o tempo ésocialmente instituído,dadoquecadasociedadeorepresentaatravésdeumatemporalidadeexplícita(tempomarcado e significante) e uma temporalidade implícita (alteridade‐alteração), que se referemmutuamente e, em última medida, buscam sobrepor‐se a certo senso de ‘tempo natural’ (FABIAN,1983).

AquestãodoraciocíniopreditivoemEpidemiologiarevela‐se,portanto,dependentedeumadefiniçãolineardotempo,naperspectivadeumatemporalidade“espacializada”,oqueexcluidesteraciocínioapossibilidadedeconsideraraemergênciaradical(alteridade)e,portanto,acontingência,namedidaemque estas necessariamente implicam imprevisibilidade. Além disso, descobrimos que a noção depredição,mesmo em um contexto de aplicação técnica como na prática epidemiológica, usualmentenãoéempregadanosentidomaisrestritodeumaverdadeirapredição.Baseando‐senoconhecimentosobrecasosparticularesdeumadadaamostra,épossívelpredizer,paraofuturo,aocorrêncianotempode novos casos em uma dada amostra, como parte de uma variação que, aceitando a metáfora dotempoespacializado,poderíamoschamarde“prediçãolongitudinal”.Poroutrolado,pode‐se“predizer”apenasmetaforicamente(oque,aliás,ocorrecommuitafreqüência)nãocomoumaantecipaçãoparaumtempofuturoqueaindanãoteráocorrido,mascomoumaafirmativasobreodesconhecido,sobreoainda‐não‐estudado, numa variação que podemos denominar de “predição seccional”. Neste caso,rigorosamente, o que chamamos de predição não é de fato uma “predição”,mas sim uma “pseudo‐predição”.

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Ora, umapredição verdadeira pode ser validada somente por referência a umaperspectiva filosóficaparticular,oassimchamadoindutivismo.ParaPopper(1968),nãohágarantialógicaoufilosóficadequeumadadaobservaçãoterápoderantecipatórioparacertofuturo,aindanãoexistenteconcretamente.Todavia, para tentar organizar as ações do presente, de acordo com a teoria das probabilidades épossível,desdePascal,pensarofuturoemtermosprobabilísticos,apartirdeestratégiastipoapostas,lancesoujogadas.

Por outro lado, a “pseudo‐predição”, mesmo não sendo de fato uma predição porque não constituinenhumaantecipaçãonotempo,comosabemos,poderá,noentanto,serválidaelegítima,nosentidode que, pelo menos num certo âmbito, sob pressupostos explícitos e dentro de uma perspectivaoperativa (como por exemplo, no raciocínio da estatística inferencial), haverá uma lógica subjacenteconstituindoumconjuntode leis formaisquea fundamentam.PodemosesclarecerestesargumentoscomoauxíliodaFigura1.

[AQUIFIGURA1]

É aceitável que alguns achados da amostra A podem ser tomados como base de predição para umestadofuturodestamesmaamostra,talcomorepresentadoporfA(futuraamostra).Sobopressupostodecondiçõesinalteradasouausênciadevariaçãotemporalnocomportamentodaamostra,A>>>fAéuma predição longitudinal válida, legítima e verdadeira. Por outro lado, proposições derivadas daamostraAeexpandidasàsuapopulaçãodereferênciaPR(ouA>>>PR),talcomonoprocessopadrãode inferência empregada pelo chamado raciocínio epidemiológico, podem ser validadas sobpressupostosbastanterígidos,legitimadaspelastécnicasdaestatísticaaplicadaque,porsuavez,buscasuaprópriavalidadenosprincípiosdalógicamatemática(OAKES,1990).Portanto,A>>>PR,apesardeválidaelegítima,aindaéumapseudo‐predição.

Pseudo‐prediçõesdenívelmaiselevadocomoA>>>SP(daamostraAparaapopulaçãogeral,ousuper‐população SP) podem ser validadas pela lógica indutiva, na medida em que se baseiam numaexpectativa de regularidade reforçada pela replicabilidade da investigação. Isto equivale ao itemconsistênciados critériosde causalidadedeHill, quedessamaneira se torna igualmente vulnerável àcrítica geral dirigida ao raciocínio indutivo. Entretanto, A >>> SP não é uma proposição legítimarelativamenteàaplicaçãodoraciocínioinstrumentaldaestatísticaporqueextrapolaonívelrestritodapopulação de referência PR. A extrapolação combinada de uma amostra para uma população dereferêncianofuturo(A>>>fPR)constituiumapseudo‐prediçãonão‐válida,não‐legítima,evidenciandoainsustentabilidadedospressupostosnecessáriosparaasuaaceitação(oquecertamenteincluiocross‐level bias referidopor Susser, 1994). Paradoxalmente, o tipodeprediçãomais “fraco” (da amostraApara uma futura super‐população fSP) tem sido exatamente o mais empregado nas propostas deaplicação de achados epidemiológicos para o planejamento de saúde. Não existe suporte – lógico,epistemológico,estatístico–paratalmovimentopreditivo“hiper‐estendido”.

AindanaFigura1,podemosobservarumaclarailustraçãodealgumasdaslimitaçõesdeumtipoespecialde extensão de conhecimento: a predição individual, que implica uma “intrapolação” para o nívelindividual de resultados gerados na investigação de população. De acordo com as premissasestabelecidasacima,trata‐sedeoutrocasodepseudo‐predição.CombasenoqueseconhecedeumaamostraA,a lógicadedutivapodevalidarumadadaconclusãosobreosujeito individual(I),formandouma proposição inferencial A >>> (I), sob o pressuposto da homogeneidade interna do conjuntoamostral.Ora,proposiçõesdotipoA>>>(I)constituemcasosdepseudo‐predição,válidossomentesetodosos(I)sforemiguais.Deummodomenosrigoroso,o investigadorpodeassumirqueosatributosdos (I)s seriam equivalentes a uma variável sumarizadora ou a um valor médio, em todos os casoshomogeneamentedistribuídosnaamostra.

Aceitar a causalidade ou determinação do objeto de conhecimento como sua propriedade essencialimplica necessariamente a adoção da tesemetafísica da essência‐substância, junto como referencialidentitário da “instituição social‐histórica do evento”, parafraseando uma expressão de Castoriadis(1982,p.200).Anoçãodoqueéumevento,partedaontologiaocidental,acadainstanteécanalizadaatravésdestemarco conjuntista‐identitárioqueatribui a certasdeterminaçõesde figurasou imagensuma identidade geral que a constitui como objeto. Como resultado, este simples e inadvertido atotermina por reificar as propriedades da determinação, tomando a causalidade enfim como umaentidade autônoma, “cimento do universo” (RORTY, 1989). Ao perceber determinações e figurasparciais e limitadas como coisas integralmente determinadas e substantivas, como objetos, o

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pensamentoocidentalobscureceofatodequeagêneseontológicaalteridade‐alteraçãopodenãosernecessária – isto é, pode cessar de ocorrer – em todos os momentos, e passar a acontecer comoacidentes.

CONTINGÊNCIA

Comoanalisamosnaseçãoanterior,oreconhecimentodoslimitesdaprediçãonaestruturacartesianaderaciocíniopredominantenaEpidemiologiacontemporânealevou‐nosapostularumaaberturaparaoregime da incerteza, do inesperado, do acidental, do contingente. Para isso, precisamos retomar opensamentoaristotélicocomoplataformaepistemológicaparaaconstruçãodealternativas(ousaídas)conceituaisparaaEpidemiologia.

Antes de chegar a uma caracterizaçãomais específica da contingência como estruturada pela lógicaaristotélica, vale uma passagem pela etimologia (REY, 1993). O latim imperial registra o uso decontingens,particípiopresentedecontingere,quesignifica“tocar,atingir”.Daíresvaloupara“acontecerpor acaso”. O adjetivo surge com o sentido de “que acontece, mas não necessariamente”,desenvolvendo‐se em filosofia como o “não‐essencial”. Em matemática, a expressão ‘ângulo decontingência’ recuperaanoçãoprimeiradaquiloqueatingeou toca.Overbo ‘acontecer’ assimcomo‘acontecimento’, provém do termo latino contigescere, e que passa ao espanhol antigo contescer echega ao português acontecer. Várias são as noções contidas no termo, dentre elas a de verdade(aconteceu);dealgoquesetornourealidade;deespanto(oacontecido);demodificaçãoqueafetaalgooualguém;desucesso;deperipécia;deacidente.

Aoacolheroacidental―oucontingente―comoumadasmodalidadesdoser,Aristótelesavançounaproposição de uma lógica capaz de incluir proposições indecidíveis quanto aos valores verdadeiro efalso.NoOrganon,o termoacidenteopõe‐seao termoessência.Trata‐se,porém,deumaconcepçãocuja nuance deve ser ressaltada. Aristóteles propõe uma formulação para tratar da enunciaçãocontingente: “a que, não sendo necessária, pode, todavia, ser verdadeira, ou a que pode ser, querverdadeira,quer falsa” (1985,p.171).Nesta formulação,ocontingentevincula‐seaopossívelquando‘nãosendonecessária,podeserverdadeira.’Jánasegundaacepção–aquepodeserverdadeiraefalsa–vemoscaracterizar‐seumanovamodalidade,umatributoquepodeserverdadeiroefalsoou,comoveremosaseguir,presenteeausente.

UmacaracterísticaqueAristótelesatribuiaocontingenteéaindeterminaçãocomrelaçãoaopresenteeao futuro; dito de outro modo, o contingente caracteriza‐se por ser indecidível relativamente aopresenteeaofuturo,masnãoquantoaopassado.Amodalidadecontingênciaseempregaparaeventos,acontecimentos,portanto,paraocorrênciassobreasquaispodemosapenasconstatarouanalisarseusefeitos.

Apesardepretenderdiscernircadaumdosquatromodais,Aristótelesnãodeixadecorrelacioná‐los.Eleafirma: “o que não pode ser é impossível que seja, e o que não pode ser, é necessariamente”(ARISTÓTELES,1985,p.136).Estaafirmaçãotemumaconseqüênciaimediata:éabsurdopensarquenãohálugarparaacontingênciaeque,pelocontrário,todasascoisasocorremporefeitodanecessidade,porqueseassimfosse,haveriasempreacertezadeque“adotadaumadadaconduta,oresultadoestariadeterminado,equesenãoadotássemosessaconduta,oresultadonãoseatingiria”(ibid.).Oresultadode uma ação é real, mas isto só pode ser constatado depois, ainda que se o preveja, como ironizaAristóteles, “comdezmilanosdeantecedência”.Destemodo,eleaproximaonecessáriodopossível,tomando o conhecimento como estreitamente ligado à categoria de ‘causa’. Assim, uma apreensãológicadedutivadomundoseriacondiçãoexclusivaparaoconhecimentonoregimedanecessidade.

Como vimos, em Aristóteles, três são os princípios que sustentam a lógica dedutiva: o princípio deidentidade,oprincípiodanão‐contradição,eoprincípiodo terceiroexcluído.Ocorreque,ao trazeracategoriadacontingência,oudoacidente,elepraticamentedesmontataisprincípios.Eissuadefiniçãomais desconcertante para acidente: “aquilo que está presente e ausente sem corrupção do sujeito”

(ARISTÓTELES,1985,p.111).Deacordocomesta lógica,aoafirmarumaparticularesuaoposta–porexemplo, ‘algum animal é justo’ e ‘algum animal não é justo’ – é possível dizer que elas podem sersimultaneamenteverdadeirasousimultaneamentefalsas.

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Aristótelespropõearticularocontingenteaopossível;considera‐ostermosadjuntos.Seasproposiçõesnãosãocontraditóriasentresi,pode‐sedizerdeumacoisaqueelaéenãoé.Assim,‘épossívelqueseja’não contradiz ‘é possível quenão seja’. E, poroutro lado, “daproposição ‘épossível ser’ segue‐se ‘écontingente ser’, proposição que é recíproca com a primeira”, do que se pode concluir que “se épossível,écontingente”(ibid.,p.173).Doutraparte,háumarelaçãodecontradiçãoentreoimpossíveleonecessário.Esteraciocínioleva‐nosapensarqueestesopostossetocam,pois,segundooargumento,predicaraimpossibilidadeimplica–ouéomesmoque–afirmaranecessidade.OqueAristótelesextraidestesargumentosé:“Umacoisapodeseretodavianãoser,masseénecessárioqueseja,elanãopodesimultaneamenteserenãoser”(ibid.,p.159).Seretodavianãoseréadefiniçãodacontingência,doqueaconteceporacidente,comovimosacima:aquiloqueestápresenteeausentesemcorrupçãodosujeito.

Aristótelesvêapolíticacomocampoexemplardacontingência.“Estaúltimapalavra[contingência],quenãotemequivalenteemgrego,traduzaexpressão:“ascoisasquetêmacapacidadedesecomportardeoutramaneirasãosusceptíveisdemudança”(EDMOND,2000,p.10).Talassertivaécorroboradapelofatodequeodiscursoaristotélicosobreapóliséumdiscursoético,numavianãoteórica,masdaação:“Nãose tratadedefinir,porexemplo,a justiça,masagir justamentenamedidadopossível” (ibid.,p.19).Umaconseqüêncialógicaaserextraídadestaposiçãoéaseguinte:somentedepoisderealizadaséquetaismedidas,ligadasàscircunstânciaseaosdiferentessujeitosenvolvidos,podemserjulgadas.Há,portanto,umapartede“variabilidadeinesgotável”nasaçõespolíticaseentrecidadãos.

Inserir a modalidade contingência entre as categorias lógicas determina uma visão de mundo não‐dualista,quenospareceseradeAristótelesemcontraposiçãoàqueladeseumestre,Platão.Trata‐sedeumalógicaondeestãoemjogoanálisescombinatóriasenãoapenasclassificações.Ora,seoqueestáem jogo são combinações, mudanças na estrutura da cidade, pode‐se observar, nos escritos deAristóteles, uma clara distinção entre posições e papéis: homem ou indivíduo não são categorias aseremsobrepostasàdesujeito,vistoqueseos indivíduospermanecemnumregimepolíticoquenãomuda,aposiçãodecadacidadão,poroutrolado,semodifica.Semestacompreensão,avidasocialseriatomadanaesferanatural,ondeasmudançaseosciclossesucedemesereproduzemcomregularidade.

Curiosamenteusandocomoilustraçãoumtemadonossomaiorinteresse–conceitosdesaúde‐doença– conclui Aristóteles (1985, p. 99) que há casos onde não é necessário que um dos opostos sejaverdadeiro e o outro falso: “por exemplo, saúde e doença são contrários,mas nemumnemoutro éverdadeiro nem falso”. Dizer ‘o homem é sadio’ significa atribuir‐lhe uma qualidade afirmativa; domesmomodo,dizer‘ohomemédoente’tambéméatribuir‐lheumaqualidadeafirmativa.Masseráqueéomesmoafirmar‘édoente’e‘nãoésadio’?ÉoqueAristótelesquersaber,quandopergunta:“qualojuízoverdadeirocontrárioaojuízofalso:éojuízodanegação,ouessequeenunciaafirmativamenteocontrário? Será que há um único juízo contrário ou pode haver pluralidade de contrários?” (ibid., p.163).

Quando,em1910,FreudescreveumensaiosobreLeonardodaVinci,instigadoadesfazeromitoquefazdohomemdegênio“umexpoentedaraçahumana”.OqueFreudextraicomoensinamentodaanálisebiográficadeLeonardoéqueumgênioestásujeitoaosmesmosacidentesqueregemavidadosmaiscomunsdosmortais.Ou,comoquerBorges,quandodiz“CreoquemisjornadasymisnochesseigualanenpobrezayenriquezaalasdeDiosyalasdetodosloshombres.”(BORGES,2000,p.44).Freudrefazopercurso daquele universo singular renascentista e diz, a respeito de Leonardo, aquilo que poderiaresumiranovidadequeapsicanálisetrazcomocampodiscursivoaomundocontemporâneo:“mundoemqueopequenonãoémenosmaravilhosonemmenosimportantequeogrande”(FREUD,op.cit.,p.1585).

Otemadacontingênciaéexploradodo inícioaofimdoensaio.Asvicissitudes(contingências)davidainfantildeLeonardoserãorelacionadasporFreudcomodestinopulsionalnaquelesujeito.Ahipóteseque Freud sustenta em todo o desenrolar do estudo diz que, no caso de Leonardo, “a circunstânciaacidental de seu nascimento ilegítimo e a exagerada ternura de sua mãe exerceram uma influênciadecisiva sobre a formação de seu caráter e sobre seu destino posterior” (IBID., p. 1616). Tentandoantecipar‐se à objeção que poderia ser formulada no sentido de recusar os resultados de umainvestigaçãoque“atribuiaosacasosdaconstelaçãopaterno‐maternaumainfluênciatãodecisivasobreodestinodeumhomem”,Freudapresentaumarespostarigorosa:“Considerandoqueoacasoéindigno

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de decidir nosso destino, não fazemos outra coisa senão recair na concepção piedosa do universo”(IBID.,p.1619).Econclui:

Mas, ao pensar assim, esquecemos que realmente tudo é casual em nossa vida, desde a nossagênese pelo encontro entre o espermatozóide e o óvulo [...]. A distribuição da determinação denossavidaentreas“necessidades”denossaconstituiçãoeos“acidentes”denossainfâncianãoseachaainda,talvez,totalmenteestabelecida(IBID.).

Alémderecusarumaexplicaçãoteológica,Freudtrabalhacommodalidades lógicascomoparâmetrosda determinação humana. A contingência parece se impor sobre a necessidade. Sabemos por suaextensa correspondência e por inúmeras passagens em artigos, que Freud era leitor atento deAristóteles.NumacartaaFliess,de25dejulhode1894,elefazreferênciaàobradeAristóteles:“aindanão estou de modo algum em condições de fazer propostas e vou aceitando todos os accidentia àmedidaquesurgem.Passeimuitotemposemens2” (FREUDapudMASSON,1986,p.88.).ÉpatentequeFreud conhece a categoria aristotélica, embora a maior parte das citações referidas ao filósofo digarespeitoaossonhos.

A lógica aristotélica, também conhecida como lógica clássica, é tida como superada pela lógicaparaconsistente, desenvolvida por Newton da Costa (1980), ou pela lógica do “não‐todo”, conformenomeada por Lacan. Estes desdobramentos encontram seus fundamentos nos famosos Teoremas deGödel, formulados entre 1930 e 1931 em três artigos: “Alguns resultados matemáticos sobrecompletudee consistência”; “Sobreasproposições indecidíveisdosPrincipiamathematica e sistemascorrelatos I” e “Sobre a completude e consistência”. É possível sustentar que os Teoremas deGödelprovêmdosistemalógicoaristotélico.

O primeiro teorema de Gödel [Em qualquer teoria axiomatizável, coerente e capaz de formalizar aaritmética,pode‐seconstruirumenunciadomatemáticoquenãopodeserprovadonemrefutadonestateoria]afirmaqueumateoriaprovenientedamatemáticaénecessariamenteincompleta,poisexistemenunciadosquenãosãodemonstráveisecujanegaçãotampoucoédemonstrável.Taisenunciadossãochamadosindecidíveis.OsegundoteoremadeGödel[SeTéumateoriacoerentequesatisfazhipótesesanálogas, a coerência deT, que pode ser expressa na teoriaT, não é demonstrável emT]diz que acoerênciada teoria nãopode ser demonstrada internamente; é necessárioumdiscurso exterior paravalidarumcampodoconhecimento.

Comessesteoremas,pode‐sedizerque,noâmbitodeciênciasfundamentaiscomoasmatemáticas(eem suas aplicações, como a Epidemiologia) Gödel liga, de maneira inesperada e não trivial, aconsistência à incompletude. Apesar disso, postula que consistência não é sinônimo de completude,pois há proposições matemáticas sobre as quais não se pode deduzir se são verdadeiras ou falsas.Rejeitaassimoprincípiodoterceiroexcluído,impostopelaLógicaBivalente(LIMA,1993;HEIJENOORT,1967).

Aoexaminarproposiçõesquehojedesignamoscomoindecidíveis,opsicanalistafrancêsJacquesLacanretoma as aberturas promovidas por Aristóteles, Pascal e Freud. A recuperação da lógica aristotélicaoperadadessaformaderivadedoisprincípiosqueLacanjulgaimportanteassinalar:nãoháuniversodediscurso nem tampouco um significante que possa dar conta doOutro. Esta formalização não incidesomente sobre a psicanálise, mas atinge diretamente a epistemologia das ciências. Desta maneira,Lacanretomará,maisdedoismilanosdepois,osquatromodaisaristotélicosparadelesextrairtodooseurigor lógico.Emváriasoportunidades,Lacandefinea lógica introduzidaporAristótelescomo“umvalor vazio [...] uma maneira de tratar a verdade que não tem nenhum tipo de relação com o quechamamoscomumentedeverdade”(aulade9/04/1974,inédito).

A partir dessa perspectiva, Milner (1996) analisa o argumento de Popper de que as proposiçõescientíficasdevemserrefutáveis.Sóquearefutabilidadedeumaproposiçãodependedeumponto:“sesuanegaçãonão for logicamente contraditória oumaterialmente invalidadapor umaobservação [...]seureferentedevepoder–lógicaoumaterialmente–seroutroqueé.Masissoéacontingência”(1996,p. 50). Conclui, então, que somente uma proposição contingente é refutável: “só existe, portanto,ciênciadocontingente”.

2Ens[ser]eaccidentia[acidente]sãotermosdeAristóteles.

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Badiou(1993)tambémressaltaaimportânciadoconceitodecontingênciaafirmandoquehácasosemqueévãointerrogarsobreaveracidadedofato/feito.Quandoacontingênciaouoimpossívelestãoemjogo,oresultadoéindecidível,porváriosmotivos.Emprimeirolugar,averdadetemestruturadeficçãoe se constituiporumaaboliçãoda cena, istoé, faz‐sena suaausência. Trata‐sedeoutramaneiradedizer que o símbolo mata a coisa. Não há a verdade toda, assim como não há transcendência comrelaçãoàverdade,poiseladependedasituaçãoemqueocorre.Averdade,soba formadeumdizer,resisteaoprincípiodanão‐contradição,pelosimplesfatodeoperarcomalinguagem,sistemanoqualosignonuncacorrespondebiunivocamenteaoseureferente.

Na filosofia contemporânea, Richard Rorty é o mais importante teórico a realçar o papel dacontingência/acidente no trabalho de construção conceitual da psicanálise. EmContingência, ironia esolidariedade([1989]2007),Rortynosmostracomoacontingênciacosturaaobrafreudianadoinícioaofim.Elediz:“[...]afirmoqueFreud,NietzscheeBloomfazempornossaconsciênciaoqueWittgensteineDavidson fazem por nossa linguagem, ou seja, exibem sua pura contingência” (2007, p. 55). O quediferenciaFreuddefilósofosé,noentenderdeRorty,suacapacidadedelerasidiossincrasiashumanasnão comomodos a serem generalizados para o coletivo humano, mas comomaneiras de lidar comvicissitudes (outro nomede contingência) demodo inventivo. Assim, e seguindoRorty, termos como“infantil”,“sádico”“paranóico”,“aocontráriodosnomesdevíciosevirtudesqueherdamosdosgregosedoscristãos, têmressonânciasmuitoespecíficasemuitodiferentesparacada indivíduoqueosusa”(IBID.,p.72).ApartirdeFreude,emconseqüênciadesuaênfasenaconstituiçãoacidentaldoserdelinguagem, abre‐se um campo de legitimação de narrativas singulares que nada têm a dever àscategoriasdoparticularedouniversal.ParaRorty,Freudvalorizaa forçada redescrição, levando‐nospara longe do reino da necessidade, do padrão, da personalidade. Trata‐se de outra lógica, não‐cartesiana, embora ainda aristotélica: “Freud desarticula todas as distinções tradicionais entre osuperior e o inferior, o essencial e o acidental, o central e o periférico. Deixa‐nos um eu que é umatrama de contingências, e não um sistema aomenos potencialmente bem ordenado de faculdades”(IBID.,p.71).

SOBREDETERMINAÇÃO

Acategoria‘sobredeterminação’temumahistóriainesperadaeinteressante.FoipropostaporninguémmenosqueofundadordaPsicanálise,SigmundFreud.Posteriormentefoiempregadapor importantesestudiosos contemporâneosnaconstruçãode teoriasdoconhecimentoeda sociedade, comoGastonBachelard,LouisAlthusserePierreBourdieu.

Aodelinear omodode funcionamentodoque chamouaparelhode linguagem, aparelhopsíquicoouaparelho de memória, Sigmund Freud apresentou um modelo de quantidades de energia semdeterminação intrínseca, ou seja, estímulos químicos, elétricos, energia e massas em movimentoprovenientes de fontes endógenas e exógenas, em um processo que ele próprio designou desobredeterminação.BreuermencionaasobredeterminaçãocomosendoumconceitocriadoporFreudem1893,nosEstudossobreahisteria,referindo‐seàsériearticuladadecausasdesencadeantesparaossintomas das neuroses e aplicando‐o às diversas formações do inconsciente. “O caráter principal daetiologia das neuroses é a sobredeterminação de sua gênese; ou seja, para dar nascimento a umadessasafecçõesénecessárioqueváriosfatoresconcorram”(FREUD,1973[1893/5]),p.142).

Freudexpressou,jáem1895,estenovoconceitodemodosurpreendentementeclaroepreciso.Refere‐seàdeterminaçãodeprocessospsíquicos“quepareceartificialporquenãoestáligadaafatoresfortes,massecundáriosque,aosemultiplicarem,ganhamforça”.Em1898,notexto“Omecanismopsíquicodoesquecimento”, Freud afirma: “A experiência ensinou‐me a insistir em que todo produto psíquico ésobredeterminado”.

NoclássicoAInterpretaçãodossonhos(1900),Freuddefineoconceitodaseguintemaneira:“cadaumdos elementos do conteúdo do sonho revelou ter sido “sobredeterminado”— ter sido representadomuitasvezesnospensamentosdosonho.”Nessetexto,defineasobredeterminaçãocomovinculadaàcontingência, dizendo que o tipo de determinação que constrói os sonhos parece artificial por estarligada a fatores secundários que, juntos, ganham força. Elementos de baixo valor psíquico adquiremforça,istoé,novosvalores.Écuriosoqueamaioriadosautoresdestacacomomecanismoscentraisda

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constituiçãodos sonhosa condensaçãoeodeslocamento;noentantoFreudnomeia três, incluindoasobredeterminação.

No mesmo livro, cap. VI, Freud se refere ao “conteúdo material da interconexão dos pensamentosoníricos”. No cap. VII, ele diz que “o sintoma tem pelo menos dois determinantes [...]. Tal comoacontecenossonhos,nãohálimiteparaosoutrosdeterminantesquepossamestarpresentes—paraa“sobredeterminação”dossintomas.Eoqueelechamadeterminante“éinvariavelmenteumacadeiadepensamentos”.

PoucosmesesdepoisdaInterpretação,Freudescreveumensaiochamado“Sobreossonhos”,ondeserefereaoconceitodeformamuitoclara:

Boapartedoqueaprendemossobreacondensaçãonossonhospodeserresumidanestafórmula:cadaelemento do conteúdo do sonho é “sobredeterminado” pelo material dos pensamentos oníricos; nãodecorre de um único elemento dos pensamentos oníricos, podendo sua origem remontar a toda umasériedeles.Esseselementosnãoprecisamnecessariamenteterumaestreitarelaçãomútuanosprópriospensamentos oníricos; podem pertencer às mais distantes e diversas regiões a trama dessespensamentos.Oelementooníricoé,nosentidomaisestritodapalavra,o“representante”detodoessematerialdiversonoconteúdodosonho.Masaanáliserevelaaindaumoutro ladodacomplexarelaçãoentreoconteúdodosonhoeospensamentosoníricos.Assimcomoasligaçõeslevamdecadaelementodo sonho a diversos pensamentos oníricos, também cada pensamento onírico isolado, em geral, érepresentadopormaisdeumelementodosonho;osfiosdaassociaçãonãoconvergemsimplesmentedospensamentosoníricosparaoconteúdodosonho,massecruzameentrelaçammuitasvezesnocursodesuajornada[grifosnossos].

NoCasoDora,escritoem1901,maspublicadoem1905,no item“Oquadroclínico”, Freudesclareceque“aregraéacomplicaçãodosmotivos,aacumulaçãoeacombinaçãodomaterialinconsciente—emsuma, a sobredeterminação.” No regime da sobredeterminação, forças fracas, elementos de baixaintensidade, com reduzido “valor psíquico”, ganham potência, adquirem novos valores, conformamforças fortes, vetores novos e mutantes de produção de efeitos. Cada elemento da cadeia depensamentos é "sobredeterminado", no sentido de que sua origempode remontar a toda uma sériedeles. Esses elementos não precisam necessariamente ter estreita relação mútua nos própriospensamentos; podem pertencer às mais distantes e diversas regiões de sua trama: “os fios daassociação não convergem dos pensamentos oníricos para o conteúdo do sonho, mas se cruzam eentrelaçammuitasvezesnocursodesuajornada”.

O inconscientenãoé lugar (portanto,nãoháumsubconsciente,comoqueraindahojeuma literaturapsicanalíticanorte‐americana);nãoémisteriosonemprofundo (mas semqualidades); trata‐sedeumsistemapsíquicovirtual;desconheceacontradição,éatemporal,semsentido,anãoserporacréscimo;nãolinear→emrede;nãocronológico→lógico;nãohistórico→ficcional.Osistemainconscientepodeser entendido a partir de critérios inusitados: verdades parciais, contingentes, plásticas, virtuais esempre dinâmicas, prontas a rearranjos. Neste sistema, o presente constitui o passado e o futuro éretroativo. Sua idéia de motivos sobredeterminados ganha força com o conceito de “sériescomplementares” que seriam: disposições inatas + fatores acidentais + influências do meio +desencadeante+reaçõesdosujeito+oacaso.

EmAInterpretaçãodossonhos(1900,p.666),Freudfalaexplicitamentedoaparelhopsíquicocomoum“tecidoreticular”.Taldescriçãodoprocessopodeserassociadaàidéiaderede,ondeoselementosemsi têm baixa significação diante do fenômeno, porém quando analisados como sistema apresentamtopologiascomsentidosnãoobservadosnaspartesisoladas.Hoje,comasteoriasdacomplexidadeeofenômenodaRede,web,Freudvemsendorevistoeseconstataquãoavançadaerasuavisão,tendoeledesenhado algumas vezes o fenômeno psíquico como uma rede. Neste sentido e em tantas outrasdireções, Freud trabalha com referenciais lógicos fortemente afastadosdosmodelos de sua época.Aobra freudianaéparticularmente inusitadaquando tomamosas ciênciasexperimentais,dentreelasapsicologia, como parâmetro. Assim, ele rompe com a ciência positivista que tem no conceito suaunidadeteórica,umatratorparaoqualconvergemaslinhasdeforçadomodeloeparaoqualnãohápossibilidadedeodescrevercompropriedadesfracasouparadoxais.

AcausalidadeaqueserefereFreudéanteslógicadoquepsíquica,sendoconstituídaporleiseefeitosdalinguagem.Taisleisencontramnosmecanismosdecondensaçãoedeslocamentosuasinvariantesetornam‐seimprescindíveisparaacompreensãotambémdoconceitofreudianodememória.Aoexplicaro processo de deslocamento nos sonhos, Freud desestabiliza idéias consagradas de centro e

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importância. Recorre à expressão “diferentemente centrado” ((FREUD, 1973 [1900], p. 532) paracaracterizarmecanismosnosquaiselementosoníricosseapresentamcomotendograndeimportância,aotempoemqueoutros,cujamanifestaçãomostra‐seirrisóriaousecundária,assumemrelevâncianodiscursodopaciente.

A obra de Freudnão constitui, rigorosamente, um trabalho conceitual, emque se poderiam localizardefiniçõesdetermos.Nãohácomodizertambémquesetrata,dopontodevistaepistemológico,deumsistemadepensamentomonista(pornãosedeixarreduziraumprincípio,causa,direção),dualista(poisnão há, de modo geral, duas substâncias opostas e irredutíveis), tampouco plural ou eclético. Se àpsicanálisecabeorótulo,derestodiscutível,deciência,seriaapartirdeumaoutraenovaconcepçãodeciência;umamaneiradepensá‐laquecaibaosingular,queacolhaoacontecimento,doqualsomentesepodemextrairconseqüências,semprevisão.Aodizersingular,queremossublinharquenãosetrata,pelomenosaqui,deconfundi‐loouaproximá‐loaoparticular,categorialógicareferidaaouniversal.Oparticular envolve uma idéia de generalização, de grupo, amostra, sendo uma forma de acesso ereferênciaaouniversal.Osingularnãotemcomohorizonteanoçãodeuniversal,tãocaraàmetafísica;é um evento irrepetível, irreversível, não previsível, sem correspondência biunívoca com um lugaresperadonateoria.

Em1958,Lacan retomaoconceitodesobredeterminação,numroteirodacomunicaçãoque fariaporocasiãodeumcongressoemBarcelona.Dizele:“Queosubstratobiológicodosujeitoestejaimplicadonaanáliseatéofundonãoresulta,emabsoluto,queacausalidadequeeladescobresejaredutívelaobiológico.Oqueéindicadopelaidéia,primordialemFreud,desobredeterminação,nuncaelucidadaatéhoje” (LACAN, 2003, p. 174). Além de Lacan, outros pensadores influentes do século XX utilizaram oconceitofreudianodesobredeterminação.

Althusser escreveu um capítulo do seu livro A favor de Marx (1967), intitulado “Contradição esobredeterminação”,noqualdiscuteasdialéticashegelianaemarxista,apresentandoatesedequeoconceitodecontradiçãohistóricaemMarxsupõeumasobredeterminaçãodeforçasprovenientesdasdiversasinstânciasquecompõemaestruturasocial.Assim,deacordocomainterpretaçãodeAlthusser,sobredeterminação seria justamente o fator que opõe a contradição sustentada por Marx àquelaconceituada por Hegel. Para nós, importa ressaltar deste aporte trazido por Althusser acerca dasobredeterminaçãosuacompreensãodocaráternãobinárioeanti‐essencialistadoconceitofreudiano.Emoutraspalavras,foianecessidadedesuperarconcepçõesdualistas,essencialistasehierárquicasdedeterminação que levou Freud a propor este fértil e atual conceito. Dessamesmamaneira, ao ler apropostadeMarxdeinverterométododialéticohegeliano,substituindoaperspectivamísticaedando‐lhe racionalidade, Althusser encontra na sobredeterminação a possibilidade de reverter uma lógicalinear,contrapondo‐aàlógicacomplexa,naqualoprocessocoincidecomaproduçãoeasinstânciasdedeterminação são, a um só tempo, determinantes e determinadas, em constante retroalimentação.Mais que isso, nenhuma dessas instâncias ou fatores pode ser reduzida a uma causa ou deduzida apartirdela.

CONTINGÊNCIAEREDESDESOBREDETERMINAÇÃO

Comovimos,acategoria‘acidente’(contingência)foiformuladaporAristóteles,recuperadaporPascaleaplicadaporFreudnaformulaçãodapráticapsicanalítica.Acategoria‘sobredeterminação’foipropostaporFreudparaoentendimentodoaparelhopsíquico,sistematizadaporLacanembases lingüísticaseaplicadaporAlthusser na análise das formações sociais. Temos aí, portanto, o embriãodeumanovamodalidade de causalidade, na verdade, uma determinação que não émecânica, linear ou preditiva,mas dinâmica e complexa, derivada de múltiplas determinações, delineando um dos conceitospotencialmentemaisrevolucionáriosdaobradeFreudecuriosamentepoucoexplorado.

Num projeto de reconstrução conceitual da Epidemiologia, embasado numa base epistemológicarobusta,aarticulaçãoteórico‐metodológicadascategorias‘contingência’e‘sobredeterminação’assumepotencial relevância e aplicabilidade no que diz respeito às proposições teóricas que posteriormentevieram a compreender o paradigma da complexidade (conforme o Capítulo 26, adiante). Podemosformalizar,aindaquedemodoesquemático,talproposiçãoapartirdeduasalternativasdemodelagemteórica.

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ConsideremosprimeiroadoençaDcomoobjetoidealcartesiano.OmodelomaisparcimoniosopossívelparaacompreensãodesuagêneseindiciaráumúnicoeexclusivofenômenooueventocomocausaC.Portanto:C→ D(leia‐se:“umadadacausaCproduzdoençaD”).Háduaspossibilidadesdetorná‐lomaiscomplicadocomomodeloexplicativo:

(a)DesmembrarCcomoprocessocausal;portanto:C[c1→ c2→c3]→ D.

(b)DecomporCcomoconjuntodecausas;portanto:C[c1+c2+c3]→ D.

Em qualquer caso, a formulação de C como causa (processo causal, conjunto de causas etc.) de Dimplica(oupretende)conhecimentoplenodomecanismogenéticodeD,permitindoprediçãoacurada(oucomgrausmensuráveisdeprecisãorelativa)dascondiçõesdeproduçãodeD.Emtermospráticos,oconhecimento etiológico de D propicia o desenvolvimento de tecnologias e a proposição de práticasparacontroledeCemanipulaçãodaocorrênciadeD.

O modelo explicativo resultante pode ser expresso idealmente como um mecanismo ou sistemamecânicodecausalidade,bastantefielaoconceitocartesianodeautômato.Observemosaindaqueaquia ocorrência de D é compreendida como causa eficiente num registro modal de necessidades (nosentidooriginaldadoporAristóteles).3

ConsideremosagoraadoençaDcomoobjetopascalinodeincerteza.Umaprimeiraaproximaçãodessaordem ao problema da determinação de D pode incorporar a noção de ocorrência relativa ouprobabilidadedeocorrência (pD)emvezdeocorrênciaabsoluta,unívocae certadeD.Nesse caso, acausaCpodesertraduzidaeoperadacomoproporçãodeintensidadeoufrequênciadeatribuiçãodeC,ouseja,comofatordeexposiçãorelativaC implicamaiorprobabilidadedeocorrênciadeD.Portanto:pC → pD. Como veremos neste volume, particularmente na sua Parte III, o chamado raciocínioepidemiológicoconstróieconsolidaestaestratégiadeformulaçãodeterminística.

Uma segunda aproximação pascalina ao problema da determinação de fenômenos da saúde‐doença‐cuidado permite radicalizar na abertura da determinação epidemiológica a modelos sob condiçõesreduzidas de certeza e previsibilidade. Trata‐se de incorporar a categoria contingência aos modelosexplicativos deocorrência deD, quepodem ser ampliados emescopoe graus de complexidadeparamodelosdecompreensãodesituações/estadosdesaúdeS,mediantetrêsopções:

(a)Considerarnomodeloapossibilidadede retroaçãoou recorrência,ondeoefeitoDouoestadoSretorna ao sistema como condição inicial. Portanto: C→ D→ C1→ D1→ ... Ct→ Dt ... ou,alternativamente,C→ S→ C1→ S1→ ...Ct→ St...,onde1atrepresentamdistintosmomentosnotempoemciclosrecorrentesdedeterminação.

(b)ConsiderarapossibilidadedeinteraçãoouemergêncianadinâmicadosfatoresdeterminantesdeSouD.Nesse caso, contemplam‐se as resultantes deC > [c1 + c2 + c3] e C < [c1 + c2 + c3]. Como sepoderáverificarnaParteIIIdestevolume,trata‐sedeinteração(sinergiaeanulação)oumodificaçãodeefeito,fenômenosbastanteconhecidoseexploradosnaanáliseepidemiológicaconvencional.

(c)Considerarredesdesobredeterminação(RSD), indicandotrajetóriasdedeterminaçãodeumadadadoença D ou de situações/estados de saúde S, desencadeados por contingências e não por fatorescausais.

Esta última opção constitui a novidade possível no presente projeto de exploração das basesepistemológicas da Epidemiologia. Para melhor compreender sua dinâmica e operarmetodologicamenteseusefeitoscomoestratégiadeproduçãodeconhecimento,propomosrecorreraodispositivo heurístico da rede (e eventualmente matrizes) de sobredeterminação. Redes desobredeterminaçãoRSDcompreendemoconjuntoarticuladodeelementosdosistemadedeterminaçãodeumadadadoençaDoudesituações/estadosdesaúdeS,tendocomonósouvérticesdaredetodososfatoresdealgummodoarticuladosouimplicadosnagênesedessaenfermidade.

AFigura2representaumaRSDdos transtornosdepressivos.Odestaquevisualeaposiçãocentraldaenfermidade em foco, na rede de conexões de determinação, são artefatos gráficos, claramentearbitrários,podendoestasecolocaremqualquerpontodarede.

3Vertambémocapítulo“Necessityandcontingency”deRobertNozick(2001,p.120‐68).

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[AQUIFIGURA2]

Numa rede complexa, a sobredeterminação opera mediante trajetórias de determinaçãodesencadeadasouprovocadasporacidenteoucontingência.Omecanismodasobredeterminaçãosituao tipo de determinismo que está em jogo, como vimos na elaboração freudiana, em sua naturezapolissêmica.Entreas suascaracterísticas,destacam‐se:amultideterminação;a impossibilidadedeserpreditivo, pois suas determinações apresentam‐se por retroação, o que significa dizer que sãoreconstruídas a posteriori. Finalmente, no registro da RSD a lógica em questão não é indutiva; édedutivaoudemonstrável,emborasejaindecidível.4

Numaperspectivaepidemiológicaconvencional,todososelementoscomponentesdessaredepoderiamserconsideradoscomofatoresderiscoparadepressão.Nessaabordagem,ainvestigaçãodoseuefeitosobre a ocorrência de transtornos depressivos em populações levaria em conta cada efeito emisolamentoou,nomáximo,eminteraçãocomoutrofatordamesmaordemdedeterminação,tomandoadepressãocomodesfechodoprocessocausal.

CONSIDERAÇÕESFINAIS

Neste Capítulo, vimos como, na tradição de Aristóteles a Descartes, a filosofia ocidental destaca‐se,pouco a pouco, da matriz religiosa para fundamentar o pensamento científico. Não obstante,acreditamosqueopensamentopascalino,quenãochegouavingarcomoprojetohegemônico,podeserútilparapensarmosareconstituiçãodocampoepidemiológicohoje,superandooparadigmacartesiano,dualistaedeterminista.

Nessa direção, buscamos problematizar no presente Capítulo as categorias (e seus referenciaisepistemológicos) a partir das quais a Epidemiologia constrói modelos explicativos de saúde‐enfermidade‐cuidado. Como conclusão provisória de reflexões em progresso, apresentamos algumasformulações preliminares de aplicação de categorias epistemológicas da filosofia e da psicanálise emdiálogo com a Epidemiologia – ‘contingência’ e ‘sobredeterminação’, para a construção de modelosteóricos de determinação do objeto epidemiológico. A partir dessas aberturas e exploraçõesconceituais, pretendemos ampliar o escopo de nossas intervenções e reflexões, visando superardualismos,lógicassimplificadoraseepistemologiasdatadas.

A perspectiva cartesiana linear se mostra limitada e incompleta em dois sentidos. Por um lado, setomarmos a representação reticular da RSD (como na concepção freudiana) como mais próxima darealidade epidemiológica, não faz sentido investigarmagnitude e direção de efeitos puros de fatoresisolados.Poroutrolado,tambémnãofazsentidotomarodesfecho(outcome,conformeaterminologiaepidemiológica tradicional no idioma inglês) como finalização de um processo linear suposto comoetiológico que gera, em indivíduos, em populações e na sociedade, o fenômeno complexo chamadosaúde(oudoença).

Alémdapossibilidadedesuplantartaislimitaçõesdomodelocausalcartesianoemesmosuaatualizaçãoprobabilística, a categoria sobredeterminação permite incorporar a idéia da contingência, nomodeloRSD,comofatordisparadoroupontodesencadeador[tippingpoint]detrajetóriasdedeterminaçãodadoençaDoudesituações/estadosdesaúdeS,naperspectivadeumaTeoriadaComplexidadeaplicadaàEpidemiologia.5

4Emmatemática,deduçãoésinônimodedemonstração.Nalógicadedutiva,chega‐seaumaconclusão(sentença,teorema)sobreaqualnãosepodeaplicarumjuízodedecisão;elaénão‐decidível(AUDI,2000).5TaisnoçõesserãoaprofundadasnosCapítulos5,6,26e29[N.Eds.].