Cartas de Um Viajante Frances1

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7/24/2019 Cartas de Um Viajante Frances1 http://slidepdf.com/reader/full/cartas-de-um-viajante-frances1 1/141 Cartas de um  Viajante Francês Edição de Fernando Alberto Torres Moreira e José Barbosa Machado Centro de Estudos em Letras Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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Cartas de um

 Viajante Francês

Edição deFernando Alberto Torres Moreirae José Barbosa Machado

Centro de Estudos em Letras

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

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Ficha Técnica

Título: Cartas de um Viajante Francês

Autor: Anónimo

© Copyright para a presente edição: Fernando AlbertoTorres Moreira e José Barbosa Machado

Introdução, fixação do texto e notas: Fernando Alberto Torres Moreira

Design gráfico, fixação do texto e notas: José Barbosa Machado

Todos os direitos reservados.

CEL, Centro de Estudos em LetrasUniversidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD)Vila Real, 2007

ISBN: 978-972-669-814-2

Depósito Legal:

Impressão e acabamentos: Publidisa

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Edição deFernando Alberto Torres Moreira e José Barbosa Machado

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IntroduçãoO Estado da Nação no século XVIII: o olhar do(s)

Outro(s)

Cartas de hum viajante francez a hum seu amigo rezi-

dente em Pariz 

1. As Cartas de hum viajante francez a hum seu amigoresidente em Pariz   surgem com a finalidade de reflectir eapresentar uma síntese dessa reflexão sobre «o carácter eestado presente de Portugal» o que se traduz na feitura de

uma espécie de relatório pormenorizado sobre a sociedadeportuguesa, do modo de ser das pessoas às suas práticas reli-giosas, da composição dessa sociedade ao modelo educativo,das riquezas naturais à indústria existente, da agricultura aocomércio, dos divertimentos mais comuns às práticas cul-turais, da memória histórico-cultural à identificação de umpresente, sem esquecer uma reflexão sobre a língua.

Trata-se de uma edição manuscrita feita em Parisno ano de 1784, com cento e dezasseis páginas (índiceincluído), composta por vinte cartas temáticas de tamanhovariado, para além de uma introdução e de uma conclu-são, apresentadas como tendo sido «traduzidas da lingoaFranceza na Portugueza por hum Portuguez assistenteem Pariz». A página dois tem inscrito um pensamentode Erasmo, usado como incipit ( Admonere volvimus, nonmordere, prodesse non laedere; Consulere moribus hominum,non offi cere ) que cumpre, como era uso, a função de captara benevolência do potencial leitor ao mesmo tempo que

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revela a intenção do autor, os seus propósitos, e dá o tom

para o documento que segue. Antes, porém, o tradutor redigiu uma advertência– Advertência do raductor –  onde, por sua vez, explicita assuas motivações, o porquê de publicitar este documento equais os objectivos que pretende atingir, afinal, também estaa razão que motivou a nossa escolha:

O meu fim foi utilizar aos meus patrícios, cujos defeitosestão aqui tão deligentemente notados, dar-lhes um claro es-pelho, em que vissem estas manchas, que afeiam a sua naturalformosura.

Queira o Céu, que neste tom, em que eu lhes ofereçoestas Cartas, as queiram eles aceitar e que tirem delas o fruto,que eu muito sinceramente lhes desejo. (p. 35).

Diz-nos ainda o tradutor que acedeu a estas cartaspor intermédio de um tal Monsieur de S., seu proprietário,que as recebeu enviadas pelo Cavaleiro de M. que, nos pri-meiros anos da década de oitenta do século XVIII, estiverana Corte de Lisboa.

É pela primeira carta – a única que está datada, Lisboa

2 de Fevereiro de 1782 (a data da publicação desta traduçãoé o ano de 1784) – que ficamos a saber que o autor estavaem Portugal já há três anos, uma estadia longa que assegu-ra, à partida, um bom conhecimento da matéria de que seocupará. É também pela primeira carta que tomamos co-nhecimento do porquê da redacção desses textos: fora o talMonsieur de S. que aconselhara o Cavaleiro de M. a viajar

pela Europa e que, especificamente, lhe pediu que «visitassecom mais cuidado o reino de Portugal, que pela pouca cor-relação, que tem com os mais domínios da Europa, e pelopouco que a sua Língua he conhecida no mundo (…) [lhe]

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fizesse alguns apontamentos, do que fosse observando, e que

vo-los remetesse para vos divertirdes, e instruirdes» (p. 37)Lembremos aqui que o tradutor identificara esta personagemcomo «sojeito bem conhecido pelos destintos talentos, e ele-gantes produções» (p. 35) o que explica o pedido formuladoao autor destas cartas.

Para o exame que faz de Portugal, o autor declara tercontado com a ajuda de muitos franceses que encontrou em

Lisboa e com os seus conhecimentos da língua portuguesaque considera quase a mesma que a castelhana (Carta 1ª);declara que o seu relato é o resultado de uma observaçãodirecta e que, por isso, para satisfazer a curiosidade do seudestinatário, exporá o observado «com imparcialidade,brevidade, e clareza» (idem), traçando um quadro bem fiel,lamentando-se não ter o “filosófico estilo” de Montesquieu

ou o “nervo e graça” do inglês Adison; verdades, é o que oautor afirma escrever, mas é exactamente por isso que fazum pedido ao seu interlocutor:

é que reserveis só para vós a colecção destas Cartas, porquese as comunicásseis, poderiam vir às mãos de algum Português,e conhecendo-se o seu autor, concitar-me isto à raiva de umanação, que eu estimo, a quem sou obrigado, e a quem não intentopregar verdades, pois nada me obriga a isso. (p. 38).

O tal Monsieur de S. não acatou o pedido (?) doCavaleiro de M. pois logo confiou aos olhos do tradutor,cujo nome pensamos ser J. F de Araújo – nome que veminscrito no canto superior esquerdo da página dois e cujaletra é semelhante à do documento. A não ser que, por detrásdeste pedido esteja aquilo de que suspeitamos, isto é: nãoseriam cartas da autoria de um viajante francês, pese emboraas tentativas de identificação com a literatura e cultura fran-cesas, e sim de um português exilado ou vivendo em França,

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francófilo como tantos outros deste tempo, e que terá usado

este subterfúgio para publicitar a sua opinião sobre o paísnatal – não seria impunemente que alguém faria revelaçõesdeste quilate sobretudo em matéria religiosa e sobre a Igrejaem geral. As suspeitas acumulam-se por, na «Conclusão destapequena obra», a assinatura que lá vem – O Cavaleiro de H.– não coincidir com a registada na Carta 1ª – o Cavaleiro deM. – e adensam-se porque os propósitos do segredo pedido

na primeira carta, e repetidos na conclusão, para além dosmuitos sinais que se vão espalhando por todo o conjuntodas cartas, são contrariados pela ideia de uma «Conclusãode uma pequena obra» que, por ser uma obra, remete paraa intenção de publicação, e depois porque o autor, que serevela um adepto das Luzes e que assim se assume comoum filósofo ou homme d’esprit , na previsão de virem a ser

conhecidas as suas opiniões sobre Portugal, desenvolve umargumentário prévio em sua defesa, pondo mesmo a hipótesede ser português («Porém eu quero conceder, que eu era Por-tuguês; e que escrevia as minhas cartas para se divulgarem;com que motivo podíeis vós culpar a minha empresa?» p.138), recusando ser julgado pelo povo ou por «a um con-gregado, e ajuntamento de todos os vícios, e preocupações»

(p. 139), mas apenas e só pelos «espíritos ilustrados pelasluzes da Razão, e das Ciências» (id.) que darão um «sorrisode aprovação» ao seu trabalho, um trabalho de um «sábio[que] caminha contra as opiniões vulgares, e segue umaderrota contrária à multidão.» (p. 139).

Será o autor, de facto, um viajante francês? Ou antesum português disfarçado que se temia de uma Inquisiçãoainda actuante e de uma Intendência persecutória que en-viava para o Limoeiro qualquer suspeito de heresia? Acei-temos para já, e por falta de melhor informação, a verdadedo documento.

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2. Depois de uma referência à situação geográfica

privilegiada do país, ao seu bom clima, às suas riquezasnaturais, aos produtos que produz para concluir que «Por-tugal abunda em tudo quanto he preciso para a vida, quantoapetece para o gosto» (Carta 2ª), o viajante francês reflectesobre o carácter dos portugueses, seus costumes e usos de-clarando ser essa reflexão produto das suas observações daspessoas de Lisboa e das províncias por onde diz ter viajado,

e das informações recebidas de muitos franceses residentesem Portugal, particularmente de uma abade que aí residiahá longos anos.

Os portugueses são mostrados como «mais sóbrios,animosos, e fortes que os castelhanos (…) mais sofredoresdo trabalho, e mais atrevidos para os negócios da paz, e daguerra»; por isso, por esta “louca audácia” (expressão que cita

de Paulo Jóvio) mostraram ao mundo «espantado países nun-ca dantes sonhados, nem conhecidos» depois de enfrentaras «carrancas do imenso oceano». A par destas qualidades,encontra o viajante nos portugueses a marca da brutalidadee da vingança – vingativo e ciumento são características doportuguês que o autor liga à nossa raiz mourisca – apontandoas rixas frequentes em que o uso da faca é uma constante,

consequência directa de um porte generalizado de armasque nem uma lei proibitiva de D. João V conseguia suster.Carl Israel Ruders, um pastor protestante sueco que viveuem Portugal no final do século, para além de mencionar asobriedade do povo português, ainda registaria estes sinaisde violência quotidiana, de insegurança nocturna, commuita veemência,

 A minha estada em Portugal ser-me-ia muitíssimo maisagradável se eu não me visse sempre forçado a escolher entreduas aborrecidas alternativas: ou a ficar em casa, encerrado no

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meu quarto, apenas a noite desce, ou sair para a rua, com aimaginação sobressaltada, receando um bandido em cada pessoaque encontro. (Vol.1, Carta II, p. 79)

(…) a ideia da falta de segurança pública nas ruas, que,pelas exageradas histórias populares, se nos afigura maior do quena verdade é, reteve-me muitas noites em casa durante o últimoano. (Vol. 1, Carta VIII, pp. 87-88)

 A falta de segurança pessoal em Lisboa é actualmentemuito grande. Fala-se de vários assaltos à mão armada perpetra-dos seguidamente em diversos pontos da cidade (Vol. 1, Carta XXIV, p. 227).

enquanto o inglês William Beckford – que também assinaloua hospitaleira cortesia que distingue os portugueses – foipraticamente alheio a esta matéria tendo apenas exarado oseu incómodo perante «os abelhões humanos, que pulam e

bailam, e arranham bandurras desde o sol posto até à alvorada(…) [ou] a bulha suja da vadiagem insolente que percorre asruas em busca de aventuras» (IX, 29 de Junho 1787).

Entre os defeitos que encontra nos portugueses, oautor das Cartas... coloca em lugar de destaque a presunção eo desprezo com que tratam os estrangeiros, defeitos comunsao povo e gente instruída:

vamos a falar num gravíssimo defeito desta nação, do qualnão há quási pessoa, por mais polida que seja, que esteja isenta.É este a demasiada presunção, que esta nação (ainda mais que acastelhana) tem de si, e o sumo desprezo, e enjoo, com que trataos outros (Carta 3ª).

Para este “gravíssimo defeito” encontra o viajanterazões objectivas na pouca instrução, ignorância, no auto--isolamento dos portugueses instruídos que os leva ao fácilauto-elogio de que os autores nacionais – poetas, (Camõessobretudo) oradores ou historiadores – são um bom exem-

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plo porque «contínuos panegiristas da sua pátria» (Carta

3ª) e ao desprezo dos outros: «Basta que um homem nãoseja português, para ser aqui tido por ateu, por indigno,ignorante, falso, impostor». (Carta 3ª) Beckford, apesar dedizer ter sido sempre bem tratado, alinharia parcialmentenesta qualificação ao declarar que «em patrióticas jactânciase gabos nenhuma nação leva a melhor aos portugueses»(XXIV, 8 de Novembro 1787).

 Apesar de tudo, e por muito paradoxal que possa ser,estavam os nacionais pouco confiantes da qualidade dassuas realizações, dos seus produtos, apresentando a cegaconvicção do alheio extraordinário. Por isso, denuncia oviajante francês

a cega opinião, em que estão [os portugueses], de que

tudo o que é estrangeiro, vence incomparavelmente as obrasnacionais. Só porque um pano, um vidro, etc., é filho de Portugaltem perdido metade do seu valor, ao mesmo tempo que adquireum outro tanto, se é fabricado em França, Itália, Inglaterra, etc.(Carta 12ª).

concluindo:

Não posso concordar esta mal fundada opinião com a gran-de estimação que de si e de tudo o que é seu fazem os portuguesese com a desmedida presunção, que de si têm (Carta 12ª).

Finalmente, os portugueses são muito fiéis ao rei eà pátria, honrados, sérios nos negócios, pouco criativos sebem que bons imitadores, muito engenhosos e bons con-versadores, havendo alguns que pelo estudo e viagens seombreiam com o savoir faire  francês, o engenho italiano oua honra inglesa.

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3. A religiosidade dos portugueses mereceu, dos mais

variados viajantes, apontamentos diversos. Pilar da Con-tra-reforma e sede, por quase três séculos, de um Tribunaldo Santo Ofício, não espanta que o fervor religioso dosportugueses, alimentado por uma Igreja que incorporavauma verdadeira legião de membros em tudo atinente a umfanatismo visível, suscitasse aos viajantes do norte da Europaos mais variados comentários.

Convencido da importância que a religião assume,enquanto elemento estruturante, na definição do carácter deum povo, o viajante francês anónimo dedicou dez páginasdivididas por duas cartas nas quais aborda a religião dosportugueses (Carta 4ª) e expõe as características do cleroportuguês, secular e regular (Carta 5ª).

 A intolerância vem assinalada em primeiro lugar, sebem que Ruders, uns anos mais tarde, não deixe de notar queos clérigos portugueses eram geralmente polidos e educadoscom os estrangeiros protestantes; William Beckford, queparticipou como convidado em muitas cerimónias religiosas,é um bom exemplo desta tolerância para com o estrangeiro,não admitida ao nacional.

Em matéria de religião, refere-se o viajante francêsao Santo Ofício se bem que, nas suas palavras, não seja «aInquisição ainda hoje tão terrível em Portugal, como o foidesde os séculos da sua fundação até o reinado passado»(Carta 4ª), uma situação cujo mérito é atribuído à acção dePombal; mesmo assim, a Inquisição continuava actuante,como o denuncia Beckford ao relatar a perseguição e prisãoque viu sofrer uma cigana, que lia a sina, e foi arrastada porum familiar do Santo Ofício (X, 30 de Junho 1787).

 A profunda religiosidade conduziu, segundo o autoranónimo das cartas, a maior parte dos portugueses ao fana-tismo, à superstição, à cega credulidade como em nenhumoutro país. E explica apontando alguns exemplos:

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Não há parte alguma do mundo, onde as visões, revela-ções, milagres, e predições do futuro, sejam mais facilmente cri-das, nem mais cegamente respeitadas. Porque um simples clérigo,ou sacristão sonhou (se é que lho não fez sonhar o interesse) quequalquer imagem da sua igreja estava suando, porque de noitese viu uma luz sobre alguma imagem, cruz, ou ermida, não seaverigua mais nada: corre o povo em tropa, e o mais é, que correcom ele aquela parte da nação, que devia indagar as forças físicasda natureza, ou o poder da imaginação, e clamando todos a umavoz «milagre, milagre» erguem-se templos, penduram-se votos,correm de toda a parte povos espantados, fervem as esmolas, etriunfam muitas vezes os falazes impostores, que deram voz, ecarreira a este pseudo-milagre.

Porque uma beata nos seus misteriosos raptos, e ima-ginários êxtases, creu sentir uma voz interna, que a avisava damorte de um grande, do castigo de uma cidade, da perda deuma negociação: e porque tão facilmente, como creu este aviso,fruto de uma imaginação exaltada, o confiou ao seu confessor,presumptuoso ignorante, corre este logo a divulgá-lo; tremeo povo aterrado, venera-se a devota profetisa, é invocada emtodas as necessidades, qual outro Elias; e em pouco tempo sãocitadas as suas decisões, como as de um S. Francisco de Paula,ou Vicente Ferrer.

Porque uma pobre donzela, cruelmente tiranizada pelosbárbaros pais, vê embaraçado o casamento desejado e entra emconvulsões, e desatinos, é crida logo possuída do demónio; éexorcizada, guardada, e ida ver como um miserável ludíbrio doespírito infernal, quando ela só é uma triste vítima do amor.Porque um miserável enfermo padece uma febre lenta, e desco-nhecida aos médicos (que são muito ignorantes neste país) umamoléstia teimosa, e rebelde aos medicamentos, prontamente serecorre às armas da Igreja: têm feitiços, os bons clérigos, que obenzem; quási se atrevem a jurar, em que espécie do comer lhosderam, ou se os lançaram no mar. Inda isto não seria o peior:muitas vezes corre-se a consultar uma nova pitonisa de Endor,alguma bruxa, ou velha impostora, que à conta da sua infernalciência desfruta amplamente os pais, ou parentes do padecente(Carta 4ª).

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Exemplo semelhante nos deixou escrito Carl Israel

Ruders, na sua Carta XXIV, (Vol. 1, p. 223) relatando oaparecimento de um cadáver inteiro de uma pobre velha en-terrada havia 23 anos, facto que foi considerado um milagree elevou a senhora à categoria de santa. Conclusão do pastorsueco: «Todos os povos incultos são muito supersticiosos(…). Num país em que a religião de certa maneira favorecetais ideias, não é para admirar que a superstição encontre

mais fanáticos que em qualquer outra parte» (Vol. 1, Carta XXIV, p. 224).Provando a frequência com que a expressão da reli-

giosidade dos portugueses vivia de factos religiosos destequilate, também W. Beckford se viu participante no funeralde uma idosa inglesa que milagrosamente se tinha conver-tido à hora da morte, uma conversão que foi aproveitada e

declarada urbi et orbi  tendo o préstito sido acompanhado poraltas individualidades da Igreja e o caixão transportado pormembros da alta nobreza. Note-se que Beckford denuncia,na sua carta, a vida dissoluta que a senhora inglesa levaraem vida e que a conversão mais não fora que uma mano-bra de um estalajadeiro irlandês fanático e de dois padresmonsenhores.

Ignorância extrema e má educação cristã serão, no en-tendimento do viajante francês, as causas profundas de umareligiosidade tão particular. Não sendo tão comedido naspalavras como Ruders, o francês coloca a responsabilidadepor esta situação nas costas de um clero monstruosamenteignorante, que anatematiza «todos aqueles que pensaramdiverso deles» e que destorce a imagem «dessa filha do céu»que é a religião.

Vai mais longe, o autor, ao enfatizar as consequênciashistóricas, ainda hoje dramaticamente actuais, diríamos,dessa distorção dos ministros da Igreja e seus resultados:

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Esta é a razão, porque ela [a religião] tem produzidono mundo tantas guerras, cismas, heresias e desordens, porquequerendo os homens fazê-la servir aos seus particulares interesses,em breve tempo veio a ser causa de desordens aquela que veiotrazer a paz no mundo (Carta 5ª).

O retrato da Igreja em Portugal neste último quarteldo século XVIII é pintado a negro pelo viajante francês, corúnica que se deve, em sua opinião, a três factores:

a) a falta de educação, ou a péssima que se dá aos jovens;

b) o descuido das autoridades da Igreja;c) o prémio que se dá aos bajuladores e não aos que

por mérito o deviam receber.Resultado: o clero secular lê latim, mas não entende

o que lê; domina alguns princípios de moral, distingue os

sacramentos e limita as suas leituras ao missal e ao breviário;os poucos que frequentam a universidade fazem-no para aíficarem.

Consequência: «Aqueles que se destinam a curar al-mas, e a párocos, educam as suas ovelhas nos princípios deuma falsa devoção, que consiste toda numa prática minu-ciosa dos mais inúteis exteriores da religião, numa sujeição

cega ao poder eclesiástico, e num horror a tudo o que é genteinstruída, e ilustrada, a que eles prontamente caracterizamde ateus, ou hereges» (Carta 5ª).

Talvez por isso Ruders que, como já se disse, era umpastor protestante, assinalasse nunca ter ouvido, em Portu-gal, sermão de onde outro qualquer credo religioso pudessetirar qualquer préstimo (Vol.1, Carta IX, p. 109).

Do clero regular pouco mais abonatória é a opiniãodo anónimo francês: afirma ter um pouco mais de instru-ção (aponta até bons exemplos de religiosos regulares que«à força do próprio estudo se elevam ao conhecimento do

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sólido, e verdadeiro gosto nas ciências») vivendo a maioria

em perfeita ignorância e ociosidade, subsistindo à custa dasrendas dos conventos e das esmolas, para além de se ocu-par da direcção das beatas e freiras, e promover a intriga egoverno nas casas nobres, onde, em consequência, «nuncadeixa de haver desordens domésticas, queixas nos criadose faltas no essencial do governo da casa» (Carta 5ª). É esseo resultado da acção destes “divinos insectos”, como lhes

chama o viajante francês… isto é, levam a discórdia ao seiodas famílias que os acolhem. As procissões e romarias são, para os viajantes estran-

geiros que aqui compulsamos, o melhor exemplo desta ori-ginal vivência religiosa. Beckford, um dos ingleses mais ricosda sua época, não deixa de se extasiar ironicamente perantea opulência e riqueza ostensiva do cerimonial religioso e

membros do clero sem conta numa procissão do Corpo deDeus descrevendo como «uma infinidade de padres trazen-do luzidas e diversas bandeiras de seda pintada; rebanhosde frades macilentos, de hábitos brancos, pardos, e pretos,vinham saindo de envolta e sucessivamente, como bandosde perus levados ao mercado» (Carta IV, 7 de Junho 1787).Ruders, por seu turno, anotou a rica ornamentação de janelas

e varandas das casas lisboetas, os arcos festivos colocados nasruas e toda a cópia de padres das mais diversas ordens reli-giosas que se incorporou na procissão com os seus hábitos.

O autor francês, não fazendo qualquer descriçãoobjectiva de procissões ou romarias, invoca, para sustentara sua posição, uma proibição imposta pela Igreja primitivaàs vigílias e festas nocturnas junto aos sepulcros dos santosmártires; insurge-se, assim, contra as romarias e peregrina-ções a santuários porque, nas suas palavras, possibilitamas «maiores desordens da embriaguez e do deboche», tudoisto perante a complacência e estímulo de clérigos e frades

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que “dali trazem as copiosas esmolas de missas pedidas e de

outras rogadas» (Carta 5ª).O quadro parece exagerado, mas tem confirmaçãoplena num texto, deliciosamente irónico, que o Padre Fran-cisco Manuel do Nascimento, aliás Filinto Elísio, escreveulá do seu exílio parisiense, por essa mesma época, e onderelata uma procissão com todo o envolvimento profanoque a acompanha, traduzindo de forma muito viva e quase

perfeita, as observações dos visitantes estrangeiros:Carta ao M.al Luís de C.

Tu sabes o que vai? Houve cá hojeUma tal procissão, que é muito bonita.Leva tanto santinho!!! Tanta gente!!!E gasta a preparar-se tanto tempo

Que lá, do ano passado, cuidam nela.

Prontos os santos, prontos os andores, Janelas já pedidas, fatos feitos,Moças alvoroçadas, e peraltasTomava aos Irmãos sécios grão desgosto.  (…)Chega o dia feliz, e suspirado.

Começam logo c’o a alvorada, as moças A edificar no monte sem mioloCastelos vãos de flores, e de fitas, A vestir galas, a pegar cambraias  (…)Dão três horas. Começa-se o fadárioEspreitam-se as janelas, povoadasDe deusas, ninfas, damas e rascoas.

 A rua entra a ferver de ponta a ponta Com soldados, com frades, com lacaios,Com garotos, com cães, com ratoneiros.  (…)

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E a mãe, muito devota, intima a filha:«Não te arredes de mim. Não dês mais trela  Ao peralta, e se acaso o pé te pisa, Assenta-lhe à mão-tente um tapa-olhos».  (…)E o Menino Jesus vem feito Arqueiro!Mãezinha! Vem bonito. E um santo preto!!!Como vem luzidio!!! E este santinhoPoude entrar todo negro assim no céu?  (…)Mexe-se a gente toda…Apanha – Apanha Que é um ladrão, que leva dous relógios.Cá me falta o meu lenço. Ai a minha bolsa!Eis aí o de que estas funções servem! (Dizia um velho muito poupado, e rico)  (…)Este padre daqui, da cabeleira Loura, covinhado das bexigasQue vai ao pé do irmão do hábito rico,É quem fez este andor. – É muito douto!Ele é que deu a ideia disto tudoE é que achou as palavras, que escrevera O apóstolo santo André. Trabalhou muitoPara as achar, que faltam na Escritura.Mas tanto esgravatou, que deu com elas…

Eis que um velho de aspeito venerando,Que lhes ficara ao pé, entre a mais gente,Postos, nos dous, os olhos, meneandoTrês vezes, a cabeça, descontente,O nariz grosso, um pouco arrebitandoQue os dous, de perto, viram claramente;C’um saber só de experiência feito,Sorriu-se, e o mais calou no experto peito.

 A intolerância, o fanatismo, a superstição, a crendice, afalsa devoção são, entre outros, sinais de uma vivência religio-sa muito particular, em que sagrado e profano muitas vezes se

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confundem não se sabendo onde um acaba e outro começa,

e da qual a actuação do clero, aliada a uma ignorância gene-ralizada, é considerada como principal responsável.

4. No estabelecimento do estado da nação portuguesa,a mulher mereceu ao viajante desconhecido um destaqueparticular, não pelo facto em si já que outros também o fize-ram, particularmente no respeitante às características físicas,

mas pela apreciação sociológica que faz, mais concretamenteno que respeita ao papel (melhor seria dizer a falta dele) damulher na sociedade portuguesa setecentista. Duas frasesnos servirão para introduzir o conteúdo e, simultaneamente,para uma reflexão sobre o mesmo: a primeira refere o modocomo os portugueses tratam as suas mulheres,

 São sumamente ciosos das suas mulheres, filhas, irmãs,etc., e vivem aqui estas pobres em um duro cativeiro (Carta 3ª,p. 46).

 A segunda remete para as dificuldades sentidas pelasmulheres no acesso ao conhecimento, facto que determinaa sua realidade:

  Apenas uma mulher quer neste reino alevantar-se acima

das suas companheiras, aplicando-se às Artes e Ciências, quandologo se conspiram contra ela as vozes, não só das outras, porémmesmo dos homens, que a conhecem. Começam a proclamá-la ironicamente com o título de doutora, e a dizer que é umasoberba, uma ociosa, e que o tempo, que gasta sobre os livros,melhor fora que o gastasse na sua roca, e no governo da sua casa.(Carta 18, p. 116).

Se o italiano Giuseppe Gorani, que passou por Portu-gal nos anos de 1765-67, descreveu as mulheres portuguesascomo as «mais belas e sedutoras de todas as europeias» (p.

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143) mantendo por muito tempo a presença da mocidade

(exemplificou com a beleza da “velha” marquesa de Távora)e apresentando uma graça peculiar, de olhos negros e expres-sivos, dentes brancos e regulares, modos afáveis e naturais,gentis e delicadas, o pastor Carl Israel Ruders, trinta anosmais tarde, descobriu nas portugesas a mesma beleza, ama-bilidade, vivacidade, sensualidade e ternura (Vol. 1, Carta XIV, 156), a par de muito recato, tolerância com os capri-

chos dos maridos e serem boas mães. Homem comedido,registou também a abundância em Portugal de «figuras demulheres feias até à náusea (…) e de maus costumes» (Vol. 1,Carta XV, 163-5). A duvidosa orientação sexual de WilliamBeckford levou-o a olhar mais para o jovem D. Pedro deMeneses, futuro marquês de Marialva e para o adolescentecantor lírico italiano Gregório Franchi do que para as por-

tuguesas às quais se refere sem grande pormenor notando osseus rasgados olhos pretos, de “amorosas tendências”, o seucabelo “azevichado”, a tez morena, lábios rosados.

 À pena do viajante anónimo francês também nãoescapou o traço para descrever a beleza física da mulherportuguesa:

 As portuguesas são em geral muito belas e airosas. A suacor nem é tão alva como a das mulheres do Norte, nem tãofusca como as espanholas meridionais. Quási todas são muitocoradas, e quási todas têm excelentes cabelos pretos. Os seusolhos são vivíssimos, bons dentes e excelentes vozes muitoengraçadas. Nada deixou a natureza para adornar estas belaseuropeias (Carta 18ª).

Mas foi mais longe o autor, não se ficando por aquiloque, nos viajantes estrangeiros em geral, mais não é do quea expressão de objecto de desejo que quase nunca pode serconcretizado; procurou, este autor, estabelecer as causas que

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determinam o espaço que a mulher ocupava na sociedade

portuguesa.Com a excepção de algumas raras senhoras que se apli-cavam às belas letras e sabiam línguas, a mulher portuguesatinha uma educação que a levava a valorizar a formosuracomo tal sem tratar das coisas do espírito, não se dedicandoàs artes, ao conhecimento, vivendo como as plantas; porisso, a sua conversação é banal e andava à volta de modas,

enfeites, defeitos dos outros; são também fanáticas, visio-nárias e beatas, o que as fez integrar as procissões de muitosautos de fé inquisitoriais na condição de condenadas. Edu-cadas a sobrepor a beleza física às qualidades do espírito, ofrancês anónimo vê as portuguesas do século XVIII comosendo arrogantes e insuportavelmente convencidas. Notraje imitam as outras nações europeias; pela falta de luzes

e conhecimentos são pouco dadas a amizades; ciumentas,amam insípida, fervorosa e carnalmente sem a delicadeza quecaracteriza a arte de amar das outras europeias. No entanto,considera este autor que não cabe a culpa deste quadro àsmulheres e sim aos homens e à convicção instalada no paísde que as artes e ciências eram só próprias para os homens,hostilizando, como vimos antes, as mulheres que procura-

vam cultivar-se.Feita no ano de 1782, esta apreciação revela a manu-

tenção de um status quo que um Verney já denunciara noseu Verdadeiro Método de Estudar  em 1746-7 nos seguintestermos:

Certamente que a educação das mulheres neste reino

é péssima; e os homens quase as consideram como animais deoutra espécie; e não só pouco aptas, mas incapazes de qualquergénero de estudo e erudição. (Verdadeiro..., vol. V, Lisboa, Sá daCosta, 1953, pp. 148-9)

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E isto apesar de, no ano de 1759, António Nunes

Ribeiro Sanches nas suas Cartas sobre a Educação da Moci-dade , ao assumir para a sociedade civil o papel de educaros jovens refere especificamente a necessidade de ensinar asmulheres a ler porque “as maens, e o sexo femenino são osprymeiros mestres do nosso; todas as prymeiras ideas quetemos, provem da criação que temos das maens, amas, eayas». (Cartas..., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922,

pp. 189), isto é, Ribeiro Sanches aponta como elemento dedesenvolvimento social e educativo a aprendizagem da leiturapelas mulheres pois são elas as primeiras responsáveis pelaboa educação dos filhos.

Escrever, ou melhor, dedicar uma carta à mulherportuguesa e questionar o seu papel na sociedade é revela-dor de um sintoma de modernidade neste autor que, neste

particular, se guindou a um patamar de observação superiorao de muitos outros viajantes. Já que, como afirmou GeorgesDuby, não era possível fazer-se um juízo cabal e sério deuma sociedade sem dar conta, sem observar uma das duasmetades que a compõem. (G. Duby, O Rosto Feminino daExpansão Portuguesa , Congresso Internacional,  Actas , vol.I, Lisboa, CIDM, 1995, p. 15) Ora, parece-nos claro que

o anónimo francês estava tão consciente da importância dopapel da mulher na sociedade e das rupturas que daí adviriam,particularmente em Portugal, que deixou escrito: “se acasoas portuguesas tivessem tanto cuidado em se enriquecer deprendas pela arte e pelo estudo, quanto teve a natureza em asformar belas, seria Portugal um reino temível» (Carta 18ª).

5. O estado de desenvolvimento do país é o resultadoda profunda ignorância do seu povo e de uma educação dascrianças que, segundo o viajante francês, é muito deficiente(porque pouco disciplinadora) ou inexistente.

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 A agricultura é praticada em muito pouca escala e feita

de forma desordenada, e selvática e sem quaisquer critérios,uma situação que se arrasta desde os descobrimentos (queoriginaram um abandono do campo) e que se amplificoucom o desastre de Alcácer Quibir e consequente decadênciada monarquia portuguesa. Afirmando a sua convicção de quesó o Alentejo bastava para alimentar de pão todo o país, umaverdade tantas vezes ainda hoje repetida, o viajante explica o

caos agrícola do país porque é «quase sempre errada a escolhadas plantações (…). A vinha, aonde devia estar o olival; aseara, aonde devia estar a vinha; o olival, aonde devia estara seara» (Carta 11ª); a isto acrescenta a inexistência de viaspara o transporte dos cereais do interior e a falta de formaçãoespecífica (i. é, escolas) para quem trabalha a terra.

Mal a agricultura, o mesmo para as fábricas, apesar

das muitas e boas matérias-primas de que o país dispõe,e da qualidade dos produtos produzidos (ex. chapéus).Os esforços da governação de Pombal, (que destaca), nacriação e instalação de fábricas isentando-as de impostose concedendo-lhes privilégios (uma prática ainda hojerecorrente) gerou um aumento em número e qualidadeque no reinado de D. Maria I não teve sequência (excepto

a fábrica Stephen’s); para isto contribuiu também, segundo oautor, um factor muito negativo que enforma, como vimos,o carácter do povo português e que não favorece, de todo,o sucesso das fábricas e que é a ideia de que tudo o que éestrangeiro é melhor que o que é produzido em Portugal.Quanto ao comércio, o autor define-o como estando tutora-do pela Inglaterra, fazendo-se as trocas apenas entre as partesdo império, em circuito fechado, sendo certo também nãolhe é favorável a convicção enraizada no país de que «é vil,e indigno de um homem ilustre a profissão de negociante»(Carta 13ª).

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6. A língua portuguesa é, para o viajante francês, uma

das «mais legítimas filhas da latina (Carta 26ª), sonora, bre-ve, «fácil de se poder escrever como se pronuncia» (id.) nãosendo mais conhecida por culpa dos portugueses, o «povomenos comerciante da terra» (id.) e Portugal a «terra ondemenos se escreve, e compõe» (id.); destaca o furor tradutórioque o país vivia (uma situação que José Agostinho de Mace-do ridicularizaria) e a agilidade da língua portuguesa para o

efeito, condenando, ao mesmo tempo, a falta de estima dosportugueses pelo estudo da sua língua e o uso frequente dosfrancesismos, nos mais variados lugares, que conduz a umalíngua “lusitânico-francesa”.

 Assinala o autor a nossa presciência para a História,nomeando figuras como João de Barros, Manuel Faria e Sou-sa, Diogo de Teive ou Jerónimo Osório; na poesia, destaca

Camões, Diogo Bernardes e Bernardim Ribeiro juntamentecom Francisco Rodrigues Lobo e a sua Corte na Aldeia  (que já mencionara e citara para lisonjear a língua portuguesa);menção especial para a oratória de António Vieira. Contudo,o Cavaleiro de M. exprime o seu espanto porque «no séculopresente não têm os portugueses autor de maior nome: osque vivem hoje não passam de uns meros compiladores»

(Carta 7ª), uma observação arguta a que só escapam o bispode Beja, D. Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas, “eruditoem todo o género de literatura” e António Pereira de Fi-gueiredo pelo seu contributo na área do Direito Canónicoe História Eclesiástica, duas figuras quer homenageia peloreconhecimento que colhem, apesar de pombalistas e, emsua opinião, por se terem «já calado as vozes da inveja, e do

fanatismo» (id.) em relação a eles.É muito dura a crítica que faz ao estado das ciências,

universidades, colégios e escolas portuguesas. Nota, porém,o esforço dos Oratorianos nas ciências da Física, a criação

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da Academia de História e a reforma do ensino de Pombal,

a sua laicização, e em particular a reforma da Universidadede Coimbra (Carta 8ª). Não deixa de referir a inversãoocorrida com a chegada de D. Maria I ao poder – aboliçãode algumas disciplinas como línguas, retórica e filosofia, oregresso dos jovens aos domínios dos frades – e quão negativafoi essa acção, «pernicioso golpe (…) para a educação dosmancebos, e para o adiantamento das artes e das sciencias

(id.); positivo, com D. Maria I, a criação da Academia Realdas Ciências, pelo Duque de Lafões.

7. O suporte para todas estas apreciações encontra-oo autor na caracterização que faz dos reinados de D. JoãoV e de D. José I.

Notando as opiniões divergentes sobre a qualidade de

governação de D. João V, o viajante começa por frisar a suadeficiente educação e a relação quase doentia do monarcacom a Igreja: «No seu reinado era todo o Portugal humconvento; não se viam mais que clérigos e frades» (Carta19ª); destaque também para os amores freiráticos do rei,aqui tratado com ironia (id.). Os gastos sumptuosos deD. João V merecem também referência fosse pela construção

do Convento de Mafra, fosse pelos benefícios concedidosà Igreja e seus membros. A governação joanina conduziuo povo ao fanatismo, à falsa devoção, instigou o luxo noseclesiásticos e povoou os conventos de homens e mulheressem qualquer vocação, situação que persistiria muitos anosapós a sua morte.

D. José é identificado como possuído de um génioflexível, sendo tímido, fraco, imbecil, crédulo e preguiçoso,caçador e amante da música que pôs o governo do país nasmãos de Sebastião José de Carvalho e Melo, um ministro que«mudou tudo em Portugal de baixo a cima» (Carta 20ª).

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Defendendo que as opiniões que exprime sobre Pom-

bal são produto de uma reflexão madura resultante de quantoleu e ouviu sobre ele, o viajante francês apresenta-o como umambicioso sem limites que não olhava a meios para atingir osfins. No resumo que faz do consulado pombalino, o destaquevai para o controlo dos grandes do reino, para a reformulaçãolegislativa, para o corte de relações diplomáticas com a SantaSé, o controlo da Inquisição, a proibição de perseguição aos

 judeus, a criação da escola pública: Mas o homem que fezisto é o mesmo que encheu as prisões, criou o Tribunal daInconfidência (uma “Inquisição civil”) para julgar os seusopositores, numa demonstração inequívoca de tirania edespotismo pessoais. O Cavaleiro de M. recusa para Pombalo que muitos consideram ser um dos seus maiores feitos, opapel de principal responsável pela extinção da Companhia

de Jesus, cometendo esse feito ao papa Clemente XIV que julgou em função de um amplo movimento europeu contraos jesuítas; para ele, Pombal foi «hum homem muito menor,do que o querem fazer os seus apaixonados. Teve grandesvícios, nenhumas virtudes e pequenos talentos» (Carta 20ª).Camufladamente, o autor acusa Pombal de maçónico por-que responsável pelo «espírito de irreligião e libertinagem»

(id.) no país, uma situação mais grave que a do fanatismoreligioso herdado de D. João V.

Concluindo: O olhar que o viajante francês anónimolança sobre Portugal definindo o estado da nação é o olharde um outro que procura deixar-nos uma visão “científica”,objectiva, alicerçado num quadro de veracidade e seriedade

que repetidamente reclama como que pretendendo desfazera perspectiva unilateral que, afinal, é a sua. Frise-se, no en-tanto, que se é verdade que foi a partir do século XIX, como Romantismo, que surgiram autores com o propósito de

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escreverem a sua viagem, o anónimo francês das Cartas... 

antecede claramente essa tendência já que não é um escritorcasuístico como o foram William Beckford ou Carl IsraelRuders, e sim alguém que, claramente, veio a Portugal parado país dar a outrem as suas impressões, confirmando, ounão, o que dele ouvira falar ou sobre ele lera.

Como escreveu acertadamente Ana Vicente, afinal «ele[neste caso o viajante francês] é o observador e não o observa-

do» (in  As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangei-ros , Lisboa, Gótica, 2001, p. 40), é o detentor do poder já quenão se confronta com ninguém, não se expõe directamenteao objecto da sua observação. O outro sente-se diferente e oque escreve é o resultado da sua superioridade.

Fernando Alberto Torres Moreira 

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Critérios de edição

 A edição que apresentamos neste volume baseia-se nomanuscrito do Mosteiro de Alcobaça sob a cota antiga E-2-42existente na Biblioteca Nacional em Lisboa, de que conseguimosfotocópia a partir do microfilme.

 As normas de transcrição por nós adoptadas nesta ediçãoforam as seguintes:1. Actualizámos a ortografia de acordo com o uso actual,

excepto quando havia peculiaridades fonéticas, de que se desta-cam: incargo, deligência, presumptuoso, inda, cemetério, ceremónias, florecem, floreceu, ingenhoso, devertem, laboira, artelharia, interter,intertenimento, destintivo, artefício, similhante, sustância, peior,

testimunho.2. Mantivemos a pontuação original, acrescentando, sem-pre que o contexto assim o exigia, o ponto final.

3. Reduzimos o uso das maiúsculas nos nomes comunse nos adjectivos. Exemplos: Na Plebe  > Na plebe ; tantas CasasGrandes neste Reino > tantas casas grandes neste reino.

4. Sempre que o contexto pressupõe uma letra ou uma

palavra que foram elididas por esquecimento ou distracção doredactor, acrescentámo-las entre parêntesis rectos. Exemplos:Enfim esta [é] uma das mais bem dirigidas e asseadas fábricas de todaa Europa ; as terças partes do[s] rendimentos das igrejas .

5. Corrigimos as gralhas, dado conta delas em nota derodapé. Exemplo: Foltalecei  > Fortalecei .

6. Identificámos as palavras interlinhadas dentro de < >.Exemplo: Não <creio> que seja ser amigo da Igreja .

7. Identificámos as passagens de difícil leitura entre pa-rêntesis rectos.

8. Desdobrámos as palavras abreviadas, transcrevendo-asem itálico.

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Cartasde um

 Viajante Francêsa um seu Amigo residente em

ParisSobre o carácter e estado presente de

Portugal:

Traduzidas da Língua Francesa na Portuguesa 

Por um Português assistente em Paris

Paris1784

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 J. F. de Araújo [assinatura ilegível]

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 Admonere volvimus, non mordere, prodesse non laedere;

Consulere moribus hominum, non offi cere.1

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1 Erasmo, Martino Dorpio Theologo Eximio S. D. (Antuerpiae,mense Maio, 1515): «Admonere uoluimus, non mordere; prodesse,non laedere; consulere moribus hominum, non of ficere.»

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 Advertência do

 Tradutor

 A grande amizade, que desde que estou nesta Corteconservo com Mr. de S. sujeito bem conhecido pelos destin-tos talentos, e elegantes produções, fez com que ele confiassedos meus olhos a presente colecção de Cartas, que o Cava-leiro de M. lhe dirigiu enquanto esteve na minha pátria, eCorte de Lisboa. Agradou-me tanto a clareza, ingenuidade,

e conhecimentos, que este Estrangeiro mostra dos defeitosda nossa Nação, que julguei lhe faria um grande serviço sepublicasse no nosso idioma estas preciosas Cartas. O meu fimfoi utilizar aos meus patrícios, cujos defeitos estão aqui tãodeligentemente notados, dar-lhes um claro espelho, em que  vissem estas manchas, que afeiam a sua natural formosura.

Queira o Céu, que neste tom, em que eu lhes ofereçoestas Cartas, as queiram eles aceitar e que tirem delas o fruto,que  eu muito sinceramente lhes desejo.

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Carta 1ª

Meu querido Amigo. Muito bem me lembra o incar-go, que vós me fizestes quando saí dessa Corte para fazer aminha viagem da Europa, de que visitasse com mais cuidado

o reino de Portugal, que pela pouca correlação, que tem comos mais domínios da Europa, e pelo pouco, que a sua Línguaé conhecida no mundo, está ainda muito escondido paraqualquer pessoa instruída, que deseja, sem sair da sua pátria,formar um justo conceito dos reinos e nações.

Pediste-me também que fizesse alguns apontamentos,do que fosse observando, e que vo-los remetesse para vos

divertirdes e instruirdes. Posso assegurar-vos, que estas duasencomendas foram a causa de eu me ter aqui detido tanto.Passam de três anos, que aqui vivo: não tenho poupadodeligência alguma para formar uma justa ideia do carácter,estado, e espírito dos Portugueses.

 A multidão de Franceses, que vivem na Corte de Lis-boa, e o conhecimento que eles já têm da Nação, me ajudousumamente ao meu exame. Da língua já tinha bastanteconhecimento em França, pois a muita paixão, que sempretive pelos bons autores castelhanos, cuja língua é quase amesma, que a portuguesa, me abriu muito os olhos parafazer as minhas observações.

 Assim, posso dizer-vos, que presentemente me acho

em estado de vos oferecer um quadro bem fiel, do que é estebelo país tão pouco conhecido, e tão digno de o ver. Voupois satisfazer a vossa curiosidade em uma série sucessiva deCartas, nas quais irei expondo o que tenho observado, com

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imparcialidade, brevidade, e clareza. Oxalá, que eu tivesse

o filosófico estilo do nosso sábio académico, que escreveuo Quadro de Paris , em que tão judiciosamente apontou osnossos defeitos; ou o nervo e graça do famoso Adison1, quecom o seu Spectador  foi o médico da sua nação!

 As minhas Cartas não terão outra ordem, destribuição,ou liação, que aquela, que me for oferecendo a memória;imitando nisto ao nosso La Bruyère que com esta mesma

ordem pintou tanto ao vivo os caracteres deste século.Preparai-vos pois, par a ouvirdes verdades. Como vós

não sois Português, não temo ofender-vos, nem intentolisonjear-vos. O que somente vos peço, é que reserveis sópara vós a colecção destas Cartas, porque se as comunicásseis,poderiam vir às mãos de algum Português, e conhecendo-seo seu autor, concitar-me isto à raiva de uma nação, que euestimo, a quem sou obrigado, e a quem não intento pregarverdades, pois nada me obriga a isso.

 Adeus, meu querido amigo, tende saúde, e amaisempre o vosso

 Mais fiel amigo

  O Cavaleiro de M.

Lisboa 2 de Fev erei rode 1782

1 Joseph Addison (1672-1719), político e ensaísta inglês, quefundou o periódico Spectator  com Sir Richard Steele. O periódicofoi traduzido para francês com o título Le Spectateur, ou le Socratemoderne, ou l’on voit un portrait naïf des moeurs de ce siecle, e publicado entre 1714 e 1726.

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Carta 2ª

Situação, e produções de Portugal

Principio, meu querido amigo, esta minha Carta pelo

modo mais natural, que me é possível, descrevendo-vos asituação, e as produções de Portugal, ainda que  nisto sereimais breve, do que nos mais artigos, pois uma simples vistade olhos ao Atlas de Mr. Robert vos dará um claro conhe-cimento da posição deste reino; e os Livros de Viagens , ouqualquer Dicionário Geográfico  vos pode ilustrar sobre assuas produções. Contudo para seguir a ordem, que devo ao

meu assunto:O Portugal é uma parte da Península das Espanhas,

em que jaz encravado, e a parte mais ocidental delas. Po-demos-lhe chamar, ou a base deste famoso reino ou a suacabeça como lhe chamou o famoso Camões, um dos pri-meiros poetas portugueses. A sua maior extensão do Nortea Sul, será pouco mais, ou menos de cem léguas: a largura,de quarenta, e a circunferência de trezentas. Não tem outrosvizinhos que o Mar Oceano pelo Sul, e Poente, e Castelapelo Norte e Oriente, que o vai cercando sucessivamentecom os reinos de Galiza, Leão, Estremadura, ou Castela aNova, e Andaluzia.

 Já vedes, que a sua situação é muito vantajosa: pela

vizinhança do grande oceano para exportação dos seus fru-tos, e importação dos alheios, comunicação com todas asProvíncias da Europa; e pelos poucos potentados vizinhos,que se reduzem só a Castela, com quem mantém uma boa

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amizade cimentada com recíprocos casamentos e tratados.

 A natureza do país é vária: mais montuosa que plana;o que o faz tão fértil de bons vinhos, que já vão competindocom os melhores da Europa; e que sendo susceptíveis de umgrande melhoramento, podem com o andar do tempo vir ater a primazia entre todos. Posso assegurar-vos, que tendobebido vinho das vizinhanças de Lisboa, que em nada cedea famosa Malvasia e Canarias.

Os famosos rios, que regam o país, uns filhos dele mes-mo, e outros originários de Castela, como o decantado Tejo,Minho, e Douro, e outros o fazem muito fértil de quantoé preciso, e delicioso para a vida. Com efeito, só de vinhosdo Douro, se tem embarcado para fora daquela cidade, emalguns anos, passante de 4oooo pipas. Os Ingleses são quemfaz deles o maior tráfico.

O seu azeite é muito, e precioso, apesar do pouco, queo trabalham, e da ignorância total, em que os Portuguesesestão desta parte da agricultura. Produz muito, e bom mi-lho, em especial a Província do Minho, e Beira. A menorabundância, que tem, é de trigo; e isto talvez pelas causas,que ao diante vos direi.

 As suas frutas são muitas, e deliciosíssimas: dão-se aquitodas as da Europa, e ainda algumas da Ásia, e da América,prova bem evidente da bondade do terreno. As laranjas, emespecial, são de uma formosura, e sabor, muito maravilhosos.Quase todas as casas de campo dos arredores da Corte (aque aqui chamam quintas) são povoadas de bosques imensosdeste belo fruto, cuja vista, e olfacto nos forma uma ideia do

formoso Paraíso de delícias, que habitaram nossos primeirospais, e que o encantador Milton tão deliciosamente nosdescreve no livro IV do seu Paraíso Perdido.

Pelas férteis campinas deste reino pastam numerosos

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gados que bastam para o consumo do seu povo. Os bois são

muito formosos: e a carne dos porcos da Beira, e Alentejo,muito saborosa.Os seus montes se vêem cobertos de muitas e preciosas

madeiras, e o seu centro prenhe de excelentes minerais, emármores. Quási todos os de que é composto o belo Con-vento de Mafra, obra do rei D. João o Vº, de que vos falareia seu tempo, vieram das vizinhanças da mesma vila, e dos

montes de Sintra. Do mesmo modo se acham em mais, oumenos quantidade, minas de cristal de rosa, azeviche, ferro,rubins, esmeraldas, granitos, mármores, jaspes, ouro, prata,estanho, chumbo, ferro, e outras várias produções desta partedo reino da Natureza.

Os bosques estão povoados de muita, e boa caça: osrios, de excelente pescado, entre os quais têm o supremolugar, a lampreia, e o salmão. Da primeira espécie há maiorabundância nos rios Douro, Mondego, Minho, e Tejo.O mar ainda que sumamente tempestuoso, como parte da-quele imenso e tormentoso golfão, que nos separa do novomundo por tantos centos de léguas, e que vem bater em umacosta aberta e seguida, que corre sem fazer abra, ou enseada

alguma, o espaço de cem léguas Norte Sul: contudo oferecebastante pescaria de sardinhas, cavala, pescada, atum, chernesetc. e outros muitos peixes não conhecidos na nossa pátria:do mesmo modo abunda em muito, e bom marisco.

Enfim por cumprir com o meu propósito de ser breve,e muito mais nesta Carta pela razão já enunciada, já vósvedes, que Portugal abunda em tudo quanto é preciso para

a vida, e ainda em tudo quanto apelarmos para registo.Em um tão abundante reino com um clima tão

temperado, qual é este, estando todo o reino situado entre37 e 44 graus de latitude austral, pôs Deus esta feliz nação

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portuguesa, de que tanto se tem falado na Europa pelos seus

Descobrimentos, acções, e conquistas, e de cujo carácterpassarei a entreter-vos na seguinte Carta. Sou etc.

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Carta 3ª

Carácter dos Portugueses, seus costumes,e usos

Meu querido amigo. Parece, que vou desmentindo,o que vos prometi na minha primeira Carta, de que nãoguardaria outra ordem, que aquela, que a memória me fosseoferecendo. Principiei falando-vos da terra; agora o vou afazer da gente, que a habita. Porém até aqui a natureza doassunto estava pedindo esta mesma ordem, que ao depois ahei-de deixar, e seguir unicamente as matérias, que  se foramoferecendo.

Para formar uma verdadeira ideia do carácter dosPortugueses, não só me vali das minhas observações, com-binando os génios dos habitantes da Corte, e das Províncias,que tive ocasião de tratar nas minhas viagens: porém con-sultei alguns Franceses instruídos, que vivem nesta Corte

entre os quais foi um o Abade... que pela longa residênciaque tem feito neste reino, está muito em estado de conhecerperfeitamente a nação.

Geralmente falando, os Portugueses são mais sóbrios,animosos, e fortes, do que os Castelhanos, seus vizinhos;mais sofredores do trabalho, e mais atrevidos para os negó-cios da paz, e da guerra. Do seu ânimo, e audácia têm dado

muitas e exuberantes provas nas longas, e vivas guerras,que têm sustentado contra Espanha, que nunca pôde fazersucumbir esta brava nação, senão quando ela se achava semforças, e quási moribunda depois da derrota do infeliz rei

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D. Sebastião em África. Foram os Portugueses os primeiros,

que com uma quási louca audácia, como lhe chama Paulo Jóvio insana navigatione oceanum protervecti , e cheios de umardor nunca visto, arrostaram as desconhecidas carrancas doimenso oceano e foram ver, e mostrar ao Universo espantadopaíses nunca dantes sonhados, nem conhecidos.

Muitos, e bons soldados, e generais tem tido dentroem Portugal, e fora dele. A gente da plebe, é muito supor-

tadora do trabalho. Os nossos vizinhos Ingleses fazem sumocaso das suas marinhagens, e pagam por um preço avultado.Depois da Campanha de 1762, em que o Marechal Príncipede La Lippe1 policiou a tropa portuguesa, é disciplinada àprussiana; e tendo ela muito diminuto soldo, contudo sofrealegre, e sem murmurar, o imenso trabalho, que sobre elacarrega.

Porém este mesmo valor degenera na baixa plebe embrutalidade. Não digo, que seja tanto como na Inglaterra;porém não é novo, nem raro ver neste país dar uma facada,ou mesmo matar um homem por uma causa a mais insig-nificante. São os Portugueses vingativos, e ciosos em sumograu: o que creio lhes provém da raiz mourisca de que pro-

cedem, cujo carácter influi tanto nas Espanhas. Manent adhic prisci vestigia ruris  2 . No reinado do Rei D. João Vº, avôda soberana reinante, ainda a nação estava no gosto qui-xotesco, e ridículo de andar no meio do dia, e das cidades,com umas longas espadas, a que chamavam estoques, e deoutras espécies, debaixo dos seus capotes. Todo o mundotrazia descaradamente armas ofensivas; eram por conse-

1 Conde de Lippe (1724-1777), militar alemão ao serviço dePortugal aquando da invasão espanhola de 1762, tendo um papelfundamental na reorganização do Exército Português.

2 Virgílio, Geórgicas.

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quência muito frequentes os desafios, as feridas, e as mortes.

Porém aquele soberano fulminou estes ridículos Cavaleiros Andantes com uma severa pragmática, que serenou mais obrutal, e mortífero gosto da nação, que hoje na gente polidaestá quási extinto.

Passemos adiante, e vamos a falar num gravíssimodefeito desta nação, do qual não há quási pessoa, por maispolida, que seja, que esteja isenta. É este a demasiada pre-

sunção, que esta nação (ainda mais, que a castelhana) temde si, e o sumo desprezo, e enjoo, com que trata os outros.Eu creio que isto provém da pouca instrução desta gente,pois alguns Portugueses doutos, e desabusados, que eu tra-tei, todos eram isentos deste vício; até mesmo um deles selamentou comigo deste defeito dos seus patriotas: «Um nossopoeta bem antigo, me disse ele, já confessa esta mancha, quetanto nos desfeia aos olhos do Universo, dizendo

Geralmente é presuntuosa 

Espanha, e disso se preza 

Com efeito, continuava ele, sai certo que pela mesma

medida, que medirmos os outros, seremos também nós me-didos, que triste figura não faremos nós aos olhos do viajantepolido, do filósofo imparcial, do político perspicaz, a quemsomente por serem estrangeiros nós tratamos por fezes daterra e  gens de rien, como vós lhe chamais antes restos daHumanidade? Quando nós estamos vendo a união, quecada dia vai reinando mais entre os povos do Universo, que  

à medida que as luzes da Filosofia se vão espalhando pelomundo, se vão julgando cada vez mais cidadãos da mesmacidade, espalhados em diversos bairros: quando estamosvendo isto, persistimos no nosso orgulho, e cada vez mais nos

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enfatuamos com a nossa formosura, e com o desprezo dos

outros. Ah! Quanto isto insta a um Português, que pensa!»Deste modo se explicava este sábio português: algum maisouvi discorrer quási pelo mesmo teor.

Com efeito não se acha nação na Europa que maisdespreze, e tenha em pouco as outras. Basta que um homemnão seja Português, para ser aqui tido por teu, por indigno,ignorante, falso, impostor, etc. Ainda que qualquer estrangei-

ro seja de uma família ilustre, aqui logo dizem a esse respeito:quem sabe cá quem é F.; pode dizer o que quiser, como é delonge, pode ser fidalgo. O mesmo dizem a todos os outroscapítulos, que formam o merecimento de um homem.

Este vão, e ridículo defeito, creio, que tem a sua origemem dois princípios. Na plebe, pela sua ignorância; na genteinstruída, pela leitura dos seus autores reinículos, pois nãohá nação no mundo, em que os autores tenham lisonjeadomais a sua pátria. Poetas, Oradores, Historiadores, todos auma voz são uns contínuos panegiristas da sua pátria: se oscremos não há mais ninguém valente, fiel, honrado, etc., nomundo, senão os Portugueses. Basta por todos o seu Camões,que a cada passo está fazendo o panegírico da sua nação: e se

critica a nobreza dela de ingrata, e ignorante, é pelo pouco,que foi dela favorecido, aliás tudo se esqueceria.Basta a este respeito, e passemos ao restante dos

costumes dos Portugueses. São sumamente ciosos das suasmulheres, filhas, irmãs, etc., e vivem aqui estas pobres emum duro cativeiro: na corte está porém isto mais extinto, eo espírito da sociedade mais espalhado. Alguns defeitos têm

mais, de que falaremos, aonde eles pertencerem.São porém muito fiéis ao seu rei, e pátria: muito hon-

rados, e verdadeiros nos seus negócios: pouco inventores nasartes, e ciências; porém bons imitadores, e aperfeiçoadores:

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mui to engenhosos, e prontos nas suas conversações.

Enfim tem esta nação muito boas qualidades, e algunsdefeitos entre elas. Porém repito, aqueles Portugueses quepela continuação dos seus estudos, ou viagens, se têm elevadoacima das preocupações da sua Pátria, são uns estimáveis su- jeitos. Destes tratei muitos, em que achei a polícia francesa,o ingenho italiano, a honra inglesa, e todas as mais virtudes,que condecoram os vários povos da terra.

Creio, que em breve vos tenho dado uma ideia docarácter português: passemos a outra matéria igualmenteinteressante, e acabemos esta Carta. Sou etc.

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Carta 4ª

Religião dos Portugueses

Era cousa bem natural, que na mesma Carta prece-

dente, em que eu vos falei do carácter português, fizesse aomesmo tempo menção da sua religião. Porém eu reservei ofazê-lo para uma Carta separada, tanto por não fazer crescermais a passada, como porque a matéria de si merece sertratada separadamente.

 A religião de Portugal, é a Católica Romana. Não setolera neste reino a prática pública de outra alguma religião;

e ainda a oculta nos vassalos de Sua Majestade Fidelíssima émuito perigosa pelo sumo cuidado, com que sobre a purezada Fé vigia o Tribunal da Inquisição, ou Santo Ofício, cujopoder e direito, não é mais, do que uma transmissão con-cedida a este Corpo do poder, que os reis, e os bispos têmde vigiarem e zelarem sobre a inteireza da fé.

Porém este mesmo Tribunal não é já tão cruel esanguinário, como o foi nos passados séculos, em que oFanatismo, como diz elegantemente o nosso épico cantor1 de Henrique IV no canto V da sua Henriade  quase todos osanos acendeu em Lisboa 

  «……………………....… ces feux 

Ces bouchers solemnels, ou des juifs malheureux Sont touts les ans en pompes envoyés par des prêtres Pour n’avoir point quitté la foi de leurs ancêtres.»

1 Voltaire.

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Sim, meu caro Amigo, os clamores da Humanidade

explicados pelas eloquentes línguas de Montesquieus, Beca-rias, Voltaires, Marmontels, e outros vingadores acérrimosdo género humano, já se têm feito ouvir nestas praias. Se osfogos se acendem diante do Trono do Altíssimo, é só para lhetributar puros incensos, e não para queimar as palpitantescarnes de uns infelices, cuja desgraça estava escondida noseternos segredos da Providência, à vista de cujos bárbaros

sacrifícios a religião desconsolada tapava os olhos para escon-der as ternas lágrimas, que lhe causava esta mal entendidafé dos seus sectários.

Não deveis pois assentar convosco, que seja a Inqui-sição ainda hoje tão terrível em Portugal, como o foi desdeos séculos da sua fundação até o reinado passado.

Tem este conservado pura a sua fé, ainda no tempodas maiores tempestades da Igreja, e unicamente o con-taminou algum tanto no reinado de D. João Vº com ainfernal e maldita seita dos Sigilistas, que teria grassadolargamente, e arruinado muita parte da Igreja Lusitana, senão fora o pronto socorro, que logo deram à Fé vacilanteos prelados do reino, principalmente o Patriarca de Lisboa,

em cuja diocese se havia ateado mais o fogo desta heresia.Contudo, ainda hoje se acham alguns restos deste contágio,e alguns frades, e clérigos, insignes ignorantes, e tartufos,que querem com uma falsa aparência dar formosas cores aoseu hipocritismo.

Porém esta mesma pureza de religião, degenera namaior parte dos Portugueses, em fanatismo, superstição, e

cega credulidade, especialmente naquela mesma parte danação consagrada à Igreja.

Não há parte alguma do mundo, onde as visões, reve-lações, milagres, e predições do futuro, sejam mais facilmente

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cridas, nem mais cegamente respeitadas. Porque um simples

clérigo, ou sacristão sonhou (se é que lho não fez sonhar ointeresse) que qualquer imagem da sua igreja estava suando,porque de noite se viu uma luz sobre alguma imagem, cruz,ou ermida, não se averigua mais nada: corre o povo em tropa,e o mais é, que corre com ele aquela parte da nação, quedevia indagar as forças físicas da natureza, ou o poder daimaginação, e clamando todos a uma voz «milagre, milagre»

erguem-se templos, penduram-se votos, correm de toda aparte os povos espantados, fervem as esmolas, e triunfammuitas vezes os falazes impostores, que deram voz, e carreiraa este pseudo-milagre. 

Porque uma Beata nos seus misteriosos raptos, e ima-ginários êxtases, creu sentir uma voz interna, que a avisavada morte de um grande, do castigo de uma cidade, da perdade uma negociação: e porque tão facilmente, como creu esteaviso, fruto de uma imaginação exaltada, o confiou ao seuconfessor, presumptuoso ignorante, corre este logo a divul-gá-lo; treme o povo aterrado, venera-se a devota profetissa,é invocada em todas as necessidades, qual outro Elias; e empouco tempo são citadas as suas decisões, como as de um

S. Francisco de Paula, ou Vicente Ferrer.Porque uma pobre donzela, cruelmente tiranizadapelos bárbaros pais, vê embaraçado o casamento desejadoe entra em convulsões, e desatinos, é crida logo possuídado demónio; é exorcizada, guardada, e ida ver como ummiserável ludíbrio do espírito infernal, quando ela só é umatriste vítima do amor. Porque um miserável enfermo padece

uma febre lenta, e desconhecida aos médicos (que são muitoignorantes neste país) uma moléstia teimosa, e rebelde aosmedicamentos, prontamente se recorre às armas da Igreja:têm feitiços, os bons clérigos, que o benzem; quási se atre-

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vem a jurar, em que espécie do comer lhos deram, ou se os

lançaram no mar. Inda isto não seria o peior: muitas vezescorre-se a consultar uma nova Pitoniza de Endor, algumabruxa, ou velha impostora, que à conta da sua infernal ciênciadesfruta amplamente os pais, ou parentes do padecente.

 Aqui, mais do que em qualquer outra parte, são cridosos agoiros, ou falsas devoções. A ignorância do povo é tal,que uma Aurora Boreal, uma neve copiosa, um cometa, são

tidos, como umas vivas vozes do Céu, e obram tais efeitosde terror pânico, como se contam do século XII ou XIII,com os primeiros matemáticos e filósofos.

Eu bem sei, que vós me respondereis que o povosempre é povo, e que ainda no ilustrado século de Luís XIVvimos tão pasmosos efeitos da superstição e fanatismo noCemetério de S. Medardo em Paris, sobre a sepultura dofamoso Simão Paris, e em Laudun, nas Urselinas dirigidasdo infeliz Urbano Grandier; confesso, que assim é; o queem todas as partes do mundo, e em todos os séculos foisempre a religião um poderosíssimo pretexto para a impos-tura, e um terror fatal para o povo, e para aqueles homensunicamente,

 fruges consumere nati 1

como se explica Horácio. Porém em Portugal é isto aindamais vulgar, do que em outro qualquer país do Universo. Ascausas são a ignorância suma do povo, e a má educação cristã,que lhe dá o clero, como vou explicar na Carta seguinte.

1 Horácio, Epístolas, I. II. 31: «nos numerus sumus et frugesconsumere nati sponsi Penelopae nebulones, Alcinoique in cutecuranda plus aequo operata iuuentus».

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Carta 5ª

Clero de Portugal secular, e regular

É muito para lamentar, amigo do coração, que a reli-

gião, este Divino Presente, que o Céu mandou aos homens,se veja quási sempre confundida com os seus ministros,que sendo homens, aquele Ente, que como bem o define oprofundo Pope,

Nasceu para morrer, para errar tende 

que sendo homens, quero dizer, entes frágeis, e corruptíveis,não podem perfeitamente mostrar em si a imagem destaDivina Filha do Céu.

Esta é a razão, porque ela tem produzido no mundotantas guerras, cismas, heresias e desordens, porque querendoos homens fazê-la servir aos seus particulares interem.

 A causa é a ignorância, que sendo feia em toda a classede gentes, é naquela parte que está consagrada ao culto damesma religião, não só feia, mas monstruosa, pois não hácoisa mais incoerente, que serem ignorantes, e viverem emtrevas os ministros do Pai da luzes, e fonte de toda a sabe-doria. Estes mesmos homens, assim ignorantes como eram,quiseram, que tudo cedesse ao seu grau, e ao seu carácter, e

anatematizam todos aqueles que pensaram diversos deles.Perdoai-me, amigo, esta digressão do meu assunto,

que não pude deixar de fazer à vista da miséria do cleroportuguês.

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Geralmente falando, é esta parte da Igreja Católica a

menos instruída de toda ela. Começando pelos clérigos, sãoquási todos homens de uma profunda ignorância. Eu reduzoa origem dela a 3 causas: 1ª. A falta de educação, ou à péssimaque se dá neste reino à mocidade; 2ª. Ao descuido dos bispos,e superiores eclesiásticos; 3ª. À falta de estímulos, sendo aquitão pouco considerado, e premiado o merecimento em todoo género de pessoas, que ordinariamente se vê levarem as

Igrejas, e os benefícios, aqueles, que têm maior protector,ainda que aliás sejam homens de uma crassa ignorância, eserem perseguidos, e odiados aqueles, que pensam ilustra-damente, e com desabuso nas matérias eclesiásticas.

Pelo regular, meu caro amigo, vós topareis aqui cer-tos abades, priores, e párocos, que não têm outra instruçãomais, do que saberem ler o Latim, que não entendem, do

seu Breviário, e Missal. Os confessores apenas sabem as de-finições dos Sacramentos, que estudaram em algum rançosoautor casuísta escrito, já se sabe, em língua vulgar. Escritura,História Eclesiástica, Teologia Dogmática, Crítica, Línguas,Belas Letras, isto são nomes par a eles inteiramente desco-nhecidos. Com os estudos, que já disse de pouco Latim, ede algumas definições de Moral, se preparam para o grau do

sacerdócio; e depois que entram nele nunca mais cuidam emoutro livro excepto o Missal, e Breviário. Algum eclesiástico,que segue a Universidade de Coimbra (a única deste reino) sevai ali formar no Direito Canónico para se opor aos lugaresde Letras, o que não pode sem este requisito, ou para ficarna mesma Universidade. A Faculdade de Teologia, poucosa seguem; e assim jaz esta Augusta Soberana Ciência em

Portugal no maior abatimento.De tão pequenos e fracos espíritos, já vós vedes,quão miseráveis consequências se devem seguir. Aquelesque se destinam a curar almas, e a párocos, educam as suas

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ovelhas nos princípios de uma falsa devoção, que consiste

toda numa prática minuciosa dos mais inúteis exteriores dareligião, numa sujeição cega ao poder eclesiástico, e numhorror a tudo o que é gente instruída, e ilustrada, a queeles prontamente caracterizam de ateus, ou hereges. Daquiprocede o horror, que os Portugueses têm a tudo o que nãoé católico, de que vem chamarem a todos os não-católicos,cães, canalha, sem alma, etc.

Porém estes mesmos ministros tão zelosos da suareligião, não fazem escrúpulo algum de a fazerem ridículaaos olhos dos seus adversários, sendo os primeiros ambicio-sos, e usurários deste reino. Não têm dúvida, para captar abenevolência dos povos, em autorizar com a sua presença,certas práticas, e usos, que a mesma religião abomina, como,v.g., as romarias, ou peregrinações aos santuários, às imagens

milagrosas do reino, a cuja viagem quási sempre os curasacompanham as suas ovelhas, para presenciarem ali (depoisde uma missa mal cantada, e de um sermão que ninguémouve) a maiores desordens da embriaguez e do deboche,naquele povo bárbaro, cujos cérebros se acham escandeci-dos por Vénus, e Baco. Porém não importa, os clérigos, efrades, dali trazem as copiosas esmolas de missas pedidas e

de outras rogadas. Não sabem estes ignorantes, que esta foia razão, porque na primitiva Igreja se proibiram as vigílias,e festas nocturnas junto aos sepulcros dos Santos Mártirespelo abuso, e desordens, que se iam praticando à sombra deuma tão santa instituição.

Passemos aos regulares que pouco mais instruídos são.Devemos contudo confessar, que se neste reino há alguma

instrução no clero, é certamente no regular, pois ainda queo pouco cuidado na educação dos noviços seja transcendentea todas as religiões de Portugal, contudo acham-se semprenelas alguns sujeitos excelentes, cujo génio os faz vencer os

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vícios da sua escola, e que à força do próprio estudo se elevam

ao conhecimento do sólido, e verdadeiro gosto nas ciências.Conheci muitos destes regulares, e alguns deles foram osmesmos, que me abriram os olhos, sobre os defeitos da suareligião, e da nação em geral. Porém, geralmente falando, amaior parte do clero regular vive sepultado na mesma crassaignorância, em que estavam os clérigos e monges da Rússiaantes do reinado de Pedro o Grande.

Vivendo em uma perfeita ignorância, e em umagrande ociosidade, gozando (os monacais, e ainda os men-dicantes) de tudo quanto é preciso para o regalo, e paraa boa subsistência, pelas grossas rendas, que aqui têm osmonacais, e pelas esmolas, que do crédulo povo tiram osmendicantes, em alguma coisa se hão-de ocupar, que osdistinga dos seculares. Dois são os pontos, em que põema sua mira quási todos, a direcção das beatas, e freiras, e aintriga, e governo nas casas dos Grandes, e de todo aquelecidadão que pode contribuir com a sua riqueza para o regalo,e figuração destes divinos insectos. Aonde eles entram peladirecção da mulher, das filhas, ou mesmo do marido, nuncadeixa de haver desordens domésticas, queixas nos criados, e

faltas no essencial do gov erno da casa.Eis aqui, meu querido amigo, o que posso dizer-vos,em breve, sobre o clero de Portugal. Devo juntar a isto, queno presente século, e depois do reinado de el-rei Dom José,têm os regulares decaído muito da prepotência, que gozavam,sobre o resto do povo português. O Marquês de Pombal,e seu irmão Paulo de Carvalho deram caça aos frades jaco-

beus, e às suas beatas; desabusaram muito a nação de tantoenergúmeno, e enfeitiçado, e assim já hoje não falta que mpense com desabuso sobre estas matérias. Passemos pois aoutras igualmente interessantes, e em tanto sou etc.

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Carta 6ª

Língua Portuguesa, seu carácter

Depois de vos ter falado na situação de Portugal, no

carácter dos seus habitantes, na sua religião, e clero, passo afalar-vos na língua, que fala este povo, muito pouco conheci-da; porém muito digna de o ser, se os Portugueses cuidassemum dia, como deviam, em a enriquecer de boas obras, comoo têm feito os Ingleses, e Alemães.

É a Língua Portuguesa uma das mais legítimas filhasda latina, ou antes, é um Latim corrupto, e alterado. A sua

pronunciação, a desinência dos seus vocábulos, a identida-de da sua gramática, enfim tudo nos está persuadindo estaverdade. Por isso o Camões diz com muita razão, que umadas causas, porque Vénus favorecia tanto os Portugueses,era a suma parecença, que lhe achava com os Romanos, suanação mimosa, até mesmo no idioma, e linguagem

«………… na qual quando imagina   ……….... com pouca corrupção crê, que é latina .»

  Lusíadas . Canto 1º, 33.

 As longas, e dilatadas guerras, que nas Espanhassustentaram os Romanos, ao muito caso, que desta região

fizeram depois de a sujeitar, deram este princípio à LínguaPortuguesa.

Contudo não é só do Latim que ela  tira a sua origem. A Vasconsa, ou Biscainha, a Árabe, e mesmo a Francesa,

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influíram logo ao princípio para o seu nascimento. Bem

sabeis quanto os Godos, e os Moiros se detiveram neste belopaís. Os fidalgos franceses, que acompanhavam o Conde D.Henrique, tronco dos reis portugueses, foram os que apro-priaram da nossa antiga linguagem a portuguesa. Os outroscavalheiros da Armada de Guilherme de Longa Espada,também franceses, que no ano de 1141 ajudaram D. AfonsoHenriques, primeiro rei de Portugal, a tomar Lisboa, e dos

quais muitos ficaram estabelecidos em Portugal, deixaramnele, não só as suas famílias e descendências, mas mesmomuitas coisas da sua língua. Isto enquanto à sua origem.

É pois a Língua Portuguesa muito copiosa, sonora,breve, fácil de poder-se escrever como se pronuncia, e aptapara todos os estilos. Uma das particularidades, que eu lheacho muito dignas de louvor, é que sendo ela muito suavee branda para a pronunciação, e tendo quási a suavidadeitaliana, é ao mesmo tempo muito varonil, e masculina nosseus sons, sem ter aqueles sons ásperos, e guturais, que dosMoiros herdaram os Espanhóis. Quero aqui transcrever-vosas palavras de um elegante autor português, que é FranciscoRodrigues Lobo, o qual na sua Corte na Aldeia  no fim do

Diálogo 1º lhe faz nestas palavras o mais completo elogio:«A Língua Portuguesa, assim na suavidade da pronuncia-

ção, como na gravidade, e composição das palavras, é excelen-te… É branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz paramover, doce para pronunciar, breve para resolver e acomodadaàs matérias mais importantes da prática, e escritura. Para falaré engraçada com um certo modo senhoril. Para cantar, é suave

com um certo sentimento, que favorece a música. Para pregar,é substanciosa com uma gravidade, que autoriza as razões, eas sentenças. Para escrever cartas, nem tem infinita cópia, quedane, nem brevidade estéril, que a limite. Para histórias, nem étão florida, que se derrame, nem tão seca, que busque o favor

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das alheias. A pronunciação não obriga a ferir o céu da boca comaspereza, nem a arrancar as palavras com violência do gargalo.Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. Tem de todas aslínguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega,a familiaridade da italiana, a brandura da francesa, a elegânciada italiana. Tem mais adágios, e sentenças, que todas as vulgares,em fé da sua antiguidade.»

Posso assegurar-vos, que nada tem de exagerado este

elogio, e eu achei pela experiência, que era verdadeiro tudoquanto lhe nota o referido autor.

Talvez me perguntareis vós agora qual seja a razãoporque tendo a Língua Portuguesa todos estes dons, e ex-celências, é tão pouco conhecida no mundo, e muito maisno mundo literato? Responder-vos-ei que como nós não estamos já nos Séculos das Nações Conquistadoras, comoa grega e a latina, que à força de armas introduziam nospovos vencidos, não só as suas leis, mas até mesmo os seuscostumes, usos, vestidos, e linguagem. Não há outro meiopara uma nação espalhar o seu idioma, que o aumento do co-mércio e a abundância de obras originais, e eruditas, escritasna língua vernácula. Como ambos estes fundamentos faltam

aos Portugueses, sendo eles os povos menos comerciantesda terra, e a terra aonde menos se escreve, e compõem, essaé a razão, porque a sua língua está tão pouco estendida, econhecida.

Podiam também os Portugueses adiantar muito a sualíngua, cavando sobre as origens dela e analisando-a filosofi-camente. Porém não têm Academias, e faltam-lhe os Pluches,

Marsais, Condillacs, Lockes etc., e outros famosos autores,que nos têm polido, e enriquecido a língua. Assim jaz estaformosa língua, como um terreno fértil, e produzidor, quepor culpa do seu mau, e pobre cultivador, produz só dez,

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podendo produzir cem, e mais alqueires.

Uma prova também grande da bondade da LínguaPortuguesa, é a sua aptidão para as traduções. Eu as vineste reino de todas as línguas do Universo, e das mortas,nas quais, os seus autores traduzindo, segundo o preceitode Horácio, e do nosso sábio bispo Huet, verbo ad verbum fariam com tudo excelente português. Raras eram as cir-cunlocuções; para quási todas as frases, e sentenças achavam

outras equivalentes. Tamanha é a abundância desta língua! Assim não podem os Portugueses dizer com razão o mesmoque Quintiliano dizia da Língua Latina – Potestate sermonislaboramus  –. Porém ao presente quási todos os Portuguesesdesprezam o estudo do seu idioma pela paixão da nossa Lín-gua; e falam nas aulas, no foro, no púlpito, e nos tribunaisuma Língua Lusitânico-Francesa que vem a ser justamentea que nós chamamos um jargon. Nada cuidam de lerem osseus bons Autores. E assim vêm a ficar uns animais anfíbios,cujo som de voz é Português; porém a frase, e o estilo é umFrancês agasconado. Tamanha é a influência, que o gosto danossa nação tem sobre todos os povos do Universo!

Passemos a debuxar o quadro da Literatura Portu-

guesa.Sou etc.

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Carta 7ª

 Autores portugueses mais famosos

Siga-se ao elogio da Língua Portuguesa, o dos autores

mais famosos, que têm escrito neste idioma. Nesta Cartaserei breve, por não vos cansar com uma seca análise doDicionário Literário desta nação.

Os Portugueses, que hoje tão pouco figuram no orbeliterário, já nele tiveram um distinto lugar, desde o reinadod’el-rei D. Manuel, até à funesta perda de D. Sebastião nasareias de Alcácer. O reinado só de D. João III, este Augusto

de Portugal, cuja memória durará entre os Portugueses,como entre nós a do Grande Luís XIV, ou como em Romao de Leão X, o reinado, digo, deste príncipe produziu umatropa de sábios em todas as Faculdades.

 Aquela, em que os Portugueses verdadeiramente sãomestres, é na História. Ajuda-os muito a isto a gravidade,e suavidade da sua língua, qualidades tão requisitas para abondade da narração, e pelas quais se imortalizou Tucídidesentre os Gregos, e Lívio entre os Romanos. Três homensse fizeram insignes nesta parte em Portugal. O famosohistoriador João de Barros com as suas Décadas , com quemereceu estátuas em Roma, e Veneza; Frei Luís de Sousacom a sua Vida do Arcebispo de Braga D. Frei Bartolomeu

dos Mártires , em que não sabemos qual havemos de admirarmais, as virtudes do herói, ou a pena do escritor; e JacintoFreire de Andrade na sua Vida de D. João de Castro, emque se pôs quási a par de Florido Quinto Cureio. Estes três

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homens, que temos traduzidos na nossa língua, executaram

com sumo primor as leis severas da História. Têm mais FreiBernardo de Brito, e o seu continuador António Brandão,ambos monges cistercienses, e cronistas de Portugal, cujaHistória escreveram com muito asseio, ainda que às vezesexagerada, e cheia de erros de crítica. E se quisermos ajun-tar os que escreveram em Latim, e Castelhano, acharemoso fecundo Manuel de Faria e Sousa, Salústio Português,

D. Jerónimo Osório, o Eloquente Diogo de Teive, cujoscomentários De rebus ad Dium gestis , se podem compararaos de César, e outros muitos.

Na poesia têm os Portugueses também um lugarmuito distinto. O seu grande Camões, apesar dos defeitosinevitáveis do seu século, é bem digno de veneração, quesempre lhe tributaram todas as nações polidas. No géneropastoril, é muito estimável Diogo Bernardes, e AntónioFerreira, Bernardim Ribeiro, e Fr. Bernardo de Brito, coma sua Sílvia de Lisardo. O ameníssimo Poeta Francisco Ro-drigues Lobo nas suas obras pastoris, excede tudo quanto sepode desejar, e iguala, se não vence, os melhores antigos. Asua Primavera , e Pastor Peregrino, é o romance pastoril mais

excelente, que tem a Europa, e merece o mesmo lugar, queno romance heróico se dá a Teagenes , e Chariclea . Enfim napoesia têm os Portugueses muitos, e mui estimáveis poetas.Poucos anos há que nesta Corte de Lisboa faleceu Pedro António Garção, cujas odes são o modelo mais perfeito dapoesia lírica, e de quem os Portugueses farão para o futuroo mesmo caso, que fazemos de Horácio.

Na Teologia nada têm os Portugueses digno de ler-se,assim como também na Jurisprudência. Os autores, quetêm em Direito, são uns meros praxistas, ou consulentes,que afogam a razão debaixo de enormes volumes, só bons

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ad vendentes [thus, et odores ]1.

Na Oratória têm o eloquente Bispo de Leiria D. Antó-nio Pinheiro, o douto teólogo Diogo Paiva de Andrade, e ogrande Padre António Vieira, que seria um Crisóstomo, ouum Leão, se não quisesse adaptar-se aos vícios do seu século.Os seus Sermões , no meio dos seus vícios, e agudezas falsas,têm rasgos, e pedaços dignos de Cícero.

Em Matemática, Medicina, Filosofia, e Humanidades,

não têm os Portugueses autor de maior nota.Todos os autores, em que vos tenho falado são antigos.

No século presente não têm os Portugueses autor de maiornome; os que vivem hoje, não passam de uns meros compi-ladores. Porém sempre vos quero exceptuar, e nomear entreos Portugueses, que hoje vivem, e que fazem maior honra àsua nação dois eclesiásticos, cuja pasmosa erudição e Letrassão conhecidas por toda a Europa. São eles o Ex.mo Bispo deBeja D. Fr. Manuel do Cenáculo, exemplar dos verdadeirosprelados, cuja erudição, e conhecimentos em todo o género deLiteratura, são quási sobrenaturais; e o Padre António Pereirade Figueiredo, Deputado da Mesa Censória, cuja fecundapena tem dado à luz alguns volumes sobre Direito Canónico,

e História Eclesiástica, cheios de muita crítica, e desabuso. A sua tradução da Bíblia Vulgata, em que vai trabalhando,tem merecido a todo o Portugal o maior aplauso.

Estes dois homens unicamente não pude impedir denomear em uma conta dedicada a tratar dos autores portu-gueses, porque creio, que os vindouros farão deles a mesmaestimação, que os vivos lhe tributam, e talvez mais, tendo-se

então já calado as vozes da inveja, e do fanatismo. Sou etc.1 Passagem latina de difícil leitura. Está provavelmente relacio-

nada com Mat. 25,9: «Responderunt prudentes dicentes: “Ne forte nonsuf ficiat nobis et vobis, ite potius ad vendentes et emite vobis”».

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Carta 8ª

Estado das ciências em Portugal,universidades, colégios, e escolas

Depois que os Portugueses se libertaram do jugocastelhano, e que no ano de 1640 puseram no trono asereníssima Casa de Bragança, hoje felizmente reinante,começaram a procurar tornar a colocar também as Ciênciasno estado, em que elas se achavam antes da perda d’el-reiD. Sebastião. Porém os reinados de D. João IV e de D. Pe-dro II foram embaraçados com as guerras de Espanha. D. João V já teve tempo para esta obra digna de um príncipe;porém este, unicamente ocupado em fundações piedosas, eeclesiásticas, pouco cuidou em promover as Letras. Contudoé digno de louvor, por ter fundado a Casa da Congregaçãodo Oratório de S. Filipe de Neri em Lisboa, em que pôsuma escolhida livraria, e um gabinete de Física, mandando

que naquela casa se ensinasse gratuitamente à mocidade aFilosofia, a Teologia, a Moral, a Retórica, a Língua Latinae as primeiras letras. Estes padres, apesar da oposição queacharam nos jesuítas, que estavam na posse das Escolas doreino foram os primeiros, que introduziram no reino dePortugal a Filosofia moderna, e o bom gosto na Gramática,Retórica, e Crítica. É certo que esta útil fundação espalhou

no reino muitas luzes, e preparou os espíritos, para a reformacompleta de Estudos no reinado d’el-rei D. José.

Fundou também D. João a Academia da HistóriaPortuguesa, que hoje apenas subsiste em um ténue resto de

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alguns poucos sócios, e mandou imprimir magnificamente

tudo quanto aquele Corpo escreveu sobre a História dePortugal.Estas duas úteis fundações foram o que el-rei D. João

V fez de mais notável a favor das Letras, a cujo reinado seseguiu o de D. José I, e o nomeado Ministério do Marquês dePombal, o qual, depois da extinção dos jesuítas deste reino,vendo que a mocidade ficava sem escolas, pois a Companhia

estava de posse do ensino dela, a cujo título lhe tinham sidodoadas, e deixadas, pelos reis, e pelos particulares, as copiosasriquezas, que possuíam neste reino; criou muitas cadeiras, deGrego, Latim, Retórica, e Filosofia, para Professores Secula-res, que instruíssem a mocidade nestes conhecimentos.

Depois, vendo o deplorável estado em que estava aUniversidade de Coimbra, a única, que há neste reino, emque se vão tomar os graus de doutor em algumas das quatroFaculdades, mandou fazer novos Estatutos, e foi ele mesmo,o dito Marquês, a Coimbra, dar nova forma aos Estudos. Vósconheceis pelos Diários de França, e Itália o bem calculadodestes Estatutos: todo o mundo fala neles com elogio; porémum observador filósofo ainda acha, que notar neles o longo

tempo de quatro anos, que ali se prescreve, para o estudodo Direito Romano, sendo só o quinto, e final, aquele emque os estudantes lêem alguma coisa do seu Direito Pátrio.Nota-se ainda mais nos Actos da Universidade, o bárbarouso de falar, ora Latim, ora Português, e de serem todos ospapéis, e dissertações escritos em Latim, a que obrigam ospobres rapazes.

 A Medicina, e as Ciências Naturais são ali muitobem ensinadas; o mesmo a Matemática; porém a Teologiaficou no mesmo, ou em peior estado, do que estava antesda Reforma.

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Criou também o Marquês de Pombal os dois Colégios,

de Nobres, em Lisboa, e de Mafra, neste famoso convento,em que a mocidade é educada por Mestres Sábios, e de bomgosto. Enfim podemos dizer, que se os Portugueses têmadiantado alguma coisa nas Ciências, o devem ao Marquêsde Pombal.

Porém depois da morte d’el-rei D. José foram aboli-das as cadeiras seculares de Línguas, Retórica e Filosofia, e

passou outra vez o ensino da mocidade para o claustro. Vósbem sabeis, quão pernicioso golpe é este para a educação dosmancebos, e para o adiantamento das Artes, e das Ciências.Sendo as religiões as que conservaram estas divinas Luzes nonaufrágio do Império Romano, e quem as conserva aindahoje em quási todos os países da Europa, só em Portugalsempre os regulares têm sido fatais às Letras; já vos dei ascausas disto na Carta, em que trato do clero português. 

 Assim tem outra vez decaído o estudo destes Preli-minares em Portugal, e tem a mocidade perdido o frutodo seu ardor. Numa palavra, aquelas Ciências que são aquiensinadas por Mestres Seculares, como as Ciências Naturais,Medicina, Direito, Matemática, florecem muito mais do que

as Ciências Sagradas, como a Teologia, a Moral, e a Filosofia,que estão regentadas por estes Mestres Regulares. Querocontudo exceptuar alguns destes Professores do Claustro, quetêm vencido as preocupações dos velhos, e das opiniões dasua religião, e que educam a mocidade nos sólidos princípiosdo bom gosto nas Ciências.

 Aqui era o lugar de vos falar nas Academias de Portu-

gal, que são só duas: uma exangue, e quási expirante, que é asombra, ou o fantasma da Academia da História Portuguesafundada por D. João V, que escreveu no seu reinado uns 10ou 15 volumes em 4º, e hoje está quási morta, sem sócios,

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nem sessões; e a outra das Ciências, e Belas Letras, fundada

pelo duque de Lafões em 1779, e que até o presente nadatem escrito, por onde possamos julgar do merecimento dosseus sócios, vindo por este modo a ficar Portugal sem algumCorpo Académico, que promova o fomento das Ciências. Assim andam elas aqui vagantes, e espalhadas, achandounicamente abrigo em algum particular, que as recolhe, eas cultiva no silêncio do seu Gabinete.

 A mocidade portuguesa vendo o pouco caso, que aquise faz delas, aplica-se pouco, e deixa infrutíferos os vivosgénios, que lhe deu a Providência e a bondade do clima, emque jaz situado este belo país.

Nas Cartas seguintes continuarei a mesma matéria.Sou etc.

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Carta 9ª

Estado das Belas Letras

 Aquela parte da Literatura, a que os Gregos chamam

Filologia, os Latinos Litterae Humaniores , e nós Belas Le-tras, em que se contém o estudo das Línguas, da História,Poesia, Retórica, e Crítica é aquela em que os Portuguesessempre têm brilhado. Têm tido, e têm ainda hoje algunshomens de merecimento nesta carreira. Porém sempre estesmesmos são cheios de defeitos pela falta da boa crítica, epor se entregarem todos ao fogo da sua imaginação. Disto

são boa testemunha todos os seus Historiadores, Poetas,e Oradores dos séculos passados, e bastantes dos mesmosmodernos. Contudo, depois que um sábio anónimo por-tuguês compôs os dois tomos do novo Método de Estudar ,alguma crítica mais razoável reina nos escritos dos literadoresportugueses.

No reinado de D. José I se formou em Lisboa uma Arcádia, ou Academia de Poesia, dos melhores poetas, queentão havia. Estes escreveram algumas peças dignas de lou-vor. Um dos Árcades era o famoso Lírico Garção, de quem já vos falei, cujas odes são no verdadeiro gosto de Píndaro, eHorácio, e que leva tanta mais vantagem ao nosso Malherbee Rousseau, quanto a Língua Portuguesa é mais varonil, e

forte, que a Francesa. No mesmo género de ode se fez muitoconhecer o dout or António Dinis da Cruz e Silva, hoje vivo,e Desembargador na América, de quem se pode dizer o mes-mo, que de Píndaro dizia Horácio, isto é, que fervet huitque

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 profundo ore 1, tamanha é a elevação da sua poesia. No género

pastoril escreveu bem um poeta, tirado como o inglês Priorde uma loge de cabeleireiro, quero dizer Domingos dos ReisQuita. Outros mais Árcades se fizeram assaz conhecidos nestetempo; porém a tal Arcádia se dissipou em poucos anos, esó dela resta o nome, e a lembrança.

Hoje não há em Portugal poeta algum que mereçamaior estimação. Abunda porém muito o país em miseráveis

improvisadores, que sem mais estudo, do que uma tal qualfragilidade de versejar, rimando, se entende, se expõem aoriso do homem sensato, que não acha nas suas Décimas,ou Quartetos (única espécie de verso, em que improvisam)o mínimo rasgo de poesia, ou de instrução. Vivem porémestes ignorantes humanamente satisfeitos com os aplausos dequatro senhoritas, e de outras tantas freiras, que entendemtanto de verso, como eles, e que exaltam até às nuvens a graça,e a galantaria das suas trovas. Muitas vezes se ajunta a estesbons censores algum grande do Reino, gente costumada aidolatrar tudo aquilo, que serve ao seu divertimento, e quenunca se devertem senão com babiolas, e bufões.

 A Oratória Sagrada está em Portugal no mesmo pé,

que na nossa França. Antes que escrevesse o autor críticodo Novo Método, era a Prédica em Portugal o mesmo queem Espanha, antes que aparecesse o famoso livro de Fr.Gerúndio do ingenhoso Padre Isla; porém os Portuguesesconhecendo quão errado caminho seguiam, fizeram volta,e tomaram por modelos os nossos Bordalous, Massillons, eFlechiers, em cuja imitação se têm cansado utilmente. Têm

hoje bastantes pregadores, bem dignos do ministério queexercitam. Assim eles se empregassem mais no estudo da sua

1  Horácio, Odes, Livro IV, 7-8: «feruet inmensusque ruit profundo / Pindarus ore».

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língua, e não falassem um Francês aportuguesado, ou um

Português agasconado que faz náusea, tanto aos Portugueses,como aos Franceses porque ambos vêem que o Orador namistura que faz, não fala bem nenhuma Língua.

Presentemente não há Autor nenhum que escrevaHistória em Portugal. O mesmo digo de Obras de Crítica,de que não conheço em Portugal outro Autor mais que odito Anónimo do Novo Método de Estudar .

Neste lugar, creio, que vos devo falar dos tradutoresportugueses, que é praga, de que abunda hoje tanto a nação,como dos miseráveis improvisadores, de que acima vos falei.Podemos dizer de Portugal, o mesmo que o engraçadíssimopadre Isla diz no seu Fr. Gerúndio dos tradutores espanhóis,que neste reino é desgraçada aquela Mãe que não tem um filhotradutor . Porém quê? Quase todos merecem o nome, que ositalianos lhes dão comummente – tradutore traditore  – quásitodos são aqueles que Mme de Sévigné compara aos criadosque quando vão dar um recado da parte de seus Amos, oudizem muito mais, ou muito menos, ou mesmo o contráriodaquilo que lhes encarregaram.

 Alguma tradução de merecimento, que há em Portu-

gal, é antiga, como as de Virgílio, Tasso, Epíteto, Panegíricode Plínio, e outros semelhantes. Neste tempo não espereisachar aqui os nossos Bruyères, Allancourts, Vaugelas, ou osmodernos, La Places, de Isle, dês Fontaines, le Tourneuretc., e outros raros tradutores da nossa pátria. Como paraeste delicado emprego se requer um grande conhecimentodas línguas vernácula, e a estranha, de onde se traduz, co-

nhecimento que a quási todos lhes falta, por ser gente semestudos, nem crítica, pode-se aplicar muito bem a quási todoeste povo tradutor aquele verso de Pope no Chant 1 do seuEnsaio sobre a Crítica 

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D’insectes malformés une engeanse inutile 

Ou aquela galante quadra, que traz o padre Isla noseu Fr. Gerúndio

Victor al padre CrispinDe los cults, culto sol,Que habló español em latin

Y latine n español 

Miseráveis são quási todos na verdade. Duas versõesvi do nosso elémaco em Português. O autor de uma fazfalar Fénélon uma linguagem antiquada, e pedantesca; ooutro mutila este poema ao seu arbítrio, corta-lhe páginas

inteiras, mistura-lhe longas páginas da sua insulsa, e friacomposição, de sorte que desfigura este chefe de obra danossa língua até o ponto de se poder exclamar como Eneiasà vista da sombra de Heitor

Hei mihi! Qualis erat! Quantum mutatus ab illo! 1

Desejara, que vós percebêsseis, como eu, a LínguaPortuguesa, para vos poder mostrar as galantes, e extrava-gantes traduções das delicadas peças do Teatro de Voltaire,Metastásio, Apóstolo Leno, e outros dramáticos famosos.Certamente poríeis as mãos na cabeça, e gritaríeis contra estesdepravadores das obras alheias. Passo a acabar esta matéria,

pintando-vos por fim o estado das Artes de imitação emPortugal. Sou etc.

1 Virgílio, Eneida, II, 199-297: «ei mihi, qualis erat, quantummutatus ab illo Hectore qui redit exuuias indutus Achilli».

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Carta 10ª

Música, pintura, escultura, e arquitectura 

Com muita razão disse o Sábio D. Nicolau António

na sua Biblioteca Hispânica  «que os Portugueses reinavamtanto na poesia, como na música, arrebatados por umaadmirável propensão, e inclinação do ânimo, que os agitava,como um entusiasmo». Esta confissão feita por um sábio deuma nação nada afecta à portuguesa, achei eu sumamentefundada, e verdadeira, observando os progressos destas duasartes em Portugal. Já vos falei da poesia; passarei agora a

fazê-lo da música.É esta encantadora arte, aquela, em que os Portugue-

ses não só nos igualam, mas nos excedem muito. Vós bemsabeis, que a nossa música, por confissão dos nossos mesmosautores, como Rousseau, e D’Alembert, tem um carácterde languidez, e frouxidão, que a faz sumamente inferior àitaliana, e alemã. Tanto os nossos compositores, como oscantores, e instrumentistas, por mais excelentes, que sejam,participam deste defeito.

Os Portugueses porém, tanto na composição, comona execução, abraçam a suavidade e gosto italiano, com amajestade, e profundo da música alemã. Desde o reinadod’el-rei D. José I até agora se conserva aqui a música no

mesmo auge. Este monarca chamou para a sua ópera osmais famosos cantores, que então havia, como Eggioielli,Cattarelli, Raaf, e outros; chamou para mestre do seu Semi-nário Patriarcal, e da sua Câmara, o famoso David Peres, que

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aqui acabou a carreira dos seus dias. Enfim D. José, como

apaixonado e inteligente, que era em música, não poupoudeligência alguma para promover os progressos desta arteem Portugal.

O bom efeito seguiu as deligências. Propagou-sepor todo o Portugal o bom gosto nesta arte. Vêem-se aquiexcelentes compositores, especialmente os mestres do Se-minário Patriarcal, de música, entre os quais, alguns, tanto

nas composições teatrais, como nas de Igreja, não têm invejaaos Tornellis, Picinis, Durantes, Leos, Pergoleris, e outrosconhecidos autores da Itália. Do mesmo modo vós achareisaqui também cantores, e instrumentistas, que em nadacedem aos melhores de Itália, e Alemanha. O nosso modo,e gosto de cantar, é singelo; e o músico francês a nada maisse estende que a executar simplesmente aquilo, que o com-positor escreveu. Aqui, pelo contrário, o conhecimento, egosto de fazer passagens, e de adornar proporcionadamentetoda a espécie de música, é conhecido e executado por todaa classe de cantores, ainda mesmo os mais principiantes.Ouvi aqui cantar muitas senhoras com a maior elegância,energia, e patético. Até o mesmo povo canta aqui os seus

cantos báquicos, e folgazões, com outra galantaria, que nasmais nações. O instrumento mais usado da plebe, é a viola,ou guitarra, como nós lhe chamamos; há mesmo entre estarude gente, alguns, que a tocam com uma viveza, e perfeição,que faz admirar a quem os ouve.

Isto enquanto à música. Na pintura  é que os Portu-gueses são muito pouco iminentes. Vós em vão procurareis

aqui Le Bruns, e Poussins, ou Ticianos, e Veroneses; quásitudo aqui são cópias, e nenhuns originais. Não conheço aquipintor algum digno de fama, excepto o cavalheiro FranciscoVieira, que faleceu, há poucos anos, e deixou algumas obras

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dignas da Escola Italiana, aonde ele se foi aperfeiçoar.

Na escultura também pouco florecem. Alguma coisa,que há boa nesta arte, é de artífice estrangeiro, como as está-tuas, e relevos de Mafra, que são obra de um escultor italiano, Justi. Deste é discípulo Joaquim Machado de Castro, quefez os belos emblemas de relevo e estátuas, que guarnecemo pedestal da Estátua Equestre do Rei defunto D. José I naPraça do Comércio em Lisboa. É este um bocado de escul-

tura digno dos Séculos de Augusto, e de Leão X.O mesmo digo da arquitectura. O Real Convento de

Mafra, cuja perspectiva, e descrição, vos remeto impressa,é obra de Friderico Ludovici arquitecto italiano. Na Cortede Lisboa não há obra moderna, que mereça falar-se nela,e que mereça comparar-se ao nosso Louvre, Tuilleries, Lu-xembourg, Sorbonne, etc.

No gosto gótico é que há aqui em Portugal doisconventos, dignos de ver-se, e são Alcobaça fundado porD. Afonso Henriques, em acção de graças pela tomada deSantarém aos Moiros: e o convento da Batalha, junto à vilade  Aljubarrota fundado por D. João I, que ali ganhou umainsigne vitória contra os Castelhanos. Estes dois conventos,

no seu género de gosto gótico, são ambos magníficos, edignos de ver –se.Tudo o mais é de pouca consideração. Há contudo em

Lisboa um singular monumento de arquitectura, que todosos estrangeiros admiram; e vem a ser o soberbo Aqueduto,que conduz a água para todos os chafarizes da cidade, desdeuns montes distantes desta Corte mais de três léguas. Este

formoso rasgo de arquitectura, obra d’el-rei D. João V, é naverdade admirável, pelo bem acabado da obra, majestosodesenho, elevação dos seus arcos, em algumas partes, reser-vatório, ou casa da repartição das águas para toda a cidade,

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e outras mais circunstâncias, que o fazem notável.

Em breve, meu querido amigo, vos tenho rascunhadocom a maior imparcialidade, o quadro do estado presentedas Ciências, Belas Artes, e Artes em Portugal. Por ele vospodereis desenganar, que se os Portugueses não ocupamhoje um lugar tão distinto como outras nações, no orbeliterário, a culpa não é da gente, que é aptíssima para tudoo que são operações de espírito, mas sim da falta de resortes,

e movimentos superiores, que elevem os ânimos à emulação,e cume literário, únicas fontes donde nascem as copiosascorrentes de Ciências, que vêm banhar os espíritos de umanação inteira.

Passarei pois a entreter-vos com outras matérias igual-mente interessantes. Sou etc.

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Carta 11ª

 Agricultura 

O reino de Portugal, que segundo um apurado histo-

riador desta Nação1

, desde o reinado d’el-rei D. Dinis, atéo de D. Fernando, bastaria de pão, não só a si próprio, masainda aos estranhos, jaz hoje em um estado bem diferente.Começando com o reinado de D. João I, os Descobrimentos,e conquistas desta audaz gente, começou também a afrouxarcom este novo entusiasmo, o cuidado, que no governo dosreis pacíficos davam à lavoura, e cultura das terras. Veio de-

pois a funesta decadência da monarquia de 1578 na batalhade Alcácer; caiu então de todo a agricultura, assim comotodas as mais Ciências e Artes da indústria. Ainda agora,depois de passados dois séculos desde este golpe, é que vaiPortugal começando a recuperar de tão sensível estrago.

Com efeito, sendo este País fecundíssimo, admira opouco, que dele se vê cultivado; e no mesmo cultivado vósachais uma agricultura selvática, e brutal, que se pode quásichamar abandono, ou falta total das regras desta a mais nobrede todas as Ciências.

Vós ireis viajando por Portugal, e num país tão fértil,e tão reduzido, admirareis vastas charnecas, vales, ribeiras,e várzeas incultas, cheias de mato. Vereis terras as mais

aptas para searas, bosques, vinhas, olivais etc., estarem quásigritando por uma mão benéfica, que venha tirá-las daquelevergonhoso ócio. Vereis noutras partes quási sempre errada a

1 Faria e Sousa, segundo informação em rodapé, no original.

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escolha das plantações, ou sementeiras, nas terras cultivadas.

 A vinha, aonde devia estar o olival; a seara, aonde devia estara vinha; o olival, aonde devia estar a seara. Assim do resto.Vereis aí terras mal abertas, pouco estereadas. Os olivais malplantados, mal aproveitados; as vinhas mal cavadas, malescolhidas as suas castas etc. Observareis por toda a parteuma louca ambição de plantar vinhas, e de cuidar nesteúnico género de cultivo, desprezando todos os mais. Esta

paixão dominante nos Portugueses, tem tornado o seu reinouma vinha continuada. Vales, montes, charnecas, várzeas,ribeiras, por toda a parte se vêem verdejar os pâmpanos, eluzir os cachos. Têm os Portugueses conhecido o apreço, quedos seus vinhos fazem todas as nações do Norte da Europa,e com que ânsia lhos vêm buscar; e, levados deste interesse,vão aumentando quanto podem, as vinhas, para aumenta-rem o seu útil. Porém eles se enganam. Não escolhendo asterras, e castas de uvas próprias / para o vinho, fazem perdera reputação ao mesmo vinho, e deixando em desamparo osoutros géneros, vêm a pôr-se na precisão de os compraremao estrangeiro, como se vê maiormente no trigo, e cevada.

 A província só do Alentejo era capaz de fornecer pão

para todo o reino; porém a maior parte jaz inculta, depoisdisso falta de rios, ou de canais para o transporte dos grãosse vê obrigada a vendê-los por um vil preço, e aplicar-se aoutros ramos de agricultura que lhe dê mais lucro.

Muita parte da culpa deste infeliz estado da agriculturatêm os Senhores, e Donatários das terras, na dureza, comque tratam os seus caseiros e rendeiros. Além disso aqui não

há Sociedades, Academias, ou Escolas, que promovam esteútil estudo. Depois disso, há aqui uma sensível falta de gentemercenária, para o amanho, falta procedida da decadência dapopulação em Portugal, cuja decadência vós podeis bem crer

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donde nasça; vós que tendes meditado tanto Montesquieu,

e o Amigo dos Homens . Enfim todas estas coisas juntas, so-bram, para não dizer, bastam, para o miserável estado desteprecioso ramo da indústria dum povo.

O Filósofo, o Patriota, o Homem Sensível, geme dever um país tão fértil nas mãos da inércia, e da frouxidão.Os bons Portugueses suspiram, e rogam ao Céu para tornarao mundo um Rei Agricultor, como foi o seu D. Dinis, este

Grande Génio Cultivador, e Povoador, que tanto apreçosoube dar ao lavrador, e ao pai de famílias, virtudes com queadquiriu o glorioso nome de Lavrador, e Pai da Pátria, nomesmais doces, e mais satisfatórios para uma alma verdadeira-mente grande, do que os títulos de Guerreiro, Invencível,e o Magnífico, dados quási sempre com bem pouca razão aesses génios maléficos, que o Céu envia à terra na sua cólera,assim como, manda as pestes, as tempestades, as fomes, eos terramotos. Quando este esperado génio aparecer emPortugal, então sairá a agricultura do estado da decadência,e letargia, em que agora se acha, e será este belo País tão útil,quanto é deleitável.

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Carta 12ª

Fábricas

Quási que pudera eu poupar esta carta, dizendo-vos

no fim da precedente, em que tratei da agricultura, queaplicásseis o mesmo, que eu digo do estado dela em Portu-gal, ao em que se acham as fábricas neste reino, e teríeis umcompleto quadro desta parte da Indústria Nacional. Porémainda que seja breve, sempre nesta Carta quero satisfazer àvossa curiosidade.

Não há talvez reino algum no mundo mais próprio

para a subsistência, e aumento das fábricas, nem que maisabunde nos materiais necessários para a sua manutenção.Excelentes águas, tintas, lãs, minerais, etc., tudo em Portu-gal se produz com abundância; e tudo quanto é empregadopor artífices hábeis, iguala, ou vence os trabalhos das maisafamadas fábricas da França, e Inglaterra.

Porei, por exemplo, um dos géneros das fábricas destereino, que mais consumo tem, e em que se têm esmeradomais os Portugueses, quero dizer, os chapéus. Nas fábricas,que há deste género em Lisboa, Pombal, Elvas, e outras partesdo reino, se trabalham com tanto asseio, e perfeição, quevencem em todas as qualidades os Franceses, e Ingleses.

O mesmo se pode dizer com pouca diferença dos pa-

nos fabricados neste reino, em Cascais, Covilhã, Portalegreetc., e nas cambraias, caças, morselinas de Alcobaça.Porém sem embargo da aptidão das terras e suas pro-

duções dos bons engenhos, e seus esforços, pouco se tem

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adiantado em Portugal este ramo de indústria. Não posso

verdadeiramente atinar com a causa desta abjecção, em queaqui se vêem as fábricas. O Marquês de Pombal, no reinadopassado, sentindo o dano, que padecia a nação, em fazerpassar os seus cabedais a reinos estranhos, por géneros, quepodia fabricar nas suas terras, aonde deixasse o preço deles,ou fundou, ou aumentou todas as fábricas de Portugal.É incrível o benefício, que nisto recebeu a nação. Rapazes de

baixa extracção, que não podiam aspirar a coisas maiores, eque não podendo acostumar-se a empregos servis, ou muitopenosos, se viam condenados a passar a sua vida em umaperniciosa ociosidade, abjecto seminário, de que saíam os jogadores, os requerentes de causas, os contrabandistas, emesmo os ladrões, e homicidas, passaram ditosamente a sermembros úteis da Sociedade, e a servir às suas comodida-des. Aumentaram-se os matrimónios, e por consequência apopulação. Cresceu a polícia, o asseio, cresceu a abundânciados géneros precisos para os cómodos da vida, e o dinheiroque saía do rteino para engrossar os estrangeiros tornou agirar dentro nele, e a fazê-lo mais opulento. A muitas destasfábricas se deram isenções e privilégios exclusivos, um dos

grandes meios de as aumentar, e aperfeiçoar.Porém no presente reinado se tem cuidado pouco emconservar e adiantar o que D. José começou. Os fabricantes,vendo-se pouco favorecidos, começaram a trabalhar pouco, emal, a desamparar as fábricas, e ocupar-se noutros exercícios,que  lhes fossem mais úteis.

 A única fábrica, que se tem promovido, e favorecido

mais neste reinado, é a de vidros, junto à vila da Pedernei-ra, na Estremadura, governada e dirigida por  GuilhermeStephens, inglês de nação. Este homem, modelo da polícia,e de cortesia, tem sabido atrair a atenção da Corte, pelas

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suas excelentes qualidades. Hoje se trabalham nesta famosa

fábrica, vidros de todos os géneros, que não têm inveja aosmelhores de Inglaterra, e Alemanha. Acho, meu querido amigo, arreigada neste povo uma

preocupação muito danosa ao aumento das fábricas, e àperfeição das suas obras. E vem a ser, a cega opinião, em queestão, de que tudo quanto é estrangeiro, vence incompara-velmente as obras nacionais. Só porque um pano, um vidro

etc., é filho de Portugal, tem perdido metade do seu valor, aomesmo tempo, que adquire mais outro tanto, se é fabricadoem França, Itália, Inglaterra etc. Não posso concordar estamal fundada opinião com a grande estimação que de si e detudo o que é seu fazem os Portugueses e com a desmedidapresunção, que de si têm.

Quando esta preocupação se acabar, e quando tambémse acabarem una tantos obstáculos, poderão então as fábricasde Portugal fazer alguma figura distinta entre as famosas daEuropa. Sou etc.

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Carta 13ª

Comércio

 À vista do que eu vos digo nas duas precedentes Cartas

sobre o estado das fábricas e agricultura em Portugal, bempodeis vós, meu querido amigo, fazer já ideia do estado doseu comércio.

Como aquelas duas fontes do comércio activo, oude exportação, se acham tão atenuadas, bem crível é que ocomércio de Portugal seja todo passivo, e de receber o quelhe trazem de fora. Andam tão ligados estes três pontos de

agricultura, fábricas e comércio, que em decaindo um, éforçoso, que também caiam os outros, e em se elevando um,ou dois, o restante, ou restantes, também se levantam.

Como os frutos da Natureza, e da indústria neste reinosão poucos, e apenas bastam para o consumo do reino, denenhum modo podem os Portugueses levar para os reinosestranhos aquilo que precisam para si; há contudo algunsgéneros, que lhes sobejam, como v.g. vinho, azeite, sal, milho;porém estes mesmos géneros, que eles podiam exportar nos seusbaixéis aos países estrangeiros, sofrem, que lhos venham buscaros Ingleses, Holandeses etc. Para a América, e Índias Orientais,é que os Portugueses fazem eles mesmos o seu comércio.

Sem embargo duma lei de D. José, que nobilitou os

comerciantes, e do muito favor, honra e distinção, com queforam tratados no Reinado passado, contudo esta soberbanação persiste na arrogante1 opinião, de que é vil, e indigna

1 No original: Arrogância.

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de um homem ilustre a profissão de negociante. Apenas, ou

talvez nunca, achareis aqui um ministro, um militar distin-to, um cavalheiro de Província, que não julgue uma injúriafeita ao seu ilustre sangue mandar seu filho para uma casade negócio do reino ou fora dele; antes querem metê-lo atorto, e a direito em alguma religião, em que vai servir deum peso, e opróbrio à mesma religião, e às vezes até à suamesma família. Porém disto falarei mais devagar.

Causa-me admiração, que uma nação tão intimamentealiada com a inglesa, e que tanto tem adoptado os seus mo-dos, e maneiras, persista contudo em este errado modo depensar, ao mesmo tempo que está vendo em Londres seremos filhos daqueles Lordes, e Senhores Titulares, os primeirosnegociantes. Ao mesmo tempo, que está vendo a conside-ração que se tem em Inglaterra, para com um comerciantehábil, de cujo grémio se tiram muitas vezes Embaixadores,e Enviados, como vimos, há poucos anos Milord Falkner,a quem Voltaire dedicou a sua admirável tragédia de  Zaïre ,passar do seu contador de Londres, para a Embaixada deConstantinopla, e depois para outros cargos ministeriais emInglaterra que admirou nele abraçadas a política, a instrução,

o bom gosto, e a polidez de um perfeito ministro.Este erro dos Portugueses, é uma das causas de que ocomércio se não avance. Não há axioma mais certo que ohonor alit artes. Se honrardes os professores vereis aumen-tar-se o seu número e aperfeiçoar-se a profissão. Tudo pelocontrário se desprezamos qualquer classe de gente.

Por esta razão quási todas as grandes casas de comércio

de Lisboa, e Porto são inglesas, ou francesas. Os negociantesdestas duas nações vêm aqui estabelecer-se, e fazem todo otráfico do reino, levando dele, e trazendo os géneros, que julgam mais lucrativos, e precisos.

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Se esta nação tão felizmente situada pela Providência

acordasse um dia do seu letargo, e caminhasse sobre as pisa-das das mais nações da Europa, promovendo e honrando apreciosa ciência do comércio, por quem os reinos se fazempoderosos, e respeitados, veríamos sair Portugal da tutoriaem que com a inglesa, e fazer por si uma figura brilhanteno Universo, como já a fez com os seus Descobrimentos,e conquistas. A Providência lhe repartiu tudo quanto é

preciso para isto. Boas terras, bons frutos, bons engenhos,bons portos; enfim tudo quanto se pode apetecer. Passemosagora a outras matérias diversas, e não menos interessantes.Sou etc.

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Carta 14ª

 Armas, Fortificações

Sempre esta brava nação portuguesa floreceu na glória

militar. Na Europa nas suas contínuas guerras com Espanha;na Ásia contra os Moiros; Malaios, Persas, Achens, etc.; na África contra os Marroquinos; e Nações da Costa do Orientedesta grande parte do mundo; e na América contra os seusnacionais, e contra os Holandeses, e Espanhóis: Nunca estespuderam abater, e domar esta forte gente, senão naquela in-feliz época da perda de D. Sebastião em África; quando este

reino estava falto de tudo, de gente, de dinheiro, de tropas,de capitães, etc., quando, posso assim dizer, se tinha estereino sepultado com o seu rei nas areias da África. Porémapenas pôde levantar a cabeça, sacudiu o jugo, e tornou àsua antiga liberdade.

Presentemente goza este reino de uma tranquila, esossegada paz pela sua íntima aliança com Castela. A tropavive em sossego nos seus aquartelamentos, e praças, exerci-tando-se no manejo, e mais instruções militares.

São quási 40 000 homens que Portugal sustenta emarmas agora mesmo no reino, e continente da Europa. Osseus uniformes, manejo, e regulamento, é tudo feito àprussiana pelo Marechal Príncipe de La Lippe, que na última

guerra de Portugal com Espanha veio comandar as tropasdeste reino. Algumas pessoas, principalmente estrangeiros,notam que em um tempo de paz esteja este reino sustentandoum tamanho número de tropas, com tamanho dispêndio da

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Coroa, podendo muito bem evitá-lo, diminuindo a lotação

dos regimentos à metade da gente, que agora têm, ou devemter. Assim se utilizava a Coroa, e se conservava o mesmonúmero de regimentos: Havendo algum rumor de guerra,de repente se levantam as companhias precisas para formaro Corpo do Exército, que se julga preciso para a defesa, eguarnição do reino. Para uma campanha se podem formarsoldados em muito pouco tempo. Deste modo se consegue

também descansarem as Províncias das contínuas levas erecrutas; a população se aumenta, e a agricultura toma novasforças; porque saindo quási toda a tropa deste reino, comosucede em todas as mais da Europa, do meio dos campos,e das aldeias, e não do seio das vilas, e das cidades, dondepedia a razão, que se tirasse, aliviando assim a sociedadede uma tropa de ociosos, vagamundos, e jogadores, quea corroem; saindo, digo, quási toda a tropa do meio doscampos, e das aldeias, é forçoso, que pouco a pouco se vádebilitando a laboira, afrouxando os amanhos, desertando oscasais, e criando-se ódio à preciosíssima vida do lavrador.

É incrível o trabalho, que aqui tem a tropa com ocontínuo exercício e manejo: disto e do ténue soldo, que

têm os soldados, que apenas têm diariamente cinco soldosda nossa moeda de França, e um pão de péssima farinha,procedem as contínuas deserções para Castela. Ouvi dizerque militavam neste reino mais de 8000 Portugueses. Seassim é, vede vós, meu querido amigo, que grande ruína estáexperimentando este reino quotidianamente. Diminuindoa tropa, como acima disse, e aumentando os soldos da que

ficasse, se conseguia evitar mais este dano das contínuasdeserções e evacuação do reino.

Todos os amigos da Humanidade também surgirampor ver um novo regulamento, e código de leis para as tro-

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pas. O que se observa de feito pelo Príncipe de La Lippe,

que carregou de terríveis e improporcionadas penas, aindaos mais pequenos crimes. Não são os cérebros portuguesestão pesados, e tardos, como os alemães e nações do Norte,e demasiado rigor os transporta; e em vez de se conseguircom o castigo rigoroso o emendar um soldado mau, ele, oudeserta, ou perde de todo a vergonha e se faz peior, ou morrenos hospitais extenuado pelos bárbaros castigos, que são a

vergonha dum século, em que escreveram Montesquieu, eo ilustre Marquês Beccaria 1.

Observei, que quási todos os ladrões, que via nestereino nas cadeias públicas, eram soldados desertores, e fo-ragidos. Os grandes, e terríveis castigos devem ser tão raros,como os grandes, e terríveis crimes; aliás por uma lei própriada natureza humana, perdem o vigor as mesmas penas, esucedem novos crimes aos já perpetrados.

Sem embargo disto, a tropa portuguesa é das maisfortes, e sofredora de trabalho de toda a Europa. Quási todosos soldados velhos, e antigos são homens honrados e capazesde desempenhar em qualquer ocasião as suas obrigações.Têm também os Portugueses excelentes oficiais; porém não

oficiais, digo, generais, de que estão absolutamente faltos; oque procede, de que vivendo este reino em paz e não costu-mando os fidalgos dele viajar, e servir as coroas estrangeiras,que andam em guerra, não tem assim a nobreza militarconhecimento algum da prática, e manejo da guerra, e deuma campanha.

Nota-se também neste reino o pernicioso uso de

nunca mudar as tropas de uns a outros aquartelamentos, e1 Cesar Beccaria (1738-1794), economista e penalista italiano.

A sua obra Dei Delitti e delle Pene influenciou as reformas do direito penal em diversos países europeus.

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guarnições, como se está usando em Espanha. Deste modo

se enervam os soldados, fazem-se paisanos, arraigam-se nasterras, aumentam-se os casamentos, o que é tão danoso namilícia, e quando chega uma ocasião de guerra não podematurar as marchas, e os incómodos da campanha.

Este é o estado das Armas de Portugal. As fortificaçõesdeste reino são quási todas antigas, excepto uma, ou outrapraça, que foi fortificada depois da revolução de 1640, como

Elvas, o Forte de Santa Luzia, e o de La Lippe, junto a estapraça: a praça de Valença, no Minho, em que se vêem algu-mas obras segundo o método do nosso famoso Vaubon1, ealguma outra fortaleza moderna.

Porém a maior parte destas praças, estão em um totalabandono. Pequenas e miseráveis guarnições, má, e poucaartelharia, carretos quási podres, arruinados os quartéis:enfim causa espanto, como o Ministério de Portugal nadacuida de uma coisa tão importante à fortaleza, defensa, de-coro, e respeito de uma Coroa. A situação deste reino, e nãoter que temer guerras, mais que de Castela, faz este efeito.Unicamente nas praças, que ficam na raia de Espanha, é quese observa algum asseio e cuidado.

Devo confessar, que nesta parte de asseio e abundân-cia, me causaram sumo gosto os dois Arsenais de Guerra, ePetrechos Militares de Lisboa e Estremoz. Ali se acha umagrandíssima quantidade de todas as armas e instrumentosprecisos para a guerra. É digno de louvor o asseio, o arranjo,e boa ordem, em que tudo ali se vê. A Casa de Armas emLisboa está junta com a Fundição de Artelharia deste reino,

que ali governa e dirige o Brigadeiro Bartolomeu da Costa,um dos grandes génios, que tem hoje Portugal, e que fundiu

1 Sebastian Vauban (1633-1707), engenheiro militar francêsque renovou as técnicas de fortificação.

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a estátua equestre e colossal de D. José I, que se vê na Praça

do Comércio desta cidade. Tudo quanto sai desta fundição,e oficina, é notável pelo bem acabado e perfeição da obra.Enfim esta [é] uma das mais bem dirigidas e asseadas fábricasde toda a Europa.

Não vos falo na Marinha Portuguesa, porque nãomerece o trabalho de vos interter com tão pequeno assunto. A soberana hoje reinante começa ainda agora a cuidar nesta

parte da sua tropa; e assim tudo nela são ainda agora princí-pios. Poderá com o tempo vir a figurar no mundo, porqueos Portugueses são excelentes homens para o mar. Agora ireia pintar-vos o quadro de alguns particulares desta nação, edepois vos rascunharei em breve a história do espírito dosdois últimos reinados de Portugal, João o V, e José I, paraassim finalizar o meu trabalho e a análise que vos prometi.Sou etc.

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Carta 15ª

Grandes

Pedia a razão, meu amigo, e senhor, que falando-vos

eu tanto do povo português, dedicasse uma carta separada,para tratar nela daqueles homens, que não querem ser povo,não podendo ser deuses; e que em todas as nações são no-meados por grandes, apelido, que quási sempre se lhes dácom bastante ênfase, e muitas vezes com suma ironia. Bemsabeis vós, que são estes privilegiados mortais aqueles, quedão o tom à nação, que adopta cegamente todas as modas,

e prejuízos, que eles abraçam. Assim pois vou a falar-vos nos grandes de Portugal,

que estudei cuidadosamente, em quanto estive neste reino,e que me lisonjeio conhecer perfeitamente, e talvez melhorque todas as outras classes da nação.

 A arrogância, e presunção, que tanto caracterizamesta nação, assim como a espanhola, em nenhuma parte sedeixa melhor conhecer do que nos grandes. São aqui todosumas máquinas aerostáticas, uns globos cheios de fogo, quese elevam por força da sua leveza, e ardor. Não somente têmem pouco, ou em nada, o povo, e o Estado médio, porémainda mesmo uns aos outros se desprezam mutuamente, oupelos seus cargos, ou pela sua antiquíssima ascendência. Se

os cremos, podem fazer a árvore de costado da sua famíliaaté Noé, ou mesmo até Adão. São escrupulosíssimos nisto degenealogias, e quási se parecem com os antigos Hebreus. Atémesmo havia umas tantas casas grandes neste reino, que não

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casavam senão em outras suas parentas, por não mancharem

o puríssimo esplendor da sua antiga prosápia com um sanguealheio, ainda que tão escolhido, como o seu. Esta Seita dePuritanos  (como lhe chamava com bastante graça o povoportuguês) se extinguiu no reinado passado. O Marquêsde Pombal desmanchou todos os casamentos, que estavamtratados entre estas casas parentas, e as obrigou a irem casara outras famílias apartadas, ainda que igualmente ilustres.

 A esta arrogância, e presunção dos grandes de Portu-gal, anda junta a ridícula confiança que têm na sua capaci-dade para qualquer encargo, ou emprego; e para poderemfalar, e decidir, em qualquer matéria, que nunca leramnem estudaram. São teólogos, jurisprudentes, filósofos,humanistas, médicos, agricultores, comerciantes, etc., sãotudo, e nada são; porque como nada se aplicam às Letras,nem na sua infância lhe inspiram amor às Ciências, Artes,que unicamente podem fazê-los consideráveis, apenas têmde memória algumas ideias, distinções1, e passagens vagasde matérias científicas, que aplicam sem pés nem cabeça, ecomo lá dizem, a torto, e a direito, expondo-se assim ao risodos homens sensatos, e de Letras, que se vêem obrigados a

condescender com as suas blasfémias literárias, e que lá noseu interior mofam, ou se compadecem destes miseráveispavões, que todo o seu merecimento têm no brilhante,e doirado das suas plumas; sem a natureza os ter dotadode vozes sonoras, nem de figuras elegantes. Igualmente seexpõem ao riso do público nos cargos da República, queprocuram, e aceitam sem os conhecimentos, e requisitos

necessários para eles.Na verdade, em poucas partes se achará nobreza menosinstruída, que em Portugal. Porém também em nenhuma

1 A palavra no original poderá ler-se também de finições.

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parte se acharão grandes, que menos procurem adquirir

conhecimentos. Nem estudam, nem viajam, nem procuramo trato, e amizade dos homens sábios da nação. Apenas seachará um, ou outro fidalgo, que tenha uma livraria, que aconheça; que tenha saído fora de Portugal unicamente como fim de se instruir; e que se veja rodeado de sábios e de ho-mens de gosto. As leis, e costumes da nação fomentam estamesma vergonhosa ignorância; pois os lugares, e os empregos

se dão aqui todos à nobreza, e nenhuns ao merecimento.Olham pois estes senhores a Ciência, como uma coisa vil,e mecânica, de que unicamente se devem servir os homenspiões, para ganharem a vida, e o pão quotidiano. Assentam,que o Céu lhes infundiu benignamente todas as luzes, econhecimentos necessários para falarem catedraticamentede todas as matérias.

Voltam pois todos os seus cuidados, e todos os seus fa-vores para aqueles exercícios, e homens que podem lisonjearas suas paixões e sensualidades. Sempre os vereis rodeados depriadores, toireiros, tafueis, miseráveis trovistas, improvisa-dores, etc., e outras diversas espécies de parasitas, ainda maisinúteis, e mais infames. Estes homens, e as suas profissões

são todos os seus amores, e delícias. Sobre eles, e sobre assuas famílias fazem chover os benefícios do Trono, que elesrodeiam, e para melhor dizer, bloqueiam. Bem vedes, meuquerido amigo, quantos danos provêm ao Estado destasperniciosas ocupações, em que vive a nobreza deste reino.

Nos séculos passados ouvi dizer que houvera aquialguns fidalgos sábios: como v.g. no reinado de D. João V,

em que floresciam os Ericeiras, Alegretes, Taroucas, e outrosfidalgos de grandes luzes, e instrução. Neste século apenasse encontra um, ou outro fidalgo, que ame as Letras, e queas cultive.

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 Aonde eles mostram mais a falta de instrução, e em

que dão mais a conhecer, quão fracas são as suas luzes, é nosgovernos ultramarinos, e nas embaixadas, e enviaturas àscortes estrangeiras. Nestes lugares, ou se entregam cegamentea um secretário, ou a um familiar, que os dirija; ou se despe-nham em milhares de erros, e de grossarias. Há pouco vimosno pontificado dos dois Clementes XIII e XIV um fortíssimoexemplo disto no miserável Comendador Almada, que estava

em Roma com o carácter de embaixador de Portugal. Estehomem de uma ignorância pasmosa, de sorte, que nuncaescreveu uma carta, nem mesmo a sua mãe, sem ser notadapor outra pessoa, fez naquela corte, o centro da política e dadelicadeza, as acções mais rústicas e mais estúpidas. Dura edurará eternamente a sua fama naquela famosa capital.

§ 2º – Quási todos os grandes de Portugal são suma-mente glutões, e sensuais. Põem um extremo cuidado nassuas cozinhas; e as horas do jantar, ceia, e almoço, são paraeles, umas horas do maior prazer. Comem em demasia, emuitos também bebem sobejamente. Deste modo arruínam,não só as suas rendas, e patrimónios, porém as suas mes-mas saúdes. Apenas tocam os quarenta anos, já quási todos

se vêem pesados, cheios de moléstias, e de enfermidades,que são consequência fiel da gula, e da intemperança nocomer.

§ 1º – Porém nas províncias das Índias Orientais, eOcidentais, não somente se fazem ridículos os governadores,que vão governá-las, porém servem também muitas vezes deflagelo, e castigo dos miseráveis povos, que vexam e aterram

com as suas absolutas tiranias, e roubos. São ali umas vivasimagens dos baxás1 maometanos.

1  O mesmo que  paxá, governador de província ou chefemilitar turco.

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Pudera estender mais este pequeno quadro, que vos

faço dos grandes de Portugal; porém temo enfadar-vos; eque me digais, que os grandes em toda a parte são grandes,assim como o povo é povo em toda a parte. Tendes razão.Estes vícios, que acabo de apontar são os mais peculiaresdeste reino, aonde não deixam de se achar fidalgos muitoestimáveis, instruídos, e livres de preocupações do seu cargo.Sou etc.

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Carta 16ª

Divertimentos

Não há talvez parte, meu querido amigo, em que

melhor se dê a conhecer o carácter de uma nação, de umpovo, de uma cidade, do que no género e espécie dos seusdivertimentos públicos. Nestes desafogos do trabalho quo-tidiano dos povos, em que o luxo triunfa, e as paixões semostram às claras, ninguém se receia do seu vizinho: falacomo pensa, e pensa conforme a educação, que recebe. Talé o carácter destintivo das nações, tal o carácter dos seus

divertimentos.Por esta razão determinei acrescentar-vos alguma coi-

sa, do que tenho observado dos divertimentos públicos dosPortugueses, para ajudar a formardes ideia desta nação.

O espírito antigo cavaleiresco e fanático deste povo,se descobre ainda muito bem em dois dos principais diver-

timentos deste reino, quero dizer, nas corridas dos toiros,e nas romarias, ou peregrinações aos santuários antigos.Muitas vezes se vêem unidos estes dois divertimentos;porque não há romaria alguma mais famosa, em que se nãocorram toiros, dois, ou três dias. Vós talvez vos admireis,de que eu chame divertimento, e diversão às romarias,sendo uma instituição tão pia, e devota; porém sabei, que

esta instituição, nos seus princípios, tão pia, e devota, sevê tornada hoje em um divertimento da maior liberdadepara os povos de Portugal, que esperam pelo tempo, emque hão-de ir em romaria a tal, ou tal santuário, como os

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Venezianos esperam pelo seu Carnaval.

Porém os eclesiásticos deste reino continuam aautorizar com as suas presenças, e aprovação, estas ce-nas de deboche, e de libertinagem. Vós encontrareis emtodos os povos, ou ajuntamentos (círios lhe chamamos Portugueses, cujo nome provém de uma grossíssimatocha, que levam ao santuário, a que vão em romaria, oqual círio leva gravado o nome do lugar, ou vila, que o

oferece, e arde diante do altar à missa maior, assim comoa tocha, ou círio pascal nestes alegres dias) encontrareis,vos dizia, em todos estes círios quási sempre o cura, ouabade daquele lugar, ou aldeia que vai cantar a missa aosantuário, e presenciar ali todos os desenfreados descami-nhos da embriaguez, e do deboche. A religião não podeaprovar similhantes erros. A política, sim, porque ali seformam os casamentos, toma força o luxo, se consomemos víveres, e mais de um português deveu o seu nascimentoàs orgias nocturnas, ou ajuntamentos báquicos , e nocturnosdestas piedosas funções. As mulheres portuguesas tambémdevem promover e fautorizar estas romarias, porque nãogozando elas ainda de tanta liberdade, como em França,

ou Inglaterra, é tal pobre donzela, que está esperando pelotempo, em que com a sua família há-de ir à romaria etc.,para aparecer ao mundo, fazer tremular os seus adornos, emuitas vezes premiar as finezas, e suspiros do seu amante.Porém quem deve promover, e defender mais esta usança,são os eclesiásticos, e confrarias, e irmandades dos mesmossantuários. São incríveis os roubos, monopólios, e extor-

sões, que neles se praticam com a capa da religião, de sorteque podiam muito bem dizer a estes ambiciosos rendeirosdos santuários de Portugal, o mesmo que Cristo SenhorNosso disse quando fulminou os que vendiam nos átrios

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do Templo: Domus mea, domus orationis vocabitur, et vos

 facitis eam speluncam latronum1

.Pudera dizer mais em quanto aos círios; porém comotenho mais, em que falar-vos, passo aos toiros. Ainda aquiresta este sinal de espírito quixotesco e cavaleiresco da nação. Ainda aqui mandam os fidalgos deste reino aos filhos apren-der a toiriar; e se estima um homem, que sabe picar bem umboi, como nos outros países se estima um hábil anatómico ou

matemático. É bem verdade, que tem decaído muito o furor,com que a nação seguia estas festas, e se acham já muitoshomens que detestam, e abominam este bárbaro brinco, emque a vida de um homem, ou para melhor dizer, a de muitos,se expõem à brutal fúria de um animal o mais bravo, e o maispossante, que temos na Europa. Causa admiração, como a le-gislação das Espanhas não tem ainda proibido rigorosamente

tão bárbaro e abominável divertimento, que priva a laboirade tantos centos de bois e de guardadores; e que perseguindoas leis os foragidos, ladrões, e matadores, deixa livrementeandar vagando pelos campos tantos assassinos, quantos sãoos toiros, que se conservam, que não se contentam com asbolsas, e com as fazendas, como muitas vezes se contentamos salteadores; mas que unicamente fazem tiro à vida do

pobre viajante, que vai caminhando bem desapercebido,de que num campo plano, e no meio de uma estrada empleno dia o está esperando a sua morte com aprovação, econsentimento das leis, e dos magistrados.

Quod genus hoc hominum, quaeque haec tam barbara morem

 permittit Patria? 2

1 Mt. 21,13: domus mea domus orationis vocabitur vos autem fecistis eam speluncam latronum; Luc. 19,46: domus mea domusorationis est vos autem fecistis illam speluncam latronum.

2 Santo Agostinho, Contra Epist. Parmeniani, l. 1. c. 17.

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Posso assegurar-vos, que em algumas das minhas

viagens por Portugal me vi em bastante perigo com estesgalantes animaizinhos, que os Rodamontes portuguesesconservam para seu divertimento. Posso também assegurar--vos, que nunca me quis achar em nenhuma festa de toiros,por mais, que a mim me rogassem; pois sempre me pareceuuma sensaboria, não falando já na barbaridade, aquilo, queos Portugueses gabam de destreza, quero dizer, andar iludin-

do, e furtando as voltas a um animal, e achar prazer em verpor divertimento um açougue, ou matadoiro de bois, ouvirberros destes animais, ver o sangue, ou o seu, ou humano;pois rara será a função de toiros, em que não hajam desgraçasnos toireiros, ou espectadores. Em uma destas festas morreuarrebentado dum cavalo abaixo o Conde dos Arcos, pai doque agora vive. Porém deixemos esta matéria, e não falemosmais neste duelo, que as leis portuguesas proíbem com oshomens, e permitem com os brutos. Pasmosa incoerência!

Os demais divertimentos desta nação são os mesmosdo restante da Europa, v.g. máscaras, fogos de artefício,cavalhadas, e outros alguns.

Dos teatros portugueses, no reino, só os há fixos e

estáveis, em Lisboa, e no Porto. A arquitectura, e fábrica,destes teatros, é misérrima, e muito peior, que a dos teatrosfranceses, contra cuja mesquinhez tanto clamou o nossoVoltaire. Os seus actores, e comediantes são todos gentede baixa plebe, sem sombra de instrução alguma. Apenassabem ler, e por isso são lamentáveis os papéis, que aparecemno teatro português, no género trágico, e no alto cómico.

Em vão procurareis aqui os Barons1, os Champmeslés2, as1 Michel Baron (1653-1729), actor e dramaturgo francês,

amigo de Molière, Corneille e Racine.2 Marie Champmeslé (1642-1698), actriz francesa que repre-

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[Couvreirs], as [Clairoces]1, e outros brilhantes adornos da

nossa cena. Os cómicos portugueses, no sério, e sublime,ou fazem rir, ou dormir.Porém em uma coisa nos levam vantagem os Portugue-

ses, e é na excelente orquestra dos seus teatros. Já vos disse,que a nação portuguesa era iminente na música, assim vocalcomo instrumental. Com efeito só pelas agradáveis, e bemexecutadas sinfonias, e aberturas dos teatros portugueses,

se fazem eles toleráveis. O mesmo vos digo das danças, epantomimas, em que esta nação é inimitável. As peças, que se representam, são quási todas tradu-

zidas dos trágicos, e cómicos da França, Itália, e Castela.Porém que miseráveis e péssimas traduções! Sucedeu-me verrepresentar aqui algumas peças de Voltaire, Mathestasio2,Goldoni, Molière, etc., que tinha lido nos originais, e não

as conhecer, senão depois de me dizerem, que eram aquelas.Quási todas estas peças, dizem no frontispício: «traduzidasegundo o gosto do Teatro Português», o que consiste uni-camente em lhe imbutirem, se são tragédias, ou óperas, doisridículos bufões, ou graciosos, que dizem mil sensaborias, efrioleiras, com que fazem perder ao drama muita parte doseu interesse e viveza.

O que eu creio, que vós podereis concluir destepequeno rascunho dos divertimentos portugueses, é quenesta nação ainda resta muita parte dos costumes arábicos,e moiriscos, ainda falta bom gosto e sobeja rustiquez, e bar-baridade. Isto é o que eu concluí também. Sou etc.

sentou diversos papéis nas tragédias de Racine, tais como Bérénice na peça do mesmo nome, Roxane em Bajazet , Monime em Mithridate,

e as heroínas de Iphigénie e Phèdre.1 Nomes de difícil leitura no original e não identificados.2  Pietro Metastasio, compositor e poeta italiano que viveu

em Portugal. Compôs vários libretos, de que se destaca La Betulia Liberata de Wolfgang Amadeus Mozart (1771).

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Carta 17ª

Educação

Estamos hoje em um século, meu amigo, e senhor,que deseja fortemente ver a luz da verdade, o que já começa

a entrevê-la por entre as pardas nuvens, e espessas sombrasdas preocupações, e prejuízos antigos, que com tudo tãoarraigados se acham ainda em algumas cabeças, ou paramelhor dizer, na maior parte delas, visto que a maior partedos homens, quae imberbes dedicere, senes perdenda fateri,turpe putant .1

Porém com tudo, apesar dos velhos erros, que ainda

vão reinando na maior parte da Europa, creio, que nãohaverá pessoa alguma, que deixe de confessar os poderesda Educação Física e Moral dos filhos, e que nós somostudo pela criação, e pouco, ou nada pela natureza. Estaé a razão, porque os maiores autores, como os Lockes, osRousseaus, os Ballasenes2, os Fénélons, os Montaignes, eoutros grandes génios, têm ocupado as suas sublimes penasem escreverem regras para a educação; têm cavado sobreos resortes, e molas que fazem mover esta grande máquinado Homem, sobre as forças morais da natureza, e sobre omeio de ajudar, e promover o bem e desarreigar o mal nascrianças. Esta é a razão, porque os reis, e os monarcas daEuropa têm fundado tantos colégios, e seminários, para

formar vassalos, porque se vão capacitando daquela áureasentença de Horácio:

1 Horácio, Epistula Liber Alter I .2 Ou Ballaserds. Personagem não identificada.

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Quid leges sine moribus 

Vanae proficiunt? 1

Se os grandes crimes são hoje mais raros, se gozamos demais suavidade, e doçura na sociedade, se têm desaparecidomuitos e antigos erros, todos estes bens devemos à educaçãopública, que cada dia se vai melhorando e aperfeiçoandomais.

Perdoai, meu querido amigo, esta pequena digressão,que me escapou da pena quando ia a tratar da Educação Por-tuguesa, e vendo o lastimoso estado em que ela se acha.

Com efeito, não há nesta nação livro algum ou escri-tor, que tratasse ex professo desta matéria. O Estado, poucoou nada tem cuidado nela. Unicamente no reinado passadoformou o Marquês de Pombal dois colégios, o de Mafra, e

o dos Nobres; porém com algumas incoerências, e erros nosseus estatutos e regímen.

Começando pela educação particular e falando generi-camente do povo, nobreza, eu não vi terra aonde uma criançaseja mais lisonjeada desde os seus primeiros dias. Aqui sevêem meninos, que andam e falam já muito bem, que têmdois anos, e mais, e ainda mamam. Aqui desde pequenosvão começando a imprimir-lhes as mães, as amas, as criadas,e os clérigos e párocos, as ideias de soberba, presunção, efanatismo, que caracterizam esta nação. Acostumam-nos àglotenaria, pela lassidão em que põem as crianças de andarema comer todo o dia: erro, em que caem em Portugal desdeos maiores grandes, até os mais humildes trabalhadores, e

artífices. Aqui fazem as crianças convulsionarias, defluxio-narias, constipadas, e reumáticas, pela demasia, com que asabrigam do frio, em um clima o mais benigno da Europa,

1 Horácio, Livro 3, Ode 24.

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aonde apenas se conhece o Inverno, aonde apenas se sabe

o que é neve, gelo, e saraiva. Vi algumas crianças tão carre-gadas de roupa no Inverno, que me pareciam um pequenoLapoeno1, ou Samoeides2.

Nada se nega a uma criança, que chora. Acostumam--nas à vingança, e à raiva, dizendo-lhes as mães, e as amas,que lhes cuspam nas mãos, para lhes darem pancadas, emquem as ofendeu, e vingarem assim a sua pretendida ofen-

sa. Desde os primeiros anos as vão acostumando a ler umpouco e a contar só na classe dos numerais todas as naçõeshereges ou idólatras como gente sem alma ou cães comoeles se explicam.

Não quero falar-vos na miséria, em que explicam, eensinam o catecismo aos meninos; e que baixas ideias dão aseus filhos da sua religião. A culpa vem do clero, que é aquimuito ignorante, como já vos disse.

Nos anos maiores, poucas são as mães, que façamaprender suas filhas a ler, e escrever com perfeição, a bordar,debuxar, pintar, dançar, cantar, tocar algum instrumento; eenfim, que faça dela uma mulher estimável. A única ideiaque lhes procuram imprimir a todo o custo é que fujam dos

homens, como de uns animais terríveis e perversos. Assimconseguem o contrário do que pretendem, pois todas asPortuguesas ficam capacitadas, que um homem é uma feraa que se não pode resistir, e assim pouco costumadas a olharpara eles debaixo deste ponto de vista, os temem, como aomesmo demónio, e se algum se apresenta a atacá-las, facil-mente cedem. Esta falta de educação faz que as senhoras

portuguesas, que a natureza formou muito belas, se façam1 Habitante da Lapónia.2 Dos Samoiedas, povo que habita o Árctico, a Finlândia e

a Sibéria.

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pela falta de arte, e de conhecimentos, muito desagradáveis,

e insípidas para a sociedade. A nobreza, principalmente ade província, nada se interessa, que seus filhos estudem,principalmente os morgados, porque como são homens debem, e ricos, assentam, que têm todos os requisitos, quefazem um homem estimável, quando, pelo contrário, nãohá coisa mais ridícula, e digna de compaixão, do que sãoestes gentil-homens de Portugal, falando, ou escrevendo.

 Apenas aprende a ler, e alguma pouca Gramática aquelefilho, que destinam para a Igreja, que em fazendo os seusexames, e recebendo as Ordens e o Benefício, nunca maisabre um livro, nem cuida senão em cavalos, galgos, adornos,etc., e esta falta de educação naqueles, que em Portugal sedestinam para a Igreja, vem descendo desde os filhos dosgrandes até os mais ínfimos da plebe. Por isso se vêem aquitão miseráveis clérigos, e frades.

Não só os que são nobres, mas ainda aqueles que oquerem afectar ser, como Mr. Jourdan no Bourgeois Genti-lhomme  do nosso incomparável Molière, acostumam seusfilhos a olhar todo o restante do povo, que não são seusiguais, como gentes de pouca monta e canalha. Em não

sendo homens de bem, já não podem ter nada de estimável.Não se pergunta, quem é um homem, que qualidades, ouvirtudes são as suas, mas quem são seus avós, e se têm algumamecânica, se é judeu, mulato, ou de sangue infecto, frasemuito galante, que aqui ouvi usar neste reino.

 Ao mesmo tempo que estes nobres de Portugal seservem da sua nobreza, não para imitar os seus passados,

e adquirir novos timbres à sua família, mas sim para fazerà sombra da sua qualidade, quantas indignidades e extor-ções podem excogitar; v.g. pedindo emprestadas enormessomas de dinheiro, que nunca pagam, vexando os pobres,

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arruinando miseráveis donzelas, cuja reputação mancham,

e difamam, insultando as justiças, fazendo mortos e outrasviolências inauditas. Se lhe perguntardes a razão, responder--vos-ão que é porque são nobres e que a um homem de bemlhe é permitido muitas vezes obrar contra os leis, que só sefirmam para os vilões ruins.

Ora vede, meu amigo, que galantes ideias das obriga-ções da nobreza têm estes Pantalones de Portugal, e quanta

culpa se não deve lançar aos péssimos, e perniciosos edu-cadores, pais, mestres, e aios, que, ou fomentam ou nadacuram de arrancar-lhes dos tenros cérebros estas malditasmáximas.

Outra preocupação, que também vejo inveterada nes-tes senhores e senhoras nobres, é que a ociosidade não estámal às pessoas ilustres. Por isso passam a vida estes nobres, asmulheres cheias de vapores, e de histerismo, ocupando-se naintriga, e na maledicência, e os homens entregues ao jogo, àlascívia, ao vinho, e gloteneria, de que à maior par te se lhesseguem mil queixas graves, e se lhes origina a morte.

Eis aqui tendes, meu querido amigo, em que estadoestá o gravíssimo ponto da Educação em Portugal. Vede

como poderá esta nação ombrear com as mais polidas daEuropa, tendo ela tantos obstáculos, quantos são os erros, epreocupações, que bebem com o leite! Enquanto elas dura-rem, ou durar o pouco, ou nenhum cuidado, que neste reinohá em educar os filhos, bem podem assentar os Portugueses,que hão-de dar motivo ao riso do homem sábio, e do filósofoimparcial. Sou etc.

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Carta 18ª

Mulheres

Eis-me chegado ao termo da minha carreira, meu ami-

go do coração. Creio, que assaz vos tenho dado a conhecerPortugal nas minhas cartas: e para completar o meu trabalho,acabarei dizendo-vos em particular alguma coisa das mulhe-res portuguesas. Bem sabeis quão grande parte formam deuma nação estas nossas primeiras mestras companheiras, eo mais belo adorno do universo.

 As Portuguesas são em geral muito belas, e airosas.

 A sua cor, nem é tão alva, como a das mulheres do Norte,nem tão fusca, como as Espanholas meridionais. Quási to-das são muito coradas, e quási todas têm excelentes cabelospretos. Os seus olhos são vivíssimos, bons dentes e excelentes[vozes]1  muito engraçadas. Nada deixou a natureza paraadornar estas formosas Europeias.

Porém se da natureza foram também dotadas, daarte, e da educação recebem muito pouco para adornar oque aquela começou. Parece isto providência; pois se acasoas Portuguesas tivessem tanto cuidado em se enriquecer deprendas pela arte, e pelo estudo, quanto teve a natureza emas formar belas, seria Portugal um reino temível; e não sepoderia entrar nele sem se temer a sorte de Ulisses na Ilha

de Calipso, ou de Rinaldo na Armeda. Seriam as águas dosrios de Portugal, as do Letes, e os frutos deste delicioso país,os lotos, de que falam os poetas, que fariam esquecer da sua

1 Palavra rasurada.

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pátria, a quem deles comia.

Com efeito desde crianças acostumam aqui as meninasa olhar a formosura, como o único merecimento, e a despre-zar as qualidades do espírito, e do coração, que só podemfazer estimável qualquer ente. Assim crescem as formosascom uma arrogância, e um ar de império intolerável, nãosó para as suas companheiras, porém até mesmo para oshomens, que ordinariamente são propensos a desculpar os

defeitos do belo sexo; e aquelas que não receberam do Céu,este fatal presente da formosura, caem em uma estupidez esensaboria, em que vão passando os seus dias pecudum more .Nem umas, nem outras se aplicam àquelas artes, e conhe-cimentos, que estão bem em uma mulher; e assim rara seráa Portuguesa, que faça mais do que vegetar: vivem como asplantas, e como elas morrem.

Por esta razão é a sua sociedade muito pesada, e deopressão para todos aqueles, que não são seus amantes. Ape-nas as tirais do costumado intertenimento, e conversaçãosobre as modas, enfeites, e defeitos das suas conhecidas,e amigas, pontualmente perdem o uso da fala. Podemoscompará-las àqueles pequenos carrilhões, que não têm

mais, que seis ou oito minuetes, ou cotilhões, tocados osquais, acabou a música, ou é preciso tornar de novo aoprincípio. Algumas vezes fui obrigado a sustentar conver-sação com algumas senhoras de grande qualidade; e nuncaem minha vida me vi mais embaraçado, nem dei maior usoaos lugares comuns , que me ensinaram no colégio, andandona Retórica.

É bem verdade, que na Corte, e em outras princi-pais cidades e províncias de Portugal, se acham muitassenhoras de todo o merecimento, que se aplicam às Belas Artes, que sabem as línguas, e que fazem muito amável a

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sua companhia. Porém estas ainda são muito raras; o mais

vulgar são as que vos digo.São também as Portuguesas muito fanáticas, visioná-rias, e beatas. Apenas se celebra aqui auto da fé algum, emque a Inquisição não faça aparecer muitas destas encobrido-ras, que enganavam os seus directores, as famílias, e os povos;e que desfrutavam amplamente os privilégios e liberdadesde servas do Senhor. Disto julgo, que têm a maior culpa  os

mesmos directores frades, e clérigos de miserável ignorância,e quem iludem com a maior facilidade.

O traje e adorno das Portuguesas, assim como noshomens, é um misto de todas as outras nações. Não há nomundo nação mais imitadora servil nos trajes das outras, doque é a Portuguesa. As mulheres deste reino, ora no trajesão Francesas, ora Inglesas, ora Castelhanas, ora Italianas,etc., ora enfim um misto e colecção de todas as nações daEuropa. Basta que apareça em Portugal uma estrangeira comum novo vestido, penteado, mantelete, etc., para que logotodas as Portuguesas, sem saber se lhes está bem, ou mal, oadoptem, e usem cegamente. E basta que uma senhora nãoapareça na assembleia, na comédia, no passeio com o traje

favorito, para logo ser pelas demais capitulada de ridículae antiquária.Sendo as Portuguesas, como vos disse, tão faltas de

luzes e conhecimentos, por força a sua amizade há-de serpouco gostosa. No amor também são demasiadamenteinsípidas; têm nele somente parte os sentidos, e nenhuma,o espírito ou o coração. Amam furiosamente; porém sem a

delicadeza das nossas patrícias e doutras senhoritas doutrosreinos da Europa.

São também furiosas nos seus ciúmes, e zelos. Esta éa razão, porque em Portugal a maior parte dos casamentos

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são desgraçados; porque sendo aqui muito raro o divórcio,

e a separação, aquele esposo que leva para casa uma mulherciosa, como são quási todas, leva também consigo para en-quanto viver o abutre que no Averno fingem os poetas estarroendo as entranhas de Tício, que sempre lhe renascem, pormais que aquela carniceira ave lhas roa e consuma.

Poucas preciosas, e afectadas se vêem aqui neste reino,excepto aquelas, que são criadas nos conventos das freiras,

que são os reservatórios, aonde neste reino se conserva oestilo alambicado, e hiperbólico. Vi algumas senhoras, quetinham sido criadas, ou tinham estado recolhidas nestesconventos, as quais não tinham inveja no estilo guindado erefinado à M.me Magdelon e Cathos do nosso Molière.

Devemos confessar, que a maior parte dos defeitos dasmulheres portuguesas, se deve imputar aos homens. Nãofalando agora nos pais, e mães, ainda mesmo as estranhassão o maior obstáculo para elas saírem da sua ignorância,e estupidez. Apenas uma mulher quer neste reino alevan-tar-se acima das suas companheiras, aplicando-se às Artes eCiências, quando logo se conspiram contra ela as vozes, nãosó das outras, porém mesmo dos homens, que a conhecem.

Começam a proclamá-la ironicamente com o título dedoutora, e a dizer que é uma soberba, uma ociosa, e que otempo, que gasta sobre os livros, melhor fora que o gastassena sua roca, e no governo da sua casa. Aterradas as pobresPortuguesas com estas mofas, e irrisões, poucas se acham quetenham a constância de as desprezarem, e de prosseguiremno seu caminho, alumiando a sua razão, e enchendo de

conhecimentos a sua ideia.Isto nasce da baixa ideia, que em Portugal se faz

ainda do verdadeiro uso, e fim das Ciências e Artes, queolham como só próprias para os homens ganharem com

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a sua profissão a vida; e não como o mais belo presente,

que a Omnipotência fez aos homens, para aperfeiçoarmosa mesma obra da Omnipotência, quero dizer, o engenhohumano, sejam homens ou mulheres, ricos ou pobres, no-bre ou plebeus. Por esta causa se não acham em PortugalDaciers1 nem Chatelets2.

Nem se acharão, se este costume dura, como dura oseu Camões. Sou etc.

1 Anne Dacier (1654-1720), tradutora e comentadora francesaque fez parte da controvérsia entre os “antigos e modernos”. Traduziua Ilíada e a Odisseia.

2 Gabrielle-Emilie Chatelet (1706-1749), matemática e físicafrancesa amiga de Voltaire.

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Carta 19ª

Século de D. João V 

Conforme vos prometi no fim da carta 14, e con-

forme eu tinha prometido, apenas comecei estas cartas,vou traçar-vos um breve, mas verdadeiro quadro dos doisprecedentes reinados de João V, e José I. Direi alguma coisado seu espírito, e de como influíram na nação muita partedos costumes, usos, e preocupações, que ainda hoje reinam.É isto um suplemento, e uma iluminação, que quero dar aomeu trabalho, para que assim se possa fazer uma mais justa

ideia do carácter, e estado dos Portugueses.Mas quem sou eu, e que forças são as minhas para

desempenhar, ainda que de passagem, esta arriscada empresa?Tenho acaso a vivacidade de Voltaire, o desabuso de Mehe-gan, e profundidade de Hume1, a Filosofia, e Política de Ray-nal2, para debuxar uma obra cheia de vários acontecimentos,revolta em sedição, e cruel ainda mesmo na paz, como dizda sua História o grande Tácito? Começarei confessando aminha fraqueza, e pequenas forças; porém ao mesmo tempodirei de mim o mesmo, que o referido Tácito de si diz nomesmo lugar (Histor . Lib. 1º): «Eu nem por benefício nem

1  David Hume (1711-1776), filósofo escocês, expoente doempirismo inglês, autor da obra  An Enquiry Concerning Human

Understanding.2 Guillaume-Thomas, abade de Raynal (1713-1796), escritor

e propagandista francês, editor do periódico  Mercure de France eautor de uma História das Colónias Europeias na Índia e América (1770) publicada em seis volumes.

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por injúria conheci a Oto, a Galba, e a Vitélio.» Nem por

benefícios, nem por injúrias me são conhecidos João V, nem José I, nem os seus ministros. Observador imparcial, direi oque vi, o que li, o que  ouvi a homens sábios, e desabusadosdesta nação. E também, como o meu trabalho não é para sefazer público, mas sim para vós no vosso gabinete lhe dardesa sentença de aprovação, ou condenação, por isso tanto maisafoito entro nestas arriscadas empresas.

 A D. Pedro II sucedeu no ano de 1707 seu filhoD. João V, que morreu no de 1750. Teve lugar no longoreinado de 43 anos, de influir no seu povo muita parte doseu espírito.

Dizem uns dos Portugueses que foi este um granderei, um Tito, um Trajano: outros pelo contrário dizem, quefoi um homem indigno do ceptro, pelo mau uso que delefez. Combinando o bem ao mal, que dele ouvi, acho quefoi este monarca uma daquelas almas, que se acham muitovulgarmente no trono, cheio de boas, e de más qualidades,e a quem algumas circunstâncias exteriores fizeram parecermaior, do que na verdade era: assim como a lua nos seusdois pontos opostos de Nascente, e Poente, parece maior, do

que no Zénite, pela densidade dos vapores, que se elevamda terra.É certo que D. Pedro II cuidou muito pouco na edu-

cação do seu sucessor. Por isso ele nos seus anos primeirosde reinado misturou grandes vícios com algumas boas pro-pensões, que  lhe dera a natureza.

Dizem os Portugueses que ele fora muito amigo da

Igreja. Não o duvido: porém assento, que lhe teve um amorpouco ilustrado. Não acho, que seja amigo da Igreja o carre-gá-la de um imenso número de frades, e clérigos, faltos deinstrução, cuja abundância ele promoveu com a sua paixão

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pelas ceremónias eclesiásticas. No seu reinado era todo o

Portugal um convento; não se viam mais que   clérigos, efrades; tal pai houve, que por seguir o gosto favorito do rei,e da Corte, ordenou quantos filhos tinha per fas nefasque , emeteu assim na Igreja quatro, ou cinco forçados prosélitos. A muita abundância de eclesiásticos lhes fazia perder a ve-neração e estimação que lhes é devida.

Não <creio>1 que seja ser amigo da Igreja a sua erecção

da Patriarcal de Lisboa, para cujo sustento e luzimento, bemescusado, tirou dos bispados, as terças partes do[s] rendi-mentos das igrejas. Desta forma, fez um enorme roubo aospobres, e eclesiásticos das províncias, que comem aquelesdízimos por um direito divino de antiquíssima, e imemorialinstituição.

Desta forma fez também um grave dano aos filhossegundos dos grandes de Portugal; porque com a esperançade entrarem na Patriarcal, para principais, monsenhores, ecónegos, desprezam as Letras, e o Estudo: e se vêm desta for-ma a fazer inúteis à mesma Igreja, e ao Estado. Desta formao dinheiro, que mais útil, e justamente devia circular nospovos, e nas províncias de Portugal, vem unicamente servir

ao luxo, e à embriaguez de músicos, e cantores italianos, eportugueses, gente vil, e de nenhum proveito.Ouvi dizer a pessoas, que alcançavam muito bem o

reinado deste monarca, que ele premiara algumas vezes amuitos dos seus mignons (pois similhante ao nosso HenriqueIII, tinha bastantes, que eram apontados pelo povo) com adata de benefícios, e lugares maiores na Patriarcal. Vede vós,

se é isto ser amigo da Igreja.Não sei também, se é ser muito amigo da Igreja, pro-

fanar, como ele fez tantas vezes, as clausuras das Religiosas,1 Palavra interlinhada.

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com impudicos amores, dando um tão pernicioso exemplo

aos grandes, e ao povo, que no seu reinado apenas se apon-tava freira, que não tivesse amante, ou cortesão, que nãotivesse freira. Passou este espírito de freiralismo a tal furorde moda, que parecia uma falta de polícia, e de criação onão ter freira um homem, que se estimava. Como era omonarca quem autorizava estes sacrilégios, cometeram-seno seu tempo mil terríveis desordens.

Edificou o Real Convento de Mafra, para pagar aSanto António o voto que lhe fizera, se lhe alcançasse deDeus a graça de sucessão. Porém gastou neste chefe d’obrade arquitectura mais de trinta milhões, segundo dizem, po-dendo gastar só a terça parte, e gastar as duas em abrir portos,fabricar molhes, comunicar rios por canais, abrir caminhos,e calçadas seguras para o comércio do seu reino; pois nadadisto tem Portugal e tudo precisa. Se o nosso Luís XIV nãoefeituasse a maravilhosa, e utilíssima obra do Grande Ca-nal de Languedoc, muito mais culpável seria nos milhõesimensos, que dizem passaram de duzentos, que gastou nosoberbo Versalhes. E com tudo, ainda o autor do  Ano de 2440  repreende tão asperamente esta inútil magnificência

no 3º tomo daquela obra.Com efeito foi também imenso o dinheiro, que gastou João com clérigos, frades, e igrejas. As minas de oiro que setinham descoberto de novo na América, nos fins do reinadode seu pai, lhe estavam mandando continuamente pela fozdo Tejo grossíssimos montões deste instrumento da felici-dade dos povos: os quais aquele rei consumiu de tal forma,

que falescendo ele em 1750, e sobrevindo em 1755 nosprincípios do reinado de seu filho o memorável terramoto,que arrasou Lisboa, e depois de 1760 a guerra em Espanha,para acudir a ambos estes sucessos foi preciso a José pedir

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dinheiro emprestado em Holanda, e Inglaterra, e vexar os

povos com novos tributos. Ah!, meu querido amigo! Quanto me vejo aquiobrigado a exclamar aos reis com as palavras de Horácio:«Monarcas, senhores dos povos, vós ainda não sabeis

Quid valeat numus, quos proebeat usus? »1

 Até quando haveis de gastar e consumir a sustânciae força dos vossos Estados, de que vós sois uns meros admi-nistradores, e depositários, em coisas, que nada influempara o bem dos mesmos Estados: em caça, em músicos, emdançarinas, em fábricas sumptuosas, mas nada precisas, emamontoar conventos a conventos, em derramar no seio depoucos, e inúteis indivíduos aquelas riquezas, que com altasvozes vos estão reclamando o miserável, e oprimido labrador,o artífice abatido, o homem de Letras desprezado, o militarmal recompensado! Até quando há-de o dispotismo sacudiros vossos doirados tronos a sua facha infernal, origem dadecadência da Humanidade? Se quereis, que as vossas me-mórias passem de geração em geração, não em mármores,

e bronzes perecedores, mas sim nos peitos, e nos coraçõesdos vossos vassalos, como a de um Tito, um Trajano, umMarco Aurélio, um Luís XII, um Henrique IV, e um Dinis,e João II e III de Portugal; ah!, recompensai aos povos como mesmo suco, e sangue que deles tirais. Fortalecei2, aformo-seai, fazei comunicável o vosso Estado: deixai à posteridadeobras que admire, e de que se aproveite: e só assim poderá

a posteridade dar-vos os nomes de Grandes, que em vossas1 Horácio, Sermones. Livro I, 1,73: «nescis, quo ualeat num-

mus, quem praebeat usum?»2 No original: Foltalecei.

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vidas não provam nada do vosso merecimento, pois já o

temor, e a lisonja prostituiu este nome, e o deu aos Neros,aos Domicianos, aos Atilas.Perdoai, meu quero amigo, a longa digressão, e escu-

sada declamação a que me arrastou a pena à força de génio,que muitas vezes não posso conter e que aqui não pode dei-xar de romper, à vista do abuso, que João V fez das grandesriquezas, com que o Céu abençoou o seu reinado.

Nos últimos anos dele, e já quando o ardor da moci-dade se tinha extinto no seu peito, dizem que se arrependerados seus antigos erros, e que ajudado da sua grande mulher,a excelente rainha D. Maria Ana de Áustria, filha do impera-dor Leopoldo I, princesa que reuniu em si todas as virtudescatólicas, morais, e políticas, ajudado, digo, desta grandeheroína, se aplicou ao bom governo dos seus vassalos, epronto despacho dos negócios.

Porém se o rei se emendou, no povo estavam já suma-mente arraigadas as preocupações, que bebera do monarca,para se emendar delas com facilidade. O fanatismo, a falsadevoção, o espírito de povoar conventos de homens, e demulheres, o luxo nos eclesiásticos, e outros erros mais ficaram

subsistindo depois da morte de D. João V, e ainda duram,e talvez durarão por largos anos.Nada deveram as Armas a este rei, e muito pouco as

Letras: já vos disse o que fez em seu benefício quando trateido estado delas em Portugal.

Pouco promoveu o comércio, e nada a agricultura. Assim, não sei com que razão os Portugueses o louvam e

sobem às estrelas, como o maior rei que nunca tiveram. Achona sua História muitos monarcas, que com muita mais razãodeviam obter os louvores que têm arrogado João V.

 Acho que a causa disto é a longa tranquilidade, que

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gozou o reino no seu governo. Nunca teve guerra alguma

depois que celebrou paz com Castela pelo Tratado de Utre-ch de 1715 aos oito anos do seu governo. Nunca vexoutambém o povo com tributos, pois lhes não eram precisos,rendendo-lhes as minas da América tão enorme quantidadede direitos.

Deste modo teve todas as qualidades, que o povorequer para ser um grande rei. Teve a sua gente sossegada,

deixou-lhe comer em paz os frutos das suas terras: isto lhesbasta. Porém o filósofo, o amigo da Humanidade passaadiante e pergunta: que bem fez ao seu povo? Que abusoscorrigiu, que edifícios úteis fundou, que ciências premiou,que virtudes coroou, que comércio nacional promoveu, eaumentou: enfim, que bem fez ao seu povo, e que utilidadestiraram do seu reinado, não só os vassalos, que o conheceram,porém ainda os seus últimos netos. Se nada fez em que osutilizasse, e ele em nada mais empregou os seus dias, que emespantar os seus povos com o falso brilhante de uma passa-geira pompa, e magnificência, com que razão lhe havemosconceder os títulos de Grande, e de Magnânimo, que só sedevem àqueles reis, que desempenham o suave nome de Pais

dos Povos, como lhes chama Homero?Passemos ao reinado seguinte, e à última baliza domeu trabalho. Sou [etc.].

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Carta 20ª

Século de José I, e ministério doMarquês de Pombal

Morto João V em 1750, lhe sucedeu seu filho D. JoséI. Pai da rainha reinante, e o XXV na ordem dos reis dePortugal. Este monarca, nascido com um génio sumamenteflexível, tímido, crédulo, e preguiçoso, apenas montou otrono, temendo os encargos dele1, e o trabalho, que dá cum-prir as suas obrigações descarregou todo o seu peso sobre osombros de Sebastião José de Carvalho, Marquês de Pombal,

ministro tão famoso nos nossos dias, e de quem, mais quede João V, se tem dito tanto bem e tanto mal.

 Assim para ir coerente com a minha primeira ideia,em contar-vos estes dois últimos reinados, deixamos de parteo crédulo, e timorato José, que unicamente ocupou os seusdias em caçar aos veados nas matas de Salvaterra, em ouvirnovas músicas, e fazer representar óperas, e falaremos coma maior imparcialidade neste ministro tão nomeado.

Sebastião José de Carvalho nasceu em Soire, pequenavila do termo de Coimbra, e depois de ter corrido váriafortuna nas Armas, e nas Letras, começou a seguir a carreiraministerial, sendo nomeado Enviado Extraordinário à Corte

1 No original, ao lado das primeiras linhas deste parágrafo,

surge escrito o seguinte:  Nomine, non potestate, fuit Rex – Corn. Nepos. de Regib. É uma citação da obra De Regibus do escritor la-tino Cornelius Nepos (c. 100 - 24 d.C.), cujo contexto é o seguinte:«Lacedaemonius autem Agesilaus nomine, non potestate fuit rex,sicut ceteri Spartani.»

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de Londres em 1739. Volta depois a Lisboa: é mandado a

Viena de Áustria, aonde casou segunda vez com a CondessaDaun, parenta do célebre Marechal deste nome1. Volta pou-co depois a Lisboa, aonde fica longo tempo sem emprego,por mais que o procurasse conseguir à força de lisonja, e decuidados. João V tinha formado uma muito má ideia doseu carácter, aborrecia-o, como um homem mau, e de géniocruel; e por mais diligências, que fizeram Frei Gaspar da

Encarnação, tio do Duque de Aveiro, o Padre João BaptistaCarboni, e o Marquês de Valença, e outros validos daquelemonarca a quem Pombal lisonjeava fortemente, nunca pôdeconseguir no seu reinado ser admitido ao ministério.

Porém, morrendo João V em 30 de Julho de 1750,achou Pombal a surgida ocasião de entrar no ministério, eser nomeado Secretário de Estado dos Negócios do Reino,por intermissão da rainha viúva, que o protegia, em atençãoà Condessa Daun, sua mulher, alemã, como a rainha. Desdeeste ponto em 1750 até à sua demissão do ministério em1777, no longo espaço de 27 anos, governou Pombal sempredispótico; crescendo cada dia mais em poder, em rendas, emtítulos, em soberania. Deu o tom ao reinado de José, que só

de monarca conservava o nome, influiu em grandes negóciosda Europa, mudou todo o Portugal de baixo a cima: enfimfez uma notável revolução no seu país.

 A brevidade, que eu me propus nestas cartas, e quelogo ao princípio delas vos prometi, não me consente se-guir passo a passo todos os do ministério de Pombal, nemtambém fazer-vos um quadro tão circunstanciado, como eu

desejava, dos seus caracteres; porém farei por vos dar uma1 Leopold Joseph, Conde von Daun (1705-1766), marechal

austríaco, comandante-em-chefe na guerra dos Sete Anos contra aPrússia.

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viva ideia do génio deste célebre ministério.

Sebastião não tinha nascido com grandes talentos. Nãoera um homem como Richelieu1, Ximenes, Alberoni2, e ou-tros famosos políticos da Europa. Circunstâncias favoráveis(pois não se pode negar que este homem foi um monstro dafortuna) o foram impelindo para o alto e o puseram enfimno cume do governo de Portugal. Teve a felicidade de acharum rei fraco, imbecil, ocioso, e tímido, que aterrado por um

terramoto e por uma conjuração, de cujos sucessos se soubePombal aproveitar muito bem, se entregou inteiramente nasmãos daquele ministro; e não teve dúvida de sacrificar-lheem tudo a sua vontade, a da sua família, a sua fazenda, e afazenda e vida dos seus maiores amigos.

Não aspirou Pombal a fazer como Sully 3 (com quemtantas vezes o compararam falsamente) a felicidade do seugoverno. Cuidou sim em fazer a própria fortuna, à custa daruína alheia; iludindo em tanto aos pequenos espíritos comobras públicas, muitas delas inúteis, repetidas leis, decretos,inovações, e com vis panegiristas pagos, que anunciassem, portoda a parte a felicidade de Portugal no seu ministério.

Porém em tanto gemia o povo, carregado de enormes enovos tributos de que o carregou: gemiam os homens sábios,e ilustrados da nação, que o não lisonjeavam, a muitos dosquais perseguiu, e arruinou, a outros fez abandonar a suapátria, e ao resto fez jazer no mais escuro abatimento. Gemia

1 Armand-Jean du Plessis, Cardeal e Duque de Richelieu (1585-1642), ministro do rei de França Luís XIII entre 1624 e 1642.

2 Giulio Alberoni (1664-1752), político italiano com grande

influência na corte espanhola, para onde foi enviado como embai-xador de Parma, chegando a exercer o cargo de primeiro-ministrode Espanha.

3 Maximilien de Béthune, Duque de Sully (1560-1641), mi-nistro de Henrique IV, rei de França.

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a agricultura, que nada favoreceu, antes vexou, e oprimiu.

Enfim gemiam todas aquelas classes do Estado, que nãoserviam para a sua pompa, e luzimento. Assim é, que pôs a tropa portuguesa no estado, em

que hoje se acha, de polícia, disciplina, e luzimento. Quefavoreceu as Artes e Ciências; porém também se lhe nota,que querendo ele pôr pelas províncias mestres públicos, queensinassem línguas, Belas Letras, a Filosofia à mocidade,

cujo ensino antes pertencia aos Jesuítas, pusesse para isso tãoenormes tributos ao vinho, a que chamam Subsídio Literá-rio, pelo qual cada pipa de vinho paga ao rei uma libra danossa moeda (200 r.). Podia muito bem Pombal evitar esteenorme gravame para o povo, fazendo como outros Estadosde Alemanha, e de Itália, uma mesa, que administrasse asgrossas rendas dos extintos Jesuítas, e que delas se pagassemos mestres, e professores públicos. Todos sabem, que emnenhum país do universo tinha a Companhia de Jesus maisrendas, e possessões do que em Portugal, e nas suas Américas.Porém Pombal antes quis satisfazer ao seu génio ambicioso,e repartir pelos seus amigos, e parentes estes bens, que nãotinham sido tirados da Coroa, mas sim do Fundo Público, e

da massa dos bens do povo, em legados, e deixas à sociedade;do que dar a Portugal esta prova de um génio desinteressadoe amigo do público.

Uma coisa devem os Portugueses a Pombal, e é ter elesubjugado, e domado algum tanto o sumo orgulho, comque neste reino viviam os grandes, tiranizando os povos, edesprezando as justiças. Estas, no seu ministério, tiveram

todo o vigor, e toda a força punitiva.Um dos meios, de que usou Pombal para se fazer res-

peitado por um grande ministro, foi em publicar, durante oseu ministério, uma prodigiosa quantidade de leis, direitos,

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alvarás, editais, etc., cuja colecção forma dois, ou três volu-

mes in folio magno. Porém ainda que espantasse com isto opovo, e a gente pouco instruída, por isto mesmo se expôsao riso, e à mofa dos verdadeiros filósofos, e jurisconsultos,que se admiravam de ver um homem político, que queriapassar por um grande ministro, estar aumentando a confusãoda legislatura portuguesa (que é pasmosa) e o número dosprocessos com leis pouco precisas, mal dirigidas, e peior

enunciadas; e que por isso precisavam mil declarações eexplicações para a sua inteligência. E isto num século, emque as nações mais ilustradas da Europa estavam resumindo,e epitomando as suas antigas leis, compondo novos e brevís-simos códigos, ditados pela razão, pela justiça, e pelo bomgosto. O Corpo do Direito Português antigo e Pombalenseformará cinco grandes tomos in folio. Vede, que tesoiropara os rábulas, e intriguistas, e que fonte de lágrimas, parao miserável povo. E vede também, se é isto ser amigo dopovo, e da Humanidade; e se Pombal merece com justiçao nome de Grande Ministro. Deve Portugal ao Marquêsde Pombal ser ele o primeiro que começou a mostrar-lhea luz da verdade em muitos pontos. Por ocasião da sua

rotura com a Corte de Roma, no pontificado de Clemente XIII, começou a fazer escrever sobre o Direito dos Bispos,e dos Reis, que aqui eram uns meros escravos da Corte deRoma. Fez conhecer aos metropolitanos de Portugal o seupoder, e os lemites da sua autoridade. Fez conhecer aos reis,direitos, que são seus pela natureza mesma da regalia, e quepela ignorância do são, e ilustre Direito Canónico andavam

alheados nos bispos e nos papas.Foi Pombal o primeiro, que começou a diminuir, e

coarctar a ilimitada autoridade, e temível poder, que a In-quisição tinha nestes reinos. Ordenou, que se não celebrasse

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auto de fé algum sem assentimento da Corte, e sem que o rei

aprovasse as suas sentenças, se não pudessem elas executarnos culpados. Esta lei honra a Humanidade; assim comotambém a que promulgou a favor dos Judeus, e Moiros,que declarou hábeis para qualquer emprego do Estado. Domesmo modo é digna de louvor a outra lei com que nobilitouaos comerciantes.

Por ocasião da expulsão dos Jesuítas, pôs pelo reino

professores, que ensinassem a verdadeira Filosofia e Retóricaque aqueles religiosos ainda desconheciam em Portugal.Reformou a Universidade, e deu nela novo plano para oestudo das quatro Faculdades. Porém aqui se lhe nota, quepor força da sua criação, desse tanto tempo ao estudo doDireito Romano, e tão pouco ao pátrio, e nenhum estudo daPolítica e Economia, de que não fundou cadeira alguma.

Porém, meu amigo, que é isto, ou que são todos estespequenos benefícios, em comparação da crueldade, com queflagelou este reino? Não podemos duvidar, que Pombal eraum homem de um péssimo interior. Queria ser temido, enada se lhe dava de ser amado. Oderint dum metuant 1, dizia,como aquele antigo romano.

Povoou os cárceres, e as masmorras de muitos milharesde miseráveis, vítimas da inveja, ou da cobiça, no desumano,e abominável Tribunal da Inconfidência. No seu ministérionunca um homem estava seguro, se amanhecendo em suacasa, iria passar a noite em um escuro cárcere. Como Pombalgovernava tiranicamente, era muito suspicaz; e como era vai-doso, e arrogante em demasia, pensava 2 que ninguém teria o

atrevimento de o enganar nas suas delações. Que miséria! Por1  Segundo Suetónio, era uma frase favorita do imperador

Calígula.2 No original: pensava, pensava.

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esta causa padeceram inumeráveis inocentes; dos quais, uns

acabavam a vida naqueles lúgubres cárceres, e outros saíramà luz do dia, quando ele foi mandado sair da Corte, a dar umvivo testimunho da sua cruel, e desumana natureza. Bastavasó a suspeita de que um homem era amigo dos Jesuítas, oulia os seus livros, para logo estar imerso no seu ódio, e iracabar os seus dias, ou desterrado nas charnecas de África,ou sepultado nas prisões das Torres de Lisboa.

Causa admiração, de que ao mesmo tempo, quePombal estava diminuindo e enfraquecendo a prepotênciada Inquisição, estivesse por outra parte dando forças, e vigora outra Inquisição civil muito mais terrível, e abominável,quero dizer, a Inconfidência. Poderemos talvez achar a causadisto no génio tirânico e dispotismo de Pombal. Como osistema do seu governo, era um mero dispotismo, queriaque os mais tribunais dispóticos lhe fossem subordinados;e que não houvesse pessoa alguma tão atrevida, que ousassefalar do seu governo. Para isto publicou uma lei, pela qualdeclarava réus de lesa majestade, para que como tais fossemcastigados, todos aqueles que ousassem falar no ministério,ou no ministro. Pombal, similhante ao engraçado herói

de Cervantes, que a cada passo se figurava na sua exaltadaimaginação, aventuras; que de moinhos fazia gigantes, ede estalagens castelos roqueiros: a cada passo se figuravaconjurações e cabalas. As sombras lhe pareciam realidades,e as aparências, certezas. Tanto peior era esta sua Inquisiçãocivil, que a eclesiástica, que nesta são os culpados arguidose mandados defender; porém na Inconfidência, preso que

fosse um miserável por sua ordem, não podia dar mais des-cargos nem formar esperanças algumas. Apenas preso, eralogo lançado no fundo de uma torre, aonde lhe ferrolhavameternamente a boca, para as queixas, ou para a defensa.

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O resto do povo era vexado cruelmente pela exacção

com que fazia cobrar os tributos novos, de que ele carregouo miserável reino. Era vexado o comércio pela execução demuitas companhias, como a dos vinhos do Porto, a do Pará,e Maranhão, e outras que coarctavam a indústria nacional.Era vexado o corpo dos sábios da nação, dos quais perseguiu,prendeu, ou fez fugir do reino, todos aqueles que ousavamfalar, ou pensar contra as suas máximas. Somente os seus

amigos, e protegidos, que cometiam à sua sombra milharesde injustiças, as cometiam sossegadas.

Na mesma reedificação de Lisboa, de que muitos lhequerem formar o seu maior elogio, cometeu Pombal imensastiranias, e abusos. Tudo quanto ele fazia, era marcado pelaopressão, e injustiça.

Muitos dos seus apaixonados lhe querem tambématribuir a glória de ter sido quem moveu, e completou agrande obra da extinção dos Jesuítas. Porém isto é um errogrosseiro. Além de que este grande sucesso estava preparadopelas injustiças dos mesmos Jesuítas, e clamores dos povos,bispos, reis, e universidades desde os primeiros anos dasua fundação: é também certo, que este acertado golpe de

 justiça, e de política, se deve todo ao grande, imortal, eincomparável Clemente XIV, cujo espírito tão ilustrado,e imparcial mandou Deus à sua cadeira para fazer cessaras queixas dos reis, e dos povos, tirando do meio da Igrejaesta pedra de escândalo do povo católico. Estou muito bemcerto, que, se a Clemente XIII se seguisse outro pontífice,que tivesse outro génio igual ao seu tão tenaz, e preocupa-

do; não digo eu as diligências de Pombal, mas as de todasas cortes, e pessoas, que pediam a extinção dos Jesuítas,seriam baldadas, e frustrâneas. Devemos logo concluir, queé uma injustiça atribuir logo a Pombal este grande sucesso,

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ao mesmo tempo, que para ele trabalharam todas as cortes

da Europa; e que  ele é todo devido ao imortal pontífice,que  tão maduramente o examinou, pesou, e executou.Em consequência de tudo quanto vos tenho dito de

Pombal, e do mais que vós podereis observar nos escritospolíticos deste século, parece-me, que assentarei comigo tersido ele um homem muito menor, do que o querem fazer osseus apaixonados. Teve grandes vícios, nenhumas virtudes,

e pequenos talentos. Não nos restam dele escritos alguns,como de Ossat1, Richelieu, e Sully, por onde possamos avaliaras luzes, e extensão do seu espírito.

Foi um homem tirânico, que toda a sua vida traba-lhou em arrogar à Coroa todos os direitos, privilégios, epoderes, em oprimir os grandes, e o povo, em fazer terrívelo seu poder, e aumentar as suas riquezas. Que pelo espíritode desabuso, e boa crítica, que queria mostrar em matériaseclesiásticas, espalhou no reino insensivelmente o espíritode irreligião, e libertinagem, que excedeu as de fanatismodo século de João o V, e que hoje subsistem. Que engros-sou os tesoiros do rei, mas que esgotou as forças do povo;que reformou as Letras, mas que perseguiu os sábios. Que

aumentou o poder real, mas que tiranizou, e prendeu a von-tade do rei. Enfim, que teve uma grandeza toda exterior, eaparente, e nada intrínseca, e verdadeira. Sem religião, semhumanidade, sem talentos, achou a arte de iludir, e espantarum rei de pequenas luzes, e um povo o menos instruído, emais preocupado da Europa.

Eis aqui, meu caro amigo, o conceito, que eu faço do

famoso Marquês de Pombal. Poderei enganar-me, porém1 Arnaud d’Ossat, (1537-1604), cardeal e político francês.

A partir de 1584, foi embaixador em Roma, tendo obtido do papa aabsolvição do rei Henrique IV. Foi bispo de Rennes e de Bayeux.

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como não falo gerado pela paixão, ou pelo interesse, tenhomenos estes dois inimigos contra mim. Para escrever estacarta, pesei e combinei maduramente tudo quanto li e ouvideste ministro, em França, em Portugal, e nos mais reinosque tenho viajado. Sou [etc].

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Conclusão

Desta pequena obra 

Tenho acabado, meu querido amigo, a descrição que

tanto me recomendastes, e em que eu, por vos dar gosto elisonjear a vossa paixão, empreguei todas as minhas forças,e cuidados. Creio ter nas minhas cartas desempenhado ostrês requisitos de brevidade, imparcialidade, e clareza que mepropus observar, e que vos anunciei logo na carta 1ª.

Poderia ter feito uma obra mais digna dos vossos olhos,e da vossa aprovação, se eu tivesse aquele nervo, energia, e

graça de escrever, que caracterizam os famosos críticos, efilósofos ingleses; porém eu fiz o que pude, nem pude mais.Como sois vós só para quem eu escrevo, a perspicácia dasvossas luzes, e a agudeza da vossa crítica, suprirá a fraqueza,e curto das minhas reflexões.

Torno a repetir o que já vos disse na carta primeira:Como vós não sois português, não temo ofender-vos, nemintento lisonjear-vos. Expliquei a verdade pura e sem rebuçoaonde quer que a achei. Nunca deixei de louvar o bom, nemdesculpar o mau, que  há nesta nação.

Sei muito bem, que similhante obra, sendo das maisúteis, me concitaria à raiva, e ódio dos Portugueses, se elesme conhecessem por seu autor. Porém eu não temo isto, pois

sei, que vós haveis de sepultar no fundo do vosso gabineteuma relação, que unicamente foi empreendida, e executadapara vosso divertimento, e particular instrução.

Com tudo, se por algum incidente, que eu não posso

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prever, viessem estas cartas a manifestar-se, e a chegarem à

notícia, e conhecimento dos Portugueses; se eles, escandaliza-dos da minha liberdade, a culpassem, e me quisessem formarprocesso sobre as verdades de que vão cheias todas as págenasda minha obra, eu lhes responderia em termos claros.

Portugueses, que furor, que raiva vos instiga contramim? Porque declamais contra um estrangeiro, que unica-mente intentou retratar-vos ao seu amigo? Olhai, que fazeis

uma injúria à verdade, e à justiça, tomando como uma afron-ta, o que não é mais, que uma particular conversação.

Porém eu quero conceder, que eu era Português; e queescrevia as minhas cartas para se divulgarem; com que motivopodíeis vós culpar a minha empresa? Com o mesmo, comque se devia proibir aos missionários, e pregadores evangé-licos, que nos púlpitos não declamassem contra os vivos.Com o mesmo com que devia anular-se aquela sagrada luzda amizade, que nos obriga a expormos benignamente aonosso amigo os seus defeitos, para que deles se emende. Como mesmo, com que se devia defender, e vedar aos críticos, efilósofos, que não expusessem à vista de todos as manchas,e os erros, que afeavam, e ainda hoje afeiam as ciências, e

conhecimentos divinos, e humanos.Se não quereis ver nunca a verdade, então empedrai, etapai cuidadosamente a boca desse poço, em que Demócritodizia, que ela estava sepultada: quero dizer, proibi, que novosso reino se leia, nem se escreva. Formai um tribunal, queunicamente se ocupe em indagar, descobrir, e castigar coma morte, ou com a prisão perpétua a todos aqueles homens,

que pensam diversamente do povo vil, e preocupado. Acaso assentais, que só vós sois os povos privilegiados

do Universo; os únicos, em que não há defeitos; os únicos,que abraçam todas as perfeições? Se assentais nisto sincera-

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mente, sois loucos: se o fingis crer, e o afectais exteriormente,

sois maus, e fingidos.Porém de que me serve estar falando ao povo, a umcongregado, e ajuntamento de todos os vícios, e preocu-pações? Vós, almas sublimes. Vós, espíritos ilustrados pelasluzes da Razão, e das Ciências, vós dareis um sorriso deaprovação ao meu trabalho. Vós bem sabeis, que segundoSéneca (De Constant. Sapient. cap. 2) assim como os astros

têm na sua carreira uma revolução oposta à das outras partes,que compõem este vasto Universo, assim também o sábiocaminha contra as opiniões vulgares, e segue uma derrotacontrária à multidão.

Esta é a razão, porque Sócrates foi morto com veneno;e porque depois da sua morte lhe quiseram levantar estátuas.Porque Galileu esteve quási passando por um fogo bárbaro,e jazeu tantos anos nos escuros cárceres de Roma. PorqueDescartes foi acusado de ateísmo, e depois citado como omais ilustre defensor da existência de Deus.

Não há sentença mais verdadeira do que aquela veritasodium parit . Porém isto é no povo, e nas almas vulgares. Vóssabeis, Portugueses, que em lugar de aborrecer a verdade, e de

fechar os olhos à luz, procurais a luz, e amais, e idolatrais averdade, talvez me achareis ainda diminuto, e falto no pouco,que disse dos vícios da vossa nação. Achareis, que foi umaobra útil, ou ao menos, que abri caminho para que outrosa desempenhassem, mostrando a Portugal os seus defeitos,para que deles se emende. Aceitai-me pois a boa vontade, eperdoai os erros, que nestas cartas notardes, pois bem conhe-

ço, que por força os há-de haver nelas, e amiudados.E vós, meu querido amigo, tende saúde, aceitai alegre-

mente o meu tal qual trabalho, e crede, que enquanto viverfarei a minha maior glória de merecer o nome de

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Vosso verdadeiro amigo.

O Cavaleiro de H.1

Nunquam volui populo placere nam quae ego scio non probat populus, et quae probat populus, ego nescio.

Sénec. Epist. 29

1 Na página 38 aparece como Cavaleiro de M.

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Índex destas cartas

Carta 1ª – Introdução ................................................. 372ª – Situação e produções de Portugal ......................... 393ª – Carácter dos Portugueses ...................................... 434ª – Religião dos Portugueses ...................................... 49

5ª – Clero de Portugal secular e regular ....................... 536ª – Língua Portuguesa, seu carácter ............................ 577ª – Autores ................................................................ 618ª – Ciências, universidade e colégios ......................... 659ª – Belas Letras .......................................................... 6910ª – Música, pintura, escultura, etc. .......................... 73

11ª – Agricultura ......................................................... 7712ª – Fábricas .............................................................. 8113ª – Comércio ........................................................... 8514ª – Armas e fortificações .......................................... 8915 G d 95