Ceha Newsletter 6

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Página web: http://www.madeira-edu.pt/ceha • Email: [email protected] 1 NEWS letter 6 COORDENAÇÃO: Ana Maria Kauppila Junho 2010 Editorial Alberto Vieira (Presidente CEHA) Passado apenas um ano de publicação, esta Newsletter apa- rece com algumas alterações no seu formato, criando-se, assim, condições para uma maior inter-acção com os investigadores, através de breves contributos temáticos, a solicitação dos coor- denadores de cada número publicado. Desta forma, a informa- ção passa a estar estruturada em rubricas, de que destacamos “Ao balcão: da História, das Artes e das Letras” em que, tomando por mote o título de uma publicação de destaque na sociedade madeirense [Das Artes e da História da Madeira, publicada entre 1949-1971, primeiro como suplemento de “O Jornal” e, depois, como revista independente] se pretende criar um espaço de escritas e testemunhos variados, sem a pretensão da revista de outros tempos. A isto se pode aliar a rubrica de “Memórias” em que se procura extrair da vivência e do registo dos de mais idade os testemunhos de épocas recentes que muitos não recordam, não tiveram oportunidade de vivenciar ou relativamente ao que, por vezes, nalguns casos, o registo da documentação his- tórica é omisso. É uma breve incursão pelos domínios da Histó- ria oral, até que alguém se lembre de fazer desta disciplina um campo para o registo e descoberta da nossa memória colectiva contemporânea. Falando de História, é importante trazer à aten- ção de todos o nosso Arquivo, aquilo que de mais precioso a Ilha tem para preservar e divulgar o seu património histórico. É a sal- vaguarda da nossa memória colectiva, através dos registos da documentação, maioritariamente oficial, mas onde os privados também passaram a ter um lugar de destaque. A par disso, este boletim continuará a ser um veículo de divulgação de todos os eventos insulares que cheguem até ao nosso conhecimento, dando lugar à sugestão de livros publica- dos há muito e que são rememorados, como recentes e outros, que, sob a forma de teses de Mestrado ou Doutoramento, mere- çam uma próxima publicação e assim será com o texto e futuro livro de Susana Caldeira, que se encontra na lista de publicações do CEHA, para o presente ano. De entre os eventos do presente trimestre, o destaque resi- dirá, sem dúvida, no Congresso, a realizar entre 26 e 30 de Julho, em que, pela primeira vez, se abrem as portas da Ilha e do CEHA a um espaço de debate alargado a todos os espaços insulares e em que teremos distintos especialistas de diversas ilhas, incluin- do o Pacífico. Neste quadro de promoção dos estudos insulares, merece um lugar de destaque o Projecto Digit@insulae, uma das apostas actuais e futuras do CEHA, em que se pretende a divul- gação daqueles que lutaram e ainda o continuam pela afirma- ção e valorização da cultura da sua terra. Na verdade, se somos insulares e temos essa mesma alma de insular, a Nessologia não pode ser apenas um exercício académico que atrai especialistas pela novidade e prazer do confronto académico, antes uma via para a realização e afirmação da cultura insular, não importando o espaço oceânico que nos banha. O nosso empenho é que este espaço se transforme, cada vez mais, numa janela aberta para a afirmação do mundo insular, um refrigério neste mundo de om- nipresença dos continentes e da continentalidade. Ana Maria Kauppila A coordenação deste número da Newsletter representa um de- safio lançado pelo seu Presidente, e corresponde a uma renovada dinâmica que o CEHA imprime à sua existência como Centro de Estudos que há 25 anos se afirmou como dinamizador das comu- nidades que se interessam por assuntos da Cultura e que são, afinal, de todos nós. O desafio, dirigido aos investigadores que, no CEHA, desenvol- vem actividade, resultará em diversas Coordenações, entregues a di- ferentes pessoas, sendo que, nesta primeira, o conceito se subordina à conjugação da Missão do Centro, com os contributos emanados de estudos, publicados ou a publicar, na Região, nas diversas áreas das Ciências Sociais e Humanas. Além destes, incluímos contribu- tos de natureza mais subjectiva e idiossincrática, sempre acerca da Continua na página 2 Sumário Ao balcão 4-11 Fora da Estante 12 Digit@ndo 14 Notícias 15 Destaque 16 Memórias 18 Pre-vistas 20 Reflexões plebeias acerca da História, nos tempos que correm

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N E W Sl e t t e r

6COORDENAÇÃO: Ana Maria Kauppila

Junh

o 20

10

Editorial

Alberto Vieira (Presidente CEHA)

Passado apenas um ano de publicação, esta Newsletter apa-rece com algumas alterações no seu formato, criando-se, assim, condições para uma maior inter-acção com os investigadores, através de breves contributos temáticos, a solicitação dos coor-denadores de cada número publicado. Desta forma, a informa-ção passa a estar estruturada em rubricas, de que destacamos “Ao balcão: da História, das Artes e das Letras” em que, tomando por mote o título de uma publicação de destaque na sociedade madeirense [Das Artes e da História da Madeira, publicada entre 1949-1971, primeiro como suplemento de “O Jornal” e, depois, como revista independente] se pretende criar um espaço de escritas e testemunhos variados, sem a pretensão da revista de outros tempos. A isto se pode aliar a rubrica de “Memórias” em que se procura extrair da vivência e do registo dos de mais idade os testemunhos de épocas recentes que muitos não recordam, não tiveram oportunidade de vivenciar ou relativamente ao que, por vezes, nalguns casos, o registo da documentação his-tórica é omisso. É uma breve incursão pelos domínios da Histó-ria oral, até que alguém se lembre de fazer desta disciplina um campo para o registo e descoberta da nossa memória colectiva contemporânea. Falando de História, é importante trazer à aten-ção de todos o nosso Arquivo, aquilo que de mais precioso a Ilha tem para preservar e divulgar o seu património histórico. É a sal-vaguarda da nossa memória colectiva, através dos registos da documentação, maioritariamente oficial, mas onde os privados também passaram a ter um lugar de destaque.

A par disso, este boletim continuará a ser um veículo de divulgação de todos os eventos insulares que cheguem até ao nosso conhecimento, dando lugar à sugestão de livros publica-dos há muito e que são rememorados, como recentes e outros, que, sob a forma de teses de Mestrado ou Doutoramento, mere-çam uma próxima publicação e assim será com o texto e futuro livro de Susana Caldeira, que se encontra na lista de publicações do CEHA, para o presente ano.

De entre os eventos do presente trimestre, o destaque resi-dirá, sem dúvida, no Congresso, a realizar entre 26 e 30 de Julho, em que, pela primeira vez, se abrem as portas da Ilha e do CEHA a um espaço de debate alargado a todos os espaços insulares e em que teremos distintos especialistas de diversas ilhas, incluin-do o Pacífico. Neste quadro de promoção dos estudos insulares, merece um lugar de destaque o Projecto Digit@insulae, uma das apostas actuais e futuras do CEHA, em que se pretende a divul-gação daqueles que lutaram e ainda o continuam pela afirma-ção e valorização da cultura da sua terra. Na verdade, se somos insulares e temos essa mesma alma de insular, a Nessologia não pode ser apenas um exercício académico que atrai especialistas pela novidade e prazer do confronto académico, antes uma via para a realização e afirmação da cultura insular, não importando o espaço oceânico que nos banha. O nosso empenho é que este espaço se transforme, cada vez mais, numa janela aberta para a afirmação do mundo insular, um refrigério neste mundo de om-nipresença dos continentes e da continentalidade.

Ana Maria Kauppila

A coordenação deste número da Newsletter representa um de-safio lançado pelo seu Presidente, e corresponde a uma renovada dinâmica que o CEHA imprime à sua existência como Centro de Estudos que há 25 anos se afirmou como dinamizador das comu-nidades que se interessam por assuntos da Cultura e que são, afinal, de todos nós.

O desafio, dirigido aos investigadores que, no CEHA, desenvol-vem actividade, resultará em diversas Coordenações, entregues a di-ferentes pessoas, sendo que, nesta primeira, o conceito se subordina à conjugação da Missão do Centro, com os contributos emanados de estudos, publicados ou a publicar, na Região, nas diversas áreas das Ciências Sociais e Humanas. Além destes, incluímos contribu-tos de natureza mais subjectiva e idiossincrática, sempre acerca da

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Sumário• Aobalcão 4-11• ForadaEstante 12• Digit@ndo 14• Notícias 15• Destaque 16• Memórias 18• Pre-vistas 20

Reflexões plebeias acerca da História, nos tempos que correm

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Ilha-Madeira, no intuito de atingir um público-alvo que sabemos vasto, diversificado e com diferentes interesses, apostando na vertente de divulgação [no sentido mais lato] e, também, numa vertente mais académica [em formato adequado ao propósito desta publicação] que projecte os investigadores das ilhas. “Falemos”, então, de Missão a propósito deste número que subordinamos ao tema: Vistas sobre a ilha…:

“A passagem de 25 anos de actividade é a oportunidade para encerrar um ciclo de ac-tividade da instituição e iniciar um outro de acordo com novas condições definidas com a instalação no novo espaço. (…) O novo espa-ço permitirá uma maior inter-actividade com o meio local e científico tornando-se possível uma maior assiduidade de iniciativas aber-tas ao público e uma maior cooperação com as instituições e investigadores da região, do país e do estrangeiro. A disponibilidade de um auditório, biblioteca, depósitos para acervos e espaços de trabalho abrem-nos novas for-mas de intervenção, definidas na programa-ção de actividades, cooperação e projectos de investigação”.1

Convido-vos, assim, a percorrer, através da riqueza das letras e das imagens, diferentes modos de perscrutar a terra e as suas gentes, numa diversidade de contributos que saudamos e que agradecemos vivamente. O amplo quadro das Ciências Sociais e Humanas, no qual se inclui a História, torna-se, por si só, catalizador de uma enri-quecedora míriade de estudos e propostas que, compar-tindo desígnio, se afigura única no seu respectivo valor. Destes aportes, resulta um renovado interesse na reflexão acerca da mesma, dos legados e da sua preservação, do valor da memória, do património [imaterial e material] que consubstanciam as diferentes concepções do Ho-mem e da Natureza, ao longo dos tempos. Em pleno século de incertezas e de mudança de paradigmas, a His-tória parece reencontrar uma renovada importância. A percepção que o Homem tem do Tempo e que, fruto das mudanças sociais profundas dos últimos anos, se alterou radicalmente, implicou uma modificação, igualmente, no modo como a disciplina se desenvolveu cientificamente e do qual, esta Newsletter, pretende ser locus de reflexão e difusão:

“A produção científica tem de privilegiar,

1 Disponível, em linha, sítio http://www.madeira-edu.pt/CEHA/

obrigatoriamente, a componente da divulgação e esta ainda mais se torna necessária numa instituição au-tonómica financiada pelos fundos da região. (…) As-sim, o CEHA  publica um boletim electrónico com periodicidade trimestral, com o intuito de permitir a divulgação das iniciativas da instituição, bem como de colocar à disposição dos interessados informações sobre o que vai acontecendo, em termos de encontros, publicações e qualquer outro tipo de notícias que in-teressem à investigação sobre as ilhas e, em especial, sobre a Madeira.  O presente boletim é um espaço aberto ao contributo de todos os interessados. Deste modo, apelamos para que nos enviem as informações que considerem interessantes para publicação, para que participem com notas críticas sobre publicações, ou com breves informações sobre investigação ou de interesse para a mesma. Tudo isto, para que este es-paço seja de todos e para todos os que se interessam sobre a temática das ilhas.”2

Este número, como acima referido, pretende representar um contributo para o acolhimento a diversas “vozes”, “olhares” ema-nados de diversas áreas que se entrecruzam e – convenhamos – enriquecem a construção do Saber. Assim, as diferentes rubricas que incluímos, visam situar, de diversos pontos, “as vistas sobre a Ilha”. Ao Balcão da História, das Artes e das Letras congrega uma série de contributos que radicam em diferentes domínios e, numa grande maioria, resultantes de Dissertações de Mestrado ou da actividade da escrita criativa [novela, conto ou romance]. Graça Alves e Cláudia Faria contribuem com textos de natureza literária, subjectivamente marcada, numa escrita de prosa-poé-tica que nos embala no universo onírico da Ilha. Paula Almeida, historiadora, reporta-nos à sua Dissertação de Mestrado, em breve publicada pelo CEHA, numa interessante e reveladora in-cursão por uma área quase desconhecida do público madeirense - a da História do Cinema, na Madeira. Aliás, a protagonista da rubrica Memórias é testemunha disso mesmo. Seguem-se três estudos que também nos honram com o seu contributo: Rita Rodrigues leva-nos, no domínio da História da Arte, às “Obras de Martim Conrado, no arquipélago da Madeira”. Especialista da época Barroca, esta historiadora conduz-nos, de forma rigo-rosa e atraente, pelo legado deste pintor, presença, por exem-plo, numa das Igrejas mais importantes da cidade do Funchal, a Igreja do Colégio. Teresa Vasconcelos tem prestado pertinente atenção ao tempo do revivalismo arquitectónico tardio. Prova--nos, com o seu texto, como a deambulação, no sentido rousse-auniano do termo, pode guiar-nos a vista para pormenores de marca histórica muito relevantes. Visitamos, com o rigor do seu estudo, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem

2 Idem.

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da Quinta do Monte. Finalmente, nesta rubrica, o contributo de Cristina Trinda-de, também historiadora, recorda como, no séc. XVIII, algumas “vistas de fora” sobre a Ilha, se colocavam, estrategicamente, “de cima” num interessante estudo acerca de fontes que “olham” os povos da Madeira de forma crítica e sobranceira. Trata-se de um marcante contributo que permitirá, eventualmente, outros de natureza com-paratista, por exemplo. Salientamos a di-vulgação de sítios, na rubrica Digit@ndo, que se reportam a entidades promotoras da cultura, na RAM, assim como a do Blogue de Joana Homem da Costa, estu-dante de Mestrado, em Engenharia e cuja escrita já tem cunho público. Escolhemos uma sua divagação idiossincrática acerca da “Ilha”. Recolhemos, ainda, um depoi-mento que evoca a memória do Funchal dos primeiros anos do século vinte – o de Alice Guerra; procedemos à apresentação de três publicações diversas e anunciamos o próximo grande evento organizado pelo CEHA – o Congresso das Ilhas (26-30 Julho 2010), assim como um dos projectos já em curso, Digit@insulae que visa a constituição de um acervo de obras e de estudos críti-cos referentes a autores das Ilhas, na rubrica Pre-vistas.

Todos estes contributos reportam-nos à reflexão acerca da História: a do passado e que é feita no presente; a que será feita no futuro e que será - como sempre - do passado. No entanto, correntes como a “História imediata” afirmam-se, com cada vez mais pertinência, no panorama da historiografia actual, sobre-tudo ligada à História das Instituições. Esta História do tempo presente coloca já, em pleno séc. XXI, no quadro da investigação, dimensões que faziam parte, até há pouco, da indagação filosó-fica acerca da cientificidade da investigação e do devir da His-tória. Em termos contextuais e metodológicos, o conhecimento histórico, neste século, confronta-se com realidades e questões algo diversas do cânone. “Longe” de Braudel, Lefebvre, Bloch, Duby, Le Goff, Le Roy Ladurie etc., as sociedades actuais, num tempo e num espaço invadidos pela tecnologia, formatadas por uma complexa rede de informações, proporcionam aos contri-butos historiográficos uma panóplia de recursos com a qual o historiador deve contar: testemunhos orais, filmes, documen-tários, redes sociais, blogues, internet [em especial, o canal de difusão ”Youtube”], enfim. De salientar, o facto da Biblioteca do Congresso norte-americano estar, igualmente, a proceder ao registo arquivístico de todos os “tweets” realizados no mundo, desde 19963, e da UNESCO ter consagrado, recentemente, um

3 http://digitalpreservation.gov/

debate à questão das fontes do Web 2.04.

Algo permanece: o facto de, no âmbito das Ciências Sociais, a verda-de ser relativa [em algum contexto, será absoluta?]. O que existe, como sabemos, são pontos de vista. Toda a História, sempre foi e será, interpre-tação, logo subjectividade. Diante de uma diversidade de “fontes” e de “do-cumentos” que a contemporaneidade oferece aos múltiplos olhares que os perscrutam, o que predomina, então, na História? A memória? Esta ques-tão, debatida por todo o cânone his-toriográfico antes referido, enquanto dever de toda a investigação históri-ca, permanece uma das questões cen-trais da epistemologia das Ciências

históricas. Dois interessantes e fundamentais estudos, datados do início desta década [emanados de pensadores de outras áreas do Saber], conduzem-nos pelos “labirín-ticos” percursos da memória e do esquecimento, do dever de memória e da sua perniciosa sacralização: refiro-me a trabalhos de Ricoeur5 e Todorov.6 Provocadores de de-bate, ao mais alto nível intelectual, fazem da razão da História, a razão da Humanidade, do dever do passado, o dever do presente e do futuro e enunciam as questões que a historiografia actual pode e deve assumir como suas. Diante de fenómenos globais como racismo, xeno-fobia, exclusão e decisão transnacional [para citar apenas alguns], todos os contributos científicos, rigorosos, sérios, coerentes são bem-vindos ao esclarecimento e à marca-ção da agenda de progresso para a Humanidade. Esta edição da Newsletter, todos os que nela colaboraram e a quem, uma vez mais, prestamos o nosso sincero agrade-cimento, pretende conceder, a esse nível, o seu modesto, mas rigoroso, contributo. Ao Presidente do CEHA, um voto público de reconhecimento pela ousadia de fazer da História, em particular e da Cultura, em geral, a agenda e a razão do devir.

4 http://portal.unesco.org/ci/fr/ev.php-URL_ID=30520&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SEC-TION=201.html

5 Ricoeur, Paul. (2003). La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli. Paris : Ed. Seuil, Coll. Points Essais. ISBN-13 : 978-2020563321.

6 Todorov, Tzvetan. (2004). Les abus de la Mémoire. Paris : Ed. Arléa, Coll. Arléa Poches. ISBN-13 : 978-2869594050.

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No balcão

Abri a janela sobre a margem do mar, no lugar

preciso onde a pedra e a água se amaram, no fogo dos

tempos. Bordei o meu balcão a ponto luz e estendi nele

o meu silêncio para ver a ilha passar.

E ela veio, firme, em seu andar de sal e de basalto,

de cabeça levantada olhando o céu com orgulho, com

um vestido verde, caseado de espuma, meneando as

ancas ao ritmo das marés.

Traz flores nos cabelos e derrama gargalhadas de

sol sobre o peito que espalhei sobre os meus braços.

Canta. Os versos falam de ventos e asas de pássaros,

falam das lágrimas que a chuva chora quando o Outono

a despe, falam dos homens que seduzem as encostas e

as vergam sob o peso dos seus braços.

Os olhos da ilha encontram os meus. Sorri. E o seu

sorriso pendura colares nos pescoços das árvores do

meu jardim que, pelas noites quentes de Junho hão-de

explodir em fogos de artifício e rasgar a escuridão.

A ilha estende-me, então, um cálice de Malvasia.

Na transparência do topázio, bebo a terra e o suor,

deixo-me ir nas caravelas e voltar, branca de açúcar da

Flandres, casar-me com o mar. Deixo-me embriagar

pelo seu ósculo de mel, de funcho e de hortelã.

Debruçada sobre quem sou, sinto o beijo de Deus,

fecho a janela: a ilha dentro de mim.

Graça Alves

Daqui vejo sempre a minha ilha. Serena. Tranquila. Azul. É mar. A minha ilha é da cor do mar. Azul intenso, brilhante, estonteante nos dias de sol. Azul-escuro, quase cinzento, tão cinzento que se confude com o calhau, nos dias encobertos. Mas é azul. Sempre azul e cheira a maresia, a imensidão, a caminho por desbravar... a ida ... a vontades ... a sonhos ....

A minha ilha nem sempre é minha, é de todos: dos estrangeiros que, desde criança, de mão dada com a minha avó, aprendi a chamar “ingleses”. Sim. Os nossos turistas eram todos ingleses... e eu acreditava. A minha avó não mentia e eu nem sabia de onde vinham nem tão pouco porque nos visitavam. Não sabia, mas aprendi.

Aprendi:- primeiro, a língua destes visitantes de Além- Mancha e tive

pena de não a poder ensinar à minha avó. Ela não sabia ler nem escrever. E depois visitei a sua pátria: a Grã-Bretanha. A Ilha de sua Majestade Elisabeth II... tão imensa, tão cosmopolita ... e aprendi a amar Londres, de onde não se vê o mar.

- que as ruas por onde todos os dias passo, que as habitações que caracterizam a cidade onde nasci, que o mobiliário que ainda hoje decora muitas das nossas residências, que os jardins onde me escondia para namoriscar, guardam em si a marca dos britânicos que durante o século XIX se estabeleceram na capital funchalense e se dedicaram ao comércio do Vinho da Madeira projectando o saboroso líquido, mas igualmente o nome da minha terra além mar.

- que o bordado da Madeira diz-se ter sido trazido por Mrs Phelps e embora a minha avó passasse tardes inteiras a bordar, insistindo pacientemente para que eu aprendesse nem que fosse a fazer uns garanitos, nunca aprendi. (Pois é. Sei ler e escrever mas não sei usar uma agulha).

- que as quintas madeirenses pertenciam quase todas aos ingleses e que a casinha de prazeres é mais um toque anglístico que ainda perdura na Pérola do Atlântico. Aprendi que a 1ª. fábrica de cerveja pertenceu a Henry Prince Miles e que a 1ª fábrica de manteiga a John Blandy. Que o carro de bois foi ideia do Major Buckley e que o carro de cestos, que ainda hoje desce o caminho do Monte, foi projectado por Russel Gordon.

- que a fábrica, onde durante toda a minha infância e juventude, se produzia açúcar pertencia à família Hinton e que a família Blandy era a dona da casa onde vivia a minha avó e de todas as outras casas das redondezas.

- que o cônsul Henry Veitch mandou construir não apenas a casa que se destaca na margem da Ribeira de Santa Luzia como também a Quinta Calaça e a Quinta do Jardim da Serra, onde cultivou chá; e que o Reid’s Hotel é o sonho de William Reid tornado realidade. E mais. Muito mais. Tanto, que não cabe nesta pequena página. Mas, sobretudo aprendi a amar o meu canto ... tão cheio de encantos ...

E reencontrei-te. Aqui. Na minha ilha. Ao pé do mar, no calhau ... e sentados ficámos a olhar o Atlântico ( Oh! Como é bom partilhar o meu balcão.) numa amena tarde de Primavera. Tu. Eu. E a nossa ilha e o nosso sonho, azul... da cor do mar.

Cláudia Faria

AOBALC

ÃO

Daqui vejo sempre a minha ilha

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Teresa Vasconcelos

O sol já ia alto quando me apercebi que estava a folhear livros desde madrugada. Resolvi fazer uma pausa e espraiar a vista pelos arredores da casa. Fui até ao balcão. Dali podia avistar grande parte do Funchal. À minha direita, erguia-se a freguesia do Monte, verdejante. Um brilho cerâmico, de cor verde, despertou-me a atenção. Reconheci-o: era o telhado da Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem Quinta do Monte. Um edifício religioso associado ao gosto neo-barroco e ao revivalismo arquitectónico tardio.

Em Portugal, o revivalismo arquitectónico não teve o mesmo destaque que em outros países, como Alemanha, França ou Inglaterra. Entre nós, a arquitectura dos “neos” chegou mais tarde, entrando mesmo pelo século XX adentro, ainda com bastante vigor.

Se, para o continente português, podemos encontrar exemplos do revivalismo tardio no Palácio da Pena, em Lisboa, nesta Capela do Monte, dedicada à padroeira de Portugal, encontramos contributos para a compreensão dos revivalismos na Madeira.

Segundo o Elucidário Madeirense, esta Capela terá sido fundada pelo capitão José Sotero e Silva1, nas primeiras décadas do século passado e, posteriormente, o Sr. João José de Freitas Belmonte a “… fez concluir e aplicar ao serviço de culto”2 Tendo a única filha deste último falecido em 1935, quando contava apenas 31 anos de idade, supostamente de tuberculose, o pai mandou construir uma Capela em sua memória, “… sobre as

paredes de uma outra já existente, no interior da sua Quinta de N.ª S.ª da Conceição, no Monte, …”3.

Não havendo descendentes directos, herdou a Quinta o médico oftalmologista João de Gouveia, primo de M.ª Albertina Belmonte de Freitas. Nascido na freguesia de St.ª Cruz, em Setembro de 1912, também ele era filho único. Com a transferência da Quinta para o novo proprietário, caiu em desuso a sua denominação inicial, passando a denominar-se Quinta de João de Gouveia. Recentemente, o filho desde médico, Sr. João Manuel de Gouveia, vendeu esta propriedade ao engenheiro Rui Relvas, tendo ficado a cargo deste a reformulação dos espaços para adaptação como Estalagem Belo Monte que, entretanto, passou a designar-se Estalagem Quinta do Monte.

Concluída a 29 de Dezembro de 1936, no dia do 33.º aniversário de M.ª Albertina, ficou encarregue do projecto o já então conceituado arquitecto Edmundo Tavares4. Este, inspirou-se no sentimento romântico por épocas áureas do passado nacional, como foi o reinado de D. João V, em que o Barroco, pela sua exuberância, demonstrou a riqueza do país. Desenhados pelo pintor Américo Tavares5 e pintados por G. Renda na fábrica de Sta. Anna, em Lisboa, aqui encontramos um rico espólio de painéis de azulejos monocromos a azul sobre esmalte branco nas paredes interiores e exteriores, relatando passagens bíblicas. Evidencia-se também os vitrais executados na famosa fábrica de Ricardo Leone, em Lisboa, com destaque para o que alude à Virgem, envolto por elaborado óculo em cantaria do Estreito de Câmara de Lobos, numa adesão aos materiais da Ilha.

Este é, pois, um bom testemunho da persistência de valores artísticos do passado na arquitectura da primeira metade do século XX.

NOTAS

1 O capitão José Sotero e Silva casou a 3 de Fevereiro de 1897 com D. Maria Augusta de Ornelas Frazão, neta do 1.º Conde da Calçada.2 Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Meneses, Elucidário Madeirense, Funchal, edição em CD-ROM do CEHA, com base na 2.ª edição, entrada <<José Sotero e Silva>>.3 Câmara Municipal do Funchal, Departamento de Obras, Requerimento para Licença de Obras n.º 10.857, de 22 de Maio de 1936, p. 1.4 Natural de Oeiras, onde nasceu em 1892, cursou Arquitectura Civil em Lisboa. Esteve na Madeira entre 1932 e 1939, tendo sido nomeado pelo governo de Salazar para professor efectivo da Escola Industrial e Comercial António Augusto de Aguiar, actual Francisco Franco. O Funchal deve-lhe valiosos contributos arquitectónicos, entre os quais se destacam o Mercado dos Lavradores, o Banco de Portugal e o Liceu do Funchal.5 Nasceu no Porto em 1890, onde cursou Pintura Histórica na Escola de Belas Artes. Foi professor da Escola António Augusto de Aguiar, no Funchal, desde 1935. A morte de Alfredo Miguéis, em 1943, colocou-o como director do Curso Artístico. Sendo especialmente conhecido pelos seus retratos a sanguínea, prestou grande colaboração no desenvolvimento dos embutidos na Madeira.

A Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem Quinta do Monte.

AOBALC

ÃO

Pedido de Licença à Câmara

Vista do exterior da Capela Vista do interior da Capela.

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Pintor da geração proto-barroca portuguesa, Martim Conrado surge pela primeira vez citado na bibliografia madeirense por Henrique Henriques de Noronha, em 1722: “hum vistozo Retabulo da Imagem da Senhora das Merces / obra de Martim Conrado insigne Pintor estrangeiro / orago da mesma caza”1.

Martim Conrado assinou, pelo menos, seis obras para o Arquipélago da Madeira: Imaculada Conceição, Santa Ana e São Joaquim, com doadores (1646), Igreja Matriz do Caniço; Arcanjo São Miguel e as almas do purgatório (1649), Igreja Matriz da Ribeira Brava; Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens (1653), Museu de Arte Sacra do Funchal; Nossa Senhora da Piedade (1653), capela de São José, Camacha; Noli me tangere (1653), Igreja Matriz do Porto Santo; Nossa Senhora das Mercês (c.1653-1654, desaparecido).

Aproveitamos a Newsletter do C.E.H.A. para divulgar, numa primeira fase, as obras assinadas por Martim Conrado, seguida de outra etapa de divulgação das obras atribuídas a este pintor2.

A integração do Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens no núcleo de pintura portuguesa, do século XVII, no Museu de Arte Sacra do Funchal (Inv. MASF460), sob a direcção de Luiza Clode e, mais recentemente, na brilhante exposição Obras de Referência dos Museus da Madeira – 500 anos de História de um Arquipélago (Galeria do Rei D. Luís I - Palácio Nacional da Ajuda, Novembro 2009 /Abril 2010), coordenada por Francisco de Sousa Clode, expressa um novo olhar sobre o património pictórico seiscentista existente na Ilha da Madeira.

Os historiadores, madeirenses e nacionais, que dedicaram algumas palavras à arte sacra madeirense estiveram demasiados deslumbrados com a arte

1 Referência ao extinto (e desaparecido) convento de Nª. Srª. das Mercês (Funchal). Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira (1722), Funchal, S.R.T.C. / C.E.H.A., 1996, p. 284.

2 Sobre Martim Conrado ver: Vitor Serrão, O triunfo do naturalismo e do tenebrismo, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1992, II Vol., Tese de Doutoramento (policopiado); Idem, “As ilhas atlânticas: a experiência isolada de Martim Conrado na Madeira”, in A pintura proto--barroca em Portugal: 1612-1657 – O triunfo do naturalismo e do tenebrismo, Lisboa, Ed. Colibri, 2000, pp. 417-418; Idem, “Martim Conrado”, in José Fernandes Pereira (Dir.), Dicioná-rio da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Ed. Presença, 1989, p. 131; Rita Rodrigues, Martim Conrado, “insigne pintor estrangeiro”, Um pintor do século XVII na Ilha da Madeira, Funchal, UMa, Tese de Mestrado (policopiado); Idem, “Capela de Nossa Senhora da Boa Hora”, in Girão,Vol. II, nº. 3, Junho, 2007; Idem, “A propósito do retábulo Imaculada Conceição, Santa Ana e São Joaquim, com doadores, assinado por Martim Conrado -1646, hoje na Igreja Matriz do Caniço”, in Origens, Santa Cruz, Junho de 2007, pp. 10-49; Idem, “Retábulo de Nossa Senhora da Piedade, de Martim Conrado, hoje na capela de São José (Camacha)”, in Origens, Santa Cruz, nº. 17, Janeiro de 2008, pp. 32-49; Isabel Santa Clara e Rita Rodrigues, “Algumas pinturas religiosas dos séculos XVI e XVII pertencentes à Fundação Berardo, in Islenha, nº. 38, Janeiro-Junho de 2006, pp.55-69; Isabel Santa Clara, Notas para o estudo de duas pinturas de Nossa Senhora da Piedade, trabalho curricular de História da Arte inserido no curso de Mestrado de História, UMa, 1997 (policopiado); Rui Carita, História da Madeira - As dinastias Habsburgo e Bragança 1600-1700, S.R.E.J.E.,1992.

flamenga e, salvo algumas excepções, deixaram a pena correr sobre o Maneirismo e, muito raramente, sobre os séculos XVII e XVIII, ignorando, quase por completo, o Barroco. Para esta época, citamos as contribuições dadas pelos padres Eduardo Pereira, Pita Ferreira, Fernando Augusto da Silva e, ainda, por Peter Clode, Artur Sarmento, Jácome Correia e Emanuel Ribeiro. Robert Smith e Santos Simões incidindo os seus estudos sobre a talha e azulejo, ainda “deitaram os olhos”, com grande sentido de observação analítica-descritiva, às obras datáveis dos séculos XVII e XVIII. Cabe, ainda, referir a contribuição de vários artigos publicados nas revistas Das Artes e da História da Madeira, e, mais tarde, na Atlântico, Islenha, Girão, Origens, etc., e as investigações mais específicas de Vitor Serrão, José Meco e Isabel Santa Clara e, também, alguns estudos iniciados por Rui Carita.

A obra de Martim Conrado incorpora-se no ciclo do vinho e na prosperidade económica que se fez sentir na Ilha da Madeira durante o século XVII, respondendo ao grande sentido e espírito piedoso dos nobres e mercadores, e das suas mulheres, sob forte orientação jesuítica que motivou a edificação de ermidas e altares ricamente decorados e ornamentados.

A sua pintura apresenta-se segundo dois valores fundamentais para a igreja contrarreformada: o sentido devocional e afectivo das imagens sagradas e o seu carácter de utilidade de acordo com os preceitos do Concílio de Trento. Primeiro, através da sua clareza, objectividade, decência, honestidade e decoro, isto é, distante das interpretações duvidosas ou de falso dogma. Segundo, a função pedagógica e didáctica da imagem, enquanto memória visual das histórias e feitos das figuras sagradas - Cristo, Virgem e Santos, temas que Conrado tão bem soube representar, longe, é verdade, da ostentação e aparato das grandes obras dos mestres proto-barrocos.

É nesta conjuntura que Martim Conrado pinta o retábulo do Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens para a capela desta invocação da Igreja do Colégio de São João Evangelista (Funchal), instituída pelo capitão e mercador Simão Nunes Machado, ali enterrado em 16453, e pela sua mulher, D. Joana Telo4. Esta capela é digna de um estudo que abarque as problemáticas de bel composto e arte total tendo em conta a riqueza artística e programa iconográfico da sua pintura (retábulo citado, remate com tela da Virgem com o Menino e pintura mural do tecto), da talha (retábulo, esculturas e relicário) e dos azulejos5. Obedecendo à estética seiscentista, o painel assinado

3 A.R.M., Sé, Óbitos:1620-1654, Lº. 73, fl. 168vº.; A.R.M., Doc. Avulso, Cx. 92, Prº. 8, fls.2vº. e 6vº.

4 Ver Rui Carita, O Colégio dos Jesuítas do Funchal - Memória Histórica, Vol. I, G.R.M./S.R.E., Funchal, 1987, pp. 214-227, e Descrição e Inventários, Vol. II, pp. 67-79; Nelson Veríssimo, Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Funchal, S.R.T.C./D.R.A.C., 2000, pp. 70, 86 e 336; Rita Rodrigues, Martim Conrado,“Insigne Pintor estrangeiro”- Um pintor do Século XVII na Ilha da Madeira, UMa / 2000, pp. 117-132 e 224-227 (policopiado).

5 Este será assunto desenvolvido na nossa tese de doutoramento, em curso, A Pintura Protobarroca e Barroca no Arquipélago da Madeira, entre 1646 e 1700: A eficácia da Imagem.

As obras de Martim Conrado no Arquipélago da Madeira: Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens

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Rita Rodrigues

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7por Martim Conrado é de 16536, os azulejos de 16547 e a talha, atribuída ao imaginário madeirense Manuel Pereira é, também da segunda metade do séc. XVII8.

Através do testamento dos instituidores e escritura de dotação da capela sabemos que os padres da Companhia receberam 400$000 réis “de contrato (...) ou em letras boas (…) para as obras da ditta igreja, (…) que (…) vão logo na ditta capella, altar, e retabullo dourado com seo Painel das ditas santtas Ursulla e suas companheiras (…) e tudo o mais em sua prefeição” e dote de 5$500 rs anuais9. Assim, tendo por base este documento e a qualidade do programa artístico desta capela, é aceitável que a encomenda fosse da responsabilidade dos jesuítas. Devemos referir que os Nunes Machados viviam rodeados, por laços familiares, de figuras eclesiásticas que poderiam ter exercido alguma influência nesta encomenda: o padre Manuel Mourão foi procurador dos instituidores nos anos quarenta; o padre Francisco Telo “religioso da mesma Companhia [de Jesus], e sugeito de grande erudição na Predica”, irmão do instituidor, e o padre António Moniz de Meneses, irmão da fundadora, foram testamenteiros de Simão Nunes Machado10; o padre João Ribeiro, “varam insigne em virtudes, da Companhia de Jezus”, foi confessor de D. Isabel de França, mulher do capitão Gaspar de Andrade Berenguer, fundadores do Convento das Mercês11, e gozava “de maior consideração pelas suas eminentes virtudes e rara cultura de espírito”12.

Aquando da encomenda, a Martim Conrado, do retábulo do Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens, assinada em 1653, já se encontravam na Madeira pelo menos duas obras assinadas por este pintor: a Imaculada Conceição, Santa Ana e S. Joaquim, com doadores (1646) e S. Miguel e as almas do purgatório (1649). E, do ano de 1653, são também os retábulos de Nossa Senhora da Piedade e Noli me tangere. Estas obras documentam a relação do mercado madeirense com um pintor sediado na capital, Lisboa13, da geração proto-barroca portuguesa com José do Avelar Rebelo, Domingos da Cunha, André Reinoso, Baltasar Gomes Figueira e Domingos Vieira Serrão, mas eventualmente, de factura mais modesta.

O tratamento artístico dos martírios foi apadrinhado pelos seguidores de Santo Inácio de Loyola, dentro do espírito da Contra-Reforma, pela acção de afectação e emoção incutida aos fiéis, mas as constituições sinodais portuguesas ressalvavam que as imagens eram representações e não continham em si divindade ou virtude. A hagiografia dos mártires enobrecia o heroísmo em prol da religião católica e o Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens enquadra-se no espírito e estética da Igreja contrarreformada, quer pelo tema, quer pela plasticidade: a variação modeladora de claro que clarifica a vertente naturalista-tenebrista; as nuances de cromatismos manchados; os sfumatos dos fundos; os efeitos lumínicos modeladores de profundidade;

6 Assinatura e data pintadas a vermelho de cochonilha, como é comum nas outras obras deste pintor.

7 Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa - Azulejaria Portuguesa nos Açores e na Madeira, Lisboa, F.C.G., 1963, p.173.

8 Robert Smith, A Talha em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte, 1962, p. 61. Preparamos, em parceria com Isabel Santa Clara, uma intervenção no Congresso Internacional sobre as ilhas: as ilhas do mundo e o mundo das ilhas, Funchal, C.E.H.A., Julho de 2010, com o título “Manuel Pereira, entalhador e imaginário, e os circuitos de divulgação de modelos para as periferias”.

9 A.R.M., Doc. Avulso, Cx. 92, Prº. 8, fls. 2vº., 16, 16vº., 17.

10 Henrique Henriques de Noronha, Memórias Seculares e Eclesiásticas…, p. 249. Julgamos que o autor está a se referir ao padre Francisco Nunes (e não Telo), irmão do capitão Simão Nunes Machado, que tomou conta da capela durante os anos da sua construção.

11 Idem, Ob. Cit., p. 283.

12 Fernando Augusto da Silva, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal, Tipografia “O Jornal”, 1946, p.180.

13 Em 1647, eram pagos “Ao pintor Martim Comrrado de fazer oito paineis e dous quadros mais pi-quenos sincoenta e dous mil rs.”. Arquivo da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé de Lisboa, Livro de Receita e Despesa de 1642-1672, fl. 38 Vº. Informação inédita gentilmente cedida por Vitor Serrão. Deste conjunto de dez peças apenas uma, de formato oval, está inventariada e identificada - Adoração do Santíssimo Sacramento pelos Anjos.

Retábulo do Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens cobrindo o relicário (Igª. do Colégio).Foto publicada por Rui Carita.

Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens, Martim Conrado, 1653.Foto DRAC/DSPC – Roberto Pereira

Gravura de Johan Sadeler I (1550-1600) (after Pieter Candid, referente à pintura existente em Michaelskirche, Munich) – Martírio de Santa Úrsula e das suas companheiras.Legenda na margem superior: ”ICON. D. VRSVLE. ET. SODAL. AD. COL. AGRIP. MART. AFF: I[N]. ?DE. SAC. SOC. IESV. MONACH. I[N]. SACELLO. SEREN.mi AC. REVER.mi. ERNESTI. PR. ELECT. COL. etc”.Legenda na parte inferior: “EIDEM SERENISS. AC REVERENDISS. ERNESTO PRINC. ELECT. &cc. DIC. ab Sereniss. Bavariae Ducis Guilielmi chalcograp. I. Sadeler Belg.”.

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o desenho cuidado. Esta pintura é marcada pela paleta cromática de Martim

Conrado: vermelhos, azuis, violáceos, acompanhados de tons e matizes suaves, cálidos e desmaiados, numa experiência cromática e formal de influência sevilhana (Francisco Pacheco, Juan de Roelas, Juan del Castillo), madrilena e andaluza (Vicente Carducho, Eugénio Cajés, Juan Bautista Maino, Pablo Legot) e toscano-lígures (Pietro Sorri, Giovanni Battista Paggi). Apesar de seguir fielmente, sem invenção, a gravura de Johannes Sadeler I14 e pintura de Peter Candid15, Conrado mostra conhecer bem a obra de José do Avelar Rebelo do qual assimilou a plasticidade, o domínio do tenebrismo e naturalismo, os efeitos de claro-escuro e jogos de luminosidades, as palpitações cromáticas e as vaporosidades do espaço16.

A qualidade estético-formal do Martírio de S. Úrsula e das onze mil virgens justifica-se por ser obra de uma fase amadurecida do pintor17, por se tratar de encomenda para uma igreja jesuíta, onde prevalecia a qualidade, bem como pela dotação feita pelos instituidores para as obras do altar e retábulo.

A composição é caracterizada por um sentido cenográfico e dramático: a postura de Santa Úrsula, de mãos e olhos direccionados para o céu, revela uma resignação ímpar de sofrimento perante o martírio, enquanto a coroa simboliza a sua origem principesca; os gestos, particularmente das duas mártires (canto inferior direito), uma com flecha já crivada no pescoço e outra levantado os dois braços em acto de entrega voluntária ao sofrimento; dos corpos das virgens prostrados no solo, sem vida, crivados de flechas, jorram gotículas de sangue; a virgem, que preenche uma mancha significativa da composição (canto inferior direito), de seio desnudado, apresenta um desenho cuidado, embora convencional, onde as dobras e transparências dos tecidos e as qualidades vítreas dos objectos de adorno (colar e brinco) estão plasticamente valorizados; de olhar estupefacto, mas sereno, a multidão feminina (lado direito) aceita o massacre; os hunos irrompem na retaguarda matando impiedosamente as santas cujos corpos, ao se afastarem do espectador, tornam-se difusos e amorfos, contrapondo-se ao grupo central, Santa Úrsula e companheiras, muito bem desenhado e definido; apesar das inúmeras figuras existe certa preocupação de individuação (rostos, expressão, indumentária, adorno).

Dois mundos são apresentados ao espectador: o

14 Johan Sadeler I ou Johannes I Sadeler ou Jan I Sadeler.

15 Peter Candid ou Pieter Candid ou Pieter de Witte.

16 Outros retábulos proto-barrocos portugueses representam esta lenda seguindo a gravura de Johannes Sadeler I e muito próximos dos formalismos de Martim Conrado: Museu Nacional de Arte Antiga, Inv. 1008 Pint, proveniente do Mosteiro da Esperança de Lisboa; Pa-lácio Fronteira; Sé Velha de Coimbra. Ver Vitor Serrão, A Pintura Proto-Barroca em Portugal: 1612-1657 - Os pintores e as suas obras, Vol. II, Dissertação de Doutoramento em História da Arte, Coimbra, 1992, pp. 873-892; José Alberto Seabra Carvalho, José Luís Porfírio, Maria João Vilhena, A Espada e o Deserto, Lisboa, M.N.A.A., 2002, pp. 26-27; Luís de Moura Sobral, Pintura Portuguesa do século XVII - histórias, lendas, narrativas, Lisboa, M.N.A.A., 2004, pp. 190-191.

17 Segundo Vitor Serrão “trata-se de uma obra avantajada e que mais assegura as poten-cialidades do artista”. O triunfo do naturalismo e do tenebrismo…, Vol. II, p. 880.

celestial, povoado de anjos esvoaçantes que, segurando palmas e ramos, polvilham com folhas, pétalas e flores o espaço superior permitindo que algumas flores atinjam o solo; e o terreno composto por Santa Úrsula e as suas companheiras martirizadas pelos hunos.

Por Santa Úrsula passa uma linha vertical imaginária que divide o quadro em dois rectângulos, ficando o lado esquerdo mais “pesado” que o lado direito. No primeiro, estão representadas duas imponentes figuras masculinas em contrapposto, corporeamente volumosas e de marcada musculação, que seguram flechas e espadas, ferindo e degolando as santas virgens. Um anjo esvoaça sobre o cenário do massacre com uma coroa de louros e palma de martírio.

Misteriosamente, circulam entre as santas três figuras masculinas, sendo uma delas um homem de idade avançada e longas barbas brancas que clama aos céus em pose de oração. A tiara tripla (triregnum) remeterá para o imaginário papa Ciríaco.

Uma paisagem marítima de boa perspectiva compõe o centro do quadro enquanto os hunos e anjos pela sua obliquidade acrescem dinamismo à composição18.

O Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens, de Martim Conrado, retábulo “maravilhoso de concepção”19 encontra-se registado nos inventários do século XVIII: “Item hum Retabulo de Santa Ursula pintado em pano com molduras de pao douradas que cobre o santuário”; “Item hum painel com a imagem de Stª. Ursula pintado em pano com molduras de pao douradas que cobre o santuário”.

Só nos anos 80 do século XX, por diligências de Rui Carita e de D. Teodoro de Faria, então Bispo do Funchal, foi apeada a tela que cobria o excelente relicário da Capela da Onze Mil Virgens20. A pintura transitou, mais tarde, para a sala que antecede a sacristia do lado do Evangelho do Colégio e depois para o Museu de Arte Sacra do Funchal.

Maio de 2010

18 Para a análise desta pintura seguimos o nosso texto “Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Vir-gens”, in Obras de Referência dos Museus da Madeira – 500 anos de História de um Arquipélago, Galeria do Rei D. Luís I - Palácio Nacional da Ajuda, Novembro 2009 /Abril 2010, Lisboa, 2009, (catálogo).

19 Eduardo Pereira, Ilhas de Zargo, Vol. II, 4ª. Ed., Funchal, C.M.F., p. 708. Fernando Augusto da Silva repete textualmente a opinião do autor das Ilhas de Zarco. Colégio e Igreja de São João Evangelista do Funchal – Breve monografia histórica, Tip. Minerva, Funchal, 1947, p. 27.

20 A desmontagem da tela foi realizada em Março de 1984, na presença do Exª. Revª. D. Teodoro de Faria, Bispo do Funchal, por Rui Carita e Flores Gomes (Historiadores), pelos Aspirantes Tavares e Pereira (estudantes de Engenharia das Faculdades de Lisboa e Porto), e ainda por Rui Oliveira (Pintor).

Martírio de Santa Úrsula e das onze mil virgens, Martim Conrado, 1653 (pormenor).Foto ISOPO.

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Até ao advento da autonomia regional, a governação das terras do arquipélago da Madeira era, excepção feita às câma-ras municipais, protagonizada por uma série de personalidades enviadas do Reino que, frequentemente, vinham para a Ilha muito pouco informadas sobre o que iriam encontrar.

Quando, por acaso, coincidiam os períodos de início de fun-ções dos dirigentes vindos de fora – governador, bispo, provedor da fazenda e juiz de fora - a situação podia tornar-se delicada, conforme se depreende das palavras do governador D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora que, em 1754, se preparava para trocar a Ilha pelo Brasil, onde fora colocado. Dizia, então, o go-vernador, em missiva que enviou a um dignitário da corte que “com governador novo; bispo novo; juiz de fora novo e prove-dor novo, que novidades se não podem esperar de inquietação nesta Ilha, vindo 4 cabeças com 8 olhos cegos que, se se guiam pelos da terra, vão parar a um precipício; e se se guiam a si, vão parar a uma cova” 1 . A mesma ansiedade perante o desconheci-do se pressentia no bispo D. Frei Manuel Coutinho (1725-1741) que, querendo prover benefícios eclesiásticos pouco depois de ter chegado à Madeira, acusava o desconforto de ser “necessa-rio atinar sem ver por onde”2. Passado, porém, algum tempo de presença na terra, os contornos do local e as características da população começavam a desenhar-se com maior nitidez, o que já permitia aos forasteiros pronunciar-se com outro conheci-mento de causa e produzir um conjunto de apreciações de onde se seleccionaram algumas que aqui serão agora apresentadas.

Assim, em 1686, o reitor do colégio da Companhia de Jesus, Luís Severim, em memorial enviado aos inquisidores de Lisboa, pronunciava-se sobre os estudantes madeirenses, afirmando que “nesta terra são livres e indomaveis commumente”, pelo que era difícil corrigir os abusos que praticavam em alguns ofí-cios de defuntos que faziam “de modo ridiculo” e “por mais que os reitores antigos os prendião, não se tiravam estas enormes indecências”. Não lhe restando outra alternativa, apelara para o bispo “cujas forças”, porém, “aqui não chegam a tudo porque a terra he conquista enfim onde se vive muito potentadamente”, ideia que voltava a reforçar mais para o fim do texto, quando observava que “nesta terra tudo são fumos de fidalguia”3.

Uns anos mais tarde, em 1707, era a vez do bispo do Fun-chal, D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1722), usar a sua permanência na Ilha para afirmar que “ (…) a assistência de dez anos, e o trabalho de sofrer esta gente me tem dado conhe-cimento do seu orgulho e dos seus atrevimentos. Saiba Vossa Senhoria que não estou entre gente, senão em hum bosque de feras sem nenhum conhecimento nem obediencia da razão, le-vados tão somente de suas paixoens como brutos sem temor de Deus, nem da honra, nem previzão de futuros”4. Em 1716, este mesmo prelado, chamado a pronunciar-se no processo de habilitação ao Santo Ofício de um homem de negócios da ter-

ra, Eusébio de Freitas Barreto, afirmava serem os ilhéus “pela sua ambição (…) faces de levantar testemunhos huns aos outros para melhorarem as sua pretensões”, enquanto o padre Filipe de Ocanha, ouvido no âmbito de um outro processo para o mesmo fim, não hesitava em declarar que “na Ilha da Madeira e cidade do Funchal havia por costume antigo nos moradores della o terem por christãos-novos todos os sogeitos que ahy hião mo-rar de outras terras”5. O vigário geral do bispo seguinte, D. Frei Manuel Coutinho, também não tinha os madei-renses em muito melhor consideração, conforme se de-preende do teor de uma missiva que enviou a António de Miranda, desembargador da Relação Patriarcal, na qual opinava que “esta gente” era “de ânimos inquietos” e vivia “dominada de sua vontade e apetites com atrevi-mento e soltura”, e temendo que o interlocutor achasse que exagerava, desafiava-o a que cá “viesse estar humas ferias, e depois disso estou por tudo o que Vossa Merce quizer a respeito dos ilheus”6.

O entendimento que os detentores do poder político faziam da índole dos gentios não era substancialmente diferente dos juízos produzidos pela hierarquia religio-sa, o que facilmente se demonstra pela opinião expressa pelo corregedor Francisco Moreira de Matos que, em carta de 1768 dirigida a Francisco Xavier de Mendonça Furtado, não ocultava o desencanto quando afirmava que “Em quatro meses que vivo neste lugar (…) tenho conhecido que a maior parte dos seus habitantes são homens de perversa natureza e que, esquecidos das leis divinas e humanas, vivem sugeitos a sua vontade desor-denada, e amor próprio e paixoens particulares. (…) Sem ser emcarecido, posso afirmar a Vossa Excia que a lei porque se governa a maior parte destes habitantes sam os sete pecados mortais (…)”7. Em 1774, era a vez de o governador João António de Sá Pereira manifestar o seu

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Vistas de “cima” e de fora: olhares sobre os madeirenses, no século XVIII.

Cristina Trindade

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desagrado em relação à principal nobreza insular, que considerava possuidora de “espíritos inquietos, livres, soberbos e indomáveis”8. No mesmo ofício, dirigido ao ministro Martinho de Melo e Castro, acrescentava, um pouco mais adiante, que “Alguns dos Principais desta Ilha, ou por verem reprimida a sua mal intensionada li-berdade, ou por terem sido advertidos e castigados, (…), he certo que sofrem mal tudo o que lhes obsta aos seos escandalozos costumes”, opinião que o ministro destina-tário da carta subscrevia, em 1781, nas Instruções que entregou ao governador D. Diogo Forjaz Coutinho, pelas quais alertava o governante para o facto de na Madeira se encontrar “ (…) hum corpo de Nobreza digno de mui-ta atenção pelos seos destinctos nascimentos, e antigui-dade das Familias do mesmo Corpo: tem elle, porem, a infelicidade de ser na maior parte criado desde a Infan-cia sem alguma educação, vivendo em huma profunda inacção e ociozidade, e preocupado de hum espírito de vaidade e soberba, e destes defeitos não se podendo es-perar grandes acertos; mas antes pelo contrario garves e repetidos desmandos (… )”9.

Este conjunto de pontos de vista, tão consonante e tão pouco abonatório para as gentes da Madeira, só pode ser entendido à luz de uma tenaz oposição que os madeirenses oporiam, por sistema, a umas personagens que, vindas de contextos exteriores e desconhecedoras da realidade regional, pouco depois de cá chegarem se arrogavam o direito de lhes dizer como deviam conduzir as suas vidas. A visão que os ilhéus, particularmente os nobres, tinham de si próprios conflituaria, com certeza, com a forma como os recém-chegados os encaravam, pois enquanto os “principais” da terra, na falta de hori-zontes mais vastos, estavam habituados ao respeito que o seu estatuto localmente lhes conferia, os governantes, provenientes de uma corte onde pululavam indivíduos de muito elevada estatura social e económica, não reco-nheciam nos gentios condições para outro procedimen-to que não o da obediência respeitosa. O choque des-tas duas formas de encarar o mundo conduziu, então, à construção de um universo de juízos muito pejorativos que tem, no entanto, de ser analisado tendo em conta as circunstâncias que presidiram à sua emissão.

Notas1 Rui Carita, História da Madeira, vol. IV, O século XVIII: arquitectura de poderes, Fun-chal, ed. da Secretaria Regional de Educação, 1996, p. 40.

2 ARM, APEF, Memorias dos Acontecimentos …, fl. 121.

3 Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, A Madeira nos arquivos da Inquisição, em Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. I, Funchal, edição da DRAC, SRTCE, 1989, pp. 718-720.4 Idem, A Inquisição na Madeira no período de transição entre os séculos XVII e XVIII (1690-1719), em Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, edição, 1993, p. 887.

5 DGARQ, TSO, CG, Habilitações, Eusébio, mç. 1, doc. 21, fl. 60v. e Nicolau, mç. 5, doc. 79., fl. 17v.

6 ARM; APEF, Memorias dos acontecimentos…, fls. 253 e 258.

7 AHU, Madeira, cx. 2, doc. 302.

8 AHU, Madeira, cx. 3, doc. 430

9 Nelson Veríssimo, As Instruções para o governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1781-1798), em As sociedades insulares no contexto das interinfluências culturais do século XVIII, Funchal, ed. do CEHA, SRTC, 1994, p. 192.

Sábado, 15 de Maio de 1897

O Funchal assistiu à primeira sessão de animatógrafo reali-zada na Ilha1. Esta sessão foi promovida pelos irmãos Henrique Augusto (1856-1934)2 e João Anacleto Rodrigues (1869-1948)3, proprietários do primeiro animatógrafo que figurou no Funchal e que fora adquirido em Paris.

Antes da primeira sessão pública ocorreram vários ensaios com o animatógrafo, no Teatro D. Maria Pia (actual Teatro Bal-tazar Dias), tendo tido a imprensa regional um convite especial.

O programa das sessões de Sábado, Domingo e Segunda--feira, publicado nos jornais Diario de Noticias e Diario do Commercio, era composto por doze curtas-metragens, regis-tos documentais à moda dos irmãos Lumière. Numa primeira parte, foram exibidos seis quadros. Após um intervalo de vinte minutos, na segunda parte, os espectadores viram outros seis quadros.

O espectáculo começou às vinte horas e trinta minutos, mas a entrada dos espectadores deveria efectuar-se meia hora antes, o que dava, pensamos nós, um carácter cerimonioso à sessão.

O agrado foi geral e o público, que aplaudiu com entusias-mo, esperava, ansiosamente, por novos espectáculos4. As ses-sões de Sábado e Domingo foram muito apreciadas pela novi-dade e pelas excelentes vistas exibidas5. A diversão foi muito concorrida, “ (…) sendo de presumir que todos os que lhes suc-cederem levem ao theatro grande concurso de espectadores, porque a cousa é boa e barata”6. Os espectáculos eram abri-lhantados pela música de uma orquestra regida por Nuno Gra-celiano Lino7.

Os filmes exibidos nas primeiras sessões de animatógrafo, no Funchal, são do formato Joli-Normandin. Estas películas, de origem francesa, datam de 1896 e 1897. Estas fitas raras são, actualmente, de importância internacional. A raridade destes filmes de 35 mm reside no facto de terem cinco perfurações laterais em vez das habituais quatro, sendo apenas compatíveis

1 A primeira projecção mundial ocorreu, em Paris, em Dezembro de 1895; e em Lisboa seis meses mais tarde, em Junho de 1896.

2 Natural de Câmara de Lobos, bem como os irmãos, Henrique Augusto fez parte do Partido Republi-cano Português, tendo, após a Implantação da República, desempenhado vários cargos públicos, entre eles o de Vogal da Câmara Municipal do Funchal. Foi, ainda, um dos corpos dirigentes do Auxílio Mater-nal. Foi, juntamente com os irmãos, dono e fundador do estabelecimento comercial Bazar do Povo.

3 Fotógrafo amador fotografou alguns aspectos da vida madeirense, como transportes e paisagens do Arquipélago da Madeira, dos Açores e das Canárias. Foi também sócio da firma H. M. Borges Sucrs., Lda. e chefe da firma Henriques & H. Rodrigues & Cª. Simultaneamente, foi Vice-Presidente da Assembleia--geral da Associação Comercial do Funchal. Politicamente, ocupou o cargo de Vogal Vereador da Câmara Municipal do Funchal.

4 Diario de Noticias, ano XXI, Nº 6058, Terça-feira, 18 de Maio de 1897, p. 2

5 O Diario do Commercio, ano I, Nº 204, Terça-feira, 18 de Maio de 1897, p. 2

6 O Diario do Commercio, ano I, Nº 204, Terça-feira, 18 de Maio de 1897, p. 2

7 Diario de Noticias, ano XXI, Nº 6062, Sexta-feira, 22 de Maio de 1897, p. 2

Ao Balcão

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Paula Almeida

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com o projector Joli-Normandin, cujo nome deriva da junção dos apelidos dos dois engenheiros franceses que os concebe-ram. Estes concorrentes dos Lumière criaram uma câmara, um projector e um tipo de filme.

A Madeira tem hoje uma das maiores colecções de filmes neste invulgar formato. A colecção é “especialmente importante não só por terem sido os primeiros filmes a terem sido exibidos na Madeira mas também por terem uma relevância internacio-nal porque são bastante raros”8, afirmou Tiago Baptista aquan-do da sua deslocação à Madeira em 2006. E acrescentou que “só se conhecem três colecções em todo o mundo, de formato Joli-Normandin, incluindo esta do Museu Vicentes”9. As outras colecções encontram-se na Filmoteca Espanhola de Madrid e na Cinemateca Suíça.

BIBLIOGRAFIA E WEBGRAFIA

- CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX, 2ª edi-

ção, Funchal, Editorial Eco do Funchal, 1995.

8 Tiago Baptista, Investigador de História do Cinema Português ligado a projectos de restauro da Cinemateca Portuguesa do Departamento do Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, citado em Jornal da Madeira – Revista Olhar, nº 165 (17/06/2006). [Em Linha]. [Consultado em 21 de Janeiro de 2007]. Disponível em <http://www.cinemedia-mac.com/index_port.asp>

9 Tiago Baptista citado em Idem

- CARITA, Rui; MELO, Luís Francisco de Sousa, 100 Anos do Teatro Muni-

cipal Baltazar Dias, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1988.

- CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses – sécs.

XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983.

- FREITAS, António Aragão de; VIEIRA, Gilda França, Madeira, Investiga-

ção Bibliográfica, 3 vol., Funchal, SRTC/DRAC, 1984.

- MARQUES, João Maurício, Os faunos do Cinema Madeirense, Fun-

chal, Editorial Correio da Madeira, 1997.

- Cinema na Madeira. Prontuário do Cinema. [Em Linha]. [Consultado

em 28 de Março de 2008]. Disponível em <http:// www.cineme-

dia-mac.com/index_port.asp>.

- FLORENÇA, Teresa, Museu “Vicentes” guarda Filmes Raros. [Em Li-

nha]. [Consultado em 5 de Abril de 2008]. Disponível em <http://

ilhadamadeira.Weblog.com.pt/arquivo/236718.html>.

- PORTUGAL. Arquivo Regional da Madeira – Registos de baptismo [Em

Linha]. Funchal: A.R.M., 28/04/2007. [Consultado em 28 de Abril

2007]. Disponível em <http://62.48.223.202:81/bds/baptismospt/

ClistaBaptismolist.asp>.

- Programação da Cinemateca – Abrir os Cofres. [Em Linha]. [Consulta-

do em 5 de Abril de 2008]. Disponível em <www.madeira-edu.pt/

SRELinkClick.aspx?p1=0&p2=6847&p3=f>.

PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS- Diario de Noticias, Março de 1895 a Junho de 1897.

- Diario do Commercio, Setembro de 1896 a Junho de 1897.

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Do Éden à Arca de Noé – o madeirense e o quadro natural,

Alberto VIEIRA1

Deste texto, sobressai a qualidade literária do legado histórico que o autor apresenta e organiza numa data prévia às grandes manifestações globais acerca das questões ambien-tais. Trata-se de um relevante estudo relativo ao ímpeto eco-lógico, da decisão económica e financeira, da importância da Ilha da Madeira nesse quadro e no da preservação da casa glo-bal, situando a Eco-História como discurso científico. Esta publicação recolhe diversos contributos, neste domínio, que consubstanciam a evolu-ção da Ilha, em termos humanos, organizada em função do que o seu autor designa como “projecto de investiga-ção em que se pretende aclarar e fundamentar as refe-rências com uma abordagem exaustiva da inter-acção do madeirense com o quadro natural” (p.11). Refere o au-tor a importância do ambiente – para além da “denúncia pública” (p.12). Com efeito, o âmbito da “reflexão histó-rica e historiográfica” (p.12) é, amplamente, situado em termos de contributos, no texto introdutório deste livro. Do impacto da agricultura aos jardins (sempre a par de referências importantíssimas nos respectivos domínios), este livro faz-nos percorrer as definições terminológi-cas dos novos campos científicos e do lugar ímpar que a Ilha-Madeira ocupa como campo de estudo e de acção. Percorrendo os tempos desde o início do povoamento da Madeira, as rotas das principais produções com relevância económica e financeira, o autor releva o facto do “homem

1 Vieira, Alberto (1998). Do Éden à Arca de Noé – o madeirense e o quadro natural. Ed. Secretaria Regional do Turismo e Cultura/CEHA, Col. Documentos (nº 8). ISBN 972-8263-12-0.

do século XVIII [ter perdido] o medo ao mundo circundante e [ter passado] a olhá-lo com maior curiosidade” (p.31). Este facto implica que sucessivas expedições se desloquem à Região, com esse propósito exclusivo, ou em passagem em direcção a outros distintos destinos. A região-rota-do-mundo marcará, de forma perene, formas de estar e de intervir, de crescer e relacionar-se com o Outro, que são absolutamente únicas. Gradualmente, o porto do Funchal (p. 35) afirmou-se como porta global e propor-cionou novas realidades: “O Turismo caminhou lado a lado com o vinho e o aparecimento de novas actividades” (p.35).

Incluindo uma importante colectânea de textos literários (prosa e poesia) acerca da ilha-Madeira, este livro inclui, igual-mente, uma colectânea de documentos e estudos dos primeiros relatos da chegada à Ilha [Relação de Francisco Alcoforado] a ou-tros mais recentes. Permanece um importante acervo de infor-mação avant la lettre relativamente a uma vertente das preocu-pações actuais do planeta: a [re]valorização do legado primeiro: a natureza.

Phelps, percursos de uma Família Britânica na Madeira de oitocentos,

Cláudia FARIA2

Esta obra, publicada por “Funchal 500 Anos”, em 2008, exibe uma orga-nização irrepreensível, amiga do leitor, cuidada e rigorosamente criteriosa, quanto ao anexo documental, fontes e bibliografia. A selecção de imagens é envolvente, interessante. No entanto, uma precisão mais cuidadosa relativa-mente à localização seria bem-vinda.

As primeiras mundializações, trou-xeram à Madeira uma significativa

2 Gouveia, Cláudia (2008). Phelps, percursos de uma Família Britânica na Madeira de oitocentos. Ed. “Funchal 500 Anos”, Col. Funchal 500 Anos (nº 5). ISBN 978-989-95637-6-6

Convite à leitura de textos publicados e a publicar proximamente

ForadaEs

tante Retirámosdaestante,destafeita, três livrosquecorrespondematrabalhosdoPresidentedoCEHA,

ProfessorAlbertoVieiraededuasjovensque,nãotendoformaçãoinicial,emHistória,revelamparaestaumaenormeapetênciaquecolocam,comqualidade,nassuasinvestigações.Aproduçãocientíficadestasjovensinvestigadoras,nestecasoresultantedasrespectivasDissertaçõesdeMestrado,revela,claramente,oparadigmadoinvestigadoremCiênciasSociaiseHumanas,doséc.XXI.Emprimeirolugar,porqueseenriquececomosaportespluridisciplinares;emsegundo,noâmbitodeumaimportanterevalorizaçãodaHistória,umamarcadelúcidaevoluçãonamedidaemque,daenaHistória,oinvestigador,emSCH,recolheesedimentaosfundamentosdassuashipótesesedassuasconclusões.

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presença britânica que vastas gerações, pré-paradigma de mul-ticulturalidade recordam como marca da sociedade madeirense. Cláudia Faria aventura-se, então, pela História dessa presença através da descoberta de uma família – Phelps – cujas “peripé-cias” não adivinhamos na frequente passagem, no Funchal, pelo largo que ostenta o seu nome. O legado desta família - como muitas outras famílias britânicas que para a Madeira se desloca-ram - encontra-se ligado ao comércio do vinho mas destacam-se “pelo papel activo que mantém na vida quotidiana madeirense de oitocentos, fazendo parte não apenas da Associação Comercial do Funchal como também de outras associações de âmbito so-cial, cultural, e filantropo (…)”(p 17).

O casal Phelps, em especial a esposa, dedicou-se, igualmente, “às causas da cultura e da educação, fundando a Escola Lancaste-riana” que, a par de muitas actividades de natureza social, cultural e humanitária, justificam, segundo a autora deste estudo, a sua pertinência e relevância. A rigorosa preocupação que a autora revela com as fontes primeiras denota estirpe de historiadora e assinala o que referimos quanto ao paradigma do investigador em CSH, no século XXI.

Interessam-nos, particularmente, a actividade cultural e educativa deste casal Phelps pelo que significa na Historia das Instituições Educativas, no séc. XIX, na Região e que contribui, ainda hoje, de forma relevante através, por exemplo, de outras instituições como, por exemplo, a Escola Britânica no Funchal. A Escola Lancasteriana, imbricada nos passos do ensino público, com métodos inovadores, nas redes religiosas que presidiram à sua formação e as que dominavam a Madeira de então - confi-gura uma espécie de “franchising” educativo, formato que se es-tendeu a diversos países europeus, como descritos no ponto 4.2.3. (p.106), deste estudo.

Aliás, interessantes também, as referências (p.107) que são feitas ao curriculum proposto do qual “destacamos a urgência do ensino das línguas em particular do latim, do Inglês e do Fran-cês, a reformulação geral do método de ensino, a criação de um inspector e de vigilantes e sobretudo conservar-se o útil, criar-se o necessário e dispensar-se o supérfluo e inútil” (p.107). Opina a autora acera da “actualidade destas palavras” e corroboramos no sentido de relevar o interesse desta investigação e o desafio que representa ler este texto, tomar conhecimento acerca deste legado, fundamental no quanto é pertinente e precursor não só em termos curriculares mas, também, no que respeita à formação de professores.

Como docente, incido o olhar muito mais interessadamente nestes capítulos [os referentes à Educação]. É, no entanto, com vivo prazer e atenta curiosidade que lemos este texto que po-derá, mais tarde, ver enriquecidas as suas páginas com análises mais aprofundadas, em especial no que respeita ao “Diário” de Mary Phelps que, segundo a autora, será o alvo das suas provas de Doutoramento.

Da Madeira para o Hawai: a emigração e o contributo cultural madeirense

Susana Caldeira, 3

O trabalho resultante da Dissertação de Mestrado de Susana Caldeira será, muito brevemente, publicado pelo CEHA, na sua colecção digital “Teses”. Mais um passo deste Centro na perenização dos contributos científicos para o estudo da Madeira, da sua diáspora, em suma, da Ilha e do modo como ela se realizou [e realiza] no Mun-do.

Logo no capítulo “Introdução” deste trabalho, a au-tora estabelece um percurso ausente de “fronteiras entre domínios da História, Antropologia, da Sociologia ou Etnologia” (p.8). Assim, do cruzamento científico entre os olhares com que constrói e sedimenta este estudo, a autora realiza uma cativante viagem, a espaços quase “ro-manesca”, diríamos, para este surto emigratório, referen-tes a um “panorama económico débil”. Penosa diáspora que “chapeava” a dignidade com o metal e o número - o “ bango” (p.129) - etiquetando, então, a multiculturalidade com o sinal menor de ofensa à dignidade.

Da vida na plantação, das tradições e de um relevante papel da mulher na “administração da casa”, do registo da faielense Antónia Pereira que chegou a atingir a, marca-damente masculina, posição de “luna”4 a autora acentua o modo como a replicação de hábitos e costumes madei-renses se processava. Assim, as vivências da “ilha velha” se conservam no museu da vida, a que juntaram os rituais religiosos a par de familiares que perpetuaram modos de estar e de agir, agregaram a comunidade mas favoreciam a discriminação. Com efeito, cedo os “Pokiki” (p.160) com-preenderam que as “fronteiras” da identidade são fonte de isolamento e que a ‘assimilação’ se imporia como meio de diluir as diferenças, garantindo, até, demografica, e acul-turadamente a continuidade da população havaiana que, por esta altura, ameaçara os graves efeitos de redução.

Culturalmente importa referir a ascensão e queda das associações portuguesas e dos jornais de língua portugue-sa indicadores, respectivamente, do enfoque na identida-de lusa e na subsequente aculturação/americanização dos ilhéus idos [pp 223-24].

As “serious acquisitions of americanism” (p. 163), fa-vorecidas pela anexação, representaram, então como ago-ra, a absoluta necessidade que os madeirenses experimen-taram no sentido da “fusão cultural”. Então, como agora, a deslocalização de mão-de-obra barata feriu os sonhos de estabilidade financeira de muitos dos ilhéus portugueses que foram, gradualmente, assistindo à sua substituição, nos campos, por asiáticos.

3 Tese de Mestrado (UMa, texto policopiado).

4 Nota 404 da p.137 do texto referido na nota anterior.

Forad

aEstante

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A denominada Blogosfera proporciona, também na Madeira, amplo acervo de “olhares” acerca da Ilha. Fon-te, como referido, da “História imediata” o blogue é uma referência importantíssima, monólogo, diálogo, locus privilegiado de debates e discussões, marca da subjecti-vidade e das relações intersubjectivas que o mundo ac-tual assim vai “formatando”, a par das designadas redes sociais.

As escolhas são, por isso, rigorosamente discutíveis, subjectivas, enfim. Do percurso e, num quadro de coe-rência com os propósitos enunciados para este núme-ro, aportámos no Blogue de Joana Homem da Costa de onde retiramos, com a sua anuência, um texto que con-sideramos paradigmático do desafio que estas “novas fontes” representam para o historiador.

No seu sítio1, Joana Homem da Costa diz-nos ter nas-cido “no dia 11 de Março de 1981, no Funchal, na Região Autónoma da Madeira. No Instituto Superior Técnico (…) encontra-se a concluir a sua Dissertação de Mestrado” subordinada ao tema “Avaliação do Desempenho dos Sistemas de Gestão de RSU na Região Autónoma da Ma-deira”. “Pertencendo a uma família de docentes, princi-palmente ligados às letras, embora tal não tenha pesado na sua escolha académica, sempre esteve imersa e aten-ta às realidades inerentes à escrita. Despertou para esta forma de observar e descrever a vida durante os longos passeios com o seu avô, professor de Português, Gusta-vo Caetano, vindo mais tarde a trabalhar ainda mais este desenvolvimento mental na psicoterapia. (…) Cresceu

1 In http://www.joanahomemdacosta.com

Digit@ndo

sítios e blogues que recomendamosDIGIT@NDO

por entre livros e leituras. Da leitura à escrita foi um pequeno passo (…)”. Do seu blogue Alguns Anos Depois “criado em Abril de 2006, (…) registo de um percurso de auto-descoberta e aná-lise do mundo que a rodeia” escolhemos este texto, publicado a 10.02.2010:

“ILHAPequena? Não é nada pequena! Falta de espaço é algo que

não existe quando a limitação está simplesmente na nossa cabeça. Únicos? Isso de certa forma seremos sempre, como seres individuais, mas não seremos nunca únicos naquilo que fazemos, porque o que nos torna melhores ou piores não é o isolamento no sucesso, mas sim a existência na imensidão. Melhores? Isso seremos sempre que acordarmos para a vida e quisermos evoluir. Melhores que os outros, isso não exis-te, porque nunca teremos a verdadeira noção da realidade do que são os outros e às vezes nem teremos a noção de quem somos nós mesmos…

Neste espaço considerado pequeno não terei mais espaço se afastar de mim todos os que me põem em causa. Concor-rência? É a representação da nossa insegurança e medo de fa-lhar que está fora de nós, porque um dia fizeram-nos acreditar que a solução era sermos únicos e que a existência de mais poria a nossa existência em causa. Inveja? Isso existe muitas vezes na nossa cabeça para justificar os importunos que vêm do exterior e que nos fazem questionar ou duvidar…

Queremos ser únicos à força, por isso afastamos a con-corrência, achamos que somos melhores e por isso mesmo únicos. Falta de espaço para mais que um? Falta de espaço para querermos ser o que realmente importa, únicos em nós mesmos, originais e simplesmente nós. E se existirem outros? Se o caminho é para a frente, podemos contornar a multidão, desviarmo-nos pelo caminho, mas não existe a necessidade de passar por cima de ninguém, nem querer que o espaço esteja despovoado para nos sentirmos realizados. Nós somos nós, únicos pelo valor que conquistamos, valor esse que não rou-bamos de ninguém, existe para todos…”

De entre os muitos sítios que consagram a Madeira como rota de cultura e que relevam o excelente trabalho que muitas instituições – particulares e oficiais – desenvolvem com reconhecida qualida-de, recomendamos, neste número da Newsletter, os que se seguem.

O sítio da UNESCO contribui – a par dos outros referidos - para a projecção global deste riquíssimo património. Manifestamos, assim, o nosso profundo reconhecimento por esse trabalho.

http://whc.unesco.org/en/list/934 [acedido a 30.05.2010] Sítio da Unesco sobre a herança cultu-ral do Mundo: Floresta Laurissilva madeirense.

http://www.pnm.pt [acedido a 30.05.2010] Sítio do Parque Natural da Madeira.

http://www.madeirarotadacal.com/Default.aspx [acedido a 30.05.2010] Sítio do Núcleo Museoló-gico da Rota da Cal.

sítios

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15Notícias

notícias

1. NOvAS PUBLICAÇÕES

a. online

Sítio de uma nova publicação online visando a divulgação da Cultura num espaço geográfico alargado e que inclui as Ilhas. http://www.paralelo33.com/

b. papel

Lançamento do primeiro de três vo-lumes da obra Património de Origem Portuguesa no Mundo, dedicado à América do Sul. Arquitectura e Urba-nismo, obra coordenada pelo historia-dor José Mattoso, com Edição de prestígio, da Fundação Calous-te Gulbenkian.

http://www.gulbenkian.pt/index.php?object=160&article_id=2523&cal=eventos

2. EvENtOS

3. REvIStAS

International Journal of Science Educa-tion - Vol.32, n°9, juin 2010

Paedagogica Historica - Vol.46, n°3, juin 2010

4. ORgaNizaçõES tRaNS-NaciONaiS [dEStaquES da Eu acERca da cultuRa E

daS ilhaS]

Sítio da EU acerca da Cultura

http://europa.eu/pol/cult/index_en.htm

Sítio da EU acerca da vulnerabilidade das Ilhas

http://www.islandvulnerability.org/europeanu-nion.html

2010/07/26-30, Funchal [Madeira]: Congres-so sobre as ilhas do Mundo - CEHA

2010/07/18-25: Norfolk Island: 2010 Islands of History Conference [Conference for profes-sional historians].

2010/Agosto/18-22 Bretanha [France]: Salão Internacional do Livro Insular

2010/10/ 25-29 Funchal [Madeira]: Semi-nário: República e Republicanos na Madeira (1880-1926)

2010/10/? Las Palmas [Islas Canarias]: Colo-quio de Historia Canario-Americana

2010/08/23-26, Bornholm [Denmark]: ISISA Conference Islands of the World XI

2010/08/27-30, Ven [Sweden]: Finding their Place: Islands in Social Theory

2011/05/4-8, Malta: Taking Malta out of the Box: Island Cultures, Economies, and Identi-ties

Coordenação dos próximos númerosSetembro 2010 Ana Madalena Trigo Dezembro 2010 Filipe dos Santos Março 2011 Nélio Pão

GovernoRegionaldaMadeira

SecretariaRegionaldaEducaçãoeCultura

CentrodeEstudosdeHistóriadoAtlântico

RuadasMercês,8

9000-224Funchal

Telef.(+351)291214970

Fax(+351)291223002

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Des

taque

Escolhemos para destaque, nesta Newsletter, uma Instituição que, a par do Centro de Estudos de Histó-ria do Atlântico, representa um insubstituível legado da “Madeira-nova”, às gerações futuras. O Arquivo Re-gional da Madeira1 [http://www.arquivo-madeira.org/index.php] divulgado, neste Centro, aquando de uma Conferência proferida pela sua Directora, Dra. Fátima Barros, visa a “conservação e divulgação do património da Região, para memória futura”. É possuidor de um vasto e diversificado acervo de onde podemos destacar um pergaminho datado de 1378 (pertencente ao legado de Rui Carita). Trata-se de uma Instituição-guardiã des-ses mesmos, dado que uma das suas mais nobres mis-sões é a de – promovendo o acesso às fontes primeiras – torná-las disponíveis para a consulta diletante, ou de carácter científico, de quem o Arquivo procura. Fascina-dos pelo Edifício [do qual somos frequentes visitantes] e pelo seu valiosíssimo significado, propusemos à Dra. Fátima Barros que nos “guiasse” pelos meandros do seu “tesouro”. Dessas duas visitas, registamos o brilho/brio nos olhos e nas obras de todos os que contactámos, que nos explicaram e falaram do seu mister com o orgulho de quem – mais do que cumprir um desígnio profissio-nal – zela, cuidada e “religiosamente” por esses [muitas vezes] ténues legados dos avoengos. O Edifício é, no alto da colina, imponente. Uma grande obra. Digo, muitas vezes, por convicção e por orgulho de aqui nascida, a grande obra da Madeira, no pós-25 de Abril. Aqui, foram construídas estradas e avenidas pelas quais passam os documentos antes de permanecerem disponíveis para consulta. Observámos os depósitos de desinfestação, errámos pela arquivística, pela secção de digitalização. Estamos no séc. XXI: laboratórios fantásticos, bem equi-pados, técnicos de altíssimo nível de especialidade e rigor, preparados cientificamente. Por imposição dos tempos, observámos as diversas etapas de recuperação por que passam alguns, importantíssimos, documentos – plenos ainda da lama de 20/02. Essa também é uma tarefa que, actualmente, ocupa o ARM. No CEHA, como no ARM, a História da Região triunfa na certeza da sua preservação e edifica – projectando – as raízes do futu-ro. Muito idiossincraticamente, posso afirmar que estas

1 Daqui, em diante, designado pela sigla ARM.

visitas me encheram de “orgulho madeirense” [com toda a “car-ga emocional” e até, talvez, irracional, que a expressão compor-ta]. A todos os que contribuem para os que os actuais e os vin-douros possam conviver com os registos da nossa marca – a da cultura – o meu respeito. À Dra. Fátima Barros, em especial, o nosso profundo agradecimento, por tudo. Cinco séculos de His-tória, rigorosamente preservados, memórias que, esperemos, o futuro saiba acarinhar. Admitimos as manifestações de muita emoção, ao percorrermos este espaço, olharmos estes legados, partilharmos a certeza da Missão cumprida. Bem-hajam.

Deixemo-nos, então, guiar por Fátima Barros:

Papel principal- um destaque na Cultura madeirense

“As minhas escolhas nesta Casa da Cultura…

O contemporâneo, am-plo e luminoso hall de en-trada. A distinta escadaria que nos conduz às salas de leitura do Arquivo Regional da Madeira e da Biblioteca Pública Regional, dois es-paços de conhecimento e saber. Luminosidade. Infinidade. A

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arquitectura de um espaço que nos impele a entrar e convida à quietude e leitura.O evidente contraste com as antigas instala-ções do Arquivo Regional.

As áreas de higienização e expurgo. Pelos estranhos equi-pamentos. Pela dinâmica gerada com a entrada das grandes caixas plásticas azuis carregadas de “novos” documentos. Des-carregar, desempacotar, higienizar, expurgar, inspeccionar, rea-condicionar, transportar para os depósitos. De forma ordeira, com método, com rigor. E pelo que significam: que se cumpre o desiderato de enriquecimento e salvaguarda de memórias para as gerações futuras.

Os depósitos do Arquivo Regional da Madeira. As cinzentas estantes geometricamente dispostas pelos vastos espaços. Os livros de séculos rigorosamente alinhados, etiquetados. As as-sépticas caixas cinzentas que protegem os documentos. O silên-cio e a semi-obscuridade. O novo a guardar o velho, em segu-rança e comodidade. Modernidade e antiguidade.

As áreas de restauro, acondicionamento e encadernação. Mãos pacientes e experientes consolidam papéis gastos, rein-tegram folhas perfuradas, restauram encadernações, concebem caixas de mil e um feitios e medidas. Um trabalho admirável.

Jovens alunos a invadir e explorar os nossos serviços. A Sala de Leitura com visitantes atentos. Professores a experimentar e usar os nossos instrumentos pedagógi-cos. Os coloridos e atraentes materiais pedagógicos do Serviço Educativo. A renovada loja do ARM. Tudo isto demonstra a vitalidade de uma instituição secular. Um arquivo que se quer vivo, dinâmico, aberto a toda a co-munidade. Eis o Arquivo da actualidade”.

Bases de dados. Digitalização. Site. Newsletter. Ferra-mentas de eleição nos arquivos da contemporaneidade. Outras portas de acesso ao Arquivo Regional. Tecnolo-gias que nos permitem ir mais além na nossa missão de comunicação, informando melhor os nossos utilizadores e aproximando públicos outrora tão distantes. O resulta-do do paciente e moroso trabalho dos nossos arquivistas e bibliotecários agora ao dispor de um clique.

Destaq

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1818

Alice Ludgero Guerra é uma cidadã madeiren-se, com cento e quatro anos, a quem a imprensa re-gional, nomeadamente o “DN Madeira”, já prestou atenção e homenagem, em especial, com um inte-ressantíssimo trabalho, da autoria da jornalista Zélia Castro, no “DN revista” a 04 de Janeiro, do corrente ano.

As suas memórias confundem-se, por isso, com o advento do séc. XX, na Madeira, e com a sua longa história até hoje. Exemplo disso são os seus rela-tos acerca do modo como viu o Porto do Funchal abraçar o mar, a construção de toda a rede viária asfaltada, percorrendo, ainda, a história da aviação, contando-nos, aliás, as múltiplas viagens a bordo do hidrovião. Alice Guerra é detentora, como se diz nesse trabalho, de uma invulgar lucidez e de uma, também inusitada, agilidade mental. Descobrimos, neste âmbito, os seus modos de relembrar a terra e as gentes que ilustram um modo de ver a Madeira com o olhar que a maior parte de nós já só conhece dos postais – os reais, os que os livros reproduzem e os que, felizmente, a Internet ajuda a divulgar. A História conta, desde sempre, em termos metodo-lógicos, com aportes de diversa natureza que com-põem o modus operandi de disciplinas mais recentes, como a Etnografia. Com efeito, os registos de His-tória Oral consubstanciam uma importante fonte da historiografia actual, a par de outros métodos et-nográficos, que se afiguram igualmente, importan-tes. O confronto com outro tipo de fontes – que os ratifiquem ou excluam – no sentido da construção da Ciência, completará o ciclo da validação cientí-

Memórias: na primeira pessoa

fica desses mesmos registos. Em qualquer dos casos, tê-los em conta, na forma de registo que a actualidade permite, representa uma importante mudança de paradigma histo-riográfico.

Optámos, neste caso, por colocar uma questão: “Como era a cidade do Funchal do seu tempo?” e deixar fluir o discurso, não interrompendo, permintindo que os fios da memória se desenrolassem. “Escutemos”, então, um extrac-to do seu depoimento:

“O Funchal do meu tempo era muito diferente. Lem-bro-me, da “Pontinha” muito, muito pequenininha. Aquela parte onde está, agora, a “Companhia da Luz” também foi, entretanto, muito alargada. Aquilo era tudo muito mais es-treito, o chão de terra, terreno (no sentido de “em terra”). O Mercado era apenas em baixo, depois subíamos uma es-cada para comprar o peixe. O Funchal era todo terreno, até aquela rua onde está agora o correio (refere-se à Avenida Zarco) era também terreno. Os carros eram, maioritaria-mente, de bois. Lembro-me daqueles casamentos chiques, na Sé. O carro de bois da noiva era engalanado com rendas. As damas de honor seguravam na cauda do vestido, ao sair do carro de bois. Lembro-me da “Pontinha” ser aumentada. Aos poucos foram acrescentando. Os barcos eram em gran-de número. Ficavam ao largo. Fiz muitas viagens, saíamos do barco numa lancha e desembarcávamos, depois, no cais. Havia muito movimento de barcos. Também fiz muitas viagens no hidrovião. Havia muitos poços de “ar”. O lanche consistia em duas fatias de pão. As pessoas gritavam muito por causa dos poços de ar. Demorava muito, a viagem, qua-tro horas. Aterrávamos [amarávamos] ao pé da “Pontinha”. O hidroavião tinha um corredor, dois assentos de cada lado, uma casinha de banho e uma pia para lavar a cara.

Alice Guerra

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No Funchal, fazia-se muitas quermesses que eram mui-to divertidas. Às quintas-feiras e aos Domingos, no Jardim Municipal, havia música, pela Banda Militar. As pessoas, ao Domingo, iam até à “Pontinha” e vinham para o Cais. Do terraço da nossa casa (à Rua Nova de São Pedro) as-sistíamos às sessões de cinema no Jardim Municipal. Essa rua era, e ainda é, muito pequena. Mas era de muito boas famílias. Havia muitas raparigas novas. A nossa casa tinha imensas janelas para o lado do Jardim o que levava a termos muitas visitas para os espectáculos. Da Rua Nova de São Pedro, viemos morar para a Rua Pedro José de Ornelas. Tinha um jardim grande e flores. Vivi, também, na Rua das Hortas, mas não me lembro do número. Era à direita, quem sobe.

[Lembro-me perfeitamente do discurso do Salazar, no Terreiro do Paço. O meu marido era de Lisboa, estávamos lá e fomos ouvi-lo. Lembro-me da voz dele, meia esquisita, não era uma voz bonita. Lembro-me, ainda, das Aparições de Fátima, debaixo de uma latada. Fomos logo a Fátima, estava um povo…]

No Funchal, os namoricos eram diferentes. Rapariga que namorava um rapaz numa janela baixa, já era apontada. Já ninguém a queria. Era preciso ver se os negócios eram fi-nos para aceitar uma proposta de casamento. Quando uma rapariga era pedida, o noivo vinha sempre com uma pessoa mais velha, de valor, superior.

Em criança morei em São Martinho. Vínhamos para o Colégio, na Rua dos Aranhas, a pé. As pessoas mais velhas vinham a cavalo ou em redes, também.

Na Rua Conde de Carvalhal íamos ver os Romeiros…. [pausa, sem continuidade].

No Natal, íamos à Missa do Galo. A empregada deixava a canja já feita. Chegávamos por volta das duas ou três da madrugada. Tomávamos a canja. De manhã, a Mamã preparava um cálice de vinho e uma fatia de bolo que era uma tradição. Cada uma de nós [as três irmãs] recebia o nosso vestido novo. Na pri-meira oitava, era dia de visitar os Avós. O Fim-do--Ano não era bonito como agora. Dávamos uns po-tes. Reuníamos a família, havia canja e bolo de mel.

Eram frequentes os casamentos à noite. Fomos a muitos. Em muitas das festas, tocavam bandolim, era divertido. Depois começou a haver o rádio. Mas eu casei em Lisboa, na Igreja da Graça. Não tenho saudades de nada, gosto muito da vida. As melhores memórias da vida são do tempo de solteira e tam-bém de casada: tive um marido muito bom e uma sogra muito boa. O meu Pai comprava bilhetes para as temporadas de Teatro, dez espectáculos de cada companhia. Vinham companhias muito boas. No Carnaval íamos ao Teatro, camarotes de primeira. A vida era muito boa, no Funchal. Podíamos ir a todo o lado, as pessoas eram muito respeitadoras. Tínha-mos segurança. Tive uma vida muito boa. Os bailes, no Reid’s e no Savoy eram muito bem frequentados. Lindos. Vestíamo-nos muito bem. Mas isso já é do meu tempo de casada. Dos bailes lembro-me muito bem. Todos “bem-postos”, dançávamos sempre aos pares. As pessoas tinham gosto, era tudo muito fino e muito bonito”.

Funchal, um Domingo de Abril de 2010

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2020

O CEHA realiza, no Funchal, na data acima referida, um importante Congresso internacional, responsável pela vinda, à região, de reputados especialistas no do-mínio dos estudos insulares que, a par de outros tantos contributos de investigadores, de múltiplas proveniên-cias científicas, que fazem da Madeira, local privilegiado das suas investigações.

Pela sua importância, espera o CEHA que este Con-gresso dinamize a comunidade académica e o público em geral interessado por estes temas e que, mais uma vez, esta Instituição inscreva, na História da Madeira, de que tem sido, ao longo de vinte e cinco anos, porta-voz, um importante registo.

Incluímos, neste número da Newsletter, o texto da carta que o Presidente deste Centro e do Congresso, Prof. Doutor Alberto Vieira endereçou aos Congressistas:

“SAUDAÇÕES DO PRESIDENtE DO CONGRESSO”

Estimados colegas,

O centro de Estudos de história do atlântico [CEHA] organiza e acolhe o presente Congresso, num momento em que se evocam os 25 anos de fundação da institui-ção. Surgimos em 1985 para dar voz, expressão, apoio e divulgação, a um grupo específico de ilhas Atlânticas, ditas Macaronésia. Hoje, queremos ir mais longe e abrir novos caminhos para outro debate e uma diferente afir-mação dos Estudos insulares, chamando à tribuna todos

os espaços e especialistas dessa área.

O debate acerca das questões à volta das ilhas do mundo realizar-se-á em dois momentos. Agora, abrimos o palco para as diversas apresentações livres de todos aqueles que submete-ram comunicações para o efeito. Teremos, assim, oportunidade de, durante vários dias, estabelecer contacto com muito do que se trabalha na vertente dos estudos insulares. Teremos, tam-bém, dois painéis de debate: um, dedicado à reflexão acerca da problemática das insularidades numa perspectiva interdiscipli-nar; outro, resultado da junção de um seminário internacional sobre as Mobilidades Humanas [que realizamos, anualmente, com o Centro John dos Passos, que pretende ser uma primeira abordagem sobre o tema Nós e os outros: escritas e correspon-dências e, por isso, terá lugar na vila da Ponta do Sol, sede deste Centro. Para o próximo ano, de 6 a 11 de Junho, teremos outros debates sob a forma de painéis temáticos: Turismo sustentável nas ilhas no século XXI, Transnacionalismos insulares, ilhas e continentes: as Ilhas no espaço do Império Português no século XVI; CEHA- 25 anos: a sua missão no presente e no futuro (uma reflexão e debate sobre os últimos 25 anos dos Estudos e Insula-res como forma de perspectivar o futuro). A estes, adicionar-se--ão outros dois: Nacionalismos Insulares e Economias Insulares.

Desde 1985 que o CEHA apostou neste tipo de eventos como forma de promover o intercâmbio entre investigadores dos diversos espaços insulares, firmando-se os nossos encon-tros como um ponto de encontro e partilha de informação, de convívio e de descoberta da História e das vivências culturais da nossa Ilha. Hoje, queremos acolher a todos, de forma especial, num novo espaço, que oferece condições dignas de acolhimen-to e de trabalho para todos os intervenientes. Os temas são desafiantes e – temos a certeza – estarão a cargo de investiga-dores que, por força das provas dadas em inúmeros momentos e trabalhos publicados, nos enriquecerão com os seus conhe-cimentos.

A partir daqui, queremos instituir este espaço como uma plataforma de convergência dos interesses insulares que seja capaz de catapultá-los para um posicionamento mais afirmati-vo do universo das ilhas, no âmbito dos diversos saberes. Hoje, institucionaliza-se este espaço de debate do mundo insular que queremos seja o porta-voz de todos os nossos anseios quanto à afirmação e à divulgação das ilhas.”

Pre-vistas

Antevisão de eventos, de projectos e de publicações do CEHAPre-vistas

1.CONGRESSO

2. Digit@insulae

Edição, em CD-ROM, da obra de autores insulares, digitalizada, no âmbito da valori-zação e da preservação das culturas e identidades das regiões insulares envol-vidas como alavanca para o desenvolvi-mento de produtos culturais transversais, promovendo o acesso digital ao conhe-cimento de forma a facilitar o encontro entre as múltiplas culturas insulares que compõem o mosaico cultural do Mundo.

Congresso internacional sobre as ilhas

AS ILHAS DO MUNDO

E O MUNDO DAS ILHAS

Funchal (Madeira) 26 - 30 Julho