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CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS UniFMU CURSO DE DIREITO “SISTEMAS JURÍDICOS PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO” CÁSSIA NUNES REIS TURMA: 3209-B R.A. - 457641/9 TELEFONE: 22752451 E-MAIL: [email protected] SÃO PAULO 2006 1

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DAS FACULDADES METROPOLITANAS UNIDAS

UniFMU CURSO DE DIREITO

“SISTEMAS JURÍDICOS PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO MUNDO

CONTEMPORÂNEO”

CÁSSIA NUNES REIS TURMA: 3209-B

R.A. - 457641/9 TELEFONE: 22752451 E-MAIL: [email protected] SÃO PAULO 2006

1

CURSO DE DIREITO

“SISTEMAS JURÍDICOS PARA SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO MUNDO

CONTEMPORÂNEO”

CÁSSIA NUNES REIS

R.A. - 457641/9

Trabalho de Curso apresentado ao Curso

de Direito da UniFMU como requisito

parcial para a obtenção do grau de

Bacharel em Direito, sob a orientação do

Professor César Marcos Klouri.

SÃO PAULO 2006

2

Banca Examinadora: _________________________________________ _ _ _ _ (_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _) Professor-orientador: Dr. César Marcos Klouri _________________________________________ _ _ _ _ (_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _) Professor argüidor _________________________________________ _ _ _ _ (_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _) Professor argüidor

3

Aos meus pais que sempre me

proporcionaram educação e cultura.

Ao meu irmão Caio, meu grande amigo.

Ao meu namorado Ulisses, meu grande

companheiro e incentivador.

4

Agradeço ao meu professor-orientador,

César Marcos Klouri, pela amizade e

pelos sábios conselhos que levarei para

toda a minha vida profissional e pessoal.

5

Sinopse

O objeto do trabalho monográfico é o Processo Civil e o Acesso à Justiça nos

diversos países, com base em um estudo de direito comparado para se compreender

como os grandes e mais importantes sistemas jurídicos do mundo pacificam os seus

conflitos.

O principal objetivo do estudo é o de verificar quais são os procedimentos

utilizados no processo civil de outros países para a solução de seus litígios. Tentamos

buscar exemplos trazidos do direito estrangeiro para se analisar hipóteses de melhorias

em nosso direito interno.

É de suma importância salientar que o intuito do trabalho não é o de analisar

especificamente o Direito de cada país, mas sim o de apresentar, de forma sucinta, os

sistemas mais utilizados e, possivelmente, mais eficazes existentes no mundo para

solucionarem os seus conflitos no âmbito civil. De certo, não há pretensão de se

concluir se um é melhor do que o outro. Apenas será possível de se obter uma mais

clara visão e chegarmos a exemplos que possam ser úteis para o Brasil, como é o caso

da arbitragem, procedimento este extrajudiciário já bastante conhecido e utilizado em

nosso país, principalmente em São Paulo, que conta com alguns tribunais arbitrais.

Resta observar que o que se espera é que a Justiça possa num futuro próximo

atender aos anseios e necessidades dos cidadãos e gerar resultados efetivos à sua

sociedade.

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Sumário Introdução ..................................................................................................... 1 Aspectos Gerais sobre Direito Comparado .................................................. 1 1. Sistema jurídico para solução de conflitos no Direito Brasileiro 1.1. Procedimentos judiciais.......................................................................... 6 - Justiça Comum e Especial .............................................................. 6

- STJ e STF ....................................................................................... 7 - Espécies de ação ............................................................................. 7

1.2. Procedimentos extrajudiciais ................................................................. 9

- conciliação ...................................................................................... 9 - mediação ......................................................................................... 10 - automediação .................................................................................. 11 - arbitragem ....................................................................................... 13

2. Sistemas jurídicos para solução de conflitos no Mundo 2.1. Distinção entre civil law e common law ……….….............….............. 18

- sistema romano-germânico ............................................................ 19 - países que adotam a civil law ......................................................... 20 - sistema da common law .................................................................. 21

- países que adotam a common law ................................................... 21 - distinções ........................................................................................ 22

2.2. Breves considerações sobre a função jurisdicional nos sistemas anglo- saxão e romano-germânico ........................................................................... 24 3. Análise comparativa 3.1. O Direito Italiano .................................................................................. 27

- características e problemas ........................................................... 27 - soluções adotadas ......................................................................... 28 - paralelo à Justiça Brasileira .......................................................... 29

7

3.2. O Direito dos Estados Unidos da América ............................................ 31 - características do direito americano ............................................... 32 - fontes do direito americano ............................................................ 33 - panorama atual ............................................................................... 33 3.3. O Direito Inglês ........................................................................................ 35 - panorama histórico ............................................................................ 35 - panorama atual do direito processual civil na Inglaterra .................. 36 3.4. O Direito Francês ...................................................................................... 39 - panorama histórico ............................................................................ 39 - notas acerca da aplicabilidade do direito processual civil na França 39 - fontes do direito francês .................................................................... 40 - organização judiciária ....................................................................... 41 - o processo civil ................................................................................. 43 - panorama atual do direito processual civil na França ....................... 44 3.5. O Direito Muçulmano ............................................................................... 45 - panorama histórico ............................................................................ 45 - fontes do direito muçulmano ............................................................. 46 - organização judiciária ....................................................................... 47 - panorama atual do direito muçulmano .............................................. 48 3.6. O Direito Hindu e o Direito Indiano ......................................................... 49 - considerações históricas .................................................................... 49 - distinções entre direito hindu e direito indiano ................................. 49

a) o direito da comunidade hindu (hinduísmo) .................................... 49 → fontes do direito hindu .......................................................... 50 → panorama atual ...................................................................... 51 b) o direito indiano .............................................................................. 51 → panorama atual ..................................................................... 53

Conclusão ...................................................................................................... 54 Bibliografia e referências retiradas de sites

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Introdução

O presente trabalho tem por escopo apurar os meios de solução de conflitos no

direito estrangeiro, seja por meio do Poder Judiciário, seja pelos órgãos voltados a tal fim,

com base em um estudo de direito comparado, a fim de se compreender como alguns dos

países mais desenvolvidos resolvem os conflitos existentes em sua sociedade. Desta

forma, depois de obtido o conhecimento do panorama geral, poderá ser traçado um

paralelo comparando os diversos sistemas de solução de conflitos com o sistema utilizado

no Brasil, que se realiza por meio dos processos judiciais perante o Poder Judiciário.

Portanto, será realizado um apanhado geral apontando os possíveis métodos mais

viáveis, ágeis e eficazes para a solução de controvérsias.

Cabe lembrar que a presente pesquisa abrangerá aspectos históricos, porém a

ênfase estará voltada para as atualidades com relação ao tema.

Trata-se de um tema que possui assuntos explorados no meio acadêmico, tais como

a explicação de Civil Law e Common Law (dentro da disciplina História do Direito), a

explicação da organização judiciária brasileira e sua atividade jurisdicional (dentro da

disciplina Direito Processual Civil), mas também traz assuntos que não são muito

abordados em sala de aula, por serem específicos. Ainda pode-se acrescentar que, em

razão da menção a outros países além do Brasil, em alguns momentos, o Direito

Internacional servirá de auxílio.

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Aspectos gerais sobre Direito Comparado

O Direito Comparado é a comparação de ordenamentos jurídicos diversos. Sendo

uma atividade de comparação, é mais do que o estudo dos vários Direitos; trata-se de uma

justaposição dos resultados desse estudo e o registro das semelhanças e das diferenças (o

que não obriga necessariamente a que nos estudos comparativos surja uma secção

formalmente autônoma evidenciando tal registro; a comparação pode estar implícita no

modo de descrição dos vários Direitos).

Os estudos de direito comparado tiveram, depois do começo do nosso século, um

grande desenvolvimento. Atualmente, pode-se dizer que ele é um elemento necessário da

ciência e da cultura jurídica.

Os primórdios deste instituto foram marcados por discussões tendentes à definição

do seu objeto e sua natureza, a fixar o seu lugar entre as diferentes ciências, a caracterizar

os seus métodos, e a determinar as suas possíveis aplicações e seus interesses.

Discutiu-se se o direito comparado deveria ser um ramo autônomo do Direito ou se

deveria ser considerado apenas um mecanismo comparativo dentro da ciência jurídica.

Até hoje, esta discussão não está bem definida, mas é possível verificar as vantagens de

sua existência, como por exemplo, a de conhecer melhor e aperfeiçoar o nosso direito

nacional e estabelecer um melhor regime para as relações da vida internacional. Isto

posto, podemos adentrar, sucintamente, o assunto sobre a unificação internacional do

Direito.

A Comunidade Européia (CE) traz um bom exemplo de integração. Lá existe uma

uniformização de procedimentos processuais que geram menos dificuldades. Já o Brasil

não é muito adepto à uniformização de normas processuais civis com os países vizinhos,

10

porém é signatário de alguns tratados que versam sobre a matéria e também é membro do

Mercosul, o que faz com que os seus laços comerciais e jurídicos se fortaleçam com os

demais Estados-Membros.

A atividade jurisdicional brasileira, em comparação à européia, é muito mais

abrangente, ou seja, o órgão jurisdicional submete os órgãos administrativos, a exemplo

da realidade vivenciada na Common Law. Pode-se dizer até mesmo, desfrutar o Judiciário

brasileiro de uma área de atuação, não somente maior do que a atribuída ao Judiciário

europeu, mas também mais extensa do que as dos próprios países atrelados ao sistema da

Common Law. Basta, para tanto, citar os writs contemplados na Constituição brasileira,

sobressaindo-se, entre eles, o mandado de injunção, remédio sem similar no direito

comparado.

Superadas estas breves explicações iniciais, o trabalho, a partir de agora, seguirá os

tópicos de seu sumário. Mas antes de dar início, vale lembrar que a tarefa de comparar

diversos direitos é, por vezes, difícil, pois o mundo e sua sociedade estão em constantes

mudanças. Apesar disto, parece ser de bastante importância e utilidade, ou no mínimo

curioso, penetrar neste domínio.

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1. Sistema jurídico para solução de conflitos no Direito Brasileiro

O Brasil é adepto do sistema romano-germânico, do qual trataremos mais

profundamente no título 2 do presente trabalho, devendo, de antemão, e de forma bastante

breve, esclarecer que se trata do sistema dos países que tomaram por base o Direito

Romano no qual direito é codificado e cuja principal fonte é a lei.

Acerca do sistema jurídico brasileiro, mostram-se úteis algumas considerações

iniciais, principalmente referentes às causas da demasiada demora nas soluções dos

conflitos levados ao Poder Judiciário, situação que desestimula as pessoas a exigirem seus

direitos, muitas vezes se conformando com injustiças e ilegalidades.

Pois bem. A globalização e a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram

as principais causas do excessivo número de processos que são distribuídos diariamente

aos juízes de primeiro e segundo graus, impossibilitando uma prestação jurisdicional

rápida, satisfatória e ao alcance de todos aqueles que dela necessitam.

A Constituição Federal de 1988, com o intuito de proteger as liberdades

individuais contra o abuso de poder dos governantes e eliminar as grandes desigualdades

de condição de vida de seus cidadãos, trouxe a ilusória expectativa de que os brasileiros

teriam o direito a uma justiça ágil e eficiente. Porém, a nossa realidade social e econômica

não permitiu o efetivo cumprimento de suas normas. Ademais, encontramos um Poder

Judiciário com uma estrutura deficitária, incapaz de dar uma solução rápida a milhares de

demandas ajuizadas em face da nova realidade que lhe apresentou.

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O colapso do atual sistema é a falta de estrutura física e humana do judiciário, no

excesso de recursos utilizados pelas partes, em especial pelo Poder Público, com intuito

meramente protelatório, e na sobrecarga causada pela legislação processual.

O sistema processual se preocupa muito mais com os aspectos instrumentais, do

que com a efetiva prestação da tutela jurisdicional, com a esperada distribuição da justiça.

Para o ministro Carlos Velloso, a facilitação do acesso à justiça propiciada pela

Constituição de 1988, com a legitimação ativa para sindicatos e a permissão de que

Ministério Público, por exemplo, proponha ações foram fatores que sobrecarregaram o

Poder Judiciário. O ministro lembrou ainda que surgiram, na mesma linha, os códigos do

consumidor e do adolescente, entre outros direitos subjetivos. Estes fatos causaram uma

explosão de processos, enquanto que a máquina não cresceu na mesma proporção. Por

isso a urgência da reforma.

Enquanto as reformas não são completamente implementadas, talvez o ideal seja

que a população brasileira conheça e se utilize de outros mecanismos alternativos para

solucionarem os seus conflitos, quando estes puderem ser resolvidos sem a intervenção

estatal. E é sobre isto que falaremos no próximo capítulo. Quando não for possível a

utilização destes outros meios, o que resta é aguardar por uma reforma do poder judiciário

para que todos possam se servir da justiça, confiar nela e obter resultados mais

rapidamente.

Por fim, é de extrema relevância salientar um dado, que demonstra a gravidade da

crise: menos de 10% da população utiliza o sistema judiciário brasileiro. Se o número de

processos distribuídos já é excessivo, o que aconteceria se mais pessoas pudessem se

servir do judiciário? Em que caos estaríamos.

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1.1. Procedimentos judiciais

O Poder Judiciário pátrio, grande responsável pela solução dos conflitos existentes

até hoje em dia, em que pese a recente criação de outros meios alternativos, e que serão

estudados adiante, é dividido em Justiça Comum e Especial, respeitando, como regra, o

Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, atribuição dos Tribunais de Justiça e Regionais

Federais das regiões de sua competência.

Justiça Comum e Especial

A Justiça Comum, por sua vez, é subdividida em Federal e Estadual, sendo a

primeira destinada à solução dos conflitos em que haja o interesse da União Federal, e a

segunda, de forma excludente, às demais causas.

Ao falarmos de Especial, nos referimos à Justiça do Trabalho, Eleitoral, e Militar,

conforme o objeto do litígio em discussão.

Tal sedimentação visou o aperfeiçoamento e especialização dos interesses em jogo,

como forma de otimizar os resultados da tutela jurisdicional do Estado.

A fim de finalizar a brevíssima exposição sobre a estrutura do Poder Judiciário,

não há como deixar de falar dos tribunais superiores, ou como equivocadamente

designado por muitos operadores do direito, a terceira instância, ou seja, o Superior

Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

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STJ e STF

O STF, que possui 11 ministros, tem a competência de exercer o controle

concentrado da constitucionalidade de leis e atos normativos federais e estaduais, de

julgar determinadas autoridades federais, como o Presidente da República, em infrações

penais, além de outras, arroladas no artigo 102 da Constituição Federal, sobretudo

Recurso Extraordinário.

Já ao STJ, composto por 33 ministros, cumpre o papel de guardião da lei federal,

recebendo recursos de decisões judiciais que a contrariem, por meio de Recurso Especial.

Cabe também a este órgão julgar os crimes comuns praticados por governadores e outras

autoridades. Suas competências estão descritas no artigo 105 da Constituição Federal.

Feitos os esclarecimentos supra, passamos aos instrumentos necessários para a

busca da mencionada tutela, momento em que devemos nos ater, substancialmente, ao

Código de Processo Civil, mas podemos encontrá-los, também, em importantes leis

esparsas, como a de falências, a de executivo fiscais, dentre outras de conteúdo

instrumental.

Espécies de ação

Como os meios processuais para busca da tutela jurisdicional fogem, de certo

modo, do objeto do presente trabalho, além do fato de que há vasta doutrina sobre o

assunto, veremos, adiante, apenas de passagem, as espécies de ações que amparam os

demandantes, subdivididas em conhecimento, cautelar, execução, mandamentais e

executivas “lato sensu”.

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A demanda de conhecimento visa afastar uma crise de certeza, em que o juiz,

depois de uma aprofundada e exauriente análise da questão lhe posta, pode prestar a tutela

declarando, constituindo ou condenando um ou mais dos demandantes, conforme o objeto

do litígio.

Ao falarmos de execução, a crise é de cumprimento, ou seja, não existe qualquer

dúvida, mas sim uma obrigação líquida, certa e exigível em que uma das partes, o

executado, não a quer cumprir por vontade própria, necessitando da sua substituição pelo

Estado, que pratica atos executórios nesse sentido.

A cautelar, como a própria denominação faz entender, serve apenas e tão-somente

para garantia que uma demanda de conhecimento ou executiva alcance o final pretendido,

que nada mais é do que a entrega do bem da vida pretendido. Os exemplos típicos são o

arresto, o seqüestro, a separação de corpos etc.

Por fim, nas demandas mandamentais ou executivas “lato sensu” há a verdadeira

ordem pelo magistrado para que determinada parte faça ou deixe de fazer algo, podendo,

no segundo caso, o Estado substituir a própria parte a quem a ordem se destina. Essas são,

em linhas gerais e bastante resumidas, as ações colocadas à disposição dos cidadãos para

a busca dos seus direitos.

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1.2. Procedimentos extrajudiciais

Com o intuito de analisar outros mecanismos para solução de conflitos, que não os

judiciários, apresentaremos quatro deles que fazem parte do direito moderno. Estes

“métodos alternativos” são vantajosos principalmente porque dão mais agilidade à

solução de controvérsias e também porque “desafogam” o Poder Judiciário que, no caso

do Brasil, é demais sobrecarregado com o enorme volume de processos.

Nos dizeres de Mauro Cappelletti e Bryant Garth1, existem vantagens óbvias tanto

para as partes quanto para o sistema jurídico, se o litígio é resolvido sem necessidade de

julgamento. A sobrecarga dos tribunais e as despesas excessivamente altas com os litígios

podem tornar particularmente benéficas para as partes as soluções rápidas e mediadas, tais

como o juízo arbitral. Ademais, parece que tais decisões são mais facilmente aceitas do

que os decretos judiciais unilaterais, uma vez que elas se fundam em acordo já

estabelecido entre as partes.

Conciliação

Conciliação é o procedimento extrajudiciário de solução de controvérsias, no qual

uma terceira pessoa independente e imparcial, o conciliador, auxilia as partes a

solucionarem o litígio.

Para tanto, o conciliador faz sugestões às partes para que cheguem a um consenso

e firmem um acordo.

A conciliação é extremamente útil para muitos tipos de demandas e partes,

especialmente quando consideramos a importância de restaurar relacionamentos 1 CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. p. 83.

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prolongados, em vez de simplesmente julgar as partes vencedoras ou vencidas. Mas,

embora a conciliação se destine, principalmente, a reduzir o congestionamento do

judiciário, devemos certificar-nos de que os resultados representam verdadeiros êxitos,

não apenas remédios para problemas do judiciário, que poderiam ter outras soluções.

Países como França, Estados Unidos e Japão dão preferência à solução de

controvérsias por meio da conciliação.

Mediação

Mediação é um procedimento similar à conciliação, com a diferença de que o

mediador, igualmente neutro e imparcial, não faz sugestões às partes. São elas próprias

que chegam a um consenso, auxiliadas pelo mediador. Ou seja, o mediador exerce uma

atividade consultiva. Ele apenas auxilia as partes no entendimento e na resolução do

problema. Trata-se de um procedimento informal e com baixo custo.

A mediação é um método que procura fazer com que as partes superem suas

diferenças, oferecendo oportunidade para que encontrem soluções viáveis, as quais devem

contemplar os interesses de todos os envolvidos na questão.

O caráter de terceiro neutro atribuído ao mediador centraliza as discussões e

auxilia a dar forma a linguagem utilizada, com o interesse de chegar a uma solução

mutuamente aceitável.

O mediador se concentra para além dos problemas relacionais e focaliza questões

de conteúdo específico, dando oportunidade aos indivíduos para que criem suas próprias

soluções.

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O bom mediador é aquele que é capaz de entender as expectativas e o grau de

concessão das partes. Trata-se de uma pessoa respeitosa, que sabe usar o “poder de ouvir”

e que consegue despertar nas partes o sentimento de confiança. Ele não tem nenhum

poder de decidir. E muito menos, de impor soluções. Ao contrário, sua função é a de

facilitar o acordo entre as partes. Na verdade, a mediação pertence às partes.

Existem algumas técnicas básicas para o procedimento: geralmente, o primeiro

passo a ser tomado pelo mediador é o de conversar com as partes a fim de compreender

adequadamente a natureza do impasse. Para tanto, ele deve ouvir a versão de cada uma,

em sessão conjunta. A partir deste momento, será realizada uma “agenda de trabalho”

com a estipulação de deadlines. A fixação de prazos é fundamental para que os litigantes

saibam que aquela negociação não poderá se prolongar por tempo indefinido.

Após esta etapa conjunta, o mediador se reúne isoladamente com cada parte para

analisar o grau de aceitação de um eventual compromisso. Neste momento, é interessante

fazer perguntas estratégicas e solicitar às partes que comparem as vantagens de um acordo

rápido com o desgaste de um longo processo litigioso.

Ao perceber os pontos de convergência, o bom mediador encaminha a negociação

para sua fase final, precipitando o acordo. Geralmente, as partes sentem-se satisfeitas,

pois não ficam com aquela impressão de derrota ou vitória de quando o processo é

judicial. Isto porque foram elas, através de concessões, que chegaram a um bom

resultado.

Automediação

Uma forma derivada da mediação que visa a efetiva solução de conflitos é a

automediação.

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A automediação é a forma alternativa de solução de controvérsias realizada

exclusivamente pelos advogados das partes litigantes, seja na fase anterior ao ajuizamento

da causa, ou quando já instaurado o litígio. Vale lembrar que a automediação se difere da

mediação pois nesta última existe a presença de um terceiro mediador, conforme já visto

no subtítulo anterior.

Seu procedimento se baseia em princípios éticos e morais previamente estipulados,

com vistas à busca da eficiência e maximização de resultados de forma a chegar-se a um

bom termo com relação à questão conflituosa.

Nas palavras de Adalberto Simão Filho2, não se trata de uma simples negociação

ou transação tomada a frente por advogados, mas sim de um sistema procedimental que

possui começo, meio e fim, lastreado totalmente na ética profissional e no dever, onde o

advogado passa a ter uma figura de orientador, solucionador de conflitos, um apaziguador

das relevantes questões que lhe são confiadas. Ademais, por ser uma pessoa com

capacitação técnica, que conhece a legislação, poderá visualizar os limites impostos pela

lei.

Nesta modalidade de solução de controvérsias também são assegurados o sigilo

ético e a confidencialidade, assim como na arbitragem.

Os próprios advogados das partes irão negociar e analisar as possibilidades de

concessões. Eles poderão até se servir de estudos doutrinários e jurisprudenciais de modo

a bem entender a medida exata do direito de seu cliente.

2 FILHO, Adalberto Simão. Revista Magister de Direito empresarial, concorrencial e do consumidor. (abril/maio de 2005). Porto Alegre: Magister Editora, 2005. 2 v . p. 39.

20

A sentença advinda da automediação se tornará título executivo, conforme reza o

artigo 584, III, do CPC. Artigo 584: “são títulos executivos judiciais: III - a sentença

homologatória de conciliação ou de transação, ainda que verse matéria não posta em

juízo”.

A conclusão do procedimento se dará por meio da elaboração de um termo de

transação por escritura pública ou instrumento particular que explicitará os direitos e as

conclusões obtidas, bem como eventuais penas incorríveis em razão do descumprimento.

Trata-se, portanto, de negócio jurídico de direito privado.

Por fim, pode-se dizer que este é mais um mecanismo alternativo que busca a

redução da litigiosidade. Mas há de se ressaltar, como bem explica Adalberto Simão

Filho, que a autonegociação como forma de solução ética de conflito não seria um

remédio aplicável para todas as situações, dada a riqueza de relações humanas e

empresariais existentes e seus diversos regramentos jurídicos que em face da natureza

podem obstar a busca desta alternativa, mas seria sem dúvida um excelente remédio para

as partes em vias de controvérsias ou em litígios – e para aquele profissional do direito

que esteja bem interado e afinado às premissas do sistema proposto e saiba utilizá-lo com

maestria.

Arbitragem

Antes de passarmos à conceituação de arbitragem, vale a pena ressaltar uma breve

exposição histórica deste instituto.

A arbitragem surgiu há mais de 3.000 a.C., sendo um dos institutos mais antigos.

Tem-se notícias de soluções amigáveis entre os babilônios, através da arbitragem pública

e, entre os hebreus, as contendas de direito privado resolviam-se com a formação de um

tribunal arbitral.

21

A história, por diversas vezes, nos revela que as soluções de litígios entre grupos

humanos foram encontradas através de procedimentos pacíficos como os da mediação e

da arbitragem, ao invés de optarem pelas guerras.

Num passado mais recente, podemos mencionar que com a Revolução Francesa

(1789), a arbitragem tornou-se o instrumento ideal de reação contra os abusos da justiça

do rei. Porém, a prática de sua utilização não durou muito, pois em 9 de maio de 1806 foi

promulgada a lei sobre arbitragem que desestimulou sua aplicação por causa das rigorosas

formalidades com as quais o instituto foi revestido.

Desde então, a arbitragem demandou algum tempo para ter a expressão e a

importância que adquiriu a partir do século XIX até nossos dias, com as características e

enfoques próprios no direito internacional, quer público ou privado.

Enquanto em países como a Bélgica, França, Portugal, Itália e Espanha aboliam

exigências para a utilização da arbitragem e homologação das sentenças provindas deste

instituto, no Brasil, o legislador continuava fiel as suas tradições históricas dificultando a

utilização deste mecanismo de solução de controvérsias3. Após várias tentativas de

projetos de lei, a arbitragem foi introduzida no Brasil com a Lei n° 9.307, de 23 de

setembro de 1996.

Superadas estas breves explicações sobre a situação histórica do instituto, podemos

passar ao seu conceito e à exposição de sua utilização no contexto atual.

A arbitragem é um procedimento extrajudiciário de solução de controvérsias, no

qual as partes nomeiam terceiros independentes e imparciais, os árbitros, que decidem a

controvérsia.

3 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p. 18.

22

Para tanto, as partes, ao firmarem um contrato, devem inserir uma cláusula arbitral,

também denominada cláusula compromissória (cuja explicação virá mais adiante).

A opção pela arbitragem também pode estar disposta em documento apartado

firmado pelas partes.

Mas mesmo não havendo a previsão da cláusula acima mencionada e surgida a

controvérsia, se os litigantes decidirem solucioná-la por arbitragem, poderão firmar um

documento denominado compromisso arbitral (cuja explicação será dada a seguir).

Instituir cláusula compromissória significa estipular a obrigação das partes

contratantes em submeterem a árbitros as divergências que venham a surgir entre elas. Ou

seja, esta cláusula prevê a utilização da arbitragem, quando e na eventualidade de o

conflito surgir, no futuro.

No compromisso arbitral, o conflito ou divergência já existe. Aqui, ocorrido o

conflito de interesses, as partes fazem um acordo para que o mesmo seja resolvido

mediante arbitragem.

O árbitro pode ser qualquer pessoa capaz, que tenha a confiança das partes. Não

pode ter nenhuma vinculação com as mesmas e deve decidir a questão que lhe for

submetida com imparcialidade. A lei até estabelece um código de ética para o árbitro

elencando algumas características que ele deve possuir, tais como, ser competente,

discreto, diligente.

Sobre o objeto e o que pode ser solucionado por meio de arbitragem, determina a

lei que qualquer divergência ou conflito que diga respeito a direitos que as partes possam

livremente dispor pode ser resolvido por arbitragem. São os denominados direitos

23

patrimoniais disponíveis. Direitos estes de qualquer valor ou natureza. Geralmente, as

divergências se referem a contratos.

Existem duas modalidades de arbitragem: a arbitragem institucional e a ad hoc. A

primeira é aquela em que as partes estabelecem na cláusula compromissória, em

documento apartado ou no compromisso arbitral, que a administração do procedimento

arbitral ficará a cargo de uma instituição especializada para este fim. Portanto, ao optar

por este tipo de arbitragem, basta que isto esteja corretamente salientado, indicando qual a

instituição responsável para o procedimento e que será utilizado o seu regulamento.

Quanto à arbitragem ad hoc, esta é outra forma de se operacionalizar a arbitragem.

Neste caso, as partes fixam as regras procedimentais para aquela arbitragem específica.

As vantagens e conveniências trazidas pela opção à arbitragem são muitas. O

procedimento arbitral é mais rápido, podendo inclusive a controvérsia ser solucionada no

prazo fixado pelos litigantes e de acordo com o previsto no regulamento da instituição, ou

seja, da câmara de arbitragem escolhida, especializada para este fim. Se este regulamento

nada dispuser, prevê a lei que seja no prazo de seis meses, a serem contados a partir da

estipulação da arbitragem.

O procedimento arbitral é confidencial, somente as partes envolvidas, os árbitros e

a câmara arbitral têm conhecimento do caso, o que difere do processo judicial, que é

público. Vale ressaltar que o fato de ser o árbitro um especialista na matéria em questão,

gera uma segurança e uma certeza maior quanto à decisão proferida. Como o próprio

árbitro tem aptidão para lidar com a questão, em muitos casos, dispensa-se a indicação de

perito.

24

Conforme explicita Carlos Alberto Carmona4, o árbitro finda a sua função no

momento em que intima as partes de sua decisão. Sendo a atividade jurisdicional arbitral

reservada, sigilosa, não há publicação de sentença arbitral, limitando-se o julgador a

informar as partes acerca do resultado do processo. Não havendo embargos de declaração,

está terminada a função do árbitro, cessando os poderes que as partes lhe conferiram.

Por fim, espera-se que seja dado o cumprimento da sentença arbitral pelas partes.

No caso de a parte vencida hesitar em cumpri-la, antes de se recorrer ao Poder Judiciário,

será possível adotar diversos mecanismos de coação não-processuais, tornando o

descumprimento do laudo extremamente penoso.

De acordo com o artigo 31 da Lei 9.307/96, a sentença arbitral produz, entre as

partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder

Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo.

Atualmente quase todos os contratos internacionais, principalmente os da Europa e

América do Norte, contêm cláusulas compromissórias, para que eventuais controvérsias

deles resultantes sejam solucionadas por arbitragem. Nos países destes continentes, os

laudos arbitrais costumam ser cumpridos pelo vencido. Isto porque se não o forem, acaba-

se criando uma desconfiança em relação à esta parte que não o cumpriu, que geralmente é

alguma empresa multinacional e esta arrisca perder a credibilidade que possui no cenário

internacional.

Em Portugal, por exemplo, a arbitragem já é um sucesso, passados os anos de

implantação. Em Paris e Londres, todas as causas de maior significado econômico são

resolvidas pela arbitragem.

4 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. p.247.

25

2. Sistemas jurídicos para solução de conflitos no Mundo

Antes de abordarmos especificamente o direito de cada país que consideramos

relevantes para o presente estudo, são necessárias algumas explanações sobre os dois

principais sistemas jurídicos utilizados no mundo.

2.1. Distinção entre civil law e common law

Geralmente, cada autor procura dar sua própria classificação de sistemas jurídicos,

segundo elementos geográficos ou caracteres étnicos de povos regidos por ordenamentos

diversos, como se cada raça ou cada região geográfica tivesse um direito especial.

Como bem anotou Sílvio de Salvo Venosa5, vários autores acabam se utilizando da

classificação dividida em sete sistemas-tronco e sistemas derivados, da qual saem sete

grupos ou famílias: francês, alemão, escandinavo, inglês, russo, islâmico e hindu.

Porém, René David, apresenta uma classificação mais simplificada. Para este

autor, no mundo atual, existem as seguintes famílias: a romano-germânica (também

conhecida como civil law), a da common law, os sistemas de direitos socialistas, que

compunham a denominada Europa do Leste, capitaneados pela URSS, até a queda do

Muro de Berlim e o esfacelamento daquela e, por fim, os sistemas filosóficos ou

religiosos, ligados a concepções de ordem social e religiosa.

No presente capítulo, interessa o contraste entre as famílias da common law e da

civil law, por serem consideradas as mais relevantes dentre os sistemas jurídicos da

atualidade. Ademais, refletir sobre o substrato cultural de cada um dos dois grandes

sistemas jurídicos, permite avaliar com mais prudência a possibilidade de aproximações.

5 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 100.

26

Segundo Guido Fernando Silva Soares6, num sentido amplo, common law quer

referir-se por um lado ao sistema da família dos direitos que receberam a influência do

direito da Inglaterra e, de outro lado, a civil law refere-se ao sistema dos países que

tomaram por base o Direito Romano.

Partindo para uma análise mais específica, trataremos primeiro da explicação sobre

o sistema (ou família, segundo denominação proposta por René David) romano-

germânico e, na seqüência, sobre o sistema da common law para, posteriormente,

apontarmos diferenças e semelhanças entre ambos.

Sistema Romano-Germânico

O sistema romano-germânico, também denominado de sistema jurídico da civil

law, liga-se ao direito da antiga Roma (século XIII), do tempo de Justiniano, período em

que a concepção de direito era bem diferente da atual em razão da cultura e sociedade da

época.

Porém, esta família trouxe muitos elementos para a ciência jurídica que se

dispersaram e influenciaram muitos países pelo mundo inteiro. As características mais

marcantes pertencentes à civil law são o culto pela lógica formal e a racionalidade.

Existe uma grande preocupação com a técnica jurídica da codificação, ou seja, para

que o direito possa ser adequadamente aplicado, ele deve ser escrito, de forma

sistemática, em códigos. A intenção, portanto, era a de concentrar as normas jurídicas em

um corpo legislativo. Muitos países seguiram esta tendência e estruturaram o seu direito

nacional por meio da codificação.

6 SOARES, Guido Fernando Silva. Common Law: introdução ao direito dos EUA. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 47.

27

Na família romano-germânica, a regra de direito é genérica, a ser aplicada ao caso

concreto pelos tribunais. Esta regra de direito genérica costuma ser criada por meio de lei

escrita. A generalização permitiu o fenômeno da codificação do direito, pelo qual as

regras genéricas são compiladas em códigos de leis e posteriormente aplicadas pelos

juristas e tribunais.

Portanto, há predominância da lei (norma, regra geral, editada pelo Legislativo)

como fonte do Direito.

A jurisprudência é considerada fonte secundária. A doutrina também é utilizada

como fonte secundária e tem por objetivo interpretar as normas jurídicas. Trata-se de um

complemento, de um estudo mais aprimorado das regras genéricas trazidas pelas leis.

Neste sistema, existe divisão entre Direito Público e Direito Privado. O primeiro

refere-se ao interesse do Estado e o segundo diz respeito ao interesse dos particulares. É

importante abordar esta divisão, pois é a partir dela que surgem os ramos do direito e, no

caso do Brasil, também é com base nela que se estruturou o Poder Judiciário e a criação

de órgãos meramente administrativos.

Países que adotam a civil law

No continente europeu, buscou-se reprimir o abuso do poder dos tribunais,

principalmente após a Revolução Francesa (1789). A doutrina defendia que os juízes não

deveriam interpretar as leis. Por esta razão, a maior parte dos países europeus optou pela

adoção do sistema romano germânico, já que nele prevalece o modelo do juiz vinculado à

lei.

Atualmente, pertencem a esta família vários países europeus, tais como a

Alemanha, Áustria, Dinamarca, França, Itália, Portugal; toda a América Latina, grande

28

parte da África, do Oriente Médio, do Japão e da Indonésia. O direito brasileiro também

pertence a este sistema.

Sistema da Common Law

A common law é o sistema nascido na Inglaterra que se desenvolveu a partir do

século XII. Pode-se dizer que nesta família, a lei é praticamente criada pelo juiz, são as

suas decisões que criam o Direito.

No passado, a common law se baseava no direito costumeiro, era casuística, mas

hoje, a primeira fonte do direito é a jurisprudência, ou seja, os casos são decididos com

base nos precedentes judiciais.

Assim, nessa última acepção, common law é o conjunto de regras e princípios que

derivam de decisões judiciais atinentes a matérias que não foram expressamente reguladas

pelo legislador. Por força do princípio do stare decisis (que estipula que uma decisão

judicial será considerada e aplicada na solução de um caso semelhante no futuro), as

normas emanadas dessas decisões tornam-se precedentes vinculantes.

A característica fundamental desta família é a resistência à codificação. A questão

da técnica e do silogismo não tem a mesma importância que para o sistema romano-

germânico. Pelo contrário, os pensadores da common law acreditam que tanta formalidade

e rigor na criação das normas dificultam a aplicação do Direito. Eles defendem um direito

prático. Isto posto, ressalta-se o papel secundário exercido pela doutrina que dá uma

contribuição muito restrita neste sistema, diferentemente do que ocorre na civil law.

Países que adotam a common law

Vale ressaltar que, embora surgido na Inglaterra, este sistema não é exclusivo do

direito inglês, aplicando-se, também, a outros países de língua inglesa, tais como a

República da Irlanda, a Austrália e Nova Zelândia, assim como a países que têm o seu

29

próprio idioma ou dialeto, além da língua inglesa, como, por exemplo, o Paquistão,

Quênia, Nigéria, Bangladesh, entre outros. Este sistema influencia mais de 30% da

população mundial.

Quanto ao direito dos Estados Unidos, exceto o estado da Louisiana, que se

mantém na tradição românica em razão de ter sido colônia da França, este pertence à

família da common law, porém misto, pois se utiliza de elementos da civil law para a

organização de seu direito interno. Ressalta-se que o direito deste país será estudado mais

adiante, em capítulo próprio.

Distinções

De forma didática, serão apontadas as mais importantes diferenças existentes entre

as duas famílias.

Primeiramente, num sentido amplo, diz com sabedoria o professor René David7:

“Os sistemas de direito da família romano-germânica são sistemas fechados,

a common law é um sistema aberto, onde novas regras são continuamente

reveladas”.

Ao mencionar “sistemas fechados”, o autor quis dizer que as soluções para

determinadas questões sempre estarão vinculadas à interpretação de uma norma jurídica

existente. Já, quando se refere a “sistemas abertos”, quer dizer que as soluções para os

casos não comportam regras essenciais que possam ser aplicadas em todas as

circunstâncias.

7 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 467-468.

30

Na common law, não há distinção entre o Direito Público e Privado. Enquanto que

na família romano-germânica existe a mencionada distinção e também a separação dos

ramos do direito, por exemplo, Direito Civil, Direito Comercial, Direito Administrativo,

Direito Penal etc. Em decorrência disto, no primeiro sistema mencionado, os profissionais

da área jurídica não são especializados, enquanto que no segundo, os juristas se

especializam em uma ou outra área do direito.

A fonte primária na common law é a jurisprudência, a lei (denominada de statute

em inglês), apenas desempenha uma função secundária. Não se pode deixar de esclarecer

que neste sistema há códigos, mas tais leis não pretendem ser completas. O juiz não é

obrigado a encontrar uma base em um código para decidir um dado caso. Já na família

romano-germânica, o que prevalece é a lei escrita, por isto que, ao julgar, é

imprescindível que o juiz se baseie na lei; para somente depois, em caso de lacuna ou para

complementar a sentença, se utilize de um precedente da jurisprudência.

Postas estas primeiras e mais importantes distinções, o estudo seguirá versando

sobre estas duas famílias, porém especificamente sob o aspecto jurisdicional de cada uma

delas.

31

2.2. Breves considerações sobre a função jurisdicional nos sistemas anglo-saxão e

romano-germânico

As principais diferenças de estrutura do direito inglês em relação ao nosso devem-

se, pelo menos em parte, à indiferença dos juristas para com o problema da ordenação

lógica e da coerência interna, já que suas preocupações estavam em vencer os

formalismos do processo8. Ademais, os juristas ingleses, principalmente os juízes, foram

tradicionalmente formados pela prática da vida forense, pois nela descobriam os mistérios

do processo9 .

No presente capítulo tentaremos expor sobre o papel que o juiz desempenha em

relação ao direito. Portanto, será realizada uma análise de qual a função que os juízes da

common law e da civil law desempenham em cada uma destas culturas jurídicas.

Como primeira observação podemos dizer que enquanto os nossos juízes fazem

mera subsunção, os juízes da common law agregam autoridade às disposições legislativas,

transformando-as em direito. Falamos em autoridade no sentido da auctoritas romana,

que significa, primordialmente, um aumento. Este aumento significava a confirmação do

ato de vontade do povo por um senatusconsultum, o conselho dos anciãos. Na tradição

jurídica inglesa e norte-americana, esta autoridade é tipicamente provida pelo juiz, o

“conhecedor da lei” em grau excepcional. Ou seja, à autoridade judiciária é que compete

conferir sentido à lei, transformando-a em direito.

E tal como na Inglaterra, nos Estados Unidos as leis são plenamente integradas no

direito apenas quando o seu alcance foi determinado por decisões judiciárias.

8 DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 306. 9 Idem, p. 307.

32

Já em nosso sistema, pode-se dizer que as coisas se passam de outra forma,

conforme descreve Merryman, um jurista da common law comentando a respeito da civil

law:

“A obra do juiz é considerada relativamente simples: a ele é fornecido um

conjunto de princípios construídos em uma estrutura sistemática elaborada com

precisão, que ele aplica a um corpo de normas específicas, cujo significado é

facilmente compreensível, e cuja aplicação é relativamente fácil. Ele deve apenas

raciocinar cientificamente. As normas aplicáveis devem apenas ser identificadas e

aplicadas, um trabalho que, apesar de importante, não é essencialmente

criativo10.”

Mas ao nosso ver, o sistema da civil law foi concebido exatamente para operar

desse modo, com as devidas adaptações conforme o caso, obviamente. E,

inevitavelmente, o nosso sistema continua a operar a máquina judiciária desta maneira.

Na mentalidade dos juízes da civil law, prevalece a aplicação mecânica da lei, evitando-

se, na interpretação, questões valorativas ou outro tipo de considerações extranormativas,

que são matérias que devem ser tratadas pelo legislador.

É válido destacar que os juízes do sistema romano-germânico foram sempre

formados num ambiente cultural onde domina a ciência jurídica. E a ciência jurídica,

formada como disciplina autônoma, que não se interessa tanto pela solução de problemas

práticos quanto pela pesquisa da verdade científica, dos princípios últimos e

fundamentais, é mais ciência pura do que técnica11 .

Percebe-se na common law que o direito é aquele que os juízes dizem que é,

enquanto que na civil law, o direito acaba sendo o que os legisladores dizem que é. O juiz

10 MERRYMAN, John Henry. Lo “stile italiano”: la dottrina, in rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano, 1966. p. 1181. 11 MERRYMAN, John Henry. Lo “stile italiano”: la interpretazione, in rivista trimestrale di diritto e procedura civile. Milano, 1968. p. 1179.

33

da civil law não possui uma imagem heróica, como tende a ser na Inglaterra e nos Estados

Unidos. Enquanto os grandes nomes da common law são aqueles dos juízes, os grandes

nomes da civil law são aqueles dos estudiosos.

As técnicas de interpretação judicial da lei variam conforme a ideologia que guia a

atividade do juiz e o modo como este concebe o seu papel e a sua missão, a concepção

dele do direito e suas relações com o poder legislativo. No entanto, é certo que o juiz deve

sempre aplicar o parâmetro normativo preexistente e para ele indisponível.

A cultura advinda de cada modelo repercute na postura dos juízes. Não nos cabe

aqui dizer em qual sistema a função jurisdicional melhor se desempenha. O mais

importante é que os juízes conheçam o direito, na teoria e na prática e que decidam os

seus casos com segurança, imparcialidade e justiça.

34

3. Análise comparativa 3.1. O Direito Italiano

Julgamos pertinente iniciar pela análise do direito italiano, pois este influenciou

enormemente a estrutura e cultura jurídica do Brasil.

Ao contrário do que se possa imaginar, o direito italiano vive problemas muito

semelhantes ao brasileiro, principalmente no que pertine à demasiada demora para

conclusão das demandas judiciais, destoando consideravelmente dos demais países da

Comunidade Européia, embora, obviamente, existam aspectos positivos.

Características e problemas

Dentre os pontos favoráveis, podemos destacar a forma de citação e o

processamento inicial da demanda, bem mais céleres, além do fato de que o Código de

Processo Civil italiano, apesar de estar em vigor desde 194212, ser bastante moderno,

tendo sido muito bem alterado recentemente.

Todavia, questões burocráticas, como a restrição de horário do expediente forense,

a realização de atos e audiências sem grande produtividade, às vezes até de forma inútil,

além do tempo de julgamento das causas em segunda instância, prolongam

indefinidamente a duração das demandas, que podem durar, aproximadamente, três anos

em primeira instância e dois anos em grau de recurso.

As causas mais prováveis para tal demora dizem respeito, principalmente, ao

número insuficiente de juízes e auxiliares em geral, assim como a falta de um aparato

tecnológico apropriado.

12 Régio decreto 28 ottobre 1940, nº 1.443 – Approvazione del codice di procedura civile, in vigore dal 21 aprile 1942.

35

Nem todas as reformas recentes, porém, foram acertadas, valendo destacar a

modificação do julgamento em primeira instância, que deixou de ser sempre de forma

colegiada, e a criação do juiz de paz, em que, num primeiro momento, ao invés de agilizar

o procedimento, causaram em muitos casos enorme atraso.

Outra questão importante relacionada à duração das demandas judiciais diz

respeito à adesão da Itália à Comunidade Européia, uma vez que trouxe novos deveres ao

país, entre eles o da prestação da tutela jurisdicional em tempo razoável, direito humano

previsto na Convenção Européia para a Proteção dos Direitos do Homem e das

Liberdades Fundamentais.

Dita adesão, conjugada à lentidão da Justiça italiana, levaram os cidadãos a

procurar auxílio jurisdicional, com base na Convenção Européia, à Corte Européia, por

meio de recursos destinados à salvaguarda de seus direitos, principalmente no que tange à

finalização dos processos judiciais em tempo justo ou ao pagamento de indenização pelos

prejuízos materiais e morais advindos da exagerada duração do processo.

Além de gerar enorme transtorno político à Itália perante a Comunidade Européia,

tal situação acabou abalando sua própria soberania, uma vez que, como se sabe, somente

é independente o país que possui um Poder Judiciário autônomo e capaz de solucionar as

pretensões resistidas dos seus jurisdicionados, isso sem se falar que a morosidade

decorrente do excesso de demandas foi transferida para a Corte Européia, que logo

demonstrou toda a sua insatisfação.

Soluções adotadas

Como solução para tamanho desgaste, a Itália optou por criar, em seu sistema

jurídico interno, por meio da denominada “Legge Pinto” (Lei Pinto), o instituto da

indenização decorrente da excessiva demora, pleiteável perante seus próprios Tribunais,

36

situação que, agora, obriga seus cidadãos a, antes de procurar a Corte Européia, esgotar

todas as instâncias nacionais.

Tal medida, embora paliativa e ineficaz por si só, poderia ser debatida pelo

legislativo brasileiro, a fim de analisar sua viabilidade em nosso país em conjunto com

outras providências. Repita-se, embora não suficiente em si própria, a elaboração de uma

legislação que adotasse esse mecanismo de indenização dos prejuízos materiais e morais

advindos da duração exagerada do processo serviria como forma de dar mais efetividade

ao processo, ou ao menos como alento e compensação aos jurisdicionados.

Paralelo à Justiça Brasileira

Todavia, antes que tal solução seja aplicada no Brasil, faz-se necessárias algumas

importantes reformas tanto na estrutura do Poder Judiciário, que necessita melhor

aparelhamento, como a contratação e treinamento humano, quanto na legislação

processual, por meio, v.g., do recebimento das apelações apenas no efeito devolutivo, para

que as indenizações ocorram apenas nos casos patológicos de demora na prestação

jurisdicional, e não como uma regra, situação vivida hoje.

Caso contrário, a indenização em análise, ao invés de representar uma melhora do

prazo de conclusão do processo, apenas significará mais um encargo ao já sofrido

orçamento público, que não consegue sequer dar vida digna aos seus cidadãos.

Antes de se concluir o presente capítulo, vale, sem grande precisão científica,

definir o que seja prazo razoável para duração de uma demanda. O mais razoável é fazê-lo

de acordo com cada caso concreto, valendo-se os critérios adotados pela Corte Européia

dos Direitos do Homem, que julga a infração ao direito do término do processo em prazo

razoável e sem dilações indevidas e o próprio valor da indenização com base nos

37

seguintes critérios: a) complexidade do caso; b) comportamento das partes; c) atuação

dos juízes, dos auxiliares e da jurisdição. 13

Como se vê, trata-se de um problema mundial, em que não há solução mágica,

calcada apenas na mudança da lei ou da estrutura, é preciso mais, faz-se necessário um

planejamento conjunto e ordenado.

Há de se considerar que o processo, para estar maduro ao julgamento, necessita,

em regra, de um bom lapso temporal, o que, por si só, pode acarretar danos às partes, o

que motivou o legislador a prever, entre outras medidas, o seqüestro, a execução

provisória, a correção monetária e, atualmente, a antecipação dos efeitos da tutela a

minimizar os prejuízos advindos da espera. Mas não é dessa morosidade que se fala, o

que preocupa é a demora anormal, injustificada, que pode, inclusive, fazer perecer o

direito postulado, muitas vezes atrelado à vida e ao destino das pessoas diretamente

vinculadas à solução de um determinado processo.

13 Critérios extraídos do artigo O direito à razoável duração do processo e a experiência italiana de Paulo Hoffman publicado no site www.jusnavegandi.com.br

38

3.2. O Direito dos Estados Unidos da América

O direito dos Estados Unidos da América adveio do direito inglês. Portanto, este

país se manteve no sistema da common law, à exceção do território de New Orleans, que

se tornou o Estado da Louisiana em 1812.

Podemos dizer que a opção por este modelo se deu de forma natural, já que os

Estados Unidos é de língua inglesa e que seu povoamento foi originariamente inglês.

Embora a common law sempre tenha triunfado nos Estados Unidos, muitas regras

desta família nunca chegaram a ser introduzidas neste país, porque não se adaptavam às

condições prevalentes na América.

O direito americano evoluiu sob a influência de fatores próprios e acabou se

tornando bem diferente do direito inglês. Dentre estas diferenças, vale a pena mencionar a

distinção que se fez nos Estados Unidos, mas não na Inglaterra, entre direito federal e

direito dos Estados. A organização judiciária nos EUA, portanto, é claramente regulada

em dois níveis: o federal e o estadual.

Há também de se esclarecer que os Estados Unidos possuem uma norma maior,

fundamental, que é a sua constituição federal, oriunda das regras elaboradas em 1788, nas

denominadas Bill of Rights. Constituição esta bem diferente da brasileira. Ao contrário da

nossa, ela é mais enxuta, possui apenas três sections (equivalentes aos nossos capítulos) e

suas clauses (equivalentes aos nossos artigos). Desde a época na qual foi elaborada sofreu

um total de vinte e seis emendas.

O sistema jurídico americano é considerado misto, pois lá existe, de um lado, o

direito criado pelo juiz (judge - made law), e de outro, o direito criado pelo legislador,

39

postado fora do Poder Judiciário (statute law). Este último possui uma posição de criação

do direito muito mais vinculante do que na Inglaterra, devido à presença marcante da

constituição, que tem vigência acima de quaisquer outras normas escritas federais ou

estaduais.

Dessa forma, uma lei sempre pode revogar uma regra de common law, princípio

esse que se aplica ao conflito entre lei estadual e a common law estadual.

Não é apenas a existência de um instrumento escrito que torna o papel

constitucional do juiz nos Estados Unidos mais importante do que na Inglaterra. É antes o

fato de que o judiciário americano é considerado como um dos três ramos coordenados do

governo federal, que não depende nem do Legislativo nem do Executivo, que o capacita a

afirmar o seu poder de controle que tão nitidamente diferencia o sistema constitucional

americano daqueles predominantes na Inglaterra e no continente europeu.

Características do direito americano

Em razão de dar preferência a um direito prático, é possível identificarmos

algumas características próprias do sistema legal americano. Como por exemplo, a

repulsa por aspectos inquisitoriais: há a idéia fundamental de que o relacionamento entre

as partes e o juiz é uma relação em que este exerce uma função neutra, como se fosse um

árbitro.

A existência de júri é sempre obrigatória, tanto em matéria criminal como cível,

por disposição expressa da Constituição Federal. A competência do jury é a de julgar

questões de fato, estando as de direito reservadas ao juiz (judge).

40

Outra importante peculiaridade a ser destacada é a precedência da oralidade e da

informalidade nos procedimentos cíveis e criminais e, em conseqüência, extrema

sofisticação nas regras sobre administração das provas (the law of evidence).

O irrestrito respeito ao princípio do Due Process of Law (devido processo legal)

também é característica marcante do direito americano. Especificamente no que tange ao

processo civil, o Due Process of Law é a própria garantia de democracia constitucional

dos Estados Unidos, a base de todo sistema.

Fontes do direito americano

São duas as mais importantes fontes utilizadas no sistema jurídico dos EUA: a

jurisprudência (precedentes judiciários de tribunais superiores – case law) e a lei

(legislação – statute law). Mas não se pode deixar de mencionar a doutrina, que auxilia na

revelação da regra jurídica. Esta modalidade de fonte é denominada de secondary

authority, que abrange os tratados doutrinários (treatises), os manuais (primer on), as

revistas jurídicas (legal periodicals) e demais estudos da área jurídica.

Panorama atual

Nos Estados Unidos, dá-se muita relevância a serem as soluções socialmente

aceitáveis, para que, assim, reste legitimado o poder dos juízes de criar o direito. Dessa

forma, quanto mais elementos extranormativos ou valores públicos, tais como elementos

econômicos, institucionais, sociais e morais, o juiz utilizar para interpretar um preceito

legal, maior será a criação judicial sobre a obra do legislador.

Segundo o pragmatismo norte-americano, incumbe ao juiz dar uma interpretação

evolutiva ao material normativo, para que as normas gerais (advindas da Constituição, de

41

uma lei ou de um precedente) respondam às necessidades e demandas concretas da

sociedade.

À guisa de conclusão, vale lembrar que os Estados Unidos priorizam meios

extrajudiciais de solução de conflitos.

42

3.3. O Direito Inglês

Panorama histórico

A Inglaterra criou o sistema da common law que se formou com as atividades das

cortes reais de justiça, após a conquista normanda.

A conquista normanda permitiu a formação de um governo central forte na

Inglaterra, cujos tribunais tinham jurisdição sobre todo país. As decisões daqueles

tribunais foram, aos poucos, estabelecendo um direito comum - common law, em inglês -

a todo o reino, que se sobrepôs aos costumes jurídicos locais, particulares a cada condado

ou vilarejo, em vigor até então.

O direito inglês, common law, foi pautado, portanto, a partir de decisões judiciais.

Um juiz, diante de um caso concreto, não buscava a regra geral contida numa lei escrita

para solucioná-lo; antes, examinava as decisões judiciais anteriores à procura de casos

semelhantes, cuja solução aplicava ao caso concreto. Portanto, de precedente em

precedente buscava-se, para cada caso, uma solução razoável para o litígio.

Conforme narra René David14, a autoridade reconhecida aos precedentes é, por via

de conseqüência, considerável, pois pode revelar-se como sendo a própria condição de

existência de um direito inglês.

Os ingleses têm uma Constituição, mas não escrita, pois eles acreditam que tal

matéria não pode ser mumificada num texto escrito.

14 DAVID, René. O direito inglês. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 13.

43

Panorama atual do Direto Processual Civil na Inglaterra

Quanto ao Direito Processual Civil da Inglaterra, pode-se dizer que este se revela

um bom modelo, dada a rapidez com a qual o conflito é solucionado.

A tramitação processual se inicia com o preenchimento da petição inicial, que é um

simples formulário impresso e, depois de pagas as custas, dá-se entrada no fórum. O réu é

citado pessoalmente para satisfazer a pretensão do autor ou dar as razões da sua recusa. Se

o réu não se manifestar no prazo, perfaz-se um título executivo judicial contra ele, sem

necessidade de sentença, sendo que a grande maioria dos processos termina dessa forma,

com exceção dos casos de anulação de casamento e divórcio.

Vale ressaltar que tudo isso acontece sem a intervenção de um juiz: até aí só existe

a figura do advogado do autor e do escrivão, este último que certifica o ocorrido, daí

surgindo o título executivo.

O réu somente comparece para dar as razões da sua recusa se tiver fortes

argumentos a seu favor, pois as despesas processuais são muito caras e a maioria prefere

não correr o risco da condenação dos ônus da sucumbência. Se o réu comparece para dar

as razões da sua recusa, o processo passa ao comando de um juiz encarregado do seu

andamento, preparação da audiência e estipulação das custas. A audiência é toda oral e

não se faz anotação alguma do que acontece nela.

A fixação dos pontos controvertidos é levada extremamente a sério e a audiência se

restringe a esses pontos.

O juiz delibera se o processo será julgado por um único magistrado ou pelo júri

(este último que só acontece em ações de indenização por difamação, seqüestro arbitrário

44

ou quando o réu é acusado de fraude). O julgador que assume a direção do feito a partir

daí nada sabe sobre o processo antes de iniciados os debates na audiência.

Os advogados que irão atuar na audiência são outros, diferentes daqueles que

acompanharam os respectivos clientes (autor e réu) até o momento da audiência, sendo

mais qualificados profissionalmente que os primeiros. Na audiência, o advogado do autor

diz com poucas palavras os fatos que tentará provar e então são ouvidos o autor e suas

testemunhas. Primeiro o advogado do autor faz as perguntas e depois o advogado do réu.

Quanto ao réu, seu advogado, suas provas e testemunhas se fazem da mesma forma

acima, com as devidas modificações. Após, os respectivos advogados fazem suas

alegações finais orais de forma resumida e sem prolixidade.

Tanto no caso de audiência de processo com um juiz ou com júri, o magistrado

apenas dirige a audiência, sem grande intervenção, e, no caso de júri, ele resume para os

jurados o que os advogados disseram nas alegações finais orais e formula as perguntas

que os jurados irão responder.

Depois de tais medidas, tanto em um caso quanto no outro (de audiência só com

um juiz ou com júri), o magistrado profere sua sentença, onde consta obrigatoriamente a

parte dispositiva, mas não precisa fundamentá-la, pois a fundamentação não faz parte

tecnicamente da sentença. Também não há necessidade de relatório.

No Brasil, a ação monitória é mais ou menos parecida com esse rito acima

apontado, mas ainda é muito limitada. As reformas processuais em estudo caminham

nesse mesmo sentido, mas ainda de forma tímida.

A Justiça Inglesa não é tida como lenta. As questões cíveis são rapidamente

solucionadas. Porém, é necessário fazer a observação de que lá na Inglaterra a população

do país e o volume de processos ajuizados são bem inferiores aos do Brasil. Sem falar da

45

cultura, que é bem diferente. Portanto, não dá para se afirmar que seria um bom parâmetro

para fins de implementação deste modelo em países que seguem a civil law, como o

Brasil. Apenas podemos extrair uma diferente visão e, aliás, é esta uma das funções do

direito comparado.

46

3.4. O Direito Francês Panorama Histórico

O principal acontecimento histórico que marcou o direito francês foi a introdução

dos estudos de direito romano a partir do século XIII até o fim do século XVIII. O ensino

do direito foi realizado nas universidades francesas com base no direito romano. Em razão

desta influência, já priorizava-se o direito escrito, codificado em vez do direito prático,

baseado em precedentes, advindo da common law.

O surgimento dos códigos foi um ponto de partida do direito francês. Com base

neles, os juristas conseguiam desenvolver o seu raciocínio para descobrirem a solução a

aplicar.

Notas acerca da aplicabilidade do direito processual civil na França

Na França, o Processo Civil é considerado pela maioria dos aplicadores do direito

como inferior ao direito material, a maioria não o trata como Direito Processual Civil. É

um ramo do Direito Privado. As regras processuais são objeto de decretos e não de leis,

portanto, de competência do Poder Executivo.

Pode-se dizer inclusive que esta opinião sobre “a inferioridade do direito

instrumental em relação ao direito material” revela uma verdadeira aversão ao processo

civil, tanto que até gera problemas quanto à nomenclatura do ramo. Não é muito usual a

expressão “Procès Civil” (processo civil), mas sim “Procédure Civile” (procedimento

civil), pois os juristas franceses têm dificuldade de visualizá-lo como uma ciência.

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Portanto nota-se que nem mesmo os juristas franceses chegaram a um consenso

sobre a nomenclatura da disciplina. O NCPC, Nouveau Code de Procédure Civile

(Código de Processo Civil francês) que resultou de uma série de Decretos surpreende pela

pouca qualidade técnica.

Fontes do direito francês

Loïc Cadiet15 menciona como fontes do Processo Civil francês:

a) leis, para o caso de “questões de instituição judiciária e, mais precisamente, a

criação de novas ordens jurisdicionais, o estatuto dos magistrados e as vias de execução”;

b) decretos, para o caso de “questões de competência judiciária e de processo civil

estrito senso”;

c) usos e costumes forenses;

d) jurisprudência;

e) doutrina, que influencia na construção e compreensão dos sistemas jurídicos,

nas reformas legislativas e, em diferentes graus, no modo de aplicação do direito.

f) convenções de Bruxelas de 27 de setembro de 1968 e a de Lugano de 16 de

setembro de 1988, para os litígios de Direito Internacional;

g) Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades

Fundamentais, sobretudo seu artigo 6°, n°1. Este artigo da referida convenção (publicada

na França pelo Decreto nº 74-360 de 3 de maio de 1974) trata de vários temas sob a

rubrica “o direito a um processo eqüitativo” que, resumidamente, traz idéias de prazo

15 CADIET, Loïc. Droit Judiciaire Privé. Paris: Litec, 1998. p. 26-38.

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razoável de duração do processo; de publicidade dos atos processuais, inclusive o

julgamento; de tribunal independente e imparcial; e, na área penal: presunção de

inocência; informação detalhada sobre a imputação; concessão de tempo necessário para

preparação da defesa; ser assistido gratuitamente por advogado, se for pobre; poder

arrolar testemunhas; ser assistido por intérprete, caso não fale o francês. Quanto ao prazo

razoável não é fixado com rigor, pois se leva em conta a complexidade de cada caso e a

conduta das partes, o que faz acelerar ou retardar o andamento do processo.

Organização Judiciária

A França herdou de seu passado dois tipos de jurisdições. Quando estão em causa

o Estado, uma coletividade territorial ou um serviço público, são competentes as

jurisdições administrativas, sob a tutela do Conseil d´État (Conselho de Estado). Os

demais litígios são submetidos às jurisdições judiciárias.

Jurisdições de base:

- Compostos por magistrados profissionais, os tribunais de grande instância

funcionam com um único juiz ou em colegiado de três membros e os tribunais de

instância de juiz único são competentes em todas as matérias que não sejam tratadas por

uma das jurisdições especializadas abaixo mencionadas. A repartição de tarefas entre

essas jurisdições depende basicamente da gravidade do litígio. Certos juízes são

especializados (questões de família, expropriação, execução das decisões).

- Os tribunais de comércio competentes em litígios comerciais e os conselhos

profissionais competentes em direito do trabalho e integrados paritariamente por

empregadores e empregados são formados por magistrados não profissionais eleitos pelos

grupos sociais profissionais aos quais interessam os casos neles julgados. Em caso de

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impasse, um juiz profissional passa a presidir a jurisdição. Um projeto de lei em

tramitação, geralmente exige que certas audiências do tribunal de comércio sejam

presididas por um magistrado profissional, por exemplo, em matéria de processos

coletivos.

- No caso do tribunal de grande instância, um juiz profissional pode ser assistido

por dois assessores escolhidos por sua competência: tribunal para crianças, com pessoas

que demonstraram interesse na matéria; tribunal de arrendamentos rurais com um

proprietário e um arrendatário; tribunal de questões sociais para casos envolvendo a

Previdência Social.

- Existe apenas uma jurisdição com júri: o tribunal penal encarregado de julgar as

infrações mais graves, os crimes. Três magistrados profissionais julgam com nove jurados

(doze quando do recurso), tanto no que diz respeito à culpabilidade quanto à pena.

Jurisdições de apelação:

São os tribunais de recursos. Formados exclusivamente por magistrados

profissionais, são regionais e acolhem recursos contra todas as decisões da base, à

exceção dos litígios de pequena importância, que podem ser remetidos diretamente à

Corte de Cassação (supremo tribunal). Como os tribunais de 1ª instância, eles deliberam

segundo os fatos e o direito, mas apenas no limite de suas prerrogativas, podendo as

partes limitá-las a determinados aspectos do litígio.

Jurisdições excepcionais:

Salvo as disposições relativas ao Tribunal Penal Internacional, o presidente da

República só pode ser julgado por alta traição pela Alta Corte de Justiça, formada por

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parlamentares e por iniciativa das duas Assembléias. Tratando-se de infrações cometidas

no exercício de suas funções, os membros do governo são julgados pela Corte de Justiça

da República, formada por três magistrados da Corte de Cassação e por parlamentares. As

investigações, efetuadas pelo procurador geral junto à Corte de Cassação, devem ser

previamente autorizadas por uma comissão composta de magistrados do Conselho de

Estado, da Corte de Cassação e do Tribunal de Contas. A instrução do processo é feita por

três conselheiros da Corte de Cassação.

O processo civil

A ação se inicia quando há uma pretensão resistida por quaisquer das partes.

Tornam-se igualmente partes do processo aqueles que interferem voluntariamente por

também terem uma pretensão pessoal a fazer valer ou em apoio a uma parte principal,

assim como os que são convocados a uma intervenção forçada por uma outra parte. São

convocados a título de garantia aqueles que se relacionam, legal ou contratualmente, com

uma das partes.

Existem variantes de acordo com a jurisdição perante a qual o caso é apreciado,

mas todas as instâncias obedecem a princípios básicos: só as partes introduzem a instância

e podem dar-lhe fim; são elas que estabelecem suas pretensões, que não podem ser

ultrapassadas pelo juiz; cabe a elas o ônus da prova do que alegam, sendo obrigação sua

comunicar às outras partes os elementos de que dispõem (princípio do contraditório).

O caráter acusatório do processo civil inicial foi modificado com a introdução em

1965 de um novo tipo de juiz (o juiz da “mise en état”), investido do poder de controlar o

bom desenrolar da fase preparatória do processo. Ele pode fixar prazos para as partes,

ordenar medidas necessárias ex-oficium, ordenar medidas de instrução (investigação,

perícia, transporte ao local, comparecimento pessoal das partes), exigir a apresentação de

51

documentos, inclusive por terceiros, impor o princípio do contraditório e conciliar as

partes.

O ministério público intervém a título principal nos casos previstos em lei (em

matéria de nacionalidade, de estado civil, de ausência, de proteção de menores, de

anulação de casamento, de processos coletivos, dentre outros) ou na defesa da ordem

pública. Pode às vezes ser parte adjunta (filiação, tutela de maiores e menores de idade

etc.), ou também dar seu parecer em todos os procedimentos ex-oficium ou a pedido da

jurisdição. Os debates das audiências de julgamento são públicos, salvo exceções.

Panorama atual do Direito Processual Civil na França

Além do processo civil existem as denominadas “formas alternativas de solução

dos litígios”, que são: a arbitragem, a transação, a conciliação e a mediação. A França dá

preferência à solução de conflitos por meio destes mecanismos alternativos.

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3.5. Direito Muçulmano

Panorama Histórico

Para adentrarmos o universo do direito muçulmano, são necessárias algumas

considerações a respeito da religião islâmica, fundada por Maomé, no século VII.

A palavra “Islã” tem origem árabe e quer dizer submissão, entrega e obediência

voluntária a Deus. Muçulmano é aquele que segue o islamismo.

O Islã ganhou adeptos rapidamente graças aos sucessores de Maomé, os califas,

que, com seus exércitos, conquistaram nos séculos VIII e IX a Síria, o Egito, o Magreb, a

Espanha, a Pérsia (Irã) e vários outros países. Atualmente, esta religião conta com mais de

um bilhão de seguidores, distribuídos entre Afeganistão, Arábia Saudita e países do Golfo

Pérsico, Bangladesh, Egito, Etiópia, França, Índia, Indonésia, Malásia, Nigéria, Paquistão,

Síria, Somália, Sudão, Turquia e várias ex-repúblicas da antiga União Soviética16.

Conforme salienta René David17, o direito muçulmano não é um ramo autônomo

da ciência, mas sim uma das faces da religião islâmica, que compreende não só a teologia,

que fixa os dogmas e determina aquilo em que o muçulmano deve acreditar, mas também

a “charia” que prescreve aos adeptos do islamismo aquilo que devem ou não fazer. A

charia é um código de comportamento religioso-político aplicado de maneira semelhante

ao nosso direito e que rege todos os adeptos da religião islâmica, onde quer que se

encontrem.

16 MACIEL, José Fábio Rodrigues. Carta Forense – ano III – nº 27 – agosto 2005, p. 34. 17 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 511.

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Fontes do Direito Muçulmano

São quatro as fontes do direito muçulmano: o Corão (livro sagrado do Islã), a

Suna, o Idjmâ e a analogia, nesta ordem.

O Corão é, incontestavelmente, a primeira fonte do direito muçulmano. Trata-se de

um livro composto por fundamentos e preceitos da comunidade muçulmana.

A maioria das regras que ali estão versam sobre moralidade, como por exemplo, a

proibição do jogo, do vinho e do empréstimo a juros. Mas vale lembrar que a sanção para

quem desrespeita o Corão não tem a intenção de punir o indivíduo com as penas que

prescreve, mas sim, o intuito é de introjetar naquela pessoa que o descumpriu um estado

de pecado. Portanto, se alguém desrespeita os preceitos estipulados pelo Corão, está

cometendo um pecado, vai contra a vontade de Deus. A punição se dá neste sentido.

A segunda fonte é a Suna, constituída pelo conjunto de atos, comportamentos e

palavras de Maomé, transmitidos por “discípulos” para os seguidores da religião, já que o

Profeta não deixou nada escrito. Estes discípulos, desde a morte do Profeta, se dedicaram

a um minucioso trabalho de pesquisa e de verificações dogmáticas para consolidar as

bases da fé muçulmana e repassá-las aos fiéis. A Suna nada mais é do que a transmissão

da tradição.

O Idjmâ é a terceira fonte e tem por finalidade suprir a charia com temas não

abordados pelo Corão e pela Suna. O Idjmâ é baseado em duas declarações de Maomé: “o

que os muçulmanos considerarem justo, é justo para Deus” e “a minha comunidade nunca

chegará a acordo sobre um erro”. Cada vez mais o Idjmâ se consolida como base

dogmática do direito muçulmano.

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Por fim, temos a analogia, que serve para suprir as eventuais lacunas, permitindo

encontrar soluções para os casos particulares.

Organização Judiciária

A organização judiciária nos países muçulmanos é marcada por uma dualidade.

Segundo narra René David18, ao lado da jurisdição do qhâdi, que surgiu com os

omíadas (governantes nos séculos X, XI e primeira metade do século XII), e que é a única

legítima segundo o direito muçulmano, existiram sempre um ou vários tipos de tribunais,

que aplicavam os costumes profanos do país ou os regulamentos emanados das

autoridades, e cuja jurisprudência se afastava mais ou menos das estritas regras do direito

muçulmano: jurisdições da polícia, jurisdição do inspetor dos mercados, jurisdição de

eqüidade do califa ou dos seus delegados.

Estas jurisdições apenas tiveram, durante muito tempo, uma competência

excepcional. A situação se modificou há um século quando novas jurisdições estatais

foram surgindo. A competência destas jurisdições, originariamente limitada à aplicação

de leis modernas, acabou por se estender, por vezes, ao conjunto do direito, e por fazer

desaparecer a competência dos quâdis.

Três fenômenos ocorridos entre os séculos XIX e XX fizeram com o que o direito

muçulmano passasse por uma reformulação e conseqüente adaptação ao mundo moderno.

O primeiro deles foi a ocidentalização do direito em vários assuntos. O segundo foi a

codificação das matérias que escaparam a esta ocidentalização. E o terceiro foi a

18 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 535.

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eliminação das jurisdições especiais que até então tinham sido encarregadas de aplicar o

direito muçulmano.

Panorama atual do direito muçulmano

Atualmente o direito muçulmano apresenta muitas diferenças da época em que

surgiu. Isto porque se aplica a muitos países que possuem tradições variadas e, com o

passar do tempo, houve uma forçada adaptação destes às suas próprias culturas.

Obviamente que muitos fundamentos continuam vivos, porém enfraquecidos.

Dentre os países que seguiam os preceitos do direito muçulmano, alguns foram se

afastando desta cultura. Há países que passaram a seguir o modelo da common law, como

por exemplo, o Bangladesh, a Malásia, a Nigéria do Norte. Há também aqueles que

preferiram adotar o sistema romano-germânico, mais precisamente, se basearam no

direito francês. É o caso dos Estados africanos de língua francesa, os Estados de língua

árabe, o Irã.

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3.6. Direito Hindu e Direito Indiano

Considerações históricas

Por um longo período, a Índia foi colônia da Inglaterra (desde o século XVII, mais

precisamente, 1690 com a fundação de Calcutá pelos Ingleses, até o fim da 2ª guerra

mundial, em 1945, quando se iniciou com mais força o processo de descolonização). O

país só ganhou a sua independência política na segunda metade do século XX, graças aos

esforços de uma das personalidades mais notáveis de sua história: Mohandas K. Ghandi,

mais conhecido como Mahatma Ghandi.

Distinções entre direito hindu e direito indiano

Iniciamos o presente tópico advertindo que “não se pode confundir o direito hindu

com o direito indiano, que é o direito territorial da Índia, enquanto estado moderno; o

direito indiano é constituído, sobretudo por leis da República Indiana, teoricamente

aplicado a todos os habitantes do território; mas de fato, em muitos domínios, os direitos

das comunidades religiosas subsistem, quer se trate do direito hindu quer se trate do

direito dos muçulmanos, quer se trate dos cristãos, etc.”19

Portanto, no presente tópico, estudaremos separadamente o direito da comunidade

hindu (hinduísmo) e o direito nacional da Índia (direito indiano).

a) O direito da comunidade hindu (hinduísmo)

A primeira e mais importante característica do direito hindu é que ele se constitui

num direito de cunho religioso, muito embora não seja um direito advindo de uma “fé

19 GILISSEN, John: Introdução Histórica ao Direito. 2. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 102.

57

revelada”, como é o direito muçulmano. Este direito aplica-se somente à parte hindu da

população. Ou seja, aplica-se à comunidade que está estreitamente vinculada à religião.

O direito hindu é extremamente conservador, em razão disto não se preocupa em

realizar profundas mudanças em sua sociedade.

Por ser um sistema legal de origem religiosa, o direito hindu tem o intuito de ir

além e acima do Estado laico, ou seja, é um direito cujas normas são, exclusivamente,

voltadas para a sua comunidade étnico-religiosa.

Quanto ao direito utilizado no hinduísmo, este é difícil de ser visualizado pelos

ocidentais. O que se aproxima à nossa noção de direito é o dharma. Trata-se de uma

ciência que traz regras de comportamento a serem seguidas e ensinam aos homens

atitudes que os tornem pessoas justas. Enfim, o dharma comporta regras sobre religião,

tradição, moralidade.

Segundo René David20, o dharma fundamenta-se na crença de que existe uma

ordem no universo, inerente à natureza das coisas, necessária à preservação do mundo, e

da qual os próprios deuses são apenas protetores. O dharma abrange no seu conjunto a

conduta dos homens, porém apenas na idéia de deveres e não na de direitos.

Fontes do Direito Hindu

São três as fontes do dharma, a saber:

1) o veda que, em suma, é o somatório de todo o saber ou verdades de cunho moral

e religioso reduzidos a determinados preceitos escritos contidos nos livros sagrados;

2) a tradição;

20 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 548.

58

3) o costume.

O professor John Gilissen indica que “há um número infinito de costumes,

diferentes não somente de uma região para outra, mas, sobretudo de uma casta para outra:

cada casta tem, em cada região, o seu costume próprio, a sua maneira de viver das pessoas

de bem (sadacara)”.21

Legislação e jurisprudência não são consideradas pelo dharma e pela doutrina

hindu como fontes do direito.

Panorama atual

Ao longo do tempo, o direito hindu foi sofrendo profundas reformas. Continua a

ser um direito unicamente aplicável à parte hindu da população da Índia; entretanto

inúmeros costumes que comprometiam a unidade deste direito foram abolidos. Este

direito tende a ser substituído pelo direito nacional da Índia, o qual passaremos a analisar

a seguir.

b) O Direito Indiano

O direito hindu, na Índia atual, tende a ser substituído por um direito laico de

aplicação nacional, direito esse inspirado em grande parte na common law.

Evidentemente, a criação de um Estado moderno e eficiente, bem como a instituição de

uma verdadeira democracia num país de mais de um bilhão de habitantes, com a

correspondente superação das gigantescas desigualdades sociais, econômicas e etno-

culturais que ainda persistem por todo aquele país, demanda a criação de um sistema

jurídico laico de abrangência nacional.

21 GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 2. ed. Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. p. 104.

59

Neste sentido, o atual direito indiano é, antes de tudo, um sistema jurídico de

origem estatal que extrapola as diversas etnias e comunidades religiosas que formam a

Índia contemporânea para ser um direito supra-étnico e desvinculado desta ou daquela fé

religiosa.

Os códigos e as leis com que a Índia foi dotada na época do domínio britânico são

fundados sobre os conceitos do direito inglês. Porém, os codificadores do direito indiano

não hesitaram em introduzir as reformas e adaptações que julgavam necessárias no direito

inglês. Um exemplo disto foi a abolição do júri em matéria civil, esta prática inglesa não

se desenvolveu na Índia.

Embora tenha usado a codificação para reformular o seu direito, o direito indiano

está plenamente ligado à common law não somente porque se utiliza dos conceitos e

técnicas trazidos por este sistema, mas também porque dá total preferência à regra dos

precedentes, ou seja, utiliza a jurisprudência como principal fonte para o julgamento de

casos. Aliás, as compilações de decisões judiciárias têm sido publicadas desde 1845.

Ainda sobre as semelhanças com o direito inglês, no que concerne o Poder

Judiciário, este tem o mesmo papel preponderante, tanto na Índia como na Inglaterra.

Conforme narra René David22, os indianos depositam a sua confiança num bom processo,

decalcado do processo inglês, para atingir uma solução justa quanto ao fundo – e segue –

A psicologia dos seus juristas e dos seus juízes é, por outro lado, a dos juristas e juízes,

com o mesmo prestígio ligado à função judiciária.

Não existe distinção entre direito público e direito privado, a exemplo do modelo

da common law.

22 DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 575.

60

Panorama atual

O serviço judiciário da Índia, que conquistou uma boa reputação pela sua coragem

e espírito de independência, e que avançou por novos terrenos dentro da ação judiciária,

sofre de males diversos. No entanto, a população investiu muito em confiança e

consideração por ele.

O que a Índia tem a ensinar em termos jurídicos é justamente a sua batalha, ainda

não totalmente vitoriosa, pela prevalência do Estado de Direito, contra a corrupção e pela

igualdade social. Para tanto, optou pela supressão de alguns formalismos processuais em

casos como os de afronta aos direitos fundamentais das pessoas e quando ocorrentes

outras irregularidades graves, luta essa assumida por um Judiciário decidido a ocupar seu

lugar na vida do país.

61

Conclusão

Adentrar o direito estrangeiro não é tarefa fácil. Mas o interessante é que por meio

do estudo comparativo, acabamos por ter uma melhor compreensão do desenvolvimento

do direito e adquirimos diversas visões sobre o assunto.

É evidente que não existe um direito melhor do que o outro. Sobretudo porque as

sociedades existentes em cada país são muito diferentes, seguem suas próprias tradições e

culturas, têm seus próprios princípios de ética e moral e isto tudo reflete em cada sistema

jurídico.

No Brasil, o sistema jurídico necessita de reformulações. O excesso de processos e

a lentidão decorrem mais da estrutura deficitária do que da ausência de mudança

legislativa.

Sobre a legislação, esperamos que algum dia o nosso legislador resolva facilitar os

procedimentos judiciais, reduzindo burocracias, limitando a utilização de recursos,

centralizando os órgãos jurisdicionais ao invés de descentralizar, o que gera muito custo.

Enfim, há um longo caminho a ser percorrido e esperamos que este esteja livre de

interferências políticas. Aí, então, teremos um Processo Civil mais ágil e efetivo.

Em conclusão, enquanto não soubermos quais as medidas necessárias para tornar

nosso mundo plenamente justo, devemos fazer o que está ao nosso alcance, cumprindo

com os deveres de cidadãos conscientes para melhorá-lo.

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